Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
33637/15.3T8LSB.L1-6
Relator: NUNO SAMPAIO
Descritores: COOPERATIVA
DEMISSÃO DE COOPERADOR
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O art.º 36º, n.º 3 do anterior Código Cooperativo, aprovado pela Lei n.º 51/96, de 7 de Setembro, aplicável por remissão do n.º 1 do art.º 24º do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação (DL n.º 502/99, de 19 de Novembro), previa a restituição ao cooperador que se demitisse do montante dos título de capital realizados segundo o seu valor nominal “...no prazo estabelecido pelos estatutos ou, supletivamente, no prazo máximo de um ano”.
A estatuição de um prazo estatutário ou supletivo pretendia significar a fixação de um período de tempo, maior ou menor, decorrido o qual resultavam consequências para quem o convencionou ou a ele ficou legalmente sujeito.
Tal imposição não é compatível com os estatutos de uma sociedade cooperativa que prevêem a liquidação “…logo que a Cooperativa encontre um cooperador substituto” e “…quando o seu lugar for preenchido por outro Cooperador suplente, ou, na sua ausência, por novo Cooperador por si indicado, e após este realizar a totalidade da quantia a restituir”.
O direito de livre demissão do cooperador decorre dos art.ºs 24º, n.º 1 do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação e 36º, n.ºs 1 e 2 do anterior Código Cooperativo, designadamente deste n.º 2 ao estatuir que “Os estatutos não suprimirão ou limitarão o direito de demissão, podendo, todavia, estabelecer regras e condições para o seu exercício”.
Consequentemente, à demissão de um cooperador e ao exercício dos direitos de reembolso de quaisquer quantias a que possa ter direito, a aplicação do instituto do abuso do direito exige especiais cautelas e atenta consideração dos factos provados e não provados.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa


IRelatório


Autora/recorrente:
Rosa ..., residente em...

Ré/recorrida:
CCCX - Habitação Cooperativa CRL, com sede...

Pedidos:
A declaração de nulidade das cláusulas 8.ª n.º 4 dos Estatutos da Ré e 4.ª do acordo de transferência de posição, por violadoras dos art.ºs 20.º e 24.º do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação na parte a que se referem a condições adicionais para o reembolso dos títulos de participação;
A condenação da Ré no pagamento à A. da quantia de € 18.000,00, acrescida de juros de mora à taxa de 4% contabilizados desde a data da interpelação, 26/02/2015, até integral pagamento.

Fundamentos:
Em 1998 a A. tornou-se membro de uma cooperativa de habitação visando a aquisição de uma casa próxima da residência dos seus pais, tendo pago a taxa de inscrição e as quotas mensais. Em 2012 e 2013 subscreveu dois acordos de transferência de posição entre sociedades cooperativas, o último dos quais para a ora Ré, que incluiu uma cláusula prevendo as condições de desistência do programa habitacional. De 1998 a 2013 realizou entregas no valor global de 35.299,24€ às duas anteriores sociedades cooperativas, integralmente transferidos para a Ré. Em 26/2/2015 a A. comunicou-lhe a sua desistência de cooperadora mas nunca lhe foram restituídos os títulos de participação entregues, no valor de 18.000,00€.
A Ré fundamentou a recusa na validade dos seus estatutos e da cláusula do acordo de transferência de posição, além de que a A. nunca lhe entregou qualquer quantia e que apenas detinha um potencial crédito que seria descontado ao preço final do fogo que resolvesse adquirir.

Sentença:
A acção foi julgada improcedente, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos.

Conclusões da apelação:
A. O instituto do abuso de direito não é aplicável à posição da A.
B. Os pressupostos de aplicação do abuso de direito não se encontram preenchidos.
C. Em primeiro lugar, o comportamento da A. não criou qualquer confiança na R. de que conhecia a forma como se processava a transferência dos saldos contabilísticos e o reembolso dos valores entregues.
D. Com efeito, os dois acordos tripartidos denominados de “transferência de posição” são efectivamente acordos de cessão de posição contratual entre as cooperativas, dado que mantêm as obrigações principais do contrato celebrado com a cooperativa inicial XPX.
E. Também a assinatura de toda a documentação da cooperativa inicial, XPX e da R. pertencem ao Sr. Manuel... ou a Jorge..., o primeiro enquanto representante legal de ambas as cooperativas e o segundo enquanto seu vice-presidente, conforme docs. 4 e 5 da petição.
F. O email da R. é também cccx@xpx.pt conforme consta no documento 9 junto com a contestação.
G. Inclusivamente, as cooperativas têm a mesma sede, pelo que, na verdade, tudo se manteve, na aparência, como se os acordos fossem uma mera formalidade para proceder à substituição da cooperativa.
H. A indicação constante dos acordos de que, através da transferência de posição, se iria proceder à “transferência do saldo contabilístico” não é, aos olhos de um declaratário normal, revelador da forma como tal transferência é realizada.
I. A simples assinatura dos acordos de transferência de posição não tem a virtualidade de gerar confiança na R. quanto à forma de processar a transferência.
J. A assinatura dos acordos, por parte da A., baseou-se no interesse, que mantinha, na aquisição do fogo a construir e que a levou também a aceitar a nomeação de secretária para Assembleia Geral da R.
K. Porém, atendendo a que o empreendimento se encontrava previsto para o ano de 2012 e tendo decorrido cerca de ano e meio desde a assinatura do último acordo (Novembro de 2013) até à demissão da A., não era, nem é, exigível que a A. se veja forçada a aguardar, sine die, pela construção do loteamento para reaver o que investiu.
L. Tornar a A. refém da construção do loteamento ou da sua substituição por outro cooperador que entregue todo o investimento realizado pela A. desde 1998, como parece defender o Meritíssimo Juiz a quo, isso sim, excede largamente os limites da boa-fé.
M. Também a participação enquanto secretária da mesa de uma única assembleia geral da R. não releva para o conhecimento da A. sobre os trâmites da demissão dos cooperadores.
N. Trata-se de um cargo menor e que ocorreu uma única assembleia pelo que é excessiva a extrapolação realizada pelo Meritíssimo Juiz a quo no sentido da convicção criada pela A. na R.
O. Acresce que para que se verifique abuso de direito é necessário que quem excedeu os limites da boa-fé e dos bons costumes o faça em termos tais que o comportamento seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
P. Ora, a A. está a reclamar a devolução do dinheiro que entregou há vários anos atrás, pelo que, ainda que se entenda, o que não se concebe, que a A. excedeu os limites da boa-fé, o comportamento da A. não se enquadra nos termos anteriores.
Q. Em segundo lugar, não se encontra preenchido o requisito de boa-fé da R.
R. As várias cláusulas de demissão previstas tanto nos Estatutos da R., como no acordo de transferência de posição, prevêem condições de reembolso de investimento contrárias ao determinado pelo Código Cooperativo e pelo Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação.
S. Ora, sendo a R. uma cooperativa e remetendo os seus estatutos para a referida legislação, é evidente que tinha conhecimento da ilegalidade da cláusula de demissão no que diz respeito às condições de reembolso do investimento dos cooperadores.
T. Pelo que mal andou o tribunal a quo quando determinou preenchida a “boa-fé subjectiva própria da pessoa que ignore estar a lesar posições alheias”.
U. Pois que, aquando da celebração dos acordos, a R. tinha perfeito conhecimento da violação de lei contida nos acordos e estatutos.
V. Aliás, havendo tanta coincidência entre a XPX e a R. ao nível do objecto, das pessoas e inclusivamente da sede, nem se compreende a razão da transição dos cooperadores.
W. Terá sido esta uma tentativa de defraudar a lei para que os cooperadores não possam ver os seus valores reembolsados? Realmente, nesta perspectiva, será muito fácil abrir e fechar cooperativas e deixar as demissões dos cooperadores e respectivos reembolsos para as cooperativas insolventes.
X. Mas certamente que não é esse o objectivo do legislador cooperativo.
Y. Em terceiro lugar, não houve qualquer investimento de confiança por parte da R. com base na actuação da A.
Z. Não foi praticado qualquer acto com base na ideia de que a A. teria aceite aquelas condições de reembolso ou a transferência de saldos, pois que, até à data, nada se encontra construído.
AA. Neste caso, foi a A. e apenas a A. que foi prejudicada uma vez que investiu o seu dinheiro, como se diz na gíria, em “saco roto”, sendo a R. quem dele beneficia.
BB. Isto é, a R. beneficia das entregas realizadas pela A. uma vez que recebe das anteriores cooperativas um trabalho de infra-estruturas pago com os referidos montantes, conforme mencionado na cláusula 1.ª do acordo de transferência de posição junto com contestação.
CC. Porém, a A. não obteve qualquer benefício desse investimento e, de acordo, com a douta sentença só lhe resta aguardar pela construção do empreendimento ou pelo milagre de encontrar alguém disponível para entregar € 18.000,00 à R. sem nada estar construído.
DD. Mais, de acordo com o entendimento constante da sentença, a R. beneficiaria, ad eternum, do acesso a fogos “livres de ónus e encargos” uma vez que o dinheiro entregue pela A. à cooperativa inicial e investido no trabalho de infra-estruturas do empreendimento apenas seria reembolsado quando o loteamento estivesse construído, caso venha a sê-lo!
EE. É esta a conclusão a que se chega com a sentença emitida pelo douto Tribunal a quo e que, salvo o devido respeito, viola os mais elementares princípios de justiça e equidade.
Nestes termos, requer-se a revogação da sentença na parte respeitante à aplicação do instituto do abuso de direito e a substituição por acórdão condenatório no pagamento pela R. do montante investido de € 18.000,00 acrescido de juros de mora desde a data da demissão.

Conclusões das contra-alegações.
A) A pretensão formulada pela Recorrente de que, a sentença que ora se submete à apreciação de V. Exas deverá ser revogada na parte referente ao abuso de direito na vertente venire contra factum proprium, é totalmente improcedente e infundada, isto porque, conforme se verifica, quer por todo o alegado supra, mas fundamentalmente pelo que resulta de toda a prova careada para os autos.
B) Assim, bem andou o Tribunal a quo ao determinar que efectivamente, nesta situação em concreto, existiu abuso de direito na vertente venire contra factum proprium, e cuja confirmação desde já se requer.
C) Deste modo, no caso concreto dos presentes autos, verificou-se a existência de um comportamento anterior da Recorrente susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança por parte da Recorrida.
D) Nomeadamente, com a assinatura de dois acordos similares num período de cerca de dois anos, em que a Recorrente sabia exactamente como o seu saldo contabilístico era transferido, bem sabendo que nunca tinha entregue qualquer valor à Recorrida.
E) Mais, de tal forma a Recorrente suscitou um investimento de confiança na Recorrida que, abordada a questão da Recorrente poder ir reclamar créditos no âmbito da insolvência da única Cooperativa (XPX) onde fez entregas de valores, a Recorrente optou por não fazê-lo, preferindo manter-se na situação em apreço, uma vez que, em termos práticos, mantinha as mesmas vantagens, ou seja, era a primeira da lista a poder escolher um fogo e usufruía de um desconto final aquando da aquisição do fogo por si escolhido.
F) Também com relevância para a situação em apreço, de referir que a situação anterior e actual Recorrente deve-se, exclusivamente, a si própria.
G) Isto porque, caso a Recorrente mantivesse a mesma postura inicial, uma de duas, ou já teria adquirido o seu fogo com a tipologia pretendida, ao pé dos seus pais, como pretendido e cujo fogo, relembre-se, lhe foi disponibilizado e recusou, ou, ainda se mantinha, tal como os restantes cooperadores, em lista de espera (no primeiro lugar da lista), com preferência sobre todos os outros, bem sabendo que toda esta situação está a ser desbloqueada junto da Câmara Municipal de Lisboa, único entrave à conclusão da segunda fase do Loteamento.
H) Há, também que referir, que a ora Recorrida sempre agiu de boa-fé, tendo ficado perplexa com a atitude da Recorrente.
I) Deste modo, e conforme resulta dos autos, a Recorrida sempre manteve relações cordiais com a Recorrente, tendo-a integrado na Cooperativa, tendo-lhe mesmo solicitado e esta aceitou, para desempenhar um cargo na sua estrutura, estando, assim, sempre a par de toda a situação da Recorrida e, no entanto, sempre aceitou.
J) Portanto, da parte da Recorrida, sempre existiu uma atitude de boa-fé, disponibilizando toda a informação e esclarecimentos aos seus cooperadores, entre os quais se integra a Recorrente.
K) Tal investimento de confiança, conforme resulta de toda a prova provada nos presentes autos sempre foi reciproca entre as partes, não se conseguindo perceber a actual atitude da Recorrente, a qual, agiu de forma completamente díspar com o seu comportamento actual.
L) Também de referir que, ao contrário do proferido em sede de sentença pelo Tribunal a quo, os Estatutos da Recorrida estão em conformidade com a Lei Cooperativa,
M) Só podendo os mesmos serem confirmados como válidos, o que se requer, uma vez que, considera a Recorrida que o Tribunal a quo fez uma má leitura dos mesmos em conjugação com o definido por lei.
N) Deste modo, refere o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 502/99 de 19 de Novembro que estabelece o regime jurídico das cooperativas do ramo de habitação e construção “as cooperativas de habitação e construção regem-se pelas disposições do presente diploma, e, nas suas omissões, pelo Código Cooperativo.”
O) Nessa senda, conforme refere a Recorrente, o pedido de demissão dos Cooperadores vem referido no art. 24.º do, Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação e construção, o qual, remete expressamente para os números 3 e 4 do art.º 36.º do Código Cooperativo.
P) Ora, dada a importância de tal norma, uma vez que é esta norma que rege a questão crise, passam-se a transcrever os números 3 e 4 do art.º 36.º do Código Cooperativo:
“3- Ao cooperador que se demitir será restituído, no prazo estabelecido pelos estatutos ou, supletivamente, no prazo máximo de um ano, o montante dos títulos de capital realizados segundo o seu valor nominal.
4- O valor nominal referido no número anterior será acrescido dos juros a que tiver direito relativamente ao último exercício social, da quota-parte dos excedentes e reservas não obrigatórias repartíveis, na proporção da sua participação, ou reduzido, se for caso disso, na proporção das perdas acusadas no balanço do exercício no decurso do qual surgiu o direito ao reembolso.” (negrito e sublinhado nosso)
Q) Assim, resulta expresso que, após a demissão da Recorrente, deverá ser seguido o que se encontra expressamente previsto nos estatutos da cooperativa em questão e que só no caso de nada se dizer é que SUPLETIVAMENTE será efectuado o pagamento do montante dos títulos de capital, no prazo de 1 ano!
R) Ora, compulsados os acordos de transferência em questão, assim como os próprios estatutos da ora Recorrida, em todos, vem expressamente referido a forma de devolução!
S) Também nesta senda, veja-se o Douto Acórdão proferido por esta Relação de Lisboa, que nos termos do processo n.º 7613/10.0TBOER.L1-2, datado de 14 de Julho de 2011 in www.dgsi.pt manifesta o mesmo entendimento agora exposto:
“1- De acordo com o art.º 1º do DL 502/99 de 19/11 - «as cooperativas de habitação e construção e as suas organizações de grau superior regem-se pelas disposições do presente diploma, e, nas suas omissões, pelo Código Cooperativo».
2- Será à luz dessa disposição que se deverá interpretar a remissão do art.º 9º do Código Cooperativo (emergente da L 51/96 de 7/9) para «a legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo», devendo colmatarem-se as lacunas que se encontrem nessa legislação específica – do DL 502/99 de 19/11- pelas disposições do Código Cooperativo, e as que neste se venham a encontrar, por recurso ao Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas, embora apenas na medida em que não desrespeitem os princípios cooperativos”.

T) Continuando, refere este mesmo Acórdão, referindo:
“Está em questão saber se a demissão do A. da qualidade de membro da Cooperativa R. não constitui a mesma na obrigação de devolução imediata dos valores entregues pelo A. a título de “poupanças obrigatórias”, só sendo possível a devolução desse valor aquando da rentabilização do programa no qual foram entregues essas poupanças”.

U) Seguindo este mesmo entendimento, referem, quer os Acordos de Transferência, quer os Estatutos da Recorrida que a Recorrente poderia ser ressarcida de várias formas, a saber:
1– De forma faseada, aquando da rentabilização do programa em que a Recorrente se inscreveu, ou;
2– Através de outro cooperador suplente que ocupe o seu lugar, ou;
3 Por substituição de um novo cooperador que ocupe o seu lugar.

V) Mais, até hoje a Recorrida, enquanto Cooperativa de Habitação, tendo os seus estatutos registados na CASES, nunca foi por esta instituição questionada quanto à validade dos seus estatutos, antes pelo contrário, ao longo dos tempos tem fomentado o trabalho da Recorrida,
W) Ou seja, efectivamente, em termos legais, não há qualquer violação legal dos estatutos da Recorrida, pelo que, só podem os mesmos ser considerados válidos!
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas, Venerandos Desembargadores, se deverá confirmar a sentença recorrida julgando-se completamente improcedente a acção instaurada pelo ora Recorrente, e assim não se entendendo, declarar os estatutos da Recorrida como válidos nos termos supra referidos, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

Questões a decidir na apelação:
- Nulidade das cláusulas 8.ª n.º 4 dos Estatutos da Ré e 4.ª do acordo de transferência de posição por violadoras dos art.ºs 20.º e 24.º do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação;
- Abuso do direito por parte da A.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

IIApreciação do recurso

Factos provados:
1. A Autora, através dos seus pais, solicitou, em 1998, a inscrição como membro de “XPX, C.R.L.”, tendo-lhe sido atribuído o número 1471.
2. A “XPX, C.R.L.”, pessoa colectiva n.º 501..., é uma cooperativa de habitação económica, cujo objecto social principal é a construção ou promoção da aquisição de fogos para habitação dos seus membros, e a gestão, reparação, manutenção ou remodelação dos fogos construídos e espaços envolventes.
3. A Autora tornou-se membro da referida cooperativa visando a aquisição de uma casa para habitação própria, no Programa Habitacional denominado (...) – 2.º Loteamento, em Lisboa.
4. O local onde se encontrava prevista a Urbanização (...) – 2º Loteamento é perto da residência dos pais da Autora, factor importante para a sua escolha.
5. A construção do referido loteamento estava prevista para meados de 2012.
6. Com esse objectivo, a Autora pagou uma taxa de inscrição no valor de € 250,00 e, desde 1998, quotas mensais no valor de € 75,00 cada sendo que, desde Abril de 2010, liquidou € 100,00 a título de participação mensal no programa, cujo pagamento era condição para lhe ser atribuída uma casa para habitação.
7. A Autora entregou até 9 de Março de 2010, data da celebração com “XPX, C.R.L.” do contrato de integração em programa habitacional, a quantia de €12.500,00.
8. Por missiva datada de 3 de Dezembro de 2012, subscrita pelo Presidente da Direcção, Manuel Fernando Martins Tereso, a Autora tomou conhecimento que a XPX apresentou Processo Especial de Revitalização com o n.º 2033/12.5TYLSB.

9. Em 31 de Janeiro de 2012 a Autora, “XPX, CRL” e “GGG – Urbanização (...) II, CRL”, subscreveram “ACORDO DE TRANSFERÊNCIA DE POSIÇÃO”, constante de fls. 72 verso, 73, 73 verso e 74, dos autos, com o seguinte teor:
Primeiro:
Rosa ..., (estado civil), portador do bilhete de identidade nº. 12..., emitido em 2005-03-23, em Lisboa, NIF22..., residente em ..., Cooperador nº 1471 da XPX, CRL, adiante designado por Cooperador Individual;
Segundo:
XPX, CRL, NIPC 501 916 350, com sede na Rua ... Lisboa, adiante designada por Cooperativa de Base ou XPX;
Terceiro:
GGG – Urbanização (...) II, CRL, NIPC 504 ..., com sede em Rua ... Lisboa, adiante designada por GGG II,
Considerando que:
A) A União ..., CRL, adiante designada por União de Cooperativas, promoveu o loteamento e realização das respectivas infraestruturas do empreendimento Vale Formoso, primeira fase, na Rua ..., em Lisboa;
B) Fazem parte da União de Cooperativas vinte e uma cooperativas, designadas Cooperativas de Base;
C) As Cooperativas de Base XPX, (...) formaram um agrupamento e constituíram a GGG – Urbanização (...) II, CRL, para promoção e desenvolvimento de três lotes para habitação no empreendimento ..., primeira fase, já concluídos;
D) No desenvolvimento desse empreendimento, ficou estabelecido com a Fenache, no âmbito do protocolo celebrado entre esta Federação e o Município de Lisboa, a faculdade de promoção, numa segunda fase, de cerca de 155 fogos, em terreno municipal, sito na Rua ... Cima, dos quais cerca de 15 fogos se destinam a Cooperadores da XPX;
E) Ficaram empenhadas na segunda fase do empreendimento Vale Formoso, onze cooperativas, associadas aos diversos agrupamentos de cooperativas, das quais cinco pertencem à GGG – Urbanização (...) II, CRL, a saber: XPX, CRL; (...);
F) A União de Cooperativas desenvolveu trabalhos de infra-estruturas inerentes à segunda fase, em prol das onze cooperativas de base aderentes à segunda fase;
G)Por força da parceria entre as sete Cooperativas de Base agrupadas na GGG II, cada cooperativa, em representação do conjunto dos seus cooperadores, tem um voto nas decisões da GGG II;
H)Independentemente de os Cooperadores de cada uma das Cooperativas de Base serem cooperadores da GGG II, como Cooperadores individuais, os direitos de voto na GGG II são por Cooperativa de Base ou por conjunto de cooperadores em substituição da Cooperativa de Base, no caso de transferência de posição da Cooperativa de Base ou saída desta do Programa por qualquer causa e ficando os cooperadores, de modo a assegurar a igualdade entre cada um dos conjuntos de cooperadores interessados no Programa;
I)A Câmara Municipal de Lisboa está a desenvolver a aprovação da cedência do direito de superfície de duas parcelas de terreno para construção, nas condições previstas no protocolo CML/Fenache;
J)O processo técnico e administrativo tendente a constituir, registar e escriturar o referido lote a favor das Cooperativas, tem vindo a ser desenvolvido desde 1998;
K)É o interesse dos membros da XPX, inscritos neste empreendimento, inscreverem-se na GGG II e constituírem-se num conjunto de Cooperadores individuais.
É celebrado e reciprocamente aceite o presente acordo de transferência de posição, que se rege pelos considerandos supra e pelas cláusulas seguintes:
1.O Cooperador individual é admitido como Cooperador da GGG II, com a correspondente transferência do seu saldo contabilístico existente na XPX e investido nas infra-estruturas pela União de Cooperativas, actualmente de 35.299,24€, e da sua posição na lista ordenada do Programa em vigor na XPX.
2.O Cooperador individual manterá a sua qualidade de membro da Cooperativa XPX, enquanto o desejar.
3.No caso de o Cooperador individual querer desistir do programa, poderá solicitar a sua demissão e a transferência dos seus valores para a XPX, se entretanto se tiver mantido como seu Cooperador.
4.Caso o Cooperador individual desista do programa e não queira retomar a sua posição na XPX, ser-lhe-á aplicado o estabelecido nas condições preexistentes na XPX, nomeadamente no Contrato de Integração, que se anexa.
5.Do saldo referido em 1.o valor de 14.348,94€ será creditado na sua conta associado na GGG II e o remanescente no valor de 20.950,30€ só será creditado se a conta da reserva de construção, a apurar no momento da definição do preço final do fogo, o tornar possível.
6.De acordo com a aplicação do referido na cláusula anterior, se ainda restar saldo da reserva de construção do fogo atribuído ao Cooperador individual subscritor, o mesmo será creditado à XPX.
7.Sendo os actuais membros da GGG II Cooperativas de Habitação, cada uma com direito a um voto na respectiva Assembleia Geral, o Cooperador individual aceita manter este princípio e, juntamente com os demais Cooperadores individuais vindos da XPX, delega a sua representação na XPX ou, em sua substituição, num elemento nomeado pelo conjunto dos cooperadores.
8.O Cooperador individual inscrito na GGG II, através deste Acordo de Transferência de Posição, aceita que os assuntos pendentes de decisão da GGG II, relativos ao primeiro programa habitacional da Urbanização (...), sejam tratados exclusivamente pelos actuais cooperadores da GGG II que integraram esse primeiro programa, renunciando interferir nessas decisões e, consequentemente, ao respectivo direito a voto e a outros direitos conferidos pelas mesmas. De igual modo, os referidos futuros Cooperadores individuais não suportarão as obrigações provenientes daquelas decisões.
9.Decorrente da transferência de posição, o Cooperador individual fica titular directamente na GGG II do direito na atribuição de um dos fogos, nas condições estabelecidas no considerando D) e na cláusula 1ª, obrigando-se a efectuar as entregas e amortizações para o empreendimento que se vierem a determinar.
10.O Cooperador individual obriga-se a manter actualizados na GGG II o seu endereço e contactos.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2012.”.
10. Em 8 de Novembro de 2013 a Autora, “GGG – Urbanização (...) II, CRL”, e a Ré, subscreveram “ACORDO DE TRANSFERÊNCIA DE POSIÇÃO”, constante de fls. 75, 75 verso, e 76, dos autos, com o seguinte teor:
“Primeiro:
Rosa ..., com o cartão de cidadão nº. 12839522 e NIF221770240, com residência na Rua ..., Lisboa, adiante designada por Cooperadora;
Segundo:
CCCX, CRL, NIPC 503 ..., com sede na Rua ... Lisboa, adiante designada por CCCX;
Terceiro:
GGG – Urbanização (...) II, CRL, NIPC 504 ..., com sede em Rua ... Lisboa, adiante designada por GGG II,
Considerando que:
A)A Cooperadora se fez membro da GGG II como forma de melhor participar no desenvolvimento do empreendimento ..., segunda fase, em conjunto com os demais membros das Cooperativas de base integrantes da GGG II;
B)Por razões da crise instalada no sector imobiliário em geral, com particular incidência no movimento cooperativo habitacional, o desenvolvimento do empreendimento se tem atrasado;
C)Os membros das demais Cooperativas de base não se fizeram membros da GGG II, o que dificulta a sua gestão corrente;
D)A Cooperadora não pode voluntariamente regressar à cooperativa de base XPX, CRL, porquanto esta foi declarada insolvente, o que impede a sua representação na GGG II conforme previsto contratualmente;
E)A Cooperadora manifestou interesse em se inscrever numa entidade cooperativa que a represente junto dos diferentes intervenientes no processo do programa habitacional (...), segunda fase, nomeadamente: FENACHE, Urbanização (...), UCRL e Câmara Municipal de Lisboa;
F)A Urbanização (...), UCRL já é detentora das parcelas de terreno destinadas a promover a construção de cerca de 140 fogos destinados aos membros das Cooperativas aderentes a este programa habitacional;
G)A CCCX é filiada na FENACHE e membro da Urbanização (...), UCRL, estando em condições de aceder aos fogos a construir na segunda fase do empreendimento do Vale Formoso.
É celebrado e reciprocamente aceite o presente acordo de transferência de posição, que se rege pelos considerandos supra e pelas cláusulas seguintes:
1.A Cooperadora é admitida como membro da CCCX – Habitação Cooperativa, CRL, com a correspondente transferência dos seus saldos contabilísticos existentes na GGG – Urbanização (...) II, CRL, no montante de 35.299,24€, conforme consta no Anexo 1;
2.Do saldo referido em 1, o valor de 14.348,94€ será creditado na respectiva conta associado na CCCX, e resulta de valores transferidos para a Urbanização (...), UCRL;
3.O remanescente no valor de 20.950,30€ só será creditado na conta individual do Cooperador, se a conta de reserva de construção, a apurar no momento da definição do preço final do fogo, o tornar possível.
4.Caso a Cooperadora desista deste Programa Habitacional, independentemente do motivo, os saldos atrás referidos serão restituídos quando o seu lugar for preenchido por outro Cooperador suplente, ou, na sua ausência, por novo Cooperador por si indicado, e após este realizar a totalidade da quantia a restituir.
5.De acordo com a aplicação do referido na cláusula terceira, se ainda restar saldo da reserva de construção do fogo atribuído ao Cooperador, o mesmo será creditado nas reservas da CCCX.
6. Decorrente deste acordo de transferência de posição, a GGG II e a CCCX farão comunicação escrita conjunta à Fenache e à Urbanização (...), UCRL, para garantia das transferências e contabilização de saldos e do direito na atribuição de fogo ao Cooperador;
7.Este acordo fará parte do processo de adesão da Cooperadora à CCCX, CRL;
8. Com este acordo a Cooperadora deixa de ser membro da GGG II e ambos declaram nada terem a receber um do outro.
Lisboa, 8 de Novembro de 2013.”.
11. No Anexo 1 do indicado Acordo de Transferência de Posição que antecede,
consta, designadamente:
“Empreendimento (...)  (segunda fase)        Anexo 1
Nome                                                             Crédito           Condição (reserva construção)
Rosa ...                                                                      14.348,94€    20.950,30€”.

12. Foi atribuído à Autora o número 15 de cooperadora da Ré.
13. A Ré informou a Autora que estava em primeiro lugar para a atribuição do fogo.
14. Em 8 de Fevereiro de 2014 a Autora tomou posse como Secretária da Mesa da Assembleia geral da Ré.
15. O artigo 8.º, n.º 4, dos Estatutos da Ré, tem o seguinte teor:
Aos membros excluídos ou demitidos serão restituídos no prazo máximo os títulos de Capital realizados. Outros valores aplicados a que tiverem direito até à data da sua exclusão ou demissão, serão liquidados logo que a Cooperativa encontre um cooperador substituto”.
16. Pela Apresentação 39/20150414 mostra-se inscrita a dissolução e liquidação de “GGG- Urbanização (...) II, CRL”.
17. Entre 1998 e 2013 a Autora realizou entregas no valor global de € 35.299,24, integralmente transferidos para a Ré.
18. A Autora não entregou quantias à Ré.
19. Em 11 de Março de 2014, a Ré reencaminhou à Autora a mensagem de correio electrónico constante a fls. 79 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
20. A Autora não compareceu à reunião de condóminos da Ré do dia 22 de Março de 2014, que havia sido comunicada pelo indicado correio electrónico de 11 de Março de 2014.

21. Em Assembleia Geral da Ré realizada no dia 26 de Março de 2014, o Presidente da Direcção desta “(…) explicou à Assembleia o ocorrido com os custos financiados pelas onze cooperativas implicadas nos empreendimentos e com o pagamento, sob a forma de apartamentos, por parte da CML à união de cooperativas. Referiu-se ao processo de atribuição de dois apartamentos pelos cooperadores, de acordo com os regulamentos internos. Sinalizou igualmente o facto de ter sido atribuído à CCCX a comercialização de um apartamento T3, cujo contrato de compra deverá ser assinado até dia quatro de abril e a escritura realizada até trinta e um de maio do corrente ano. De seguida, apurou o número de cooperadores eventualmente interessados neste apartamento, dando a informação de que os cooperadores não presentes na AG serão informados e contactados para demonstrarem o seu interesse/desinteresse, para então ser ordenada a lista dos candidatos de acordo com os regulamentos (…)”.

22. A Autora esteve representada na indicada Assembleia, por seu pai.
23. No dia 27 de Março de 2014, a Ré enviou à Autora a mensagem de correio electrónico de fls. 82 verso, onde consta:
(…)
Caro(a) Cooperador(a)
Foi atribuída à CCCX a comercialização, junto dos seus membros, de um apartamento T3 (a estrear) no empreendimento do Vale Formoso.
Temos de seleccionar um candidato, cumprindo os regulamentos em vigor, até ao próximo dia 4 de Abril.
Assim sendo, enviamos em anexo elementos sobre o apartamento em causa, sendo de notar o seguinte:
- o candidato seleccionado terá de celebrado de imediato um Contrato Promessa de Compra e Venda, com um sinal de 36.200,00€;
- a escritura de compra e venda terá de ser celebrada até ao final do próximo mês de Maio.
Solicitamos assim que nos façam saber com urgência, por esta mesma via, do vosso interesse em apresentar candidatura à aquisição deste apartamento.
Estamos em condições de proporcionar de imediato uma visita ao apartamento e prestar todos os esclarecimentos adicionais, agradecendo que nos contactem por esta via ou pelos telefones:
21...
91...
Saudações
A Direcção”.

24. A Autora não aceitou o indicado T3 disponibilizado.

25. A 27 de Maio de 2014 a Ré devolveu à Autora o montante de €17.299,24, tendo esta subscrito o documento constante a fls. 59 dos autos, com o seguinte teor:
RECIBO/DECLARAÇÃO
Rosa ..., Cooperadora nº 15, declara ter recebido o valor de 14.348,94€ (catorze mil trezentos e quarenta e oito euros e noventa e quatro cêntimos), correspondente à totalidade do valor expresso na cláusula 2ª do ACORDO DE TRANSFERÊNCIA DE POSIÇÃO subscrito em 8 de Novembro de 2013.- Declara igualmente ter recebido o valor de 2.950,30€ (dois mil novecentos e cinquenta euros e trinta cêntimos), donde o saldo de 20.950,30€ (vinte mil novecentos e cinquenta euros e trinta cêntimos) conforme referido na cláusula 3ª do mesmo “ACORDO DE TRANSFERÊNCIA DE POSIÇÃO” foi reduzido para 18.000,00€ (dezoito mil euros), e que o mesmo só será creditado na conta individual da Cooperadora, se a conta de reserva de construção, a apurar no momento da definição do preço final do fogo a adquirir através da Cooperativa, o tornar possível.
Declara também ter conhecimento de que para se manter como Cooperadora efectiva no empreendimento do Vale Formoso terá de cumprir com as futuras obrigações financeiras, a definir entre todas as Cooperativas integrantes do empreendimento.
Assinatura do Cooperador.
Lisboa, 27 Maio 2014”.

26. Por e-mail datado de 13 de Novembro de 2014, a Ré convocou os Cooperadores para Assembleia Geral a ter lugar no dia 29 de Novembro de 2014 pelas 15:00 horas.
27. Em 17 de Novembro de 2014 a Ré confirmou a recepção do e-mail.
28. Por e-mail de 21 de Novembro de 2014 a Ré enviou aos Cooperadores ficha de inscrição para o Empreendimento (...) – Parcela B e condições de inscrição.
29. Por e-mail datado de 1 de Dezembro de 2015 a Ré enviou aos cooperadores circular a propósito das deliberações tomadas na Assembleia Geral de 29 de Novembro de 2014 e chamou a atenção para o prazo de inscrição no empreendimento (...) – Parcela B, a terminar no dia 9 de Dezembro de 2014.
30. Ainda não foi efectuada qualquer construção no local onde se encontra prevista a construção da Urbanização (...) II, tendo sido formulado junto da Câmara Municipal de Lisboa, em 15 de Janeiro de 2016, pedido de licenciamento.

31. Por carta registada datada de 26 de Fevereiro de 2015, constante a fls. 35, a Autora efectuou a seguinte comunicação à Ré, que a recebeu:
ASSUNTO: DESISTÊNCIA DE COOPERADORA – NOVA HABITAÇÃO
COOPERATIVA/ROSA .../COOPERADORA N.º 15
Exmos. Senhores
Venho pelo presente nos termos do disposto no art. 36.º do Código Cooperativo, apresentar a minha demissão enquanto cooperadora da XPX, CRL, e bem assim do programa habitacional (...) – 2.º Loteamento.
Com efeito, desde 1994 até ao momento, nada foi construído para concretizar o referido programa.
Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 20.º do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação, solicito a V. Exas. que procedam à entrega, no prazo máximo de 8 dias, do valor de €18.000,00 correspondentes aos títulos de participação entregues com o fim de adquirir um fogo no referido programa.
Com os melhores cumprimentos,
Rosa ...”.

32. A Ré respondeu à Autora nos termos da carta datada de 4 de Março de 2015, constante a fls. 39, onde consta:
Exma. Senhora,
Acusamos recebida a sua carta, datada de 26 de Fevereiro, cujo teor registamos.
Relativamente ao pedido de demissão de membro da CCCX, CRL, informamos que o mesmo foi aceite e a restituição dos títulos de capital será processada de acordo com o artigo 36º do Código Cooperativo e o número 4 do artigo 8º dos Estatutos da CCCX.
Quanto ao demais a que se refere a sua carta. Mantivemos aquilo que se encontra acordado e vertido no “Acordo de Transferência de Posição” celebrado com V. Exa. em 8 de Novembro de 2013 e que era aliás condição para a sua admissão nesta Cooperativa.
Relembramos, por último, que já recebeu a totalidade da verba inscrita na cláusula 2ª daquele Acordo, sendo que o remanescente do valor inscrito na cláusula 3ª, terá o tratamento previsto naquele clausulado.
Caso queira rever o seu pedido de demissão e manter-se com os mesmos direitos dos Cooperadores, queira informar-nos no prazo de 15 dias.
Sem outro assunto de momento, com os melhores cumprimentos, subscrevemo-nos
De V. Exa.
Atentamente,
CCCX, CRL
A Direcção”.

Não provado:
a)- Que é impossível à Autora encontrar outro cooperador que esteja na disponibilidade de entregar o montante a reembolsar à mesma.
Enquadramento jurídico:

1ª questão: nulidade das cláusulas 8.ª n.º 4 dos Estatutos da Ré e 4.ª do acordo de transferência de posição por violadoras dos art.ºs 20.º e 24.º do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação.
Nos presentes autos está em causa a demissão da A. de uma cooperativa de habitação e o alegado direito à restituição dos títulos de participação entregues, no valor de 18.000,00€.
Apoia a sua pretensão na nulidade das cláusulas 8.ª n.º 4 dos Estatutos da Ré e 4.ª do acordo de transferência de posição, por violadoras dos art.ºs 20.º e 24.º do Regime Jurídico das Cooperativas de Habitação (DL n.º 502/99, de 19 de Novembro) na parte a que se referem a condições adicionais para o reembolso dos títulos de participação.

O artigo 8.º, n.º 4, dos Estatutos da Ré, tem o seguinte teor:
Aos membros excluídos ou demitidos serão restituídos no prazo máximo os títulos de Capital realizados. Outros valores aplicados a que tiverem direito até à data da sua exclusão ou demissão, serão liquidados logo que a Cooperativa encontre um cooperador substituto”.
Do acordo de transferência de 8 de Novembro de 2013, reproduzido no facto n.º 10, consta uma cláusula 4.ª redigida nestes termos:
“Caso a Cooperadora desista deste Programa Habitacional, independentemente do motivo, os saldos atrás referidos serão restituídos quando o seu lugar for preenchido por outro Cooperador suplente, ou, na sua ausência, por novo Cooperador por si indicado, e após este realizar a totalidade da quantia a restituir”.
O tribunal recorrido, embora viesse a julgar improcedente a acção com fundamento em abuso de direito por parte da A., começou por reconhecer as invocadas nulidades argumentando da seguinte forma:
Sendo princípio do direito cooperativo o princípio do livre acesso e, por inerência, o direito à demissão, que não pode ser suprimido nem limitado, o mencionado artigo 8.º, n.º 4, dos Estatutos da Ré e a cláusula 4.ª do acordo de transferência de posição celebrado entre a Autora e a Ré, ao condicionarem o reembolso dos títulos de participação à existência de um cooperador substituto ou ao preenchimento do lugar da Autora por outro cooperador suplente ou, na sua ausência, por cooperador indicado pela Autora, e após este realizar a totalidade da quantia a restituir, viola necessariamente o disposto no artigo 24.º, do regime jurídico das cooperativas de habitação e construção que prevê o reembolso sem condicionantes (a não ser pagamento em prestações previsto nos estatutos) dos títulos de participação”.

Nas suas contra-alegações a Ré veio defender a conformidade dos seus Estatutos com a Lei Cooperativa, sintetizando a sua argumentação nas conclusões L) a W).
Para o efeito invocou e transcreveu os n.ºs 3 e 4 do art.º 36º do Código Cooperativo, concluindo em Q) resultar expresso “…que, após a demissão da Recorrente, deverá ser seguido o que se encontra expressamente previsto nos estatutos da cooperativa em questão e que só no caso de nada se dizer é que SUPLETIVAMENTE será efectuado o pagamento do montante dos títulos de capital, no prazo de 1 ano!”; acrescenta em R) que “… compulsados os acordos de transferência em questão, assim como os próprios estatutos da ora Recorrida, em todos, vem expressamente referido a forma de devolução!”; e, em V), que tem os seus estatutos registados na CASES e esta instituição nunca questionou a sua validade.

A falta de actuação desta entidade está longe de constituir um argumento decisivo ou sequer significativo. Vejamos porquê.

Consta do art.º 24º do regime jurídico das cooperativas de habitação:
1- Em caso de demissão ou exclusão, o cooperador terá direito ao reembolso previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 36.º do Código Cooperativo, acrescido do valor dos títulos de participação realizados nos termos do artigo 20.º deste diploma, com os respectivos juros.
2- (…)
3- Os estatutos poderão prever que o reembolso previsto no n.º 1 deste artigo se faça em prestações, com ou sem juros”.

O seu confronto com os estatutos e com a cláusula do acordo de transferência é suficiente para evidenciar o condicionamento afirmado na sentença e legitima a consequente conclusão do tribunal recorrido pelas correspondentes nulidades.
Mas há mais do que isso e é precisamente a recorrente, ao defender-se com o art.º 36º do Código Cooperativo, que abre a porta a uma abordagem e a um resultado diverso daquele que pretendia.
É consensual entre as partes e o tribunal de 1ª instância que o Código Cooperativo aplicável ao caso dos presentes autos, por remissão do citado n.º 1 do art.º 24º, não é o vigente mas o seu antecessor, aprovado pela Lei n.º 51/96, de 7 de Setembro.

Dispunha o art.º 36º, sob a epígrafe “demissão”, nos seguintes termos:
1- Os cooperadores podem solicitar a sua demissão nas condições estabelecidas nos estatutos ou, no caso de estes serem omissos, no fim de um exercício social, com pré-aviso de 30 dias, sem prejuízo da responsabilidade pelo cumprimento das suas obrigações como membros da cooperativa.
2- Os estatutos não suprimirão ou limitarão o direito de demissão, podendo, todavia, estabelecer regras e condições para o seu exercício.
3- Ao cooperador que se demitir será restituído, no prazo estabelecido pelos estatutos ou, supletivamente, no prazo máximo de um ano, o montante dos títulos de capital realizados segundo o seu valor nominal.

A remissão que o n.º 1 do art.º 24º faz para este n.º 3, no âmbito do direito ao reembolso, é direccionada para o “prazo estabelecido pelos estatutos” ou, sendo os estatutos omissos a tal respeito, para o prazo supletivo de um ano.
Com esta palavra pretende-se significar a fixação um período de tempo, maior ou menor, decorrido o qual resultam consequências para quem o convencionou ou a ele ficou legalmente sujeito; pressupõe uma data limite da qual, uma vez atingida, decorrem consequências.
Recordando as transcrições do art.º 8.º, n.º 4, dos Estatutos da Ré e da cláusula 4ª do acordo de transferência, o que encontramos é a previsão da liquidação “…logo que a Cooperativa encontre um cooperador substituto” e “…quando o seu lugar for preenchido por outro Cooperador suplente, ou, na sua ausência, por novo Cooperador por si indicado, e após este realizar a totalidade da quantia a restituir”.

É por demais evidente que nem um nem outro prevêem um prazo, maior ou menor do que o supletivo, limitando-se a estabelecer condições que, no pior cenário, podem não se vir a concretizar; e um prazo que não é concretizado nem concretizável não é um prazo, o que equivale à sua inexistência, em manifesto desrespeito pela lei.

E será possível uma situação dessas?

Evidentemente que sim e o caso dos autos é elucidativo: em 1998 uma cooperativa propõe-se iniciar a construção de um loteamento em meados de 2012 e, nada construindo, só em Janeiro de 2016 a sua segunda sucessora pede o licenciamento à competente Câmara Municipal.

Independentemente das razões do atraso, quer pela sua constatação quer pelo desconhecimento da decisão camarária que venha a ser definitivamente proferida e em quanto tempo, muito dificilmente surgirá alguém interessado em assumir nestas circunstâncias a posição de cooperador, com a consequente inviabilização do direito da demissionária ao reembolso das quantias que lhe sejam devidas.

Terá sido para impedir situações análogas que o legislador não fez depender o ressarcimento do cooperador demissionário de determinadas condições, idênticas às dos autos ou outras, mas optou pelo estabelecimento de um prazo: o estatutariamente previsto ou o supletivo.

Conclui-se assim, desenvolvendo e completando a argumentação da sentença recorrida, pelo acerto do entendimento segundo o qual enfermam de nulidade o n.º 4 do art.º 8º dos estatutos e a cláusula 4.ª do acordo de transferência.

2ª questão: abuso do direito por parte da A.
Aparentemente seguir-se-ia decisão no sentido da procedência da acção, com a consequente condenação da Ré na restituição à A. dos €18.000,00 correspondentes aos títulos de participação.

Não foi o que sucedeu porque o julgador invocou oficiosamente o instituto do abuso do direito e, após cuidada análise, chegou à conclusão de que a A. excedeu manifestamente os limites da boa-fé ao provocar a confiança da Ré na “manutenção da situação jurídica”, ou seja,
na não exigência dos títulos em conformidade com o que ficara contratualmente estabelecido no acordo de transferência celebrado entre ambas.
O seu ponto de partida foram os ensinamentos do Prof. António Menezes Cordeiro, (“Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Volume II, Setembro de 2005, consultada e disponível on-line em www.oa.pt), que parte do princípio de que “qualquer pretensão aparentemente apoiada em leis estritas pode ser desamparada, com base em abuso do direito(…) o princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa-fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas (…) Na base da doutrina e com significativa consagração jurisprudencial, a tutela da confiança, apoiada na Boa-fé, ocorre perante quatro proposições.
Assim:
1.a Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
2.a Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;
3.a Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4.a A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.
Estas quatro proposições devem ser entendidas dentro da lógica de um sistema móvel. Ou seja: não há, entre elas, uma hierarquia e o modelo funciona mesmo na falta de alguma (ou algumas) delas: desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que permita, valorativamente, compensar a falha”.      
Na subsequente análise do caso concreto o tribunal recorrido fundamentou a sua posição nos seguintes termos:É assim de concluir que se encontram, em nosso entendimento, verificadas as supra citadas quatro proposições relativamente à tutela da confiança, e que tal conduta da Autora provocou manifestamente a confiança da Ré na manutenção da situação jurídica, sendo que tal confiança merece tutela, pois a assim não ser o valor em lide, caso se declarasse a nulidade conforme pretensão da Autora, teria de ser necessária e imediatamente assumido pela Ré, quando efectivamente o não recebeu, nem da Autora, nem foi efectivamente transferido (tendo sido apenas transferidos €14.348,94 para a Urbanização (...) e motivou que tivesse sido creditado na conta de associada na Ré), o que, manifestamente excede os limites da boa-fé, pelo que, verifica-se por parte da Autora abuso do direito nos termos configurados pelo artigo 334.º, do Código Civil”.

Se o ponto de partida, o estudo do Prof. Meneses Cordeiro, não merece qualquer objecção, já o mesmo não sucede com a sua transposição para a situação dos autos.
Essa actividade deve ser sempre feita com cautela e atenta consideração dos correspondentes factos provados ou não provados; e, por maioria de razão, em situações como a dos autos na qual está em causa o exercício do direito de livre demissão do cooperador, que não pode ser questionado e posto em causa senão em situações muito excepcionais, que se revista de especial gravidade.
Este direito resulta muito claramente dos supra transcritos art.ºs 24º, n.º 1 do regime jurídico das cooperativas de habitação e 36.º, n.ºs 1 e 2 do Código Cooperativo, justificando nesta sede destaque este n.º 2 ao estatuir que “Os estatutos não suprimirão ou limitarão o direito de demissão, podendo, todavia, estabelecer regras e condições para o seu exercício”.

Será que os factos considerados pelo tribunal recorrido são suficientemente graves para suprimirem este direito – e suas consequências patrimoniais – com fundamento no seu abuso?
A primeira reflexão é que a tutela da boa-fé destina-se a ambas as partes do processo, em situação de estrita igualdade perante a lei; e não podendo a Ré, uma sociedade cooperativa, desconhecer as apontadas nulidades pelo conhecimento privilegiado que necessariamente tinha da legislação que rege a sua actividade, independentemente de ter sido ou não questionada a legalidade dos seus estatutos pela Cases, à partida é muito difícil conceber que ela própria tenha agido de boa-fé ao inserir a cláusula 4ª do acordo de transferência (é evidente que o acordo foi celebrado com os demais cooperantes que a ele decidiram aderir, sujeitando-se a idêntico clausulado proposto pela Ré).

Fica assim fortemente abalada a primeira proposição do Prof. Meneses Cordeiro na abordagem ao caso concreto.

Seguindo a linha argumentativa da sentença, deparamos em primeiro lugar com os dois acordos de transferência de posição subscritos pela A. em 2012 e 2013.

Porém, o próprio teor dos acordos revela que mais não são do que contratos de cessão da posição contratual entre sociedades cooperativas que a A., à semelhança dos restantes cooperadores que mantiveram o interesse inicial em permanecerem no programa, tiveram de subscrever sob pena de perderem as suas posições enquanto cooperantes.

Por outras palavras, nada consta na matéria de facto que permita concluir que foi a A. quem tomou a iniciativa dos acordos, limitando-se a conformar-se com as cessões das posições em conformidade com os seus interesses na altura, o que é incompatível com a conclusão de que possa ter sido ela a criar na Ré a convicção de que permaneceria no programa e abdicaria de desistir e dos direito patrimoniais correspondentes.

A “intervenção na vida”societária da Ré também não é minimamente relevante porque, feitas as contas, em 26 anos como cooperante a A. limitou-se, em 2014, a secretariar a mesa da assembleia geral de uma das três cooperativas em que esteve integrada.

A não arguição de alguma irregularidade relativa aos acordos de transferência de posição ou aos Estatutos da Ré também não é significativa no contexto de cessões de posições contratuais entre cooperativas, em que a A. se limitou a aderir.

Relativamente à cláusula acerca da “transferência de saldos contabilísticos”, importa antes de mais considerar que o n.º 3 do art.º 36º do Código Cooperativo impõe a restituição do montante dos títulos de capital; e esta cláusula surge descontextualizada da realidade e em manifesto benefício da Ré porque, se é verdade que a A. não lhe entregou quaisquer quantias (facto n.º 18), isso explica-se pelo simples facto de só em 2013 a Ré ter assumido a posição que actualmente detém.

Não se pode olvidar que a cessão da posição contratual transfere direitos e obrigações, estando provado que foram integralmente transferidos para a Ré os valores entregues pela A. às suas antecessoras entre 1998 e 2013 (facto n.º 17), o que não se compadece com a redução desses valores a meros “saldos contabilísticos” (conceito, aliás, não explicado) e a um “potencial crédito”.

Cremos que é o suficiente para invalidar o argumento de que nada recebeu, evidenciar o despropósito da cláusula e do próprio recurso ao expediente de que apenas houve transferência para a Ré de “saldos contabilísticos”, com a consequente exclusão de qualquer margem para a consideração de abuso do direito por parte da A.

Considerando a devolução à A. de 17.299,24€ e 2.950,30€ em 27/5/2014, o saldo de 20.950,30€ ficou reduzido a 18.000,00€, sendo assim esta a importância a restituir à A., acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a interpelação em 26/2/2015 e até integral pagamento.

III–Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e condenando a Ré no pagamento à A. da quantia de 18.000,00€, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde 26/2/2015 e até integral pagamento.
Custas pela Ré.



Lisboa, 9 de Novembro de 2017


                                                                      
Nuno Sampaio (relator)            
Maria Teresa Pardal                         
Carlos Marinho