Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1/14.1TBSCR-A.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL
INSPECTORA DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE/LEVANTAMENTO DE SIGILO
Sumário: I. Todos os elementos através dos quais se possa aferir da capacidade tributária do contribuinte são, necessariamente, sigilosos, nomeadamente informações relativas aos seus rendimentos, deduções e despesas, bens, existência de débitos e/ou créditos, declaração de rendimentos, etc.

II. O sigilo fiscal, na nossa ordem jurídica, não é um direito absoluto porquanto, verificadas certas circunstâncias, pode ser afastado.

III. Ponderados os princípios, valores e interesses em causa, deve determinar-se a quebra do sigilo profissional no que concerne à audição da testemunha, Inspectora da Autoridade Tributária, RF, sobre o relatório dessa mesma Autoridade, acerca dos contratos de desenvolvimento, mencionados apelos autores, relativos ao projecto fotovoltaico do Caniçal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


CX e AM, deduzindo incidente de intervenção provocada da Sociedade Enersistems, Energias, S.A., demandaram JA, LM, PC, concluindo pela condenação solidária dos réus no pagamento à sociedade Enersistems da quantia de € 1.523.827,65, correspondente aos valores transferidos para a Sociedade NRW Energias, S.A. a título de contrato de desenvolvimento e do contrato de gestão (mencionados na p.i.), as importâncias semestrais que vierem eventualmente a ser transferidas da Enersistems para a NWR, Energias, S.A e no pagamento dos honorários ao mandatário dos autores – fls. 212 e sgs (II vol.)
 
A Enersistems, em articulado próprio, rejeitou o alegado pelos autores, defendendo a inexistência de fundamento para reclamar qualquer indemnização aos réus indemnizações face à validade dos contratos (deliberações válidas), concluindo pela improcedência da acção – fls. 158 e sgs. (II vol.)

Na contestação os réus impugnaram o alegado pelos autores, requereram a suspensão da instância em virtude de causa prejudicial, acção 333/12.3TBTND (acção intentada pelos autores) e concluíram pela improcedência da acção – fls. 241 e sgs. II vol.

Os autores, entre outras, arrolaram como testemunha RF, inspectora da Autoridade Tributária e subscritora do relatório junto a fls. 7 e sgs. (doc. 13 junto com a p.i.), sobre o qual os autores pretendem a sua audição.

O relatório de inspecção, grosso modo, debruça-se sobre a sociedade Isohidra – Sistemas de Energia Renovável, Lda. (autores/sócios tendo mais tarde sido admitida como sócia a Sociedade Nutroton Energias, S.A. actualmente designada NRW Energias, S.A., cujos administradores são JCe réu/JA), as suas relações de parceria com as sociedades Enersistems – Energias, S.A. e a Eneratlântica – Energias, S.A., empresas estas que participam no capital da Isohidra.

Parcerias celebradas entre Isohidra e NWR Energias, S.A. e atribuição de Licenças de Exploração relativas ao Parque Fotovoltaico do Caniçal, em que são parceiros os autores, Nutroton Energias, S.A., Nutroton SGPS, S.A,, JVC Holding, SGPS, S.A. Siram EWE – Energy, Water & Environment, SGPS, S.A., substituída pela Fomentinvest Energia, SGPS, S.A..
Acordos parassociais entre as empresas veículo; acordo de realização de fundos próprios da Enersistems Energias, S.A., relativo ao Parque fotovoltaico do Caniçal; contratos de desenvolvimento e de gestão dos parques solares fotovoltaicos e as alienações intragrupo (venda das participações sociais), com vista a apurar se houve ou não violação do Princípio da Plena Concorrência e da necessidade de correcções para efeitos de matéria colectável resultantes da aplicação do art. 63 do CIRC.

Em sede de audiência de julgamento os réus opuseram-se à audição da testemunha com fundamento no sigilo e dever de confidencialidade previsto no art. 64 da Lei Geral Tributária.

Os autores pugnaram pela sua audição sustentando que o dever de sigilo cessa face aos deveres de colaboração, e cooperação para a descoberta da verdade, ex vi art. 417 CPC.
 
Foi proferido despacho que considerou que o depoimento da testemunha sobre o relatório em questão, estando a mesma obrigada ao dever de confidencialidade e sigilo, não obstante os arts. mencionados supra, era susceptível de violação desses deveres, devendo a parte interessada suscitar o incidente de levantamento do sigilo fiscal, justificando a necessidade do depoimento – fls. 4.

Os autores requereram o levantamento do sigilo fiscal e profissional relativamente à testemunha RF, ex vi      arts. 64/2 d) Lei Geral Tributária, 417 CPC e 135/3 CPP.

Alegaram, em síntese, que a testemunha subscreveu o relatório de inspecção tributária relativamente à sociedade Isohidra, Lda.

Que o seu interesse, na audição da testemunha, reside no facto e na necessidade de esclarecimento “da relevância do negócio celebrado entre a Sociedade Enersistems, S.A. e a Sociedade NRW Energias, S.A., especificadamente o contrato de desenvolvimento discutido nos autos, sendo certo que o relatório de inspecção em causa se debruça especificadamente sobre a cedência de quotas da sociedade inspeccionada à Sociedade Neutroton Energias, S.A. e, posteriormente da própria Sociedade Neutroton Energias, S.A. à Sociedade Neutroton SGPS e Sociedade JVC Holding SGPS, do qual o réu Leitão Amaro era accionista.

Acresce que, o relatório refere ainda a aquisição por parte da Sociedade Fominvest à Sociedade Enersistems, S.A., na qual o réu Paulo Caetano era também accionista, incidindo directamente o relatório sobre o contrato de desenvolvimento em apreço nos autos, nomeadamente sobre o fee a receber e sobre os trabalhos realizados pela Sociedade Isohidra, na preparação do projecto fotovoltaico do Caniçal, também objecto dos presentes autos.

E perante o conhecimento directo do relatório de inspecção da Autoridade Tributária por parte da autora CX, à época sócia gerente da Sociedade inspeccionada e actualmente sócia da mesma, face ao supra mencionado, existe um interesse preponderante para o esclarecimento cabal dos factos em discussão nestes autos”.

Opuseram-se os réus concluindo pelo indeferimento com fundamento na falta de pressupostos para o levantamento do sigilo, nomeadamente o facto do relatório de inspecção da Autoridade Tributária se debruçar sobre sociedades que não são partes neste processo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

A questão que cumpre apreciar consiste em saber se há ou não lugar ao levantamento do sigilo fiscal relativamente à testemunha RF, Inspectora da Autoridade Tributária e subscritora do relatório de fls. 7 e sgs.

Factos que interessam à decisão constam do extractado supra.

Vejamos, então.

Incide sobre qualquer pessoa o dever de colaboração para descoberta da verdade, sejam ou não partes na causa – art. 417 CPC.

Não obstante, situações existem em que é lícito a recusa de colaboração, recusa essa, entre outras, assente no sigilo fiscal.

O sigilo fiscal assenta no princípio constitucional de reserva da intimidade da vida privada – cfr. art. 26 CRP e 80 CC.

Não obstante, este princípio tem que se conjugar com outro princípio constitucional do direito à informação - art. 18 da CRP.

O art. 64 da Lei Geral Tributária (LGT), sob a epígrafe, “Confidencialidade” regula o sigilo fiscal.

Este dever incide/abrange os dirigentes, funcionários e agentes da Administração Tributária impendendo sobre estes a obrigação de guardar sigilo acerca dos dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado (nº1 art. cit.)

O seu nº 2 elenca as situações em que o sigilo cessa, nomeadamente nas situações de colaboração com a justiça nos termos do CPC.

Independentemente da legislação que o regula, o sigilo incide sobre a situação tributária do contribuinte, ou seja, sobre a sua capacidade contributiva.

Assim, todos os elementos através dos quais se possa aferir da capacidade tributária do contribuinte são, necessariamente, sigilosos, nomeadamente informações relativas aos seus rendimentos, deduções e despesas, bens, existência de débitos e/ou créditos, declaração de rendimentos, etc.

Assim, os dados que não reflictam, nem denunciem a situação tributária do contribuinte, não se enquadram, nem estão abrangidos pelo sigilo.

O tribunal pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção dos bens jurídicos – cfr. 135/3 CPP.

Do extractado, decorre que o sigilo fiscal, na nossa ordem jurídica, não é um direito absoluto porquanto, verificadas certas circunstâncias, pode ser afastado – cfr. Acs. RP de 16/12/2015, relator Nuno Ribeiro Coelho, do STA de 16/11/2011, relatora Dulce Neto, RL de 22/11/17, relatora Conceição Gomes e de 2/2/17, relatora Octávia Viegas, in www.dgsi.pt.

In casu, pretendem os autores ouvir a testemunha sobre pontos do relatório de inspecção conexionados com os contratos de desenvolvimento mencionados na p.i., contratos estes que, do ponto de vista dos autores, foram celebrados com vista “à sucção de recursos da sociedade Enersistems, S.A. para a NWR Energias, S.A., em benefício desta última e prejuízo daquela”.

Não obstante as sociedades aí mencionadas não serem partes no processo, certo é que estas intervieram nas parcerias celebradas e atribuição de licenças de exploração do Parque Fotovoltaico do Caniçal, nos acordos parassociais, na realização de fundos próprios da Sociedade Enersistems, Energias, S.A. (relativo ao parque fotovoltaico do Caniçal) e nos contratos de desenvolvimento e gestão dos Parques Fotovoltaicos.

Assim, ponderados os princípios, valores e interesses em causa, determina-se a quebra do sigilo profissional no que concerne à audição da testemunha, Inspectora da Autoridade Tributária, RF, sobre o relatório dessa mesma Autoridade, junto a fls. 7 e sgs., acerca dos contratos de desenvolvimento, mencionados apelos autores, relativos ao projecto fotovoltaico do Caniçal.

Pelo exposto, acorda-se em autorizar o levantamento do sigilo sigilo fiscal e profissional da Sra. Funcionária da Autoridade Tributária e, consequentemente, pode a Sra. Funcionária prestar depoimento, sobre o relatório dessa mesma Autoridade, junto a fls. 7 e sgs., acerca dos contratos de desenvolvimento, mencionados apelos autores, relativos ao projecto fotovoltaico do Caniçal.

Sem custas



Lisboa, 22-03-2018



(Carla Mendes)
(Octávia Viegas)
(Rui da Ponte Gomes)