Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
267/21.0T8LSB.L1-7
Relator: AMÉLIA ALVES RIBEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
EPAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.–Quando o conflito entre as partes é caraterizado como sendo referente a responsabilidade extracontratual por danos causados no exercício de um poder público inscrito nos poderes cometidos à empresa privada concessionária do setor empresarial do Estado, os quais integram o núcleo do seu objeto, são competentes para julgar a ação os tribunais administrativos.

II.–Nesse âmbito, contem-se a responsabilidade por danos decorrentes de uma rotura na canalização sob a responsabilidade da EPAL.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Lisboa 


I.–Relatório


1.1.–Pretensão sob recurso: revogação da decisão que violou o disposto nos artigos 64º, n.º 1 e 152º, n.º 1 do Código de Processo Civil e o artigo 40º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, com as demais consequências legais.

Em sede da contestação deduzida, a Ré Empresa Portuguesa de Águas Livres, S.A., veio invocar a exceção de incompetência material do Tribunal, alegando para o efeito que a causa de pedir apresentada pela Autora se baseia na alegada responsabilidade civil extracontratual da Ré, na sequência de uma rotura numa conduta, instalada na via pública, destinada ao transporte e distribuição de água, pelo que os alegados danos decorrem de uma atividade de gestão pública. 

Por sua vez, o Banco A. respondeu à exceção em apreço, pugnando pela sua improcedência, alegando para o efeito que a relação material controvertida está configurada na petição inicial como uma relação jurídica de direito privado.

A decisão recorrida tem o seguinte teor:
Pelo exposto, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta deste Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 3, em razão da matéria, em consequência, do que absolvo da instância os Réus Empresa Portuguesa de Águas Livres, S.A. e G, S.A.
Fixo o valor da presente ação em € 743.341,10 (setecentos e quarenta e três mil trezentos e quarenta e um euros e dez cêntimos).
Custas a cargo do Autor.
Notifique e registe.”.

1.2.–Inconformado com aquela decisão, o A. apelou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1.–A competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material controvertida e ao pedido dela emergente, segundo o pedido e nos termos em que este é efetuado pelo Autor.

2.–A Constituição prevê, essencialmente, nos seus artigos 211.º e 212.º que os tribunais administrativos são competentes para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

3.–Da conjugação dos artigos 40.°, n.° 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário e do 64.°, n.° 1 do Código de Processo Civil, resulta que a competência dos tribunais judiciais é residual, face à dos tribunais administrativos.

4.–O artigo 1.°, n.° 1 do ETAF remete para o artigo 4.° do mesmo diploma, que lista as várias matérias, cuja competência pertence aos tribunais administrativos.

5.–A relação material controvertida está configurada na petição inicial como uma relação jurídica de direito privado, e nessa senda, a ser dirimida por aplicação de normas de direito privado e todas as questões colocadas pelo ora Recorrente são questões de direito privado, que por sua vez, devem ser resolvidas segundo as regras do direito privado, cuja aplicação a entidades públicas não está afastada por lei.

6.–A atividade pública não corresponde apenas a uma atuação levada a cabo por um ente público.

7.–O Prof. Antunes Varela definia como actos de gestão privada aqueles em que o Estado ou pessoa colectiva pública intervêm como um simples particular, despido do seu poder público, e o Prof. Marcelo Caetano definia como a atividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial.

8.–No sentido supra exposto vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2017, Processo n.° 1203/12.0TBPTL, segundo o qual: É da competência dos tribunais comuns - e não dos tribunais administrativos e fiscais - o julgamento de uma causa em que a relação jurídica a dirimir - de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos da Freguesia - é de direito privado”.   

9.–Também neste sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 19-06-2019, processo n. 3122/18.8T8VCT.G1, conforme se reproduz: O pressuposto processual da competência, em razão da matéria, do tribunal para conhecer de determinado litígio que lhe é submetido é aferido unicamente em função da relação material controvertida (causa de pedir, pedido e sujeitos), tal como ela é delineada pelo autor na petição inicial.”.

10.–Também neste acórdão se distingue o que para o ora Recorrente é o busílis da questão, conforme se reproduz: No contrato de concessão de serviço público impõe-se distinguir: a)- a relação concedente/concessionário, que é uma relação jurídica administrativa, regulada pelo direito administrativo, em que o concedente atua sobre o concessionário revestido de “imperium”, para cuja apreciação é materialmente competente a jurisdição administrativa; e b)- a relação concessionário/utente do serviço público (ou terceiros), que é uma relação derivada do contrato de concessão, mas uma relação privada, sujeita ao direito privado, para cuja apreciação são materialmente competentes os tribunais judiciais."

11.–O ora Recorrente, sabe que a ora Recorrida é uma sociedade de direito privado que prossegue interesses públicos, integrando dessa forma, o setor público empresarial do Estado, e que, por conseguinte, da relação jurídica celebrada com esta entidade poderão advir relações jurídicas administrativas. Este facto é indiscutível.

12.–Todavia, não será correto o entendimento, salvo melhor opinião, de que a ora Recorrida, pelo simples facto de prosseguir uma atividade eminentemente pública, age, a todo momento, revestida de iuris imperium" nas suas relações jurídicas, incluindo aquelas que se originam, naturalmente, pela atividade prosseguida pela Recorrida.

13.–Cumpre salientar que a ora Recorrida age em seu próprio nome e por sua conta, pelo que os riscos inerentes à sua atividade são por esta, inteiramente assumidos, e apenas pela Recorrida.

14.–Ainda na senda do ultimo acórdão mencionado e concordando com o raciocínio dos Meritíssimos Juízes: a relação que se estabelece entre concessionário e os utentes do serviço público é uma relação mista, na medida em que nela se impõe distinguir, por um lado, a vertente regulamentar dessa relação, em que o utente do serviço concessionado e o concessionário estão submetidos à regulamentação pública do serviço, pelo que, nesta vertente, a relação que estabelece com o concessionário e utente do serviço público é uma relação jurídica administrativa e, por outro lado, as relações contratuais derivadas que se estabelecem entre esses utentes particulares e a concessionária, que são exclusivamente relações privadas e que se regem pelo direito privado, pelo que qualquer litígio que surja entre concessionário e utentes do serviço público no âmbito dessas relações contratuais (e, por maioria de razão, terceiros, particulares), carecem de ser submetidas e apreciadas pelos tribunais judiciais.”.

15.–A doutrina apoia a nossa linha de raciocínio, na pessoa do Fernandes Cadilha, que se pronunciou no seguinte sentido: o art. 4°, n.° 1, ai. d), do ETAF comece por admitir que os concessionários, enquanto sujeitos privados, poderão praticar atos administrativos ou emitir normas regulamentares, por efeito da qualidade que lhes confere o contrato de concessão, e remeta a apreciação da legalidade desses atos para o contencioso administrativo. Isso não significa, no entanto, que os concessionários (ou quaisquer outros contraentes privados) disponham automaticamente, apenas por efeito da sua qualidade, de prerrogativas de autoridade. Enquanto sujeitos privados, os concessionários atuam, em regra, segundo as normas de direito privado no exercício da sua capacidade de direito civil, e só por expressa atribuição legal é que lhes poderá ser reconhecida, caso a caso, a competência para o exercício de poderes públicos, que poderão traduzir-se na emissão de normas regulamentares ou na prática de atos administrativos, em poderes de imposição e execução coerciva, em poderes de direção, de modificação e rescisão unilateral dos contratos celebrados com terceiros, de poderes de cobrança de taxas.

16.–O acórdão do STJ, de 22.05.2003, processo n.° 03B1334, também defende, essencialmente, a possibilidade de contestar assuntos de natureza privada contra entidades inseridas no setor publico do estado nos tribunais judiciais, já que decidiu sobre um litígio entre uma concessionária do serviço público de telecomunicações e um privado, onde se discutia acerca da eventual responsabilidade contratual da concessionária.

17.–O facto da Recorrida EPAL constituir uma sociedade do setor público empresarial do Estado em nada releva para a apreciação do litígio em causa, nem sequer, altera a legislação que deverá ser aplicada à presente matéria em discussão, salvo melhor entendimento.

18.–Em suma, quanto ao litígio em causa, o critério fundamental para aferir da natureza da relação material controvertida, reside na necessidade (ou não) de analisar o contrato administrativo ou o ato administrativo que atribuiu poderes àquelas entidades, sendo certo que no presente caso, não será necessário.

19.–Atento o exposto, a matéria do litígio em questão não estava reservada aos tribunais administrativos, pelo que os tribunais judiciais são competentes para apreciar a mesma, pelo disposto nos artigos 64.º, n. 1 e 152.°, n.° 1 do Código de Processo Civil e o artigo 40.°, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário.

A R. EPAL contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
A)-A douta sentença em apreço está conforme e bem elaborada e faz a correcta e justa aplicação do direito aos factos que foram dados como assentes, não merecendo assim qualquer reparo ou censura;
B)-No entanto, veio o Recorrente …, S.A., recorrer da decisão do Tribunal a quo que julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria, alegando o seguinte: Ora, a relação material controvertida está configurada na petição inicial como uma relação jurídica de direito privado, a dirimir por aplicação de normas de direito privado e todas as questões colocadas pelo ora Recorrente são questões de direito privado que, por sua vez, também devem ser respondidas à luz das regras do direito privado, cuja aplicação a entidades públicas não está afastada por lei. A atuação pública de uma entidade não ocorre apenas porque se trata de uma atuação levada a cabo por um ente público.”;
C)-Salvo o devido respeito, o Recorrente não tem razão nas suas alegações, pois, nos termos das alíneas f) e h) do n.° 1, do artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro, é referido que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional;
D)-E como demonstrado nos autos, a Ré EPAL, ora Recorrida, é responsável pela prestação de um serviço público, tendo por objeto a captação, tratamento, adução e distribuição de água para consumo humano e, bem assim, quaisquer outras atividades industriais, comerciais, de investigação ou de prestação de serviços, designadamente respeitantes ao ciclo da água, que sejam complementares daquelas ou com elas relacionadas, conforme previsto nos respetivos estatutos aprovados pelo Decreto- Lei n.° 230/91, de 21 de Junho, bem como, assegurar a gestão delegada do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Vale do Tejo, conforme previsto no Decreto-Lei n.° 94/2015, de 29 de Maio e Decreto-Lei n.° 34/2017, de 24 de Março. Sendo que, como decorre da Lei n.° 23/96, o serviço de fornecimento de água é considerado um serviço público essencial;
E)-Pelo que a EPAL, ora Recorrida, apesar de agir em nome próprio e por sua conta, correndo os riscos da sua atividade por sua conta, ao prosseguir um serviço público directo e delegado encontra-se adstrita às normas que regulam as entidades públicas;
F)-Ora, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na forma como a acção foi configurada pelo Autor e no efeito jurídico pretendido por este. E, in casu, como resulta da causa de pedir apresentada pelo Autor, a alegada responsabilidade civil extracontratual da Ré, ora Recorrida, resulta apenas e tão só de uma rotura numa conduta, instalada na via pública, destinada ao transporte e distribuição de água, conduta esta cuja manutenção e reparação cabe à Recorrida;
G)-Como resulta aliás dos artigos 38.°, 39.°, 40.°, 41.° e 49.° da Petição Inicial, o próprio Recorrente sustenta que “(...) em virtude da rotura da conduta de água da responsabilidade R. EPAL, da qual a R. «G…, S.A.», é seguradora, originou-se uma inundação e respectiva infiltração nas estruturas do imóvel A.”, bem como que “(...) a obrigação indemnizatória resulta da rotura da conduta de água na Rua ..... ....., n.° ..., responsabilidade da R. EPAL(...).’;
H)-Pelo que, a eventual responsabilidade civil por que a Recorrida é demandada na presente acção deriva da execução de uma tarefa administrativa de gestão pública, ou seja, insere-se no âmbito da prestação do serviço público de abastecimento de água e do inerente dever de manutenção e conservação das respectivas infra-estruturas, em concreto, condutas;
I)-Assim, sendo a Recorrida uma empresa pública que assumiu o dever colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas (abastecimento de água e saneamento públicos), tem a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo, pelo que, as suas acções e omissões se devem integrar e ser reguladas por disposições e princípios de direito administrativo, pelo que, considerando que o Recorrente pretende ser ressarcido em consequência de uma actividade desenvolvida pela Recorrida, conclui-se que a sua eventual responsabilização, por actos e omissões decorrentes dessa sua actuação deve ser apreciada e julgada pelos tribunais administrativos;
J)-No que diz respeito à competência dos tribunais administrativos tem sido defendido pela maioria da jurisprudência nacional, nomeadamente no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 10/12/2017, proferido no âmbito do processo n.° 347/17.7T8STB.E1, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 05/28/2015, proferido no âmbito do processo n.° 9839/13.6TCLRS.L1-6 e no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 17/04/2015, proferido no processo n.° 02010/13.9BEBRG, todos disponíveis em www.dgsi.pt, que se o acto gerador da responsabilidade civil se integra no exercício de prerrogativas de poder público ou desde que seja regulado por princípios de direito administrativo justifica-se que a respectiva actuação fique sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado;
K)-Pelo que, andou bem o tribunal a quo ao defender o seguinte: Alega o Autor que o sinistro causado pela rotura da conduta de água na Rua ..... ....., num Ramal da responsabilidade da Ré, provocou danos num prédio de que é proprietário, nomeadamente, nos quadros elétricos e paredes da escada abaixo da cota da Rua. Tais factos são completamente alheios a uma eventual celebração de contrato de prestação de serviços, celebrado entre Autor e a Ré, ou a uma relação de consumo, ficando apartada qualquer relação jurídica de natureza privada. e ao julgar como procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal;
L)-E andou também bem o Tribunal a quo ao defender que os tribunais judiciais não serão competentes, em razão da matéria, para apreciar e julgar a presente acção, verificando-se uma situação de incompetência absoluta, o que consubstancia uma excepção dilatória, nos termos da alínea a), do art. 577.° e da alínea b), do art. 96.° e do art. 64.°, do Código de Processo Civil, e determina a absolvição dos Réus da instância.

A R. “G…, S.A. contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
I.–Conforme alega o Autor ora Recorrente, e bem, que a 2.ª Ré/Recorrida tem como finalidade a captação, produção, transporte e distribuição de água para consumo humano, portanto, prosseguindo fins públicos ou de interesse público, sendo a 1J Ré ora Recorrida a Seguradora para quem aquela transferiu a responsabilidade civil de actos decorrentes dessa sua actividade de captação, tratamento, adução e distribuição de água para consumo humano (cfr. artigo 2.0 da petição inicial).
II.–Ao mesmo tempo, conforme já supra descrito, para sustentar a sua pretensão indemnizatória nos presentes autos, alega o Autor ora Recorrente que foi um ramal integrante da rede de abastecimento pública, explorada pela 2J Ré/Recorrida, que provocou danos no seu património (cfr. artigos 1.° a 6.° da petição inicial).
III.–Desta feita, não alega o Autor ora Recorrente a existência de qualquer relação jurídica directa entre Autor/Recorrente e 2J Ré/Recorrida, como por exemplo, (o incumprimento de) um contrato de fornecimento de água ao seu edifício sinistrado (tendo por objeto o fornecimento de água para consumo próprio e a correspondente contraprestação de pagamento do preço respectivo), nem tão pouco a rotura de uma conduta de abastecimento de água ao edifício do Autor/Recorrente, mas antes um "vício de construção ou defeito de conservação" da rede de abastecimento de água pública (cfr. artigos 38.°, 39.° e 46.° da petição inicial).
IV.–Mais concretamente, alega o Autor ora Recorrente de um ramal de distribuição de água da rede de abastecimento pública e existente na Rua ..... ....., rebentou por "vício de construção ou defeito de conservação”', tendo a água sido projectada para a Rua e escorrido, do nível do chão, para dentro do imóvel do Autor/Recorrente.
V.–Pelo que, claro está que é o próprio Autor/Recorrente que enquadra a relação material controvertida no âmbito de uma relação jurídica administrativa. Sendo que, tal relação, de âmbito administrativo, não se desvanece pelo simples facto de o mesmo Autor/Recorrente enquadrar juridicamente (e erroneamente) a responsabilização de um ente que prossegue fins públicos no âmbito do Código Civil (artigos 483.° e 492.°), como se de uma relação jurídica de natureza privada se tratasse.
VI.–Posto isto, está claro que a relação material controvertida, tal como configurada pelo Autor ora Recorrente, emerge de uma relação de natureza jurídica administrativa por resultar do da actividade própria da 2J Ré/Recorrida exercida no âmbito de poderes públicos concessionados e, exclusivamente, na prossecução de fins de interesse público.
VII.–Sendo, consequentemente, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 211.° e 212.° da CRP, 2.° n.° 1 do CPA e 13.° e ss. do CPTA, como dos artigos 4.°, n.° 1 alíneas f) e h) e n.° 2 do ETAF e 1.° n.° 2 do RRCEE, competentes os Tribunais Administrativos, mais concretamente, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, materialmente competente para conhecer do mérito da causa.
VIII.–Neste contexto, "[p]ara efeito de inclusão no contencioso administrativo, devem considerar-se relações jurídicas administrativas externas ou interpessoais: a)- as relações jurídicas entre a Administração e os particulares, incluindo: i)- as relações entre as organizações administrativas e os cidadãos (ditas «relações gerais de direito administrativo»), mas também; ii)- as relações entre as organizações administrativas e os membros, utentes ou pessoas funcionalmente ligados a essas organizações (as chamadas «relações fundamentais» no contexto das «relações especiais de direito administrativo») e; iii)- as relações entre entes que actuem em substituição de órgãos da Administração (no contexto do exercício privado de poderes públicos, por exemplo, os tradicionais concessionários, capitães de navios ou de aeronaves, federações de utilidade pública desportiva, a que se juntam hoje múltiplas entidades credenciadas para o exercício de funções de autoridade) e os particulares; b)- as relações jurídicas administrativas, incluindo: i)- as relações entre entes públicos administrativos, mas também,; ii)- as relações jurídicas entre entes administrativos e outros entes que actuem em substituição de órgãos da Administração, e ainda; iii)- certas relações jurídicas entre órgãos de diferentes entes públicos (quando a circunstância de se tratar de órgãos de pessoas colectivas distintas puder ser considerada decisiva ou dominante para a caracterização da relação, como, por exemplo, no caso da delegação de atribuições)" - cfr. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28.10.2009, proferido no ambito do processo n.° 0484/09 e disponível em www.dgsi.pt.
IX.–Daí que, nos termos do disposto no artigo 4.° n.° 1 alíneas h) e f) do ETAF (vide ainda artigos 211.° e 212.° da CRP e 13.° e ss. do CPTA) "[c]ompete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (...) "Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional", bem como relativos à "[Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público".
X.Correspondendo ao exercício da função administrativa "as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo" (cfr. artigo 1.° n.° 2 do Anexo à Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprova o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas, abreviadamente designado por "RRCEE", sem destaque no original).
XI.–E, no seguimento de tais normas e entendimento jurisprudencial, resulta, e bem, da Decisão colocada em crise que (sem destaque nem sublinhado no original):
«Estamos perante um serviço público que está atribuído a uma entidade privada, sendo que relativamente à natureza jurídica da concessão de serviços públicos, não temos dúvidas de que se trata de um contrato administrativo.
Por sua vez, o DL n.° 194/2009, de 20.8, estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, logo prevendo no respetivo preâmbulo que: "As atividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança coletiva das populações, às atividades económicas e à proteção do ambiente. Estes serviços devem pautar-se por princípios de universalidade no acesso, de continuidade e qualidade de serviço e de eficiência e equidade dos tarifários aplicados.
O atual regime de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos assenta na dicotomia entre sistemas municipais, situados na esfera dos municípios, onde se incluem também os sistemas intermunicipais, e sistemas multimunicipais, situados na esfera do Estado.
No quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, os municípios encontram-se incumbidos de assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, nos termos previstos na Lei n.° 159/99, de 14 de setembro, sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal. (...)".
Como se refere no Ac. da Relação de Lisboa de 24-11-2020, disponível in ww.dgsi.pt, tal significa, assim, que na prestação do serviço de fornecimento de água, na sua área de concessão, a ora Ré prossegue inequivocamente fins de interesse público, estando para o efeito munida dos poderes de autoridade conferidos pelo citado DL n° 194/2009 e pela Lei n° 159/99 (entretanto revogada pela Lei n° 75/2013, de 12.), cabendo-lhe, por essa via, impor os tarifários correspondentes, aplicar taxas e coimas (cfr. arts. 43, 61 e 73 do DL n° 194/2009).
Deste modo, embora entidade privada, a Ré exerce determinadas funções de interesse público - considerados no preâmbulo do DL n° 194/2009 como serviços públicos de carácter estrutural - que lhe foram confiadas, contratualmente, pelo município, e que não perderam a sua natureza nem podem ser desempenhadas por qualquer entidade.
A competência material do Tribunal deve aferir-se pela natureza da relação jurídica material subjacente, tal como é configurada pelo Autor na petição inicial, designadamente, pelo pedido e a causa de pedir.
Alega o Autor que o sinistro causado pela rotura da conduta de água na Rua ..... ....., num Ramal da responsabilidade da Ré, provocou danos num prédio de que é proprietário, nomeadamente, nos quadros elétricos e paredes da escada abaixo da cota da Rua.
Tais factos são completamente alheios a uma eventual celebração de contrato de prestação de serviços, celebrado entre Autor e a Ré, ou a uma relação de consumo, ficando apartada qualquer relação jurídica de natureza privada.
Estamos sim perante uma empresa privada que desempenha a atividade concessionária do serviço público municipal que, alegadamente, praticou um ato ilícito e, consequentemente, responderá pelo mesmo em sede de responsabilidade extracontratual pelos eventuais danos causados, cabendo tal apreciação à jurisdição administrativa.»
XII.–Posto isto, não carece a decisão proferida nos presentes autos de ser alterada, devendo os Tribunais comuns ser considerados materialmente incompetentes para o conhecimento do mérito da causa, sempre se julgando por improcedente o recurso apresentado pelo Autor ora recorrente.
1.3.-Como é sabido, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes, importando, assim, decidir as questões nelas colocadas e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, excetuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, nos termos dos arts. º 608.º, 635.º/4 e 639.º/1, do CPC. Assim, considerando as conclusões do apelante, as questões essenciais a decidir no âmbito do presente recurso, consistem em saber qual o tribunal competente para decidir o presente pleito: se os tribunais da ordem administrativa ou os tribunais comuns.

II.–Fundamentação

II.1.–Dos factos
Importa considerar o circunstancialismo que consta do precedente relatório.

II.2.–Apreciação jurídica

Está em causa a determinação da ordem a que pertence o tribunal competente para julgar o presente caso em que vêm alegados danos patrimoniais num dos edifícios da propriedade do A., alegadamente causados por rotura na canalização da responsabilidade da EPAL.

Na primeira instância entendeu-se que são competentes os tribunais administrativos para decidir o litígio, tendo-se convocado o disposto nos artigos 64º do CPC e 40 da LOSJ (Lei 62/2013, de 26.08), 4º/1/als f) e h) do ETAF (Lei 13/2002, de 19.02); DL 194/2009, de 20.08 (Regime Jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos); Lei 159/99, entretanto revogada pela Lei 75/2013.

Tem-se entendido, de forma pacífica, que a determinação da competência deve ser pesquisada na P.I., atendendo à forma como o autor carateriza o conflito[1]. Neste âmbito, importa analisar o conteúdo do pedido e da causa de pedir e a natureza das partes.
Também é pacífico que a competência dos tribunais é fixada no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito (neste caso com algumas exceções, referentes à competência dos tribunais judiciais)(artigos 63.º do CPC, 24.º da LOTFJ e 5.º do ETAF[2].

Estando em causa a questão de saber se o julgamento da causa cabe aos tribunais comuns ou aos administrativos importará também ter em mente o artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 1.º/1 ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19.02), os quais estabelecem que aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das ações e recursos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Como lembra o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 8 de outubro de 2015, relatado pela Excelentíssima Conselheira Maria Clara Sottomayor, na reforma do contencioso administrativo, a pedra de toque para a atribuição da competência em razão da matéria aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais deixou de ser a distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada, para passar a ser o conceito de relação jurídica administrativa, considerado um conceito-quadro muito mais amplo do que o de gestão pública. A jurisdição administrativa para além de abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado, passou também a abarcar a responsabilidade das pessoas coletivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

E citando a doutrina, colhemos ainda do mesmo aresto que: “Como refere Mário Aroso de Almeida, «as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis». Ou seja, serão, assim, relações jurídicas administrativas as derivadas de atuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados[3].

Acompanhando o mesmo percurso histórico de que dá conta o citado acórdão, A reforma de 2002 alargou as competências dos tribunais administrativos, como resulta da amplitude das várias alíneas do n.° 1 do artigo 4.° do ETAF. Nas palavras de Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, a valorização da justiça administrativa verificada desde a revisão da Constituição de 1989, a publicação de diplomas que alteraram significativamente alguma da legislação processual administrativa de maior envergadura (ETAF e CPTA) e a ampliação da rede de tribunais administrativos implicou uma «redefinição dos critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, designadamente em confronto com a jurisdição dos tribunais judiciais (...) no sentido de que, tendencialmente, a apreciação jurisdicional das questões materialmente administrativas não deve ser subtraída aos tribunais administrativos para ser atribuída à competência de outras ordens de tribunais»”[4].

Importa também ter em conta que “na interpretação do preceito, Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, entendem que «continua a ser relevante, para o efeito de determinar se um litígio é da competência dos tribunais administrativos ou dos tribunais comuns, saber se o facto constitutivo de responsabilidade se encontra ou não submetido à aplicação de um regime específico de direito público»[5].

Salienta-se ainda que, entretanto, entrou em vigor a Lei n.° 67/2007, de 31 de dezembro (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas), a qual estabelece nomeadamente que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares (artigo 1º/5).

Como se diz no mesmo aresto, necessário será que as ações ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo», isto é, desde que as pessoas coletivas de direito privado atuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas ações e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado[6].

Filipa Calvão salienta, que considera estarem a coberto pelo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado as pessoas coletivas de direito privado criadas por entidades públicas (sociedades anónimas de capitais públicos), bem como entidades privadas que exerçam poderes públicos (v.g., no âmbito de concessões de serviços públicos ou de parcerias público-privadas), assumindo estas responsabilidade direta pelos danos que causem no exercício da função administrativa[7].

E, respigamos ainda do mesmo Acórdão que o n.° 5 do artigo 1.º da Lei n.° 67/2007 dá sequência à reforma do ordenamento jurídico-administrativo iniciada em 1989 e, na prática, identifica-se com o princípio delineado no artigo 4.°, n.° 1, alínea i), do ETAF, que, recorde-se, atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

In casu,

Atendendo ao percurso metodológico proposto pelo citado aresto, importará indagar se sobre a matéria em causa existe disposição legal que, independentemente do critério da relação administrativa ou fiscal, dê resposta expressa à questão da jurisdição competente. Na falta de legislação avulsa, haverá que indagar se o art. 4.º do ETAF regula a situação”.

Assim, atendendo à caraterização do litígio feita pelo demandante, em concreto, importa ainda salientar do quadro normativo, aqui pertinente, que:
- Em 21 de junho de 1991, a EPAL – Empresa Pública das Águas Livres foi transformada em sociedade anónima de capitais integralmente públicos (por força do decreto-lei nº 230/91), passando a ter a denominação social de EPAL – Empresa Portuguesa das Águas Livres, SA.[8].

Atualmente a EPAL é uma empresa do setor empresarial do Estado (detida a 100% pela AdP – Águas de Portugal, SGPS, S.A., a partir de 1993) e é enquadrada juridicamente pelo DL 133/2013, de 03 de Outubro[9].

Em 2017, o Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento de Lisboa e Vale do Tejo, passou a denominar-se Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Vale do Tejo, na sequência de cisão que originou dois novos sistemas multimunicipais (Sistema Multimunicipal de Saneamento de Águas Residuais da Grande Lisboa e Oeste e Sistema Multimunicipal de Saneamento de Águas Residuais da Península de Setúbal – e a duas novas sociedades – Águas do Tejo Atlântico, SA e Simarsul, SA – a quem foi atribuída a concessão da exploração e gestão daqueles 2 novos sistemas ao abrigo do Decreto-Lei nº 34/2017, de 24.03[10].

A concessão da exploração e da gestão do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Vale do Tejo foi atribuída à Águas do Vale do Tejo e à EPAL – Empresa Portuguesa das Águas Livres, S.A, a sua gestão delegada[11].

Atualmente a área servida pela EPAL e ADVT abrange 87 municípios que ocupam uma área territorial correspondente a 33% do território continental português e serve 3,5 milhões de habitantes. Esta solução para além da coesão territorial tem em vista gerar as eficiências necessárias à sustentabilidade económica, social e ambiental destes sistemas[12].

Nos termos do artigo 3º/1 dos Estatutos da Epal Empresa Portuguesa das Águas Livres, S.A., a sociedade tem por objecto a captação, tratamento, adução e distribuição de água para consumo humano e, bem assim, quaisquer outras actividades industriais, comerciais, de investigação ou de prestação de serviços, designadamente respeitantes ao ciclo da água, que sejam complementares daquelas ou com elas relacionadas[13].

No âmbito do  regime jurídico do sector público empresarial, que, como se disse, engloba a EPAL e que é regulado pelo  DL n.º 133/2013, de 03 de Outubro, mantendo, no essencial para o caso vertente, o anteriormente previsto pela legislação pelo mesmo revogada, retira-se do artigo 22.º, sob a epígrafe Poderes de autoridade que:
1– As empresas públicas podem exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado, designadamente quanto a:
a)- Expropriação por utilidade pública;
b)-Utilização, proteção e gestão das infraestruturas afetas ao serviço público;
c)-Licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável, da utilização do domínio público, da ocupação ou do exercício de qualquer atividade nos terrenos, edificações e outras infraestruturas que lhe estejam afetas.
2– Os poderes especiais são atribuídos por diploma legal, em situações excecionais e na medida do estritamente necessário à prossecução do interesse público, ou constam de contrato de concessão.

Nos termos do artigo 23.º, sob a epígrafe Tribunais competentes
1– Para efeitos de determinação da competência para o julgamento dos litígios respeitantes a atos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo anterior, as empresas públicas são equiparadas a entidades administrativas.
2– Nos demais litígios, seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.

Como bem recorda a decisão recorrida, o DL n.° 194/2009, de 20.8, estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, logo prevendo no respetivo preâmbulo que:
“As atividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança coletiva das populações, às atividades económicas e à proteção do ambiente. Estes serviços devem pautar-se por princípios de universalidade no acesso, de continuidade e qualidade de serviço e de eficiência e equidade dos tarifários aplicados.
O atual regime de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos assenta na dicotomia entre sistemas municipais, situados na esfera dos municípios, onde se incluem também os sistemas intermunicipais, e sistemas multimunicipais, situados na esfera do Estado.
No quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, os municípios encontram-se incumbidos de assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, nos termos previstos na Lei n. ° 159/99, de 14 de setembro, sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal.
Como se refere no Ac. da Relação de Lisboa de 24-11-2020, disponível in ww.dgsi.pt, tal significa, assim, que na prestação do serviço de fornecimento de água, na sua área de concessão, a ora Ré prossegue inequivocamente fins de interesse público, estando para o efeito munida dos poderes de autoridade conferidos pelo citado DL n° 194/2009 e pela Lei n° 159/99 (entretanto revogada pela Lei n° 75/2013, de 12.), cabendo-lhe, por essa via, impor os tarifários correspondentes, aplicar taxas e coimas (cfr. arts. 43, 61 e 73 do DL n° 194/2009).
Deste modo, embora entidade privada, a Ré exerce determinadas funções de interesse público - considerados no preâmbulo do DL n° 194/2009 como serviços públicos de carácter estrutural - que lhe foram confiadas, contratualmente, pelo município, e que não perderam a sua natureza nem podem ser desempenhadas por qualquer entidade.
- Nos termos do artigo 4. do ETAF, sob a epígrafe “Âmbito da jurisdição”, 
1– Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
f)- Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
(…)
h)- Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

Aqui chegados, importa reter que a presente ação se prende com a alegada responsabilidade civil, por rotura de conduta de água num ramal da responsabilidade da R. EPAL, pessoa coletiva de direito privado que tem por objecto, nomeadamente, a captação, tratamento, adução e distribuição de água para consumo humano.

Na raiz dos alegados danos retira-se que está em causa a omissão de zelar pela conservação da rede na perspetiva aqui, não tanto de garantir da eficácia da distribuição da água, mas a de evitar os danos causados pelo mau estado da canalização (que constitui a rede de distribuição) por que a empresa é responsável.

Como se disse, trata-se de uma empresa privada concessionária de bens do domínio público, que atua como se fosse entidade pública.

Assim, para a decisão da questão da competência para dirimir o litígio é irrelevante a convocação do direito civil.

Como se lembra no citado aresto do STJ, a propósito de casos afins que envolvem concessionárias de auto-estradas e cujo paralelismo aqui vale, mutatis mutandis, a jurisprudência dominante do Tribunal de Conflitos tem remetido a resolução deste tipo de litígios entre particulares e as empresas concessionárias (…) para a jurisdição administrativa, nos casos em que os factos são praticados após a entrada em vigor da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro (cf. acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 20-01-2010, proc. n.º 025/09; de 30-05-2013, Proc. n.º 017/13; de 27-02-2014, proc. n.º 048/13, de 27-03-2014, Proc. n.º de 046/13)” e processos n.ºs 053/14, e 048/13, datados de 25.03.2015 e de 27.02.2014.
No mesmo sentido vide também os Acórdãos TRC de 07.11.2017, TRE de 09.11.2017 e TRC de 12.09.2017, aliás citados pelo apelante.

Neste âmbito e no que ao caso interessa, os factos relatados na P.I. são reportados a fevereiro de 2019, isto é, já após a entrada em vigor da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

O traçado do conflito de que a P.I. dá nota refere-se ao exercício de um poder público no âmbito de poderes que são cometidos à concessionária e que integram o núcleo do seu objeto: a distribuição de água através da rede de canalização geral e dos ramais da específica responsabilidade da empresa, vinculada aos deveres de boa conservação (Portaria 10716, de 24.07.1944).

Destaca-se do Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 27-02-2014, proc. n.º 048/13, nomeadamente que as situações susceptíveis de configurarem acções ou omissões que exprimem o exercício de prerrogativas de poder público e, como tais, enquadráveis no âmbito de aplicação do art. 1º nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31/12 (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas)»[14].

Em suma: a EPAL enquanto concessionária, exerce funções de interesse público em substituição do Estado. Como tal, a situação descrita na P.I. é subsumível ao Regime de Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas (artigo 5/1 da Lei n.º 67/2007, de 31.12) que, como se viu, se estende às pessoas colectivas de direito privado (…) por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Assim e tendo ainda em conta, nomeadamente, o previsto nos artigos 212.º/3, CRP, 1.º do ETAF e 10.º/7 do C.P.T.A, que atribui legitimidade passiva a entidades privadas, concluímos que a competência para apreciar o presente litígio pertence aos Tribunais Administrativos. Não resta, pois, senão confirmar a decisão recorrida.

III.–DECISÃO
Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, na porcedência da apelação, confirma-se a decisão recorrida que declarou a incompetência material do Juízo Central Cível de Lisboa.
Custas pelas apelantes. 

          
LISBOA, 27/9/2022



AMÉLIA ALVES RIBEIRO
ISABEL SALGADO
CONCEIÇÃO SAAVEDRA



[1]Ac. STJ, de 27.09.94, Processo n.º 858/94.
[2]Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 12-01-2010, 1337/07.3TBABT.E1.S1,  relatado pelo Excelentíssimo Conselheiro Moreira Alves.
[3]Mário Aroso de Almeida, Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 57.
[4]Freitas do Amaral/Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª edição, Almedina, 2004, págs. 25 e seguintes, apud Ac. cit..
[5]Ibidem, p. 3, apud Ac. cit..
[6]Sublinhado acrescentado.
[7]Filipa Calvão, in Comentário ao regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, 2013, pp. 72-73 e no mesmo sentido se havia também pronunciado Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, 2.ª edição, Coimbra, 2011, p. 33, apud Ac. cit..
[8] Informação acessível no link https://www.epal.pt/EPAL/menu/epal/quem-somos (consultado em 20.09.2022).
[9]Idem.
[10]Idem.
[11]Idem.
[12]Informação acessível no link https://www.epal.pt/EPAL/menu/epal/quem-somos (consultado em 20.09.2022).
[13]https://www.epal.pt/EPAL/docs/default-source/epal/estatutos-da-epal.pdf (consultado em 20.09.2022).
[14]Apud Ac STJ de 08.10.2015, acima referenciado.