Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12/2002.L1-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: REGULAMENTO COMUNITÁRIO
INSOLVÊNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/01/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1ª - O modo normal de extinção da instância é pela sentença de mérito, sendo, por isso, a figura da “impossibilidade” ou “inutilidade superveniente da lide” uma causa anormal de extinção da instância, só devendo ser aplicada quando a lide se torna absolutamente impossível ou inútil por facto superveniente relativo ao sujeito, ao objecto ou à causa na relação substancial que lhe está subjacente;
2ª – Assentando o pedido reconvencional em confissão judicial escrita e irretractável por ter sido especificadamente aceite pelos réus/reconvintes e ora agravantes (artigo 567º, n. os 1 e 2 CPC), tem força probatória plena contra o confitente (artigo 358º, n.º 1 do CC), mas essa confissão só vale nestes autos (artigo 355º, n.º 3 do CC) e;
3ª – Uma vez que a acção declarativa de que emerge o pedido reconvencional dos réus é anterior (22/01/2002) à data da declaração de insolvência no Reino Unido (05/02/2009), os efeitos do processo de insolvência relativamente ao pedido reconvencional regem-se, exclusivamente, pela lei material portuguesa (CIRE), por força do disposto no artigo 15º do Regulamento.
4ª - O CIRE não contém uma única norma que postule, como consequência da declaração de insolvência principal do autor, no Reino Unido, a extinção das instâncias declarativas pendentes – maxime, a instância reconvencional dos autos - com fundamento em inutilidade superveniente da lide;
5ª - Da matéria de facto dos autos verifica-se uma estreita conexão não só entre os actos praticados pelo autor de que emerge o pedido reconvencional e o território português, mas também entre o próprio autor e este território, sendo certo que, como ele próprio afirma na procuração de fls. 3996, passada em 12/01/2010, tem domicílio em Portugal, sendo ainda público e notório que sempre residiu, fez vida e tem bens em Portugal, como público e notório é que reside temporariamente em Inglaterra para se furtar ao cumprimento de pena em que foi condenado pelos tribunais portugueses;
6ª - A declaração de insolvência do autor no Reino Unido (processo principal) não torna o pedido reconvencional dos réus, ora agravantes, absolutamente impossível ou inútil, quer por facto relativo ao sujeito, quer por facto relativo ao objecto, quer ainda por facto relativo à causa;
7ª - É possível aos réus/reconvintes, instaurar execução contra bens que não integram a massa insolvente, como é ainda possível requerer, com base em sentença de condenação, nova insolvência do autor, agora designada por secundária (Regulamento, artigos 3º, n.º 2, 27º e 28º);
8ª – Donde, a declaração de insolvência principal do autor no Reino Unido não é causa da inutilidade superveniente da instância reconvencional;
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Nesta acção declarativa de condenação, em que J... demanda S... e S... – SAD, pede o autor (i) que seja declarado que, a 31/10/2000, era credor dos réus no montante de Esc. 1.262.497.801$00 e que, actualmente, por força de pagamento de responsabilidades dos réus efectuado pelo autor após 1/11/2000, é este ainda credor dos réus no montante de Esc. 124.853.597$00.
b) – E, alterando o pedido principal, acrescenta que deverão os réus ser condenados a pagar-lhe o valor de € 6.920.079,60, acrescido de juros vincendos, contados à taxa legal, a partir de 20/5/2002.

Por sua vez, os réus contestaram e deduziram pedido reconvencional, no sentido da condenação do autor a pagar-lhes a quantia de Esc. 4.346.342.614$00 ou, subsidiariamente, que o tribunal reconheça os réus como credores do autor do direito à restituição da importância de Esc. 5.609.711.424$00.

Entretanto, considerando o Tribunal a quo que, “tal como é público e notório e resulta do documento junto pelo próprio autor a fls. 3968 e traduzido a fls. 3979, foi proferida, em 5/2/2009, decisão pelo HIGH COURT OF JUSTICE IN BANKRUPTCY, no sentido da declaração de insolvência do ora autor, «estando o tribunal ciente que é aplicável o Regulamento EC e que os autos constituem os procedimentos principais nos termos definidos pelo artigo 3º do Regulamento», julgou, depois de terem sido ouvidas as partes sobre a influência desta decisão na tramitação dos autos, extinta a instância reconvencional, por inutilidade superveniente da lide.

Inconformados, recorreram os réus/reconvintes, formulando as seguintes conclusões:
1ª - O modo normal de extinção da instância é pela sentença de mérito. O processo civil tem como função a decisão de mérito;
2ª - A figura da “impossibilidade ou inutilidade superveniente” da lide é uma causa anormal de extinção da instância e deve ser aplicada com rigor conceptual; só há “impossibilidade ou inutilidade superveniente” quando a lide se torna absolutamente impossível ou inútil por facto superveniente relativo ao sujeito, ao objecto ou à causa na relação substancial que lhe está subjacente;
3ª - A acção declarativa de que emerge o pedido reconvencional dos réus é muito anterior (22/01/2002) à data da declaração de insolvência no Reino Unido (05/02/2009);
4ª - O pedido reconvencional assenta em confissão judicial escrita e irretractável por ter sido especificadamente aceite pelos réus/reconvintes e ora agravantes (artigo 567º, n. os 1 e 2 CPC), sendo certo que essa confissão só vale nestes autos (artigo 355º, n.º 3 do CC) e tem força probatória plena contra o confitente (artigo 358º, n.º 1 do CC);
5ª - O Regulamento (CE) nº 1345/2000 do Conselho aplica-se ao caso dos autos e, por força do seu artigo 15º, os efeitos do processo de insolvência relativamente ao pedido reconvencional regem-se, exclusivamente, pela lei material portuguesa (CIRE);
6ª - O CIRE não contém uma única norma que postule, como consequência da declaração de insolvência principal do autor, no Reino Unido, a extinção das instâncias declarativas pendentes – maxime, a instância reconvencional dos autos - com fundamento em inutilidade superveniente da lide;
7ª - A declaração de insolvência do autor no Reino Unido não torna o pedido reconvencional dos réus, ora agravantes, absolutamente impossível ou inútil, quer por facto relativo ao sujeito, quer por facto relativo ao objecto, quer ainda por facto relativo à causa;
8ª - É possível aos réus/reconvintes, instaurar execução contra bens que não integram a massa insolvente, como é ainda possível requerer, com base em sentença de condenação, nova insolvência do autor, agora designada por secundária (Regulamento, artigos 3º, n.º 2, 27º e 28º);
9ª - A declaração de insolvência principal do autor no Reino Unido não é causa da inutilidade superveniente da instância reconvencional;
10ª - Da matéria de facto dos autos verifica-se uma estreita conexão não só entre os actos praticados pelo autor de que emerge o pedido reconvencional e o território português, mas também entre o próprio autor e este território, sendo certo que, como ele próprio afirma na procuração de fls. 3996, passada em 12/01/2010, tem domicílio em Portugal, sendo ainda público e notório que sempre residiu, fez vida e tem bens em Portugal, como público e notório é que reside temporariamente em Inglaterra para se furtar ao cumprimento de pena em que foi condenado pelos tribunais portugueses;
11ª - O despacho agravado violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas normas anteriormente citadas nestas Conclusões e, bem assim, os artigos 85º, n. 1 e 89º, n.º 2 do CIRE.
12ª - Deste modo, deve ser dado provimento ao agravo e, em consequência da revogação do despacho que declarou “extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide”, deve ordenar-se à 1ª instância que profira decisão que conheça desde já do mérito da causa relativamente ao pedido reconvencional.

Não houve contra – alegações.

Cumpre decidir:
2. É pelas conclusões das alegações do recurso que se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo (artigos 660º e 684º, n.º 3 CPC), exceptuando-se as questões que sejam de conhecimento oficioso (artigo 660º, n.º 2 CPC).
O vocábulo “questões” não abrange os argumentos, os motivos ou as razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, as concretas controvérsias centrais a dirimir.
Ora, lendo as doutas conclusões dos agravantes, a questão a dirimir consiste em saber se a declaração de insolvência do autor, no Reino Unido, constitui (ou não) manifestamente uma inutilidade superveniente da presente lide declarativa no que toca ao pedido reconvencional.
3. Com interesse para a decisão do agravo estão provados os seguintes factos:
1º - Em 22/01/2002, o autor instaura contra os réus acção declarativa de condenação, pedindo que seja declarado que, a 31/10/2000, era credor dos réus, no montante de 1.262.497.801$00 e que actualmente, por força de pagamento de responsabilidades dos réus efectuado pelo autor, após 1/11/2000, é este ainda credor dos réus no montante de Esc. 124.853.597$00;
2º - Por requerimento de fls. 1655, o autor alterou o pedido inicial, aditando-lhe o seguinte pedido: deverão os Réus ser condenados a pagar ao autor o valor de € 6.920.079,60, acrescido de juros vincendos, contados à taxa legal, a partir de 20/05/2002;
3º - Os réus contestaram os pedidos do autor, quer por via de excepção, quer por via de impugnação, e deduziram pedido reconvencional contra este, pedindo a condenação dele a pagar-lhes a quantia de Esc. 4.346.342.614$00 ou, subsidiariamente, a quantia de Esc. 5.609.711.424$00.
4º - O pedido reconvencional dos réus foi deduzido com base em confissão judicial escrita do autor, expressa nos factos constantes dos artigos 32, 36 e 40 da petição inicial, no sentido de que “recebeu dos réus ou de terceiros e em nome destes”, no período compreendido entre 1998 e 2000, depósitos de valores que somam a quantia de Esc. 5.609.711.424$00;
5º - Os réus aceitaram especificadamente a confissão expressa dos factos constantes dos artigos 32, 36 e 40 da petição inicial, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 567º, n.º 2 do CPC;
6º - Em 5 de Fevereiro de 2009, o Alto Tribunal de Justiça do Reino Unido, declarou o autor insolvente, com base numa petição apresentada em 17/10/2008 pelo credor St. JAMES GROUP L. TD, tendo ainda declarado que aquele tinha ocupação desconhecida.
7º - Nem da decisão referida no número anterior nem dos presentes autos consta que a declaração de insolvência do autor tivesse transitado em julgado.
8º - Por requerimento de fls. 3995 e após renúncia ao mandato dos anteriores Mandatários, o autor juntou aos autos a procuração passada às Senhoras Advogadas identificadas no documento de fls. 3996, em 12/01/2010, tendo-se declarado com domicílio na ..., Colares.
4. In casu, como se referiu, o Tribunal a quo julgou extinta a instância reconvencional, por inutilidade superveniente da lide, dada a decisão proferida, em 5/2/2009, pelo HIGH COURT OF JUSTICE IN BANKRUPTCY, no sentido da declaração de insolvência do ora autor, «estando o tribunal ciente que é aplicável o Regulamento EC e que os autos constituem os procedimentos principais nos termos definidos pelo artigo 3º do Regulamento».

Portanto, para se dirimir a questão suscitada, importa definir, em termos conceptuais, quando, em que circunstâncias, se pode falar com propriedade de impossibilidade ou inutilidade superveniente de lide e seguidamente analisar as consequências jurídicas da decisão proferida no Reino Unido, sobre a marcha dos autos, atendendo ao que sobre esta matéria determina o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000.
Impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide:
A figura foi introduzida na nossa lei processual em 1961 passando a constituir a alínea e) do artº 287º do Código de Processo Civil.
Antes disso, era já admitida na doutrina como causa anormal da extinção da instância na esteira dos ensinamentos de CARNELUTTI que o Prof. Alberto dos Reis seguiu e desenvolveu[1].
Segundo o ensinamento deste Mestre, a instância iniciou-se para que o juiz apreciasse e decidisse, por sentença, um determinado conflito substancial. Portanto só quando se obtém este resultado, é que pode, em rigor, afirmar-se que a instância finda normalmente, ou seja, o modo normal de a instância terminar é pela sentença de mérito.

A impossibilidade da lide é uma das causas anormais de extinção da instância.

CARNELUTTI, citado na lição de Alberto dos Reis, estabelece paralelismo entre a impossibilidade da lide e a impossibilidade da relação jurídica substancial.
Tal como a relação jurídica substancial cessa, quando desaparece um dos seus elementos essenciais e não se pode operar a substituição dele por outro (extinção do sujeito, do objecto ou da causa), também a lide se extingue, se torna impossível, pela extinção do sujeito, pela extinção do objecto ou pela extinção da causa, isto é, pela extinção dum dos interesses em conflito.
“Assim como há relações jurídicas estritamente pessoais ou subjectivamente infungíveis, há paralelamente lides estritamente pessoais. São as que dizem respeito a pretensões de carácter pessoal. Exemplos: acção de divórcio ou de separação de pessoas e bens, acção de alimentos. Se na pendência da causa falecer um dos cônjuges, se morrer o alimentando, extingue-se necessariamente o processo”.
“Semelhantemente, às relações jurídicas objectivamente infungíveis correspondem lides do mesmo tipo. São objectivamente infungíveis as lides cuja pretensão se refere a objectos infungíveis. Se a res certa, objecto da lide, perece, a lide acaba, salva a possibilidade de surgir uma outra lide tendo por objecto a indemnização de perdas e danos”.
“Finalmente, do mesmo modo que a relação jurídica também a lide se extingue por confusão. O fenómeno da confusão, assim como torna impossível a subsistência da relação jurídica, torna igualmente impossível a subsistência da lide”.
A figura da impossibilidade (para os casos em que sujeito ou objecto desaparecem) ou da inutilidade (para o caso da extinção da causa) aplicam-se quando a lide se torna impossível.
“Quando a lide se torna impossível por alguma das causas descritas e por isso se extingue, é evidente que o processo não pode continuar. Costuma então dizer-se que o processo cessa, porque cessou a matéria da contenda[2]”.
Concluindo:
“O que importa assinalar é este princípio: a instância extingue-se ou finda por forma anormal todas as vezes que, ou por motivo atinente ao sujeito, ou por motivo atinente ao objecto, ou por motivo atinente à causa, a respectiva relação jurídica substancial se torna impossível, isto é, não possa continuar a subsistir[3].
Do que antecede se vê que só é permitido considerar verificada a extinção da instância com fundamento na figura da impossibilidade ou inutilidade superveniente, quando a lide se torna absolutamente impossível ou inútil por facto superveniente relativo ao sujeito, ao objecto ou à causa na relação substancial que lhe está subjacente.
D - Do Regulamento (CE) nº 1346/2000 do Conselho:
O Regulamento (CE) n.º 1346/2000, que doravante designaremos, simplesmente, por Regulamento, tem por objectivo fundamental conferir eficácia aos processos de insolvência transfronteiriços, como modo de contribuir para o bom funcionamento do mercado interno (cfr. considerando 2).
Reconhecendo, porém, não ser “praticável instituir um processo de insolvência de alcance universal em toda a Comunidade, tendo em conta a grande variedade de legislações de natureza substantiva existentes (cfr. considerando 11), intentou, de acordo com o princípio da proporcionalidade que invocou, regular “a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões directamente decorrentes da insolvência e com eles estreitamente relacionados”, contendo, além disso, “disposições relativas ao reconhecimento dessas decisões e ao direito aplicável, que respeitam igualmente aquele princípio” (cfr. considerando 7).
O regime do Regulamento aplica-se, portanto, a processos respeitantes a situações internacionais ou, por outras palavras, aplica-se a processos emergentes de relações internacionais[4].
Nos termos do artigo 47º, o Regulamento entrou em vigor em 31/05/2002, sendo o seu regime aplicável apenas aos processos de insolvência abertos posteriormente à sua entrada em vigor, por força do disposto no artigo 43º, 1ª parte.
O Regulamento distingue entre processo de insolvência principal e processo de insolvência secundário.
Permite que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado – Membro em que se situa o centro dos interesses principais do devedor. O processo tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor (cfr. considerando 12).
Para proteger a diversidade dos interesses, o presente regulamento permite que os processos secundários eventualmente instaurados corram paralelamente ao processo principal. Pode-se instaurar um processo secundário no Estado – Membro em que o devedor tenha um estabelecimento. Os efeitos dos processos secundários limitar-se-ão aos activos situados no território desse Estado: A necessidade de manter a unidade dentro da Comunidade é garantida por normas imperativas de coordenação com o processo principal (cfr. considerando 12).
O «centro de interesses principais» do devedor deve corresponder ao local onde o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses, pelo que é determinável por terceiros (considerando 13).
Assim, “os órgãos jurisdicionais do Estado – Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária” (artigo 3º, n.º 1).
“No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado – Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado – Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado – Membro. Os efeitos desse processo serão limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território” (artigo 3º, n.º 2).
Consequentemente, “quando um processo de insolvência for aberto ao abrigo do disposto no n.º 1, qualquer processo de insolvência aberto posteriormente ao abrigo do disposto no n.º 2 constitui um processo secundário. Este processo deve ser um processo de liquidação” (artigo 3º, n.º 3).
Existe, assim, um processo principal – e um só. Qualquer outro processo apenas pode ter a natureza de processo secundário.
As regras de competência jurisdicional do Regulamento inspiram-se portanto no princípio de “universalidade limitada” do processo de insolvência[5].
Em matéria de direito aplicável, o Regulamento estabelece, quanto aos processos de insolvência abrangidos no seu âmbito de aplicação, normas de conflito uniformes, que, nos termos gerais, prevalecem sobre as normas de direito internacional privado em vigor em cada Estado membro sobre a matéria considerada e, a par daquelas, inclui igualmente normas materiais uniformes aplicáveis aos processos de insolvência (por exemplo, as normas dos artigos 21º e 22º sobre a “publicidade” da decisão de abertura do processo de insolvência, ou as normas contidas no Capítulo IV, artigos 39º a 42º sobre a “informação dos credores e reclamação dos respectivos créditos”)[6].
O principio geral estabelecido pelo Regulamento em sede de normas de conflitos de leis é o de que, salvo disposição em contrário do próprio Regulamento, é aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos a lei do Estado membro em cujo território é aberto o processo (o “Estado de abertura– a “lex fori concursus”) (artigo 4, n.º 1).
Todavia, porque se pretende que o processo principal venha a produzir efeitos em todos os outros Estados membros, estabelecem-se, nos artigos 5º a 15º, limites [regras especiais] ao âmbito da aplicação da “lex fori concursus”[7], sendo de destacar, por se aplicar ao caso sub - judice, a excepção à competência da “lex fori concursus” decorrente do artigo 15º.
Ora, nos termos desta norma, os efeitos do processo de insolvência relativamente a uma acção pendente que diga respeito a um bem ou a um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido regem-se exclusivamente pela lei do Estado Membro em que a referida acção se encontra pendente.
O Regulamento, inspirado por um princípio de “universalidade limitada”, permite, como se disse já, a abertura, no Estado membro onde se situe um estabelecimento do devedor, de um processo secundário, com efeitos meramente territoriais, isto é com efeitos restritos aos bens do devedor situados no território do Estado membro em que é instaurado esse processo secundário de insolvência (artigos 3º, n.º 2 e 27º).
Uma vez que o pressuposto para a abertura do processo secundário é a existência do processo principal instaurado nos termos do artigo 3º, n.º1, num Estado – Membro, o tribunal do Estado em que é aberto o processo secundário fica dispensado de verificar a insolvência do devedor (artigo 27º).

Se o processo de insolvência for instaurado no Estado Membro em que se localize um estabelecimento do devedor, os efeitos de tal processo serão limitados aos bens do devedor que se encontrem nesse território (cfr. artigo 3º, n.º 2, segunda parte).
Salvo disposição em contrário do regulamento, a lei aplicável ao processo secundário é, em princípio, a lei do Estado - Membro em cujo território é aberto o processo secundário (artigo 28º).
Tem legitimidade para requerer a abertura de um processo secundário de insolvência (i) o síndico do processo principal ou (ii) qualquer outra pessoa ou autoridade habilitada a requerer a abertura de um processo de insolvência pela lei do Estado Membro em cujo território seja requerida a abertura do processo secundário (cfr. artigo 29º).
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo D.L. n.º 53/2004, de 18/3, também inclui nos seus Títulos XIV e XV um conjunto de normas aplicáveis aos processos de insolvência em que existem elementos de estraneidade.
No entanto, nos termos do artigo 8º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 249º, 2º §, do Tratado que institui a Comunidade Europeia, o Regulamento (CE) n.º 1346/2000, como acto normativo obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados membros, prevalece sobre o regime de fonte interna relativo à competência internacional e ao reconhecimento de decisões estrangeiras, no âmbito das matérias por ele abrangidas.
Daqui resulta que o regime de fonte interna é aplicável aos processos de insolvência a que não se aplique o Regulamento – ressalvado obviamente o que, no Código, se apresenta como “execução do Regulamento (CE) nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000[8]”.
Do caso sub – judice:
Como salientam os agravantes, o pedido reconvencional dos réus/reconvintes assenta em confissão judicial espontânea (artigo 356º, n.º 1 do CC) feita pelo autor nos articulados (artigos 32, 36 e 40 da petição inicial), declarando que recebeu dos réus, ou de terceiros em nome destes, a quantia de Esc. 5.609.711.424$00, entre 1998 e 2000. Esta confissão, por ter sido aceite especificadamente pelos réus, é irretractável, (artigo 567º, n. os 1 e 2 do CPC), e tem força probatória plena contra o confitente (artigo 358º, n.º 1 do CC).

Por outro lado, sendo judicial a confissão do autor, ela só vale, enquanto tal, na presente causa (artigo 355º, n.º 3 do CC), o que reforça a tese, segundo a qual os réus têm direito e interesse legítimo a que seja proferida nesta acção decisão de mérito relativamente ao pedido reconvencional.
A isso não se opõe a aplicação do Regulamento.
Com efeito, estando a causa de que emerge o pedido reconvencional pendente desde 22/02/2002 e tendo a declaração de insolvência do autor sido proferida no Reino Unido tão somente em 05/02/2009, ao abrigo de um processo de insolvência aberto neste Estado Membro, ao que se supõe, nos termos do artigo 3º, n.º 1 do Regulamento (processo principal de insolvência), a lei aplicável aos efeitos do processo de insolvência é a lei material portuguesa nos termos do artigo 15 do Regulamento[9].
Donde, tendo o pedido reconvencional dos réus data muito anterior à da declaração de insolvência do autor no Reino Unido, os efeitos do processo de insolvência regem-se exclusivamente pelo nosso CIRE, por força do disposto no artigo 15 do Regulamento.
E o CIRE, como realçam os agravantes, não contém uma única norma que postule, como consequência da declaração de insolvência, a extinção das instâncias declarativas pendentes, por inutilidade ou impossibilidade superveniente de lide.
É que a declaração de insolvência não torna a lide declarativa absolutamente impossível nem inútil, quer por facto relativo ao sujeito (nas acções pendentes o insolvente é tão-só substituído pelo administrador da insolvência (cfr. artigo 85º, n.º 3 do CIRE), quer por facto relativo ao objecto (o objecto do pedido reconvencional não é uma coisa infungível mas sim um direito de crédito), quer ainda por facto relativo à causa (a declaração de insolvência do autor não determina a reunião na mesma pessoa das qualidades de credor e devedor, o que teria, nesse caso sim, por efeito a extinção, por confusão, do crédito dos réus que é causa de pedir do pedido reconvencional).
O que o CIRE permite (mas não impõe) é que as acções pendentes em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente sejam apensadas ao processo de insolvência, contanto que o administrador da insolvência o requeira, com fundamento na conveniência para os fins do processo (CIRE, artigo 85º, n.º 1), mas este regime não é causa de “impossibilidade” ou “inutilidade superveniente” da lide declarativa.
Poder-se-á argumentar, tal como entendeu o despacho recorrido, que “não tendo sido requerida a apensação da presente acção ao processo de insolvência” [nos termos do artigo 85º, n.º 1 do CIRE] “e não podendo ser instaurada qualquer execução contra bens da massa insolvente” “é inútil a continuação da lide” pois que, “visando-se com a presente acção a obtenção de uma sentença condenatória cuja execução não é possível”, terá de ser declarada “extinta a instância por inutilidade superveniente de lide”.
Esta decisão não tomou, porém, em devida consideração que, ao contrário do que afirma, é possível instaurar execução contra bens que não integram a massa insolvente, como é também possível requerer, com base na sentença de condenação, nova insolvência do devedor, agora secundária (Cfr. considerando 18 e artigos 3º, n.º 2, 27º e 28º do Regulamento).
Aliás, atendendo à procuração de fls. 3996, passada e assinada pelo autor em 12/01/2010, verifica-se que o autor/agravado tem domicilio na ..., Colares, sendo certo que os actos de que emerge o pedido reconvencional foram por ele praticados em estreita conexão com o território português, entre 1998 e 2000, à data em que era Presidente da Direcção do S... e Presidente do Conselho de Administração do S..., SAD (réus/reconvintes na acção declarativa), pelo que o regulamento não restringe o direito de requerer, na sequência da abertura do processo de insolvência no Reino Unido, a abertura de um processo de insolvência em Portugal, embora os efeitos desse processo sejam limitados aos bens do devedor que se encontrem no País.
Aliás, é público e notório que o autor sempre residiu, fez vida e tem bens em Portugal, como público e notório é que reside temporariamente em Inglaterra para se furtar ao cumprimento de pena em que foi condenado pelos tribunais portugueses;
Falecem, pois, os argumentos em que se escudou a decisão recorrida.
Assim, não poderá deixar de se revogar o despacho que declarou “extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide”, devendo os autos prosseguir os seus termos para prolação da decisão de condensação da matéria de facto ou decisão do mérito da causa (cfr. artigos 508ºa 510º CPC).
Concluindo:
1ª - O modo normal de extinção da instância é pela sentença de mérito, sendo, por isso, a figura da “impossibilidade” ou “inutilidade superveniente da lide” uma causa anormal de extinção da instância, só devendo ser aplicada quando a lide se torna absolutamente impossível ou inútil por facto superveniente relativo ao sujeito, ao objecto ou à causa na relação substancial que lhe está subjacente;
2ª – Assentando o pedido reconvencional em confissão judicial escrita e irretractável por ter sido especificadamente aceite pelos réus/reconvintes e ora agravantes (artigo 567º, n. os 1 e 2 CPC), tem força probatória plena contra o confitente (artigo 358º, n.º 1 do CC), mas essa confissão só vale nestes autos (artigo 355º, n.º 3 do CC) e;
3ª – Uma vez que a acção declarativa de que emerge o pedido reconvencional dos réus é anterior (22/01/2002) à data da declaração de insolvência no Reino Unido (05/02/2009), os efeitos do processo de insolvência relativamente ao pedido reconvencional regem-se, exclusivamente, pela lei material portuguesa (CIRE), por força do disposto no artigo 15º do Regulamento.
4ª - O CIRE não contém uma única norma que postule, como consequência da declaração de insolvência principal do autor, no Reino Unido, a extinção das instâncias declarativas pendentes – maxime, a instância reconvencional dos autos - com fundamento em inutilidade superveniente da lide;
5ª - Da matéria de facto dos autos verifica-se uma estreita conexão não só entre os actos praticados pelo autor de que emerge o pedido reconvencional e o território português, mas também entre o próprio autor e este território, sendo certo que, como ele próprio afirma na procuração de fls. 3996, passada em 12/01/2010, tem domicílio em Portugal, sendo ainda público e notório que sempre residiu, fez vida e tem bens em Portugal, como público e notório é que reside temporariamente em Inglaterra para se furtar ao cumprimento de pena em que foi condenado pelos tribunais portugueses;
6ª - A declaração de insolvência do autor no Reino Unido (processo principal) não torna o pedido reconvencional dos réus, ora agravantes, absolutamente impossível ou inútil, quer por facto relativo ao sujeito, quer por facto relativo ao objecto, quer ainda por facto relativo à causa;
7ª - É possível aos réus/reconvintes, instaurar execução contra bens que não integram a massa insolvente, como é ainda possível requerer, com base em sentença de condenação, nova insolvência do autor, agora designada por secundária (Regulamento, artigos 3º, n.º 2, 27º e 28º);
8ª – Donde, a declaração de insolvência principal do autor no Reino Unido não é causa da inutilidade superveniente da instância reconvencional;
5. Pelo exposto, dando provimento ao agravo, revoga-se o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir os seus termos para prolação da decisão de condensação da matéria de facto ou decisão do mérito da causa, conforme aludem os artigos 508º a 510º do CPC.
Não são devidas custas.
Lisboa, 1 de Julho de 2010
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Fernanda Isabel Pereira

[1] Cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3º, páginas 364 e seguintes.
[2] Autor e obra citada, 369.
[3] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3º, 371.
[4] Maria Helena Brito, Falências Internacionais, Algumas Considerações a Propósito do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, in THEMIS, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, edição especial da Almedina, 2005, páginas 191 e 204.
[5] Autora e obra citada, página 193.
[6] Autora e obra citada, páginas 193 e 194.
[7] Autora e obra citada, página 194.
[8] Autora e obra citada, páginas 200 a 202.
[9] Cfr. Ac. da RP de 5 de Junho de 2008, in www.dgsi.pt.