Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12238/20.0T8LSB-A.L1-8
Relator: CARLA SOUSA OLIVEIRA
Descritores: ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
RECONVENÇÃO
COMPENSAÇÃO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– A natureza especial da acção de prestação de contas representa um obstáculo à dedução da reconvenção, atentas as regras particulares de instrução e julgamento das contas, consagradas no art.º 945º, do NCPC.
II– O processo especial de prestação de contas não é adequado a discutir a compensação de créditos já que o crédito do autor apenas se apura a final.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I.–Relatório


F… intentou a presente acção de processo especial de prestação espontânea de contas contra R....

Alegou, em síntese, que autor e réu são os únicos herdeiros das heranças abertas por óbito dos seus pais, M… e MC…; que o autor vinha exercendo, com o consentimento e acordo do réu, a administração de todos os bens que compõem as referidas heranças – sendo que parte desses bens imóveis são detidos em compropriedade entre o autor, o réu e as ditas heranças - suportando todas as inerentes despesas.

Terminou pedindo que as contas apresentadas sejam julgadas justificadas e ser o saldo credor a favor do autor declarado existente e exigível ao réu e às massas das Heranças de M… e MC…, condenando também o réu e estas heranças no seu pagamento ao autor no prazo de dez dias.

O réu veio contestar invocando que foi nomeado cabeça de casal no âmbito do processo de inventário intentado para partilha das aludidas heranças; que será nesse processo que se deverá discutir a correcção das contas apresentadas pelo autor, pelo que se verifica a impossibilidade originária da lide; que as contas não se encontram devidamente apresentadas; que das despesas no valor total de € 26.817,02, apresentada pelo autor, apenas poderão ser julgadas justificadas despesas no valor global de € 25.278,80, sendo que dessas despesas, apenas € 4.348,61, são da responsabilidade do réu.

O réu deduziu reconvenção dizendo que tem vindo a suportar, exclusivamente a expensas suas, despesas inerentes à administração do património do autor, na qualidade de gestor de negócios, tendo um crédito sobre o autor no valor total de € 114.368,07, o qual corresponde à soma das despesas que suportou relativas à gestão de vários imóveis, da propriedade ou da compropriedade do autor, pretendo compensar o crédito do autor com o seu apontado crédito.

E terminou pedindo que o tribunal se digne:
a.-Declarar a impossibilidade originária da lide e consequentemente, declarar a extinção da presente instância, nos termos do art.º 277.º, alínea e) do CPC,
ou
Caso assim não se entenda
b.-Fixar prazo ao Autor para apresentar novas contas em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 944.º do CPC, sob pena de não o fazendo, serem as contas apresentadas rejeitadas, nos termos do n.º 2 do mesmo normativo;
Assim não se entendendo
c.-Julgar as contas apresentadas pelo Autor não justificadas, ou, em alternativa
d.-Julgar as contas apresentadas pelo Autor apenas parcialmente justificadas, fixando se a responsabilidade do Réu em € 4.348,61.

Em qualquer caso

e.-Admitir e julgar procedente o pedido reconvencional deduzido pelo Réu e, consequentemente:
i.-Julgar justificadas as contas apresentadas pelo Réu
ii.-Declarar existente e exigível ao Autor o valor do saldo credor a favor do Réu
iii.-Reconhecer a eficácia da compensação operada pelo Réu e, consequentemente,
iv.-Notificar o Autor para, no prazo de 10 dias e sob a cominação prevista no n.º 5 do art.º 944.º do CPC, pagar ao Réu o valor de € 110.019,46, acrescido de juros calculados à taxa legal até integral e efetivo pagamento.”.

Conclusos os autos, foi proferido despacho, em 17.03.2022, a julgar inadmissível a reconvenção deduzida, nos seguintes termos: 
Vi a douta decisão singular que antecede.
*
Em face da mesma, cumpre aferir da admissibilidade ou não da reconvenção deduzida pelo R..
Na presente acção especial de prestação de constas, veio o R., em sede de contestação, deduzir reconvenção, pedindo que seja admitido e julgado procedente o pedido reconvencional deduzido pelo R. e, consequentemente, sejam julgadas justificadas as contas apresentadas pelo R., seja declarado existente e exigível ao A. o valor do saldo credor a favor do R.; seja reconhecida a eficácia da compensação operada pelo R. e, consequentemente, seja notificado o A. para, no prazo de dez dias e, sob a cominação prevista no n.º 5 do artigo 944.º do C. P. C., pagar ao R. o valor de € 110.019,46, acrescido de juros calculados à taxa legal até integral e efectivo pagamento.
O R. sedimenta os pedidos reconvencionais em apreço, em síntese, na circunstância de ter suportado despesas inerentes à administração de bens que compõem as heranças abertas por óbito dos seus pais, heranças essas das quais o A. e R. são herdeiros.
“A reconvenção é a acção que se permite ao demandando exercer contra o demandante, no mesmo processo” (Cfr. Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, (Arts. 264.º a 466.º), 3.ª Edição, Revista e Actualizada”, página 29), consubstanciando, nessa medida, uma acção cruzada deduzida no âmbito do mesmo processo, sendo que a sua admissibilidade encontra-se condicionada à verificação de determinados requisitos formais e substanciais, legalmente estabelecidos nos artigos 93.º, 266.º e 583.º do C. P. C..
Porém, sem prejuízo dos requisitos formais e substanciais supra referidos, importa ter em consideração, que a reconvenção foi deduzida no âmbito de processo especial de prestação de contas e, dentro da tramitação própria deste tipo de processo não está consagrada a possibilidade de dedução de reconvenção, em sede de contestação.
Efectivamente, este tipo de processo especial não se compadece com a dedução de pedido reconvencional, ainda que este corresponda à mesma forma de processo.
Circunscrevendo-nos à sua tramitação legalmente prevista para a prestação de contas espontânea que é o caso dos autos, citado o R., ao mesmo assiste-lhe apenas a faculdade de contestar essas contas e, dentro dos estritos limites previstos no artigo 945.º n.º 2 do C. P. C. e, nada mais – cfr. artigo 946.º do C. P. C..
Da tramitação que se deixa expressa, resulta, sem margem, para dúvidas, que não é legalmente admissível a dedução de reconvenção, em sede da presente acção.
De outra vertente apreciada, verifica-se que os pedidos reconvencionais consubstanciam-se em que sejam julgadas as contas apresentadas pelo R., seja declarado existente e exigível ao A. o valor do saldo credor a favor do R.; seja reconhecida a eficácia da compensação operada pelo R. e, consequentemente, seja notificado o A. para, no prazo de dez dias e, sob cominação prevista no n.º 5 do artigo 944..º do C. P. C., pagar ao R. o valor de € 110.019,46, acrescido de juros calculados à taxa legal até integral e efectivo pagamento.
O R. sedimenta estes pedidos reconvencionais, em síntese, na circunstância de ser cabeça-de-casal, nomeado no âmbito do processo de inventário para partilha das heranças abertas por óbito dos seus pais, heranças essas das quais o A. e R são herdeiros, n.º 25154/20.6T8LSB que corre seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível – Juiz 10 e, ter suportado, naquela qualidade, despesas inerentes à administração dos bens que compõem essas heranças.
Ora, nos termos do artigo 947.º do C. P. C., essas contas a prestar pelo R. naquela qualidade, apenas poderão ser prestadas na dependência daquele processo de inventário e, não no âmbito da presente acção, por imposição legal.
Pelo que nesta vertente apreciada, a reconvenção em apreço também nunca poderá ser admitida, porquanto a prestação de contas pretendida e apresentada pelo R., enquanto cabeça-de-casal nomeado em processo de inventário já instaurado, tem que obrigatoriamente ser deduzida na dependência daquele processo de inventário e, não em qualquer outro processo, através de reconvenção.
Nestes termos e, pelos fundamentos expostos, não se admite a reconvenção deduzida pelo R..
Custas pelo R. – cfr. artigo 527.º do C. P. C.”.

Inconformado com o despacho proferido que não admitiu o pedido reconvencional, veio o réu recorrer, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
 “I.–Embora o artigo 644.º, n.º 1, al. b) do CPC não preveja de forma expressa a admissibilidade de recurso de apelação nos casos de prolação de despacho de absolvição da instância reconvencional, a doutrina e a jurisprudência têm admitido a sua aplicabilidade a tais casos, termos em que deverá ter-se por recorrível a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
II.–Nos termos do artigo 549.º, n.º 1 do CPC, as disposições previstas no Livro V – Dos Processos Especiais do CPC não regulam exaustivamente a tramitação processual de cada processo especial;
III.–Pelo contrário - estabelecem apenas as regras específicas de cada um desses processos, sendo, quanto ao mais, aplicável o que está previsto nas disposições gerais e no regime do processo comum.
IV.–Assim, se é certo que a tramitação do processo especial de prestação de contas não admite expressamente a possibilidade de deduzir reconvenção, também o é que não a proíbe, nem contempla uma tramitação processual incompatível com a dedução de pedido reconvencional.
V.–A dedução de pedido reconvencional será, portanto, admissível no âmbito do processo especial de prestação de contas conquanto se encontrem preenchidos os pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 266.º do CPC.
VI.–Os presentes autos enquadram-se na alínea c) do n.º 2 deste artigo, já que o pedido reconvencional sub judice visa o reconhecimento de um crédito do Recorrente sobre o Recorrido, tendo em vista a compensação.
VII.–Ao concluir pela inadmissibilidade do pedido reconvencional deduzido pelo Recorrente, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 549.º e 266.º, n.º 2, al. c), ambos do CPC.
VIII.–Além do mais, o Tribunal a quo incorreu num erro de interpretação do pedido reconvencional deduzido pelo Recorrente, porquanto as contas que este veio prestar no âmbito da reconvenção que deduziu no presente processo não dizem respeito a despesas inerentes à administração das Heranças das quais o mesmo é cabeça-de-casal, mas sim a despesas inerentes à administração de património pessoal do Recorrido, razão pela qual nunca poderiam ser prestadas no âmbito do processo de inventário.
IX.–A prestação espontânea de contas feita pelo Recorrente em sede de reconvenção, respeita apenas à gestão que aquele tem vindo a fazer do património do Recorrido, tendo sido feita em cumprimento do disposto no artigo 465.º, al. c), do CC.
X.–A prestação espontânea de contas feita pelo Recorrente em sede de reconvenção não deveria – nem poderia – ser feita na dependência do Processo de Inventário, não sendo o artigo 947.º do CPC aplicável ao caso vertente.
XI.–No que respeita às despesas com manutenção da piscina e jardim, condomínio, fornecimento de água, despesas de manutenção e com reparações do imóvel “Vale do Lobo 526”, pese embora o Recorrente alegue que se trata de imóvel detido em compropriedade pelo Recorrente, pelo Recorrido e pelas Heranças, na proporção de 1/3 cada, e ter despendido um montante global de 135.062,26 €, o Recorrente apenas peticiona um crédito o montante global de 45.020,75 €, correspondente exclusivamente à sua quota-parte de responsabilidade nas despesas que foram suportadas pelo Recorrente.
XII.–Quanto às despesas referentes frações do “Edifício Baleeira” de que o Recorrente e o Recorrido são comproprietários na proporção de ½, o Recorrente apenas peticiona o pagamento do montante de 273,71 €, 50% do montante total por si suportado (547,42 €).
XIII.–O Recorrente tem vindo a pagar a expensas próprias as despesas inerentes às dezassete frações que compõem o prédio “Torres de São Gabriel”, das quais seis pertenciam ao Recorrente, seis pertenciam ao Recorrido e cinco às Heranças (atualmente, as frações pertencentes às Heranças pertencem ao Recorrente e Recorrido).
XIV.–Pese embora o Recorrente alegue ter suportado despesas com a administração das referidas frações no montante global de 101.531,10 € apenas peticiona na presente ação o montante correspondente ao crédito detido sobre o Recorrido, no montante de 41.478,66 €.
XV.–As Heranças, o Recorrido e o Recorrente são, cada um deles, proprietários, respetivamente, das frações autónomas correspondentes ao 10.º andar, letra A, ao 10.º andar, letra C e ao 10.º andar, letra F do prédio urbano denominado “Apartamentos Galé”, tendo o Recorrente suportado a expensas suas as despesas relativas a todas as referidas frações, no montante global de 14.263,83 €; não obstante, o Recorrente apenas peticiona nestes autos o crédito que detém sobre o Recorrido, no montante global de 5.185,08 € (crédito esse que emerge tão-somente do pagamento das despesas referentes à fração autónoma de que o Recorrido é exclusivo proprietário).
XVI.–O Recorrente tem vindo a suportar, a expensas próprias, as despesas referentes ao condomínio das frações que compõem os “Apartamentos Pontemira”, das quais três pertencem ao Recorrente, três pertencem ao Recorrido e uma integra as Heranças; não obstante o montante global das despesas suportadas pelo Recorrente ascenda a 22.090,56 €, este apenas peticiona nestes autos o crédito que detém sobre o Recorrido, no montante global de 8.918,10 € (crédito esse que emerge tão-somente do pagamento das despesas referentes às frações autónomas de que o Recorrido é exclusivo proprietário).
XVII.–O Recorrente suportou, a expensas suas, o pagamento de diversas taxas de esgoto e impostos da exclusiva responsabilidade do Recorrido no montante global de 14.288,52 €, montante esse que peticiona nestes autos.
XVIII.–Cai, desta feita, por terra a argumentação aduzida na douta sentença de que ora se recorre, de que o Recorrente sedimenta o pedido reconvencional na circunstância de ser cabeça-de-casal nomeado no âmbito do Processo de Inventário.
XIX.–Ao decidir que as contas da gestão que o Recorrente tem vindo a fazer do património do Recorrido prestadas no âmbito do pedido reconvencional apenas poderiam ser prestadas na dependência do Processo de Inventário em curso, o Tribunal a quo, violou os artigos 465.º, al. c), e 2093.º ambos do CC.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação e, consequentemente, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, admitindo-se, por conseguinte, a reconvenção deduzida pelo Recorrente.”.

Pugna, assim, o recorrente pela integral procedência do recurso e consequentemente pela revogação do despacho e, em consequência pela admissão dos pedidos reconvencionais formulados.

Foram apresentadas contra-alegações, tendo o recorrido formulado as seguintes:
“Conclusões
a)-Bem andou a decisão recorrida ao não admitir o pedido reconvencional de prestação de contas já que a isso se opõe a natureza e figurino do processo especial de prestação de contas;
b)-Como foi decidido pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de Outubro de 2007, proc. nº 3828/2007-6, relator Graça Araújo): No caso de prestação forçada de contas, o réu – seja qual for a defesa que assuma no processo – não pode deduzir em reconvenção o pedido de prestação de contas por parte do autor.
c)-No que foi acompanhado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Maio de 2013 (proc. nº 2877/09.5TBPRD.P3, relator Aristides Almeida);
d)-É, assim, claro e cristalino que não pode haver “prestação cruzada de contas” por via de pedido reconvencional, pelo que este só poderia improceder;
e)-Ainda que assim não fosse e terá necessariamente de ser, a verdade é que o Apelante, no seu pedido reconvencional de prestação de contas, indicou 832 (!!!) despesas, das quais somente 14 não respeitam à “responsabilidade” de “Heranças” ou de “Heranças + RC + FC”;
f)-Ou seja, claramente, o Apelante envolveu ali o apuramento de um saldo que necessariamente respeita às “Heranças” pelo que não pode pretender separar as responsabilidades inerentes a tal circunstância para evitar ter de discutir no processo próprio esses saldos e essas responsabilidades, uti art. 947º do Código de Processo Civil;
g)-Mais uma vez, não é pela inadmissibilidade do pedido “reconvencional” que o Apelante fica privado de discutir os créditos que afirma ter e a prestação de contas a que afirma ter direito no processo próprio, de modo autónomo e separado dos presentes autos, como deve fazê-lo,
h)-Mesmo na eventualidade, que não se aceita, de se vir a considerar admissível a dedução de pedido reconvencional em processo de prestação de contas, o mesmo não deve ser admitido no caso dos autos porque traria para este questões totalmente estranhas à pretensão do Apelado, que já estão a ser discutidas no inventário facultativo em que o Apelante é cabeça de casal e que iriam necessariamente implicar uma ampliação exponencial do objecto da lide e aportar-lhe uma complexidade desmesurada em confronto com a simplicidade da pretensão do Apelado, com o inerente retardamento no andamento dos autos, o que tudo ponderado constitui factor que desaconselharia vivamente a tramitação da reconvenção em conjunto com a pretensão do Apelante.
i)-Pelo que o presente recurso deve ser julgado totalmente improcedente, sendo integralmente mantida a decisão recorrida, com o que farão V. Exas. a mais nobre e costumada Justiça!!!”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.–Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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No caso vertente, a questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, é tão só a de saber se a reconvenção é admissível no âmbito da acção especial de prestação de contas.
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III.–Fundamentação

3.1.–Fundamentos de facto
Com interesse para a decisão relevam as incidências fáctico-processuais que se evidenciam no relatório supra.
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3.2.–Apreciação do mérito do recurso
Ante o acima exposto, a questão que se coloca no presente recurso é tão só a de saber se a reconvenção é admissível.
Lê-se no art.º 266º, nº 1 do NCPC que “o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”.
“A reconvenção, consistindo num pedido deduzido em sentido inverso ao formulado pelo autor, constitui uma contra-acção que se cruza com a proposta pelo autor (que, no seu âmbito, é réu, enquanto o réu nela toma a posição de autor - respectivamente, reconvindo e reconvinte” (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, p. 517). Esta admissão de contra-pedidos é fundada em razões de economia processual, já que o réu escusa de propor uma acção autónoma para fazer valer a sua pretensão.
Contudo, a admissibilidade da reconvenção depende da verificação dos pressupostos processuais, a que se somam os requisitos substantivos previstos no nº 2 do art.º 266º do NCPC.

Quanto à competência para as questões reconvencionais, afirma o art.º 93º do NCPC: o tribunal da acção é competente para as questões deduzidas por via de reconvenção, desde que tenha competência para elas em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia; se a não tiver, é o reconvindo absolvido da instância.
Por seu turno, a todos os pressupostos processuais supra mencionados, somam-se requisitos materiais, que, se não se mostrarem verificados, implicam a sua rejeição.

Estão previstos nas diversas alíneas do art.º 266º, nº 2 do NCPC. Na alínea a) exige-se que o pedido reconvencional se funde no facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa. A alínea b) prevê a admissibilidade do pedido para tornar efectivo o direito a benfeitorias ou a despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; a alínea c) incide sobre a compensação e a alínea d) refere as situações em que o pedido do réu tende a conseguir, em seu beneficio, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

Conforme resulta do acima exposto, na decisão recorrida, o tribunal a quo fundamentou a inadmissibilidade da reconvenção em duas ordens de razões:
- a tramitação especifica do processo especial de prestação de contas não admite a possibilidade de dedução de reconvenção;
- a prestação de contas da administração que o réu tem vindo a exercer, como cabeça de casal, só pode ser decidida na dependência do processo de inventário.
Em sentido oposto sustenta o recorrente que o processo especial de prestação de contas não contempla uma tramitação processual incompatível com a dedução de pedido reconvencional, o qual será admissível conquanto se encontrem preenchidos os pressupostos de admissibilidade previstos no art.º 266º do NCPC, acrescentando que a reconvenção deduzida nos presentes autos enquadra-se na al. c) do nº 2 deste artigo, pois, tem em vista a compensação de créditos.
Mais defende que, ao contrário do que o tribunal a quo pressupôs, o recorrente não sedimenta o pedido reconvencional na circunstância de ser cabeça-de-casal nomeado no âmbito do processo de inventário.
Cumpre, pois, começar por analisar o que preceitua a lei a propósito da acção de prestação de contas.
O objecto da acção especial de prestação de contas encontra-se definido no art.º 941º do NCPC, segundo o qual a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.

Esta disposição preliminar contém duas regras autónomas: a primeira, relativa à legitimidade, diz quem tem o direito de exigir a prestação de constas e quem tem o dever de as prestar; a segunda, relativa ao objeto da ação, define-o como pré-ordenado ao apuramento e a aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administre bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se, o que mostra que a prestação de constas, a par de uma fase essencialmente declarativa, tem uma outra de cariz executivo (cfr. Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Ediforum, 2017, p. 1382).

Decorre do enunciado normativo que o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem ou que não lhe pertencem em regime de exclusividade (cfr. ac. da RC de 23.11.2010 (relator Fonte Ramos) e ac. da RG de 07.11.2019 (relator Jorge Teixeira), ambos disponíveis in www.dgsi.pt).

Essa actividade de administrador de bens alheios é susceptível de gerar receitas, podendo também impor a realização de despesas; apuradas as receitas e as despesas, verificar-se-á qual o saldo a pagar.

Destina-se tal processo especial a alcançar, por um lado (função puramente declarativa), o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens ou interesses alheios; e, por outro lado (função condenatória), a alcançar a eventual condenação do réu no pagamento do saldo que se venha a apurar (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. II, 2ª ed., 2004, Almedina, p. 192).

A obrigação de prestação de contas é, estruturalmente, uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (art.º 573º do CC) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito (cfr. acs. do STJ de 9.02.2006 (relator Araújo Barros) e de 3.02.2005 (relator Salvador da Costa), ambos igualmente acessíveis em www.dgsi.pt).

Assim, é exigível judicialmente a prestação de contas contra o administrador de bens ou interesses alheios que se recusa a prestá-las, bem como contra aquele que se recusou a aprová-las na sequência da sua apresentação extrajudicial que tenha ocorrido.

Relacionando-se o processo de prestação de contas com a obrigação a que alguém esteja sujeito de prestar a outrem contas dos seus actos, no que concretamente diz respeito ao obrigado à prestação de contas pode, conforme sustentava José Alberto dos Reis (in Processos Especiais, Vol. I, 1982, Coimbra Editora, p. 303), formular-se o princípio geral de que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas de tal administração ao titular desses bens ou interesses.

A prestação de contas pode ser espontânea ou provocada.

Inexistindo norma legal que genericamente determine quando é que alguém tem de prestar contas, a norma processual do art.º 941º do NCPC pressupõe a existência de normas de direito substantivo que imponham essa obrigação de prestar contas. O direito em causa pode ser de natureza obrigacional, real, familiar ou sucessória (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2017, Almedina, pp. 117/118 e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, p. 388).

A obrigação de prestar contas decorre directamente da lei [cfr., v.g., art.ºs 95º, 172º, nº 2, 173º, nº 1 “ex vi” do 195º, nº 1, 262º, 465º, al. c), 662º, 987º, nº 1, 988º, 1161º, al. d), 1436º, al. j), 1920º, nºs 1 e 2, 1944º, nº 1, 1971º, nº 1, 2002º-A, 2093º e 2332º, todos do CC e art.ºs 760º e 871º, nº 1, do NCPC], mas pode também derivar do negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa fé (cfr., entre outros, ac. do STJ de 9.02.2006 (relator Araújo Barros), ac. da RC de 23.11.2010 (relator Fonte Ramos) e ac. da RG de 07.11.2019 (relator Jorge Teixeira), in www.dgsi.pt; na doutrina, Luís Filipe Pires de Sousa, obra citada, p. 119).

Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte”. Como igualmente não interessaa intenção do administrador, mas sim o facto da administração (cfr. Vaz Serra, Parecer, in Scientia Jurídica, 1969, T. XVIII, nº 95/96, p. 115), bastando para justificar o recurso a tal meio processual concretos actos de administração com expressão patrimonial(cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2018, p. 832).

Deste modo, a causa de pedir da acção de prestação de contas provocada é o facto da aquisição da titularidade do direito (i.e., ser-se titular dos bens, em regra) perante quem esteja em conduções de prestar as informações necessárias (i.e., o administrador dos bens)”, enquanto que na “ação de prestação de contas espontânea é o facto constitutivo da obrigação de prestar contas, i.e., ser-se quem está em condições de prestar as informações necessárias (cfr. Rui Pinto, obra citada, p. 834).

Compete àquele que se arroga o direito de ser informado o ónus da prova de todos os factos que conduzem à aplicação da norma jurídica que serve de fundamento à sua pretensão (art.ºs 342º, nº 1 e 573º, ambos do CC). Cfr., a este propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais (…), pp. 117/118.

Nomeadamente, e com interesse para a questão que nos ocupa, tal dever de prestar contas pode resultar da administração de bens da herança levada a cabo pelo cabeça de casal. Com efeito, resulta do art.º 2079º, do CC que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.

E de acordo com disposto no art.º 947º do NCPC: “As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”.
Todavia, a inexistência de inventário para partilha de heranças não obsta a que haja cabeça de casal, que, integrando a figura do “cabeça de casal de facto”, administre os bens da herança, estando igualmente e nessa medida obrigado a prestar contas.
Deste modo, têm-se entendido que as contas da administração da herança devem ser prestadas por apenso ao processo de inventário, se respeitarem ao período temporal em que, após a nomeação para o exercício desse cargo, administrou os bens da herança; se disserem respeito a outro período, apesar de também terem que ser prestadas, devem sê-lo em processo de prestação de contas, mas autónomo (cfr. ac. da RC de 8.04.2019, relator Falcão Magalhães, disponível in www.dgsi.pt).

Por outro lado, o processo de prestação de contas tem especialidades de relevo face ao processo comum, nomeadamente quanto à sua exibição: devem ser apresentadas sob a forma de conta-corrente, especificando-se a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo.

E o julgamento das mesmas está sujeito a regras que adaptam o princípio da livre apreciação das provas às questões em apreço “O juiz ordena a realização de todas as diligências indispensáveis, decidindo segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência, podendo considerar justificadas sem documentos as verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los.”, diz o artigo 945º nº 1 do NCPC.

Do regime jurídico supra explanado, não podemos deixar de reconhecer inteira razão ao tribunal “a quo” quando concluiu que este tipo de processo especial não se compadece com a dedução de pedido reconvencional, ainda que este corresponda à mesma forma de processo.”.

Na verdade, e conforme lapidarmente se escreveu no ac. da RP de 16.05.2013 (relator Aristides Almeida), disponível in www.dgsi.pt, citado pelo recorrido nas contra-alegações, “(…) nem quem pode exigir as contas nem quem está obrigado a prestá-las, goza da faculdade de associar à prestação de contas outra relação jurídica ainda que eventualmente geradora de créditos e débitos, porventura até recíprocos. A isso se opõe a natureza especial da acção de prestação de contas que representa um obstáculo quer à cumulação de pedidos (artigos 470.º e 31.º do Código de Processo Civil) quer à dedução da reconvenção (artigo 274.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), atentas as regras particulares de instrução e julgamento das contas consagradas no artigo 1017.º, nos. 3 a 5, do Código de Processo Civil de modo diferente ao que ocorre nas acções comuns.(o sublinhado é nosso).

Ademais, e com interesse para o caso em apreço, pode ler-se no mesmo aresto: “Acresce que visando a prestação de contas o apuramento final de um saldo e a eventual condenação no pagamento desse saldo, a admitir-se o enxerto na acção de prestação de contas de uma relação jurídica distinta daquela que gerou a obrigação de prestar contas e o consequente apuramento das receitas e despesas relativas a esta outra relação, teríamos de operar na prestação de contas forçosamente a compensação entre créditos e débitos. Ora ainda que esses créditos e débitos pudessem ser recíprocos, no sentido de unirem em pólos opostos o requerente das contas e o obrigado à sua prestação, os mesmos não são passíveis de compensação na própria acção de prestação de contas. Na verdade, um dos requisitos que o artigo 847.º do Código Civil coloca para a compensação dos dois créditos recíprocos é que ambos os créditos sejam judicialmente exigíveis e não proceda contra eles excepção, peremptória ou dilatória, de direito material. O crédito até pode ser ilíquido que nem por isso deixa de ser compensável, isto é, pode ainda não se saber o montante exacto do crédito mas ainda assim proceder-se à sua compensação, operando-se a liquidação no processo onde se pretende que seja reconhecida a compensação ou mesmo fora dele. Todavia, para poder ser objecto de compensação, o crédito já tem de ser certo, seguro, eficaz, tem de se encontrar realmente constituído, porquanto apenas nessas circunstâncias se pode afirmar que ele é judicialmente exigível.”.

Ou seja, o processo especial de prestação de contas não é adequado a discutir a compensação de créditos já que o crédito do autor apenas se apura a final (cfr., neste sentido o ac. da RE de 23.04.2020, relator Rui Machado e Moura, disponível in www.dgsi.pt – e o ac. do STJ de 16.02.2016 nele citado, bem como António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, ob cit, p. 409). 

Ante todo o exposto e muito embora se tenha por certo que nem todos os valores reclamados pelo réu têm como fonte a administração de bens, na qualidade de cabeça de casal - como o próprio recorrido veio admitir - a verdade é que as especificidades do processo especial de prestação de contas não se compadecem com a dedução de reconvenção e muito particularmente com a compensação.

Em consequência, e muito embora com argumentos não totalmente coincidentes, impõe-se confirmar a decisão sob recurso.
As custas do recurso são integralmente da responsabilidade do recorrente atento o seu decaimento (art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
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SUMÁRIO (art.º 663º, n º7 do NCPC)
I-A natureza especial da acção de prestação de contas representa um obstáculo à dedução da reconvenção, atentas as regras particulares de instrução e julgamento das contas, consagradas no art.º 945º, do NCPC.
II-O processo especial de prestação de contas não é adequado a discutir a compensação de créditos já que o crédito do autor apenas se apura a final.
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IV.–Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 13.10.2022



Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Rui Manuel Pinheiro Oliveira