Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
22/19.8T8PST.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Se a autora, fornecedora de café à ré, durante mais de 10 anos (num contrato que, se fosse normalmente cumprido, não duraria mais de 5 anos), nunca resolveu o contrato com base no incumprimento, grosso modo, da obrigação de a ré comprar todos os meses 35 kg de café (105 kg em 3 meses), o que a autora sabia que a ré nunca conseguiria cumprir e a ré nunca cumpriu desde o início do contrato, e apesar disso a autora, passados aqueles 10 anos, queria celebrar novo contrato nos mesmos termos, considera-se que, ao resolver agora o contrato, com base no incumprimento, está a agir em manifesta violação dos limites impostos pela boa fé (supressio).
II – Uma resolução ilegítima é ineficaz (ou seja, não produz a extinção do contrato).
III – Se o contrato tiver sido julgado extinto, com trânsito, a ré não pode ficar nem com a máquina de café que lhe foi emprestada, nem com um desconto pela compra de café que não chegou a comprar; mas não pode ser obrigada a pagar uma indemnização pelo incumprimento do contrato.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A-SA, intentou a presente acção comum contra: (1) B-Lda, (2) C e (3) D, pedindo:
- o reconhecimento da resolução do contrato objecto dos presentes autos e, em consequência, a condenação dos réus:
- na restituição da quantia que lhes foi adiantada no valor de 4000€, abatida da bonificação de 1186,66€ a que tiveram direito pelas compras de café efectuadas (= 623 x 4000€/2100);
- na devolução do equipamento entregue a título de comodato e não devolvido, no valor de 2454€;
e no pagamento de 7975,80€ [(2100 - 623) x 27€ x 20%], referente a indemnização por café não consumido; tudo no montante global de 13.243,14€, acrescido de juros de mora à taxa legal, actualmente de 7%, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alega em síntese que, no âmbito do exercício da actividade comercial por si desenvolvida, tendo sido incorporada por fusão a E-Lda, foi celebrado com os réus em 07/10/2008 um contrato de comércio, o qual teve em vista o fornecimento de café, adiantamento condicional de desconto/bonificação e empréstimo de equipamentos, tendo os 2.º e 3.º réus assumido a qualidade de fiadores e pagadores solidários à autora das obrigações contratuais da 1.ª ré; uma das obrigações assumidas pelos réus foi a da aquisição de 2100 kg de café, num mínimo mensal de 35 kg, que os réus não cumpriram (no total compraram apenas 623 kg), para além de não terem adquirido café desde, pelo menos, Dezembro de 2016; o incumprimento motivou a resolução do contrato pela autora, comunicada aos réus por carta datada de 14/12/2018, sendo que os réus não prestaram qualquer resposta nem liquidaram as quantias reclamadas; nos termos convencionados é devida uma indemnização calculada da seguinte forma: quantia correspondente a 20% do valor do café prometido em compra e ainda não adquirido; restituição da quantia adiantada e dos bens emprestados e indemnização à razão de 47,90€ por cada mês que decorra desde a resolução do contrato até à entrega efectiva dos bens.
Os 2.º e 3.º réus contestaram: impugnam, dizendo que não corresponde à verdade que os réus não tenham comprado café à autora após Dezembro de 2016, sendo que a última factura emitida, da qual consta a aquisição pelos réus de 5 kg de café, data de 26/07/2018, constando como cliente a F-Lda, a qual sucedeu à 1.ª ré na titularidade do estabelecimento restaurante que é detida pelos 2.º e 3.º réus, devendo nos termos contratuais ser imputada à 1.ª ré a compra de café; e excepcionam, dizendo que desde o início do contrato, em Outubro de 2008, nunca a 1.ª ré comprou café nas quantidades trimestrais acordadas, ou seja, um mínimo de 105 kg, sendo que ao longo da vigência do contrato, o máximo adquirido por trimestre foi de 40 kg; a autora sempre esteve ciente de que seria impossível para a 1.ª ré adquirir o café nas quantidades acordadas, em face do estabelecimento se situar numa zona isolada da ilha de Porto Santo, havendo pouco movimento de clientela para consumir o café contratado; se tivessem sido adquiridos os 420 kg por ano, então os 2100 kg teriam sido atingidos ao fim de 5 anos; ora, durante 10 anos a autora conformou-se com tal impossibilidade e continuava a oferecer 1 kg de café da mesma qualidade; a autora abordou os 2.º e 3.º réus no sentido de ser celebrado um novo contrato, desta feita com a F-Lda, que estes recusaram, o que levou a que a autora optasse por resolver o contrato, mais de 10 anos depois, 5 sobre a data em que o contrato deveria ter terminado, o que configura uma situação de abuso de direito, na modalidade de supressio, não sendo legítimo à autora exercer o direito de resolução contratual, tal como peticionado; concluem, pugnando pela absolvição do pedido.       
Convidada a fazê-lo, a ré replicou à matéria da excepção, impugnando a maior parte dos factos base da excepção e as conclusões que os réus tiram deles todos: o facto de os réus nunca terem cumprido com a obrigação de compra dos 35kg mensais não implica que se tivessem encontrado antes numa situação de incumprimento nos termos previstos na cláusula resolutiva invocada; a autora foi abordando os réus para regularizarem os incumprimentos verificados; não pôs obstáculos a um acordo de cumprimento, que passaria pela celebração de um novo contrato com a nova sociedade dos réus, nas mesmas condições do contrato anterior; os réus não tinham razões para crer que a autora não iria exercer o direito à resolução do contrato.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente, condenando solidariamente os réus a restituir à autora, em consequência do reconhecimento da resolução operante do contrato celebrado, a máquina de café, e absolvendo-os do demais peticionado.
A autora recorre desta sentença, para que sejam alterados os pontos 10 e 12 dos factos provados e, implícita e logicamente, para que a acção seja julgada totalmente procedente.
Os réus contra-alegaram defendendo a improcedência do recurso.
*
Questões que importa decidir: se os pontos 10 e 12 devem ser alterados e se os pedidos da autora deviam ter sido julgados totalmente procedentes.
*
Foram dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão desta questão:
1. Mediante a Ap. 00/20090713, foi registada a operação de fusão, por incorporação - transferência global do património, da E-Lda, na autora.
2. Em 07/10/2008, no âmbito da sua actividade comercial, a E-Lda (PO) e a autora (= SO) firmaram com os 2.º e 3.º réus (TO) por si e em simultânea representação da 1.ª ré, um acordo escrito, denominado de contrato de comércio ao qual foi atribuído o n.º 000/MA08/00, constante de fls. 6 verso e 7 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. Nos termos do acordo referido em 2 foi convencionado o seguinte:
Promessa de Compra/Venda
01 A PO promete vender à representada dos TO, com destino ao seu estabelecimento comercial identificado supra, 2100 quilos de café T, em fracções mínimas mensais de 35 quilos, aos preços de tabela às datas das vendas efectivas, sendo o seu preço actual de 23,50€ por quilo;
02 A SO como dona e única possuidora, com exclusão de outrem, da marca de café T e com vista a promover e incrementar a venda dos seus cafés no estabelecimento da representada dos TO, promete conceder-lhe um desconto/bonificação de 4000€ quando, cumulativamente, a totalidade do café referida em um se mostrar integralmente adquirida e paga – a regularizar, porém, anualmente, em função directa e proporcionada dos quantitativos de café adquiridos e pagos em cada ano sempre sem prejuízo do estabelecido no número onze, a propósito da resolução/anulação do contrato; (…)
04 A título de adiantamento condicional do desconto/bonificação referido em dois, entrega nesta data a SO à representada dos TO, a quantia de 4000€ para investimento directo, em mercadorias e bens de equipamento, no seu estabelecimento comercial sob a designação restaurante, sito em x de Porto Santo; (…)
Empréstimo Gratuito
06 A SO empresta, ainda a título gratuito, à representada dos TO, pelo prazo de vigência deste contrato, no estado de novos, em perfeito estado de funcionamento e sem defeitos aparentes, para utilização no estabelecimento desta - os seguintes bens de que aquela é dona e possuidora, com exclusão de outrem:
1 Máquina de Café MFAE- 2 Grupos- Ref.ª 17300 2454€
1 Moinho de Café Rossi MCF 4ª- Ref.ª 149493 420€
Que os outorgantes avaliam no montante global de 2874€
Disposições Comuns
(…) 08 Ocorrendo alienação ou cessão do estabelecimento comercial da representada dos TO, onerosa ou gratuitamente, os quantitativos de café comprados e pagos pelo adquirente/cessionário, com destino a tal estabelecimento, em conformidade com o ora acordado - e que não derivem de contrato de fornecimento de café autónomo com este celebrado - ter-se-ão por adquiridos pela mesma representada dos TO para efeitos de cumprimento do contrato, ficando esta bem ciente de que lhe será imputável em tal caso, a falta de aquisição e pagamento de cafés nos termos acordados no número um;
09 A validade da cessão contratual da posição da representada dos TO neste contrato dependerá sempre de consentimento expresso da SO e da PO - a prestar necessariamente por escrito;
10 Prevenindo-se a hipótese de vir a ser devida – por efeito da resolução/anulação do contrato - a restituição da quantia ora adiantada – nos termos descritos no número seguinte – entregam nesta data, os TO à SO o cheque número 1224979226, no valor de 4000€, a sacar sobre o Banco, autorizando, desde já, que esta venha a completar o seu preenchimento a apor-lhe, para tanto, data de emissão, posterior à da resolução/anulação do contrato e a submetê-lo a desconto bancário;
11 Se a representada dos TO, seguida ou interpoladamente, não adquirir café durante três meses, ou não efectuar, em dois trimestres, um mínimo trimestral de compras de 105 quilos de café, ou não pagar 2 quaisquer facturas vencidas, no prazo máximo de 30 dias, a contar dos seus vencimentos, o contrato considerar-se-á, automaticamente e para todos os efeitos, definitivamente incumprido, ficando a PO e a SO, por perda do interesse na prestação fraccionada da representada dos TO, desobrigadas, a partir da verificação de qualquer dos casos referidos, do dever de lhe fornecer cafés, assistindo-lhes o direito de resolver ou não o contrato, e de reclamar imediatamente da representada dos TO - sem terem, necessariamente, que agir em conjunto - a restituição dos bens de equipamentos emprestados e indemnização, à razão de 47,90€ por cada mês que decorra, a partir da data da resolução do contrato até à data da entrega efectiva daqueles à PO; a restituição da quantia emprestada; indemnização, a título de cláusula sancionatória, correspondente a 5% e 15%, respectivamente, do valor do café prometido em compra/venda e não adquirido. […]
13 Se a representada dos TO, no prazo de 15 dias - a contar da data em que for notificada pela PO para pagar a indemnização e o mais que for devido - proceder à compra e pagamento da totalidade do café ainda não adquirido, ficará sem efeito a indemnização por incumprimento do contrato, sendo-lhe devida por inteiro a bonificação prometida na cláusula segunda;
14 Este contrato terá termo inicial no dia 07/10/2008 e termo final quando a totalidade do café prometida em venda houver sido integralmente adquirida e paga nos termos nele previstos;
15 Os TO responderão - pessoal e solidariamente com a sua representada - pelo exacto e fiel cumprimento das obrigações a que esta fica adstrita, quer derivem directamente do contrato ou da sua resolução/anulação;
17 Os TO, em nome da sua representada, prometem comprar os cafés identificados em 1 e aceitam o adiantamento referido em 4 e o empréstimo de bens referido em 6, tudo em rigorosa conformidade exarado em todas as cláusulas antecedentes;
18 Declaram haver recebido da SO, nesta data, para a sua representada, aquela quantia de 4000€ descrita em quatro e os bens descritos em seis, no estado físico e de funcionamento aí descritos.
Declaração de Ciência
19 Declaram ainda, expressamente, os TO que o teor deste contrato lhes foi facultado, por cópia integral, com 10 dias de antecedência em relação à data da sua outorga, tendo-lhes sido prestada explicação bastante de todos os seus termos, pelo que ficaram absolutamente cientes de que o mesmo corresponde, integral e fielmente, às suas manifestações de vontade. De que assim é, dão fé e vão assinar sem reservas, todos os Outorgantes (…).”
4. Mediante a ap. 00/20130121, encontra-se registada a F-Lda, a qual sucedeu à 1.ª ré na titularidade do estabelecimento restaurante e que é detida pelos 2.º e 3.º réus.
5. Desde Outubro de 2008 até Dezembro de 2017, a 1.ª ré adquiriu café à autora, com as seguintes quantidades:

20084.º trimestre40 kg
20091.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
40 kg
30 kg
40 kg
30 kg
20101.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
20 kg
30 kg
40 kg
30 kg
20111.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
20 kg
40 kg
40 kg
40 kg
20121.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
10 kg

25 kg
10 kg
20131.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
5 kg
5 kg
20 kg
5 kg
20141.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre

20 kg
40 kg
20151.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
2 kg
8 kg
3 kg
20161.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre
10 kg

10 kg
10 kg
20171.º trimestre
2.º trimestre
3.º trimestre
4.º trimestre

5 kg
5 kg

6. Em 22/05/2018 foi emitida pela autora a factura n.º 38, com o teor de fl. 23 e que se dá por integralmente reproduzido, da qual consta a aquisição, pela F-Lda, de 5 kg de café T e a oferta de 1 kg.
7. Em 03/07/2018 foi emitida pela autora a factura n.º 53, com o teor de fl. 23 verso e que se dá por integralmente reproduzido, da qual consta a aquisição, pela F-Lda, de 5 kg café T e a oferta de 1 kg.
8. Em 26/07/2018 foi emitida pela autora factura n.º 538, com o teor de fl. 24 e que se dá por integralmente reproduzido, da qual consta a última aquisição, pela F-Lda., de 5 kg de café T e a oferta de 1 kg.
9. O moinho de café com a ref.ª Rossi MCF4 foi devolvido à autora em Fevereiro de 2018.
10. A autora tinha conhecimento de que a 1.ª ré não conseguiria adquirir o café nas quantidades convencionadas em 3.
11. O restaurante situa-se numa zona isolada na ilha de Porto Santo.
12. Durante a vigência do acordo firmado em 2, a autora aceitou as quantidades de café que foram sendo adquiridas pela 1.ª ré.
13. A autora abordou os 2.º e 3.º réus no sentido de celebrar um novo contrato nos moldes idênticos ao acordo referido em 2 com a F-Lda.
14. A autora solicitou o envio da documentação necessária para a formalização de um novo acordo mas os réus recusaram.
15. Por carta datada de 14/12/2018, com o teor constante de fl. 9 que aqui se dá por integralmente reproduzidos, a autora comunicou aos 2.º e 3.º réus que dava por cessado o acordo referido em 2, “com base no facto de desde, pelo menos, Dezembro de 2016 não terem efectuado compras de café T nos termos acordados.
16. Da missiva referida em 15 consta ainda o seguinte: “Queiram V. Exas, consequentemente: 1. Proceder à restituição da quantia que lhes foi adiantada no valor de 4000€ abatida da bonificação a que teve direito pelas compras de café efectuadas no valor de 1186,66€; 2. Proceder à restituição do equipamento (máquina de café) que lhes foi emprestado no valor global de 2454€; 3. Proceder ao pagamento da indemnização no valor de (2100-623) X 27€ X 20% = 7975,80€. 4. Tudo no montante global de (…) 13 243,14€”.
17. A carta constante em 15 foi enviada com aviso de recepção para o domicílio dos réus.
18. Os réus não prestaram resposta a tal carta nem pagaram as quantias aí reclamadas.
*
Da impugnação da decisão da matéria de facto
[Não se transcreve por ter sido improcedente e não ter interesse]
*
Do recurso sobre matéria de direito
A fundamentação da decisão recorrida foi esta, em síntese:
O acordo firmado na factualidade provada em 2 entre sociedades comerciais (atenta a qualidade da autora e 1.ª ré, cfr. artigo 13.º n.º 2 do Código Comercial) contempla obrigações próprias de vários contratos, pelo que o mesmo possui natureza mista e complexa (ac. do Tribunal da Relação do Porto de 11/11/2014, proc. 2686/11.1TBGDM-A.P1).
“Estamos, pois, perante um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, finalmente, de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador” – nos termos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/06/2009, proc. 257/09.1YFLSB, citado pelo ac. do STJ de 15/01/2013 (proc. 600/06.5TCGMR.G1.S1).
Resulta da factualidade provada que a 1.ª ré (à qual sucedeu a F-Lda na titularidade do estabelecimento restaurante, pese embora nos termos convencionados na cláusula 8 fosse imputada à 1.ª ré a compra e/ou falta de aquisição de café), contrariamente ao que se havia obrigado nos termos da cláusula 1, apenas adquiriu 648 kg de café (633 kg até Dezembro de 2017 e 15 kg até 26/07/2018) de um total de 2100 kg [e não 623 como dizia a autora – parenteses deste TRL, mas a diferença é assinalada na sentença]. Mais ficou provado que a 1.ª ré no 4.º trimestre de 2008 adquiriu 40 kg, sendo essa mesma quantidade a que foi comprada no 1.º trimestre de 2009. Assim sendo não restam dúvidas que se encontra preenchida a cláusula 11, o que motiva a verificação do incumprimento contratual por parte da 1.ª ré, o qual ocorreu desde o início vigência do contrato (datado de 07/10/2008), nunca tendo, durante 10 anos de relação contratual, sido adquirido café na quantidade de 105 kg trimestrais a que a 1.ª ré estava obrigada.
Mais ficou provado que a autora tinha conhecimento de que a 1.ª ré não conseguiria adquirir o café nas quantidades acordadas, tendo aceitado, durante o período de vigência do contrato, as quantidades de café que foram sendo adquiridas pela 1.ª ré.
Ora, atendendo ao lapso de tempo decorrido desde a verificação do incumprimento contratual, a resolução do contrato pela autora, datada de 14/12/2018, ou seja, passados 10 anos, foi ilegítima por abuso de direito (art. 334 do Código Civil e Pedro Pais de Vasconcelos, pág. 266 da Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 5.ª edição, 2008; Pires de Lima e Antunes Varela, pág. 278 do Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 2.ª edição revista e actualizada, 1979) na modalidade invocada pelos réus, supressio (supressão).
Segundo Menezes Cordeiro “a supressio abrange manifestações típicas de ‘abuso de direito’ nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé. […] O quantum do não exercício será determinado pelas circunstâncias do caso: o necessário para convencer um homem normal, colocado na posição do real, de que não mais haverá exercício. A justificação será reforçada por todas as demais circunstâncias ambientais capazes de conformar essa convicção, legitimando-a.” (páginas 56 e 58 da Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa in agendo, Almedina, 2006).
Segundo o ac. do STJ de 05/06/2018, proc. 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1, que: “O que a [à supressio] distingue do venire contra factum proprium é a ausência de factum (conduta anterior), bastando o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar à contraparte a fundada expectativa de que o direito não mais será exercido. Assim, o comportamento reiteradamente omissivo da parte que poderia exercer o direito, seguido, ao fim de largo tempo, de um acto comissivo com que a contraparte legitimamente já não contava, constitui abuso de direito na modalidade da supressio. É desnecessária a ocorrência de culpa por parte do titular, bastando a situação objectiva criada a partir da sua inércia, geradora de justificada confiança da pessoa contra quem o direito se dirigia. Mais do que sancionar a inércia do titular do direito, o objectivo da supressio é o de proteger a legítima confiança do terceiro que, ao fim de largo tempo, é surpreendido com uma demanda que já não esperava. O tempo necessário para que a supressio opere dependerá muito das circunstâncias que, combinadamente, contribuam para a formação do estado de confiança […], variando naturalmente de caso para caso. É possível, no entanto, estabelecer algumas referências temporais. Assim, deverá ser inferior ao prazo da prescrição […], porque de outro modo perderia utilidade; deverá, por outro lado, equivaler ao período necessário para convencer um homem comum, colocado na posição do real e perante as mesmas circunstâncias, de que não mais seria exercido o direito invocado. Conforme tem sido sublinhado pela doutrina, a supressio (tal como outras modalidades do abuso de direito) é um remédio subsidiário para uma situação extraordinária e daí que sejam necessárias todas as cautelas na sua aplicação pelos tribunais.”
Ora, o tribunal entende, em face da factualidade provada, que a autora tinha conhecimento que a 1.ª ré não conseguiria cumprir com os consumos mínimos de café acordados e durante o período de vigência do contrato aceitou tal situação. Assim, durante 10 anos, ao aceitar o incumprimento, diga-se reiterado, dos consumos de café acordados com os 2.º e 3.º réus, em representação da 1.ª ré, a autora criou nestes uma confiança, uma expectativa factual, sólida, de poderem confiar na manutenção do status quo. A autora podia resolver o contrato desde 2009, accionando a cláusula 11, pelo incumprimento referido acima. Apesar disso, a autora não resolveu o contrato celebrado, pelo que este continuou em execução em face do comportamento inerte daquela, criando nos réus a expectativa e confiança de tal direito não seria mais exercido (vide ac. do TR de Coimbra de 12/09/2017, proc. 7471/15.9T8CBR.C1).
A manutenção do contrato durante 10 anos, com a qual, objectivamente se conformou e ao não exercitar durante aquele período o direito de resolução, fazendo-o apenas em 14/12/2018 após a recusa dos 2.º e 3.º réus em celebrarem um novo contrato em nome da Zimbral da Areia, Lda, ofende de forma clamorosa as regras da boa-fé, enquadrando-se o seu comportamento numa das manifestações típicas do abuso de direito, isto é, a supressio.
Assim, é manifesta a procedência da excepção de abuso de direito invocada pelos 2.º e 3.º réus, tornando ilegítimo o exercício do direito de resolução (veja-se um caso idêntico ao dos presentes autos, no ac. do TR de Évora de 05/06/2016, proc. 124/14.7T8STC.E1: [Age com abuso de direito a parte que, após incumprimento da outra parte lhe continuou a fornecer café, criando neste a convicção na manutenção da relação contratual e veio a celebrar outro contrato para fornecimento de café, na sequência de um outro que a outra parte não logrou cumprir, sabendo que a outra parte – seu agente já há 7 anos - não conseguia consumir as quantidades mínimas de café, face ao seu volume de negócio […]”
         […]
Tal nos remete agora para outra questão que é a das consequências da resolução ilegítima, isto é, se a mesma determina ou não a cessação do vínculo contratual estabelecido.
Pode a resolução ilegítima (infundada) ser operante, isto é, cessar automaticamente o contrato? Na doutrina e jurisprudência tem sido discutido os efeitos de tal ilicitude na relação contratual.
No sentido afirmativo de que a resolução infundada é operante, vai Romano Martinez que […] (pág. 221 da Cessação do Contrato, Almedina, 2.ª edição, 2006). Pinto Monteiro, pág. 128 do Contrato de Agência, Anotação, Almedina, 5.ª edição, 2004, Assunção Cristas, citada através do ac. do STJ de 22/05/2018, proc. 27800/15.4T8PRT.P1.S1 [mas o ac. do STJ segue a posição contrária – parenteses deste acórdão do TRL], e o ac. do TR de Lisboa de 10/12/2009, proc. 6240.05.9TVLSB.L1-7.
Uma outra tese seguida, designadamente por Fernando de Gravato Morais (págs. 164 e 165 do Contrato-Promessa em Geral e Contratos-Promessa em Especial, Almedina, 2009) e Calvão da Silva (págs. 134 e 158 d’A declaração da intenção de não cumprir e pressupostos da resolução por incumprimento, in Estudos de Direito Civil e Processo Civil, Almedina, 1999), consideram que a resolução ilegítima não determina a cessação do contrato, o que vai de encontro ao decidido no ac. do TRC de 21/09/2010, proc. 3106/08.4TBAVR.C1.
O tribunal, aderindo aos fundamentos da 1.ª corrente citada, entende que a resolução ilegítima tem como consequência a imediata cessação do contrato, pelo que tendo a autora comunicado aos 2.º e 3.º réus a resolução do contrato objecto dos presentes autos, estes ao receberem a carta com a comunicação da resolução não prestaram resposta, o que permite extrair a falta de vontade na subsistência do vínculo contratual e deste modo, se reconhece que tal resolução, ainda que ilegítima por existência de abuso de direito, é operante, o que determina a cessação do vínculo contratual estabelecido.
*
Da restituição da máquina de café
Tendo em conta os artigos 1129, 1135/-h e 1137 do CC, na medida em que a autora emprestou, a título gratuito à 1.ª ré, pelo prazo de vigência do contrato, para utilização no estabelecimento comercial restaurante, uma máquina de café, cessadas as relações comerciais entre as partes em face da comunicação da resolução, tem a autora direito a que lhe seja restituída a referida máquina de café.
E por força da cláusula 15 do contrato, em que os 2.º e 3.º réus outorgaram na qualidade de fiadores, e o disposto nos artigos 627/1, 628/1 e 634/1, 512/1, 513, 519/1, 405 e 406 e 1135/-h, todos do CC, e 101 do CCom, são os réus responsáveis solidariamente pela restituição à autora da máquina de café.
*
Da restituição da quantia adiantada e
da indemnização pela resolução do contrato
Quanto a estes pedidos, o tribunal entende que a existência de abuso de direito, na modalidade de supressio, torna ilegítima a pretensão da autora em ser indemnizada pelos réus.
Neste mesmo sentido, veja-se, o explanado no ac. do TR do Porto de 23/05/2005, proc. 0552581: “Não tendo, em certas circunstâncias, sido exercido o direito durante um certo lapso de tempo, não poderá ser exercido mais tarde, se esse exercício contrariar a boa-fé. […]” – ac. do STJ de 19/10/2000, in CJSTJ, 2000, III, 83.
Assim, não está a ré incursa nas consequências do incumprimento do contrato, devendo ser, como é, absolvida do pedido.”
Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento destes pedidos.
*
Contra isto, a autora diz o seguinte:
5. O contrato celebrado entre a autora e os réus é um contrato cujo prazo é dilatado no tempo até cumprimento integral do mesmo, ou seja, até que a quantidade de café acordada seja efectivamente adquirida.
6. As prestações previstas no contrato são de carácter fraccionado, dependentes de uma relação-quadro ou do valor total do bem adquirido.
7. Os consumos deficitários não implicam que os réus se encontrassem numa situação de incumprimento nos termos previstos na cláusula resolutiva acordada entre as partes.
8. Para se verificar a prática de abuso de direito não basta o mero decurso do tempo, é necessário, e fundamental, que se verifiquem circunstâncias específicas: um comportamento de inércia, e/ou um comportamento contraditório, causando um efeito surpresa na parte merecedora da tutela de confiança que constitui a ratio desta figura jurídica, apanhando esta desprevenida e, por isso, desprotegida.
9. A autora não adoptou nenhum comportamento contraditório, nem de inércia.
10. A autora sempre abordou os réus no sentido de apurar a sua situação socioeconómica e a possibilidade de regularizar os incumprimentos verificados.
11. A autora mostrou-se disponível em regularizar a presente situação através da celebração de um novo contrato com a F-Lda., tendo solicitado o envio de toda a documentação necessária a fim de formalizar o dito contrato, o que não aconteceu porquanto não existiu vontade dos réus em colaborar nesse sentido, tendo antes estes, sim, adotado uma atitude de inércia.
12. Verificado o incumprimento definitivo dos réus, a autora interpelou os mesmos para, de forma extrajudicial, regularizarem o débito constituído face ao incumprimento definitivo.
13. A figura do abuso de direito deverá ser aplicada apenas em situações extraordinárias (verificados os requisitos) e, por isso, de aplicação subsidiária, razão pela qual a presente exceção deveria ter sido julgada improcedente, por infundada e não provada
Os réus contra-alegaram, com base, no essencial, na fundamentação da decisão recorrida, mas chamam a atenção para a incongruência de as alegações da autora pretender que antes não tinha havido incumprimento do contrato.
Decidindo:
Dos limites impostos pela boa fé
Antes de mais, diga-se que, embora o depoimento das testemunhas aponte para que o contrato em causa nos autos é um contrato de adesão, a questão nem sequer será tocada neste acórdão, visto que os factos provados não permitem a conclusão de que o contrato em causa é, realmente, um contrato de adesão, e as questões colocadas também não mexem com a questão das cláusulas contratuais gerais.
Posto isto,
Com as três primeiras conclusões do recurso acabadas de transcrever, a autora pretende demonstrar que, até à data em que resolveu o contrato, ainda não se tinha verificado o incumprimento definitivo dele pelos réus, nos termos da cláusula resolutiva acordada. No corpo das alegações apoia-se no ac. do TRL de 24/11/2016, proc. 14449/14.8T2SNT.L1-8. A construção da autora é então a seguinte: se até então não tinha havido incumprimento definitivo, até então não podia ter resolvido e, por isso, não se verificava os pressupostos da supressio do direito.
Esta argumentação é, desde logo, contraditória com a causa de pedir invocada pela autora: se até 2016 não tinha havido incumprimento definitivo do contrato, então também não tinha havido incumprimento definitivo com o fundamento resolutivo invocado na carta do ponto 15, porque se trata também do incumprimento das compras nos termos acordados, o que acarretaria a improcedência da acção, porque a resolução não poderia ter sido exercida. E se a autora pretendesse discutir aqui qual foi o fundamento resolutivo invocada na carta resolutiva, aproveitando a falta de precisão da mesma, isso poria em causa, ainda, a resolução, devido a essa imprecisão dos fundamentos invocados.
Por outro lado, o caso do ac. do TRL é muito diferente do caso dos autos, desde logo porque naquele caso não havia uma cláusula resolutiva que definisse o incumprimento definitivo, como há no caso dos autos. E também porque o conjunto das cláusulas do contrato e do subsequente aditamento do contrato, naquele caso, permitiu àquele acórdão ver no incumprimento uma simples mora, sendo que no caso dos autos as cláusulas são diferentes e não houve nenhum aditamento no contrato.
Por fim, e mais importante, a questão é a seguinte:
Com as cláusulas resolutivas, os contraentes, ao abrigo da liberdade contratual (art. 405/1 do CC), podem criar um regime de resolução do seu contrato diferente das normas dispositivas e supletivas do regime legal de resolução (art. 432/1 do CC), por exemplo, definindo em condições diferentes deste, aquilo que é, para eles, um incumprimento definitivo (neste sentido, por exemplo, Brandão Proença, Cláusula resolutiva expressa como síntese da autonomia e da heteronomia, págs. 299 a 332, nos Estudos em homenagem ao Prof. Doutor, Heinrich Ewald Hörster, Almedina, 2012, e Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2,ª edição, UCEP, 2017, pags. 157 a 171, especialmente págs. 462-465, e Daniela Baptista, da Cláusula resolutiva expressa, págs. 197 a 226, também naqueles estudos, e no Comentário ao CC, Direito das Obrigações, UCE 2018, artigos 432 a 436, págs. 133 a 151, especialmente mm12v).
Isto, naturalmente, sem prejuízo do controlo judicial quer do conteúdo de tal cláusula, quer do exercício do direito nascido com o seu preenchimento (de modo a não permitir, designadamente, com base, entre outros, nos arts. 762/2, 802/2, 808//2 e 334, todos do CC, e nas ideias da boa fé, da proporcionalidade e da adequação, que sejam considerados fundamentos resolutivos incumprimentos insignificantes, por exemplo – tem-se em vista principalmente as páginas 323 a 332 do estudo citado de Brandão Proença).
Ora, na cláusula 11 prevê-se expressamente o que é que é, para os contraentes, um incumprimento definitivo do contrato e, como a sentença demonstrou, sem qualquer dúvida, verificou-se o preenchimento dessa previsão contratual, sendo que os pressupostos desta não traduzem um incumprimento insignificante.
Assim, tendo em conta os pressupostos da supressio tal como já expostos pela sentença recorrida, considera-se que eles se verificam, pois que, durante mais de 10 anos de execução do contrato, desde o início em incumprimento definitivo nos termos definidos pela cláusula resolutiva acordada pelas partes, nunca a autora antes pretendeu resolver o contrato e com isso não pode ter deixado de criar a convicção nos réus, como em qualquer outra pessoa razoável, de que a ré nunca exerceria o direito potestativo de resolver o contrato com base nesse fundamento. E isso mesmo é ainda revelado, particularmente, pelo comportamento posterior da autora, ao pretender celebrar um novo contrato nas mesmas condições do anterior (ponto 13 dos factos provados), apesar de 10 anos de incumprimento objectivo do contrato em vigor, o que revela que nenhuma das partes considerava que a cláusula resolutiva tinha qualquer valor, isto é, que ela pudesse servir para a autora resolver o contrato. Para mais, ainda, quando a autora sempre soube que os réus nunca conseguiriam vender as quantidades de café em causa.
Neste sentido, para além do ac. do TRE, veja-se também o ac. do TRP de 23/05/2005, proc. 0552581, também citado pela sentença recorrida para outros efeitos:
I - Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a empresa que contratou fornecer café, em exclusivo a um restaurante, ao resolver o contrato alegando incumprimento, se desde o início do acordo negocial, e por cerca de três anos não reage ao facto de o consumidor não adquirir a quantidade mínima de café a que se vinculara, o que foi sempre do seu conhecimento.
II - O facto de ter havido tolerância para com o incumprimento é decisivo, para enquadrar a conduta abusiva pois, se tal passividade da ré fosse esporádica não teria relevo, mas perdurando pelo tempo que perdurou, e dada a natureza do contrato, quando a autora o resolveu, agiu, contraditoriamente, com a sua conduta inicial, passando a considerar infractor aquilo que antes não considerara, podendo considerar, assim traindo a expectativa da ré de que tal actuação não seria considerada pela autora como violadora do contrato.
No mesmo sentido, com particular aplicação ao caso dos autos face ao que já se disse, veja-se Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, obra citada na sentença recorrida, 9.ª edição, 2019, Almedina, págs. 285, 283 e 284:
Supressio (Verwirkung) e surrectio (Erwirkung) são subtipos do venire contra factum proprium. Traduzem o comportamento contraditório do titular do direito que o vem exercer depois de uma prolongada abstenção. A abstenção prolongada no exercício de um direito, pode, em certas circunstâncias, suscitar uma expectativa legítima e razoável de que o seu titular o não irá exercer ou que haja renunciado ao próprio direito, ao exercício de algum dos poderes que o integram, ou a certo modo do seu exercício. Esta expectativa é atendível quando a sua criação seja imputável ao titular do direito e resulte de uma situação de confiança que seja justificada e razoável.
Este binómio supressio/surrectio integra-se no tipo do venire contra factum proprium, do qual só se distingue por o comportamento prolongado inicial do titular do direito se traduzir numa abstenção e não numa acção, o que não parece ser suficiente para instituir um novo tipo de abuso do direito.”
E, antes, dizem o seguinte a propósito do venire contra factum proprium:
“Este tipo de abuso centra-se na proscrição de comportamentos contraditórios e da frustração de expectativas criadas e nas quais outrem haja legítima e razoavelmente confiado. Ao agir no Mundo, cada um é responsável "pelo significado intersubjectivo (objectivo) da sua conduta" (Baptista Machado) e não pode desconsiderar o sentido que a sua acção representa perante os outros, nem as expectativas que neles suscita, nem desinteressar-se deles. A comunicação humana está cheia de significados implícitos e subentendidos que integram e complementam a linguagem das palavras. A vida em sociedade exige que as pessoas possam confiar nas expectativas criadas e que essas expectativas sejam atendidas pelo Direito (reliance).
Como tipo de abuso, o venire contra factum proprium encontra um fundamento duplo, negocial e ético.
Por um lado, a anterior conduta reiterada ou prolongada tem uma eficácia conformadora do conteúdo do direito subjectivo como correspondendo ao modo como o titular do direito o vinha reiterada e prolongadamente exercendo. Este efeito conformador emerge do diuturnus usus et consensus, justifica-se particularmente nas relações prolongadas e significa um consenso tácito sobre o conteúdo do direito e da relação, que é lícito e eficaz sempre que o direito ou a relação em questão sejam regidos pela autonomia privada, sejam disponíveis, e no limite em que o sejam. Assim pode suceder, por exemplo, nas relações prolongadas de negócios. Mesmo no domínio dos direitos reais, o princípio do numerus clausus (artigo 1306) não obsta a que, com carácter obrigacional, se dê ao direito uma regulação negocial autónoma que pode ser tácita e resultar "com toda a probabilidade" (artigo 217) de uma prática consensual longa e reiterada. Assim, nada obsta a que, no relacionamento prolongado, por exemplo de vizinhança, de comunhão, de servidão ou outros semelhantes, se estabeleça e consolidem práticas consensuais que integrem e conformem o conteúdo dos direitos, das posições jurídicas, ou das relações em questão.
Por outro lado, o exercício posterior do direito em contradição com a prática passada reiterada e com frustração das expectativas legítimas e razoavelmente suscitadas na parte a quem o direito é oposto ou contra quem é exercido, constitui uma conduta eticamente reprovável, indigna de uma pessoa de bem, e violadora do dever de honeste (bene) agere. Uma conduta contraditória como esta é contrária aos bons costumes e å boa fé, e constitui abuso do direito.”
No mesmo sentido, falando no venire e na supressio, veja-se também Daniela Farto Baptista, no Comentário ao CC, art. 436, mm 11, pág. 151, a qual, depois de referir que “[n]ão tendo sido fixado nenhum prazo para a resolução do contrato, nem no momento da sua celebração, nem nos termos [do art. 432 do CC], o direito de resolução ficará sujeito à prescrição nos termos gerais (arts. 298 e ss),” mas que “alguns autores questionam, todavia, se se poderá considerar que o seu não exercício durante um certo prazo constituirá uma renúncia tácita”, lembra que “outros autores defendem que o exercício do direito de resolução poderá ser considerado abusivo e, portanto, ilícito, sempre que o seu titular, depois de ter tido conhecimento do fundamento que o fez nascer, continuar a actuar criando a aparência de não estar interessado em exercê-lo e sempre que, da sua inércia, se puder retirar a convicção de que este irá optar pela manutenção da relação contratual (venire contra factum proprium). Tendo sido criada a confiança legítima de que a resolução não será declarada, aceitam que possa verificar-se uma supressio ex bona fide.”
Posto isto, permitir que, 10 anos passados, 5 anos depois do termo normal do contrato se ele tivesse sido cumprido, a autora, sem mais, pretenda resolver o contrato para obter dos réus, para além da restituição dos equipamentos e da máquina, ainda uma indemnização provavelmente superior a 4 vezes o lucro que obteria através da continuação da actividade dos réus (20% de imediato em vez de uns normais 4 ou 5% ao longo do tempo, ainda para mais sem que a autora tenha de fornecer o café), sem a contrapartida, para os réus, de poderem continuar a exercer a actividade com a qual poderiam obter os rendimentos com que pagar esse lucro, seria dar azo a uma enorme e inesperado prejuízo para os réus. Tudo a revelar que o exercício do direito de resolução, no caso, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé,
*
Assim, concorda-se com a sentença que a resolução do contrato, pela autora, foi ilícita.
Já não se concorda com a ideia, embora com o suporte doutrinal e jurisprudencial que a sentença adequadamente invoca, de que a resolução ilícita de um contrato provoca, apesar disso, a extinção do mesmo.
*
Da ineficácia extintiva das resoluções ilícitas
Não pode ser. Assim como o devedor não pode escolher entre cumprir a obrigação ou pagar uma indemnização pelo incumprimento, porque o credor lhe pode exigir, judicialmente, contra a sua vontade, o cumprimento da obrigação (art. 817 do CC), assim o devedor não pode resolver ilicitamente o contrato, porque sendo ilícita a resolução, o credor tem de continuar a poder exigir, judicialmente o cumprimento do contrato (“dando, afinal, cumprimento ao princípio da força obrigatória do contrato” – na expressão de Brandão Proença, Lições citadas, 2.ª edição, pág. 369). Uma resolução ilegítima não pode provocar os efeitos jurídicos queridos pela agente, por serem contrários à lei (art. 280/1 do CC).
E precisamente porque a resolução ilícita do contrato não pode produzir a extinção do mesmo, o que pode acontecer é que a resolução ilícita do contrato seja equiparada – apenas quando de facto o puder ser -, a uma recusa categórica de cumprimento que confere à contraparte a possibilidade de resolver o contrato (até então subsistente apesar da resolução ilícita) com base nela.
Só assim não será quando for possível ver na resolução uma denúncia sem justa causa de um contrato duradouro por tempo indeterminado a qual dá direito a uma indemnização contra o denunciante. É o que pode suceder nos casos de contratos de agência, tendo em conta os artigos 27 e 28 do regime do DL 178/86, de 03/07: art.27: 1 - Se as partes não tiverem convencionado prazo, o contrato presume-se celebrado por tempo indeterminado. 2 - Considera-se renovado por tempo indeterminado o contrato que continue a ser cumprido pelas partes após o decurso do prazo. Art.28/1: A denúncia só é permitida nos contratos celebrados por tempo indeterminado e desde que comunicada ao outro contraente, por escrito, com a antecedência mínima seguinte).
Mas aqui não se está perante uma denúncia do contrato e muito menos perante um contrato duradouro por tempo indeterminado.” Note-se aqui que a posição de Pinto Monteiro, citada na sentença recorrida, foi expressa no contexto do regime do contrato de agência.
No sentido da regra geral, de princípio, da ineficácia extintiva da resolução ilícita, apenas por exemplo e com inúmeros argumentos, veja-se:
Paulo Mota Pinto: “a resolução sem fundamento é, pois, ineficaz”, “por não possuir fundamento e o resolvente não ser titular do correspondente direito potestativo. […] da tentativa de exercício de um direito de que se não era titular não pode resultar qualquer efeito extintivo da relação contratual”. Este autor aceita, no entanto, que isto não será assim no caso de denúncia ad libitum [= ad nutum] de contratos por tempo indeterminado [o que não é o caso dos autos] - Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Coimbra Editora, 2008, nota 4861, págs. 1674/1677).
Brandão Proença: “É do entendimento comum que, em regra, a decisão do devedor é revelada de forma expressa mediante uma declaração dirigida ao credor e em que faz saber – como seu conteúdo – a vontade de não cumprir o chamado “programa contratual”. No seu desiderato de anunciar essa intenção, a declaração do devedor pode manifestar-se obliquamente com alegações de inexistência ou invalidade contratual, sob a forma de motivações subjectivas de desinteresse […] e pretensões sem justificação contratual, ou ir implícita na atitude mais radical de repúdio ou rejeição do próprio contrato, revelada através de pedidos de anulação, resolução (potenciada com um pedido indemnizatório) denúncia ou impugnação do vínculo assumido […] a tentativa de uma desvinculação ilegítima, activada por alguma dessas formas jurídicas, pode querer branquear a evidência de um acto lesivo, apresentando-se, pois, como sinal concludente de uma recusa antecipada de cumprimento […] (A hipótese da declaração (lato sensu) antecipada de incumprimento por parte do devedor, Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003 = Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 262):”.
Nuno Manuel Pinto Oliveira (Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Maio 2011, págs. 864 a 868), defende a relevância da recusa de cumprimento (podendo o credor retirar da recusa as consequências jurídicas em geral relacionadas com a mora qualificada (pelo preenchimento dos requisitos do art. 808/1 – por exemplo, a indemnização substitutiva da prestação […] ou a resolução do contrato […]), sob a forma de uma declaração categórica, clara e definitiva, mesmo que seja verbal e tácita. E lembra que os autores portugueses têm considerado que a declaração expressa de resolução do contrato, quando injustificada, é – ou pode ser – uma declaração tácita de recusa de cumprimento.
Acrescenta: “O devedor que declarasse actuar o direito potestativo [de] resolver um contrato bilateral, não podendo fazê-lo, por não estarem preenchidos os requisitos da resolução […] estaria a atribuir ao seu credor o direito potestativo de o resolver. O devedor que alegasse, injustificadamente, que o seu credor não cumpriu e que quisesse resolver o contrato pelo facto de o seu credor não ter cumprido estaria a atribuir-lhe a faculdade de alegar, justificadamente, que o devedor não cumpriu.
Os exemplos anteriores devem apreciar-se com alguma reserva, advertindo-se o intérprete para que evite a tentação de cair em automatismos fáceis. Depois cita Calvão da Silva (A declaração de intenção de não cumprir, pág. 135): ‘Urge, nomeadamente, prevenir o pecado de pensar que a declaração ilegal de resolução por uma das partes contratantes constitui sem mais fundamento de resolução para a outra parte’”.
E conclui: “O credor só poderá considerar a declaração de recusa de cumprimento como uma declaração definitiva quando seja a última palavra […] em termos tais que a reconstituição da relação contratual originária deva considerar-se afastada ou excluída pelo princípio (da proibição) do abuso do direito”. 
Raúl Guichard e Sofia Pais, que defendem que a resolução injustificada do contrato, acompanhada de várias outras circunstâncias, pode, no caso, configurar uma situação de recusa de cumprimento, equiparado a um incumprimento definitivo – Direito e Justiça, 2000, I, especificamente págs. 316/319, que, nesta parte terminam assim: quanto à declaração de resolução, ela não surtiu os efeitos pretendidos, por não se verificarem os respectivos pressupostos – desse ponto de vista, foi absolutamente irrelevante. Contudo, isso não significa que não possa assumir importância, não enquanto declaração negocial de extinção do contrato, mas como facto revelador de uma vontade de não cumprir.).
Joana Farrajota, A resolução do contrato sem fundamento, Almedina, 2015, págs. 180-191, 221-223 e 373 (resumo da autora: “[…] dependendo o surgimento do direito de resolução da verificação de um fundamento, a inexistência deste determina a ilicitude da declaração pretensamente resolutiva e, em regra, a invalidade desta. A análise das escassas disposições normativas que abordam a questão da ilicitude da resolução num conjunto de tipos contratuais revela-nos que, apesar desta tendencial relação entre ilicitude e invalidade da resolução infundada, casos há em que o efeito extintivo se produz. Trata-se de desvios à regra geral, justificados pela tutela de outros interesses […]. […] a gravidade desta declaração, enquanto conduta profundamente contrária à tendência natural da relação obrigacional para o cumprimento, impõe a disponibilização ao declaratário das faculdades previstas na lei para o inadimplemento. […]” [note-se que nenhum dos desvios analisados pela autora têm a ver com o caso dos autos].
E Catarina Monteiro Pires, Contratos, I, Perturbações na execução, Almedina, 2019, págs. 91 a 93.  
Expondo a discussão, sem tomar posição, veja-se ainda Daniela Farto Baptista, Comentário ao art. 436 do CC, obra já citada, mm7, pág. 148.
Todas estas referências e várias outras já, à excepção das três últimas, podem ser vistas nos acórdãos:
- do TRL de  21/06/2012, proc. 8888/03.7TBOER.L1-2: A denúncia ilícita do contrato pelo empreiteiro, sendo ineficaz como tal, pode, no entanto, ser vista, se as circunstâncias do caso o permitirem, como declaração de recusa categórica, clara e definitiva de cumprimento da sua prestação, equivalendo a um incumprimento definitivo da mesma;
- do TRL de 21/02/2013, proc. 4706/10.8TBCSC.L1-2: I - A declaração de resolução indevida é ineficaz, excepto nos casos de contratos em relação aos quais seja possível a denúncia discricionária (nestes casos, poderá equiparar-se a esta ou converter-se nela). II. A declaração de resolução indevida se estiver baseada numa representação não culposa do incumprimento da contraparte não permite que se extraia uma declaração tácita de recusa de cumprimento e por isso não justifica uma resolução do contrato pela contraparte.” => ac. do STJ de 10/10/2013 proc. 4706/10.8TBCSC.L1.S1.           
- do TRP de 05/06/2014, proc. 23/10.1TBBGC.P1: II. Não tem eficácia uma cláusula resolutiva expressa que tenha como pressuposto, sem mais, a violação de uma qualquer obrigação contratual, pelo seu carácter genérico e impreciso. III. Uma declaração de resolução com base em fundamentos que não se provam não é igual a uma resolução ilícita, nem configura, sem o adicionamento de outras circunstâncias, uma recusa categórica em cumprir o contrato equivalente a um incumprimento definitivo. IV. Uma declaração de resolução em relação a contratos por tempo indeterminado pode equivaler a uma denúncia sem pré-aviso do contrato, com eventual direito a indemnização pelos danos causados à contraparte pela falta de pré-aviso, danos que têm de ser alegados em concreto (se a contraparte for um franquiador).
*
Da extinção de facto do contrato
Apesar da discordância que antecede com o reconhecimento, pela sentença, da resolução operante do contrato, a verdade é que nenhuma das partes recorreu dela, pelo que, esta decisão de um pedido autónomo está transitada e faz caso julgado, não podendo ser posta em causa.
A apreciação das restantes decisões tem de partir deste dado: o contrato está resolvido, como foi reconhecido por sentença transitada em julgado.
Quanto à decisão de condenação dos réus devolverem o equipamento entregue a título de comodato e não devolvido, no valor de 2454€, também está decidido com trânsito em julgado (também aqui os réus não recorreram) e compreende-se: extinto o contrato, não faz sentido que o equipamento dele objecto continue nas mãos dos réus. A sentença está correcta.
Quanto à indemnização pretendida pela autora: sendo a resolução ilícita, ela não poderia conduzir à constituição de um direito da autora a obter a indemnização subsequente à resolução. A haver lugar a uma indemnização, ela caberia aos réus, devido à ilegitimidade da resolução. Também aqui a sentença está correcta.
Já quanto ao pedido de restituição dos 4000€ de desconto/bonifi-cação adiantados condicionalmente à 1.ª ré (cláusulas 2 e 4 do contrato), reportados à venda dos 2100 kg, como a ré só comprou uma parte do café e não pode comprar mais porque o contrato se extinguiu, não tem justificação para manter o adiantamento de um desconto/bonificação que já não vai conseguir. Ela não tem culpa disso (o contrato foi mal extinto em consequência do comportamento da autora), mas essa falta de culpa não lhe dá o direito de manter um benefício concedido em contrapartida de uma compra que não vai fazer. Não se pode receber um desconto de uma compra que não se faz, nem se vai fazer. O acórdão invocado pela sentença, em sentido contrário, tem razão de ser porque aí o contrato manteve-se em vigor, porque o acórdão não aceitou a eficácia extintiva da resolução. Não é o caso dos autos. Assim, a ré deve restituir a parte correspondente aos kg de café não vendidos (que foram 1452 e não 1477). Se 2100 => 4000€, 1452 => x. Ou seja, 2765,71€.
Para um caso paralelo, nesta parte, e lido com as necessárias adap-tações, veja-se o ac. do STJ de 14/03/2019, proc. 484/13.7TBBRG.G2.S1: IV – Tendo sido ilícito o exercício pela autora do direito ou da excepção prevista no art. 428 do CC, e sendo lícito o direito de resolução do contrato exercido pela ré, ainda assim deve esta ré restituir à autora as quantias recebidas a título de valor da comparticipação publicitária e de valor dos equipamentos, acrescidas de juros, o mesmo não sucedendo em relação à pena convencional correspondente à diferença entre a quantidade de café que a ré comprara e a que devia ter comprado até à data da resolução, por não se verificar uma situação de não cumprimento definitivo ou de mora qualificada imputável à ré, nos termos do art. 808 do CC.”
*
A restituição do adiantamento dos descontos está sujeita a juros de mora, à taxa legal comercial (artigos 804, 805/1 e 806/1 do CC e 102§3 do CCom e Portaria 277/2013, de 26/08). Mas só a partir do trânsito em julgado deste acórdão, porque os réus não devem ser censurados por não cumprirem antes disso uma obrigação que nasceu de uma resolução ilícita, assim reconhecida e declarada pelo tribunal recorrido e pelo tribunal da relação.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a absolvição dos réus quanto ao II pedido, que agora se julga parcialmente procedente, aditando-se à condenação vinda da sentença recorrida, a de os réus restituírem à autora 2765,71€, com juros de mora à taxa legal comercial vincendos a contar do trânsito em julgado deste acórdão.
Custas da acção e do recurso, na vertente de custas de parte, pela autora e pela ré, na proporção do decaimento.

Lisboa, 08/10/2020
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas