Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3504/19.8T8FNC-C.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: COMPETÊNCIA
ARBITRAGEM NECESSÁRIA
TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO
ORGANIZAÇÃO INTERNA
ASSOCIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-Compete ao Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em sede de arbitragem necessária, conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina, bem como dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem.
II-Estando em causa, nesta acção, actos relacionados com a organização interna da federação desportiva, com a definição da sua estrutura orgânica, não estando portanto em causa o exercício de poderes públicos, a federação desportiva comporta-se como qualquer pessoa colectiva privada e encontra-se sujeita aos respectivos estatutos e à lei geral que rege as pessoas colectivas e em particular as associações. Tal matéria não está, assim, compreendida no âmbito da competência necessária do Tribunal Arbitral do Desporto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE PILOTOS AUTOMÓVEL intentou acção declarativa de condenação com processo comum contra:
FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE AUTOMOBILISMO E KARTING, peticionando:
(i)Que se declare nulo o inciso “ na condição de que no ano anterior haja organizado no mínimo, uma prova inscrita no respectivo calendário desportivo e de acordo com o Ranking de Clubes elaborado pela Direcção nos termos fixados no regulamento Eleitoral” constante do art.º 31.º n.º 4, in fine, dos Estatutos da Ré ;
(ii)Que se declarem nulos os preceitos regulamentares constantes dos n.ºs 1 a 9 do art.º 7.º do Regulamento Eleitoral da Ré.
No despacho saneador, foi julgada procedente a excepção da incompetência absoluta do Tribunal, por preterição do Tribunal Arbitral e por consequência, absolvida a Ré da instância.
Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs recurso de apelação que, porém, não foi admitido por ter sido considerado extemporâneo.
Deduzida reclamação nos termos do disposto no art.º 643.º do CPC, veio a mesma a ser deferida, por decisão datada de 19-05-2020 e ordenada a requisição do processo principal, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º643.º n.º6 do CPC.
Cumpre, pois, apreciar o recurso em que foram formuladas as seguintes conclusões:
1. A jurisdição arbitral necessária do Tribunal Arbitral do Desporto, prevista no art. 4.°, n.° 1, da Lei do TAD abrange apenas os litígios emergentes de relações jurí­dicas de direito administrativo no quadro do exercício, pelas federações desportivas, dos poderes de autorida­de pública de regulamentação, organização, direção e disciplina de competições desportivas que elas são cha­madas a exercer em virtude do estatuto de utilidade pública desportiva de que gozam.
2. Nesse  sentido claramente depõe o n.º 2 do art. 4.0 da Lei do TAD (ao cingir a jurisdição arbitral necessária às “modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos”) e o art. 8.0, n.0 1, do mesmo diploma legal (ao estatuir que as decisões proferidas pelo TAD no quadro da sua jurisdição arbitral necessária admitem recurso para o Tribunal Central Administrativo).
3. Não  obstante serem chamadas a colaborar na prosse­cução da função administrativa do Estado e a exercer pontualmente poderes de autoridade pública, as fede­rações desportivas são associações de direito privado e os seus estatutos são típicos instrumentos jurídicos de direito privado, sujeitos à disciplina legal do Regime Jurídico das Federações Desportivas e dos preceitos do Código Civil relativos às associações.
4. Uma  pretensão de impugnação de cláusulas dos estatu­tos de uma federação desportiva que regulam a compo­sição e constituição da assembleia geral dessa agremia­ção e a disciplina atinente à distribuição e ao exercício dos direitos de voto pelos seus associados não subingressa no quadro de qualquer poder federativo emer­gente ou conexo com a organização de competições desportivas mas sim, na verdade, no quadro daquilo que a própria Lei do TAD denomina por “relação asso­ciativa” — isto é, no quadro daquelas relações jurídicas (de direito privado) que se estabelecem entre os asso­ciados e entre estes e a própria agremiação a que pertencem.
5. E a  idêntica conclusão se deverá chegar quanto à pre­tensão de invalidação de cláusulas insertas no regula­mento eleitoral de uma federação desportiva, já que tal regulamento mais não é do que um instrumento jurídi­co disciplinador da formação das deliberações sociais de cariz eletivo (isto é, ao procedimento de eleição dos órgãos sociais) e, portanto, não foi adotado no exercí­cio de quaisquer poderes de autoridade pública refe­rentes à regulamentação, organização, direção e disci­plina de uma qualquer modalidade desportiva, mas sim de poderes de auto-organização interna intra-associativa que decorrem da autonomia privada emergente da liberdade fundamental de associação e que se revestem de natureza jurídico-privada.
6.Tais  litígios emergentes das relações associativas subsumem-se no quadro da jurisdição voluntária do TAD (art. 6.°, n.° 2, in fine, da Lei do TAD) e, como tal, a competência deste tribunal para conhecer de tais lití­gios está dependente da existência de convenção de arbitragem válida e vinculativa para todas as partes em litígio.
7.Não foi alegado nos presentes autos — e, muito menos, neles se demonstrou e provou — a existência de qual­quer convenção de arbitragem que vinculasse a recor­rente Associação ou a recorrida Federação à jurisdição arbitral voluntária do TAD.
8.O  despacho apelado violou assim o disposto no arts. 4.°, n.os 1 e 2, e 6.°, n.° 2, da Lei do TAD, aprovada em anexo à Lei n.° 74/2013.
Termos em que, e nos demais de direito, deve ser con­cedido provimento à presente apelação, revogando-se o saneador recorrido e ordenando-se a remessa dos au­tos ao Tribunal a quo para aí, nada mais a isso obstan­do, prosseguirem a sua normal tramitação.
A recorrida apresentou contra alegações defendendo a confirmação do despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
A questão a decidir é exclusivamente de direito, constando do relatório os elementos relevantes para a decisão.
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, a única questão a apreciar consiste na invocada incompetência absoluta do Tribunal recorrido por preterição do Tribunal Arbitral. Está em causa saber se a presente acção se encontra abrangida pela competência necessária do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), criado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 33/2014, de 16 de Junho.
O TAD foi criado com «competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto», conforme estipulado no art.º 1.º n.º 2 daquela Lei.
A Lei do Tribunal Arbitral do Desporto estabelece que os litígios relacionados com a prática desportiva ou com o ordenamento jurídico desportivo poderiam ser decididos através de
arbitragem voluntária ou arbitragem necessária.
Dispõem por sua vez os artigos 4.º e 5.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto na redacção da Lei nº 33/2014, de 16 de Junho:
«Artigo 4º (Arbitragem necessária)
“1 - Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina.
2 - Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.
3 - O
acesso ao TAD só é admissível em via de recurso de:
a) Deliberações do órgão de disciplina ou decisões do órgão de justiça das federações desportivas, neste último caso quando proferidas em recurso de deliberações de outro órgão federativo que não o órgão de disciplina;

b) Decisões finais de órgãos de ligas profissionais e de outras entidades desportivas.
4 - Com excepção dos processos disciplinares a que se refere o artigo 59.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, compete ainda ao TAD conhecer dos litígios referidos no n.º 1 sempre que a decisão do órgão de disciplina ou de justiça das federações desportivas ou a decisão final de liga profissional ou de outra entidade desportiva não seja proferida no prazo de 45 dias ou, com fundamento na complexidade da causa, no prazo de 75 dias, contados a partir da autuação do respectivo processo.
5 - Nos casos previstos no número anterior, o prazo para a apresentação pela parte interessada do requerimento de avocação de competência junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final do prazo referido no número anterior, devendo este requerimento obedecer à forma prevista para o requerimento inicial.
6 - É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim susceptível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.»
«Artigo 5.º (Arbitragem necessária em matéria de dopagem)
Compete ao TAD conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto.»

Resulta, pois, destas normas que são decididos através da arbitragem necessária, as questões relativas a litígios emergentes dos actos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, detendo o TAD, nessa matéria, competência jurisdicional exclusiva. Verifica-se ainda que as situações de arbitragem necessária da competência do TAD, estão taxativamente definidas na lei.     
No caso em apreço, está em causa um pedido de anulação de uma cláusula dos Estatutos da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting bem como a anulação dos preceitos constante do art.º 7.º do Regulamento Eleitoral da Ré.
A questão está em saber se essa matéria se poderá integrar na previsão dos citados preceitos que delimitam a competência exclusiva do TAD, designadamente por se tratar de um litígio que respeite a acto de federação desportiva “ no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina”, tal como entendeu a decisão recorrida que concluiu, precisamente, estar em causa “um litígio emergente de um acto da Ré (federação desportiva) correspondente a um poder de regulamentação e organização, que a Autora (entidade desportiva) entende por em causa seus direitos. Pedido esse que se enquadra sem qualquer duvida no aludido art. 4, nº 1 da Lei do TAD”.
Será sssim? Vejamos:
A determinação do que se deve entender por “exercício dos poderes  de regulamentação, organização, direcção e disciplina de uma federação desportiva” implica uma breve análise do ordenamento jurídico em vigor.
A Lei n.º 5/2007 – Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto –, alterada precisamente pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, que criou o Tribunal Arbitral do Desporto, actualmente em vigor, pretendeu, segundo se afirma na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 80/X que esteve na origem daquela Lei, traduzir «uma preocupação acrescida do Estado na separação entre desporto profissional e não-profissional, nomeadamente no que concerne às ligas profissionais e às suas relações com as federações desportivas em que se inserem. A este respeito cumpre assinalar os seguintes aspectos: – a consagração de um novo conceito de liga profissional, esclarecendo-se que esta terá obrigatoriamente que assumir a forma de associação sem fins lucrativos e que passa a poder englobar, não apenas os clubes e sociedades desportivas participantes das competições profissionais, mas também outros agentes desportivos; – o estabelecimento, na linha do que constitui a matriz específica do modelo europeu de desporto, de que os quadros competitivos geridos pelas ligas profissionais constituem o nível mais elevado das competições desportivas desenvolvidas no âmbito da respectiva federação desportiva, pressupondo assim a existência de esquemas de permeabilidade entre as competições profissionais e as outras e inviabilizando a ideia das ligas fechadas; – o esclarecimento de que as ligas estão integradas nas respectivas federações e que exercem, por delegação destas, as competências para regular as competições de natureza profissional; – a clarificação das relações entre as ligas e as respectivas federações desportivas, em particular no que concerne à disciplina e à arbitragem, prevendo-se, no que a esta concerne, que a mesma seja estruturada por forma a que as entidades que designam os árbitros para as competições sejam necessariamente diferentes das entidades que avaliam a prestação dos mesmos; – a definição ainda de que as relações entre as ligas profissionais e as federações respectivas são estabelecidas contratualmente, designadamente no que concerne ao número de clubes que participam na competição profissional, ao regime de acesso entre as competições profissionais e não profissionais, à organização da actividade das selecções nacionais e ao apoio à actividade desportiva não profissional, prevendo-se uma forma de superação dos conflitos que daqui eventualmente surjam através de intervenção do Conselho Nacional do Desporto e do recurso à arbitragem».
Nesta conformidade, os artigos 14.º e 15.º da referida Lei n.º 5/2007 de 16 de Janeiro, definem o conceito de federação desportiva, do seguinte modo:
« Artigo 14.º (Conceito de federação desportiva)
As federações desportivas são, para efeitos da presente lei, pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) Se proponham, nos termos dos respectivos estatutos, prosseguir, entre outros, os seguintes objectivos gerais: i) Promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associadas; ii) Representar perante a Administração Pública os interesses dos seus filiados; iii) Representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais, bem como assegurar a participação competitiva das selecções nacionais; b) Obtenham o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva
Artigo 15.º (Tipos de federações desportivas)
1 – As federações desportivas são unidesportivas ou multidesportivas.
2 – São federações unidesportivas as que englobam pessoas ou entidades dedicadas à prática da mesma modalidade desportiva, incluindo as suas várias disciplinas, ou a um conjunto de modalidades afins ou associadas.
3 – São federações multidesportivas as que se dedicam, cumulativamente, ao desenvolvimento da prática de diferentes modalidades desportivas, em áreas específicas de organização social, designadamente no âmbito do desporto para cidadãos portadores de deficiência e do desporto no quadro do
sistema educativo
Sobre o estatuto de utilidade pública desportiva estabelece o artigo 19.º:

«Artigo 19.º (Estatuto de utilidade pública desportiva)
1 – O estatuto de utilidade pública desportiva confere a uma federação desportiva a competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e poderes especialmente previstos na lei.
2 – Têm natureza pública os poderes das federações desportivas exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina da respectiva modalidade que, para tanto, lhe sejam conferidos por lei.

3 – A federação desportiva à qual é conferido o estatuto mencionado no n.º 1 fica obrigada, nomeadamente, a cumprir os objectivos de desenvolvimento e generalização da prática desportiva, a garantir a representatividade e o funcionamento democrático internos, em especial através da limitação de mandatos, bem como a transparência e regularidade da sua gestão, nos termos da lei
Importa ainda convocar o disposto no artigo 18:º (Justiça desportiva)
«Os litígios emergentes dos actos e omissões dos órgãos das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo, ficando sempre salvaguardados os efeitos desportivos entretanto validamente produzidos ao abrigo da última decisão da instância competente na ordem desportiva
O regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, e nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, foi desenvolvido pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro (alterado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de Junho) que estabelece o regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva.
Nos termos dos artigos 10.º e 14.º deste diploma «o estatuto de utilidade pública desportiva confere à federação desportiva competência exclusiva para o exercício de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, por modalidade ou conjunto de modalidades».
O n.º2 do artigo 26.º, sob a epígrafe “tipos de associações”, estabelece que as «federações unidesportivas em que se disputem competições desportivas de natureza profissional integram uma liga profissional, de âmbito nacional, sob a forma de associação sem fins lucrativos, com personalidade jurídica e autonomia administrativa, técnica e financeira».
Da análise do conjunto destas normas resulta, assim, que as federações desportivas são associações de direito privado sem fins lucrativos, às quais, através da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, são conferidos poderes de natureza pública (cf. artigos 14.º e 19.º da Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, e artigos 10.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro.
Ou seja, “todos os conflitos desportivos de Direito Administrativo encontram-se submetidos à arbitragem necessária do TAD. São, portanto, compreendidos aqueles conflitos que derivam de «poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina». Incluem-se aqui, por exemplo, conflitos que derivam de uma sanção disciplinar ou de uma norma de um regulamento (administrativo) de uma federação desportiva”[1]. Ou dito de outro modo, impõe-se concluir, tal como refere a Apelante que o legislador quis limitar a jurisdição arbitral necessária do TAD à apreciação de litígios emer­gentes de relações jurídicas de direito administrativo no quadro do exer­cício, por parte das federações desportivas, dos poderes de autoridade pública que elas são convocadas a exercer por força do estatuto de utilidade pública desportiva de que gozam.
Tal  não ocorre, porém, nos litígios como o dos autos em que está em causa a apreciação da validade das cláusulas dos Estatutos da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK)[2] , bem como a validade das normas do respectivo regulamento eleitoral que se regem pelas normas de direito privado relativas ao regime jurídico das associações, conforme expressamente refere o art.º 4.º  do D.L. 248-B/2008 de 31 de Dezembro ( Regime Jurídico das Federações Desportivas –RJFD).
Como bem se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-03-2018[3] (proc. 23267/17.0T8LSB.L1-6), «Destinando-se o TAD a administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto, o litígio em causa, não releva nem do ordenamento desportivo, nem está relacionado com a prática do desporto. (…)conforme resulta à saciedade do disposto no artº 4 nº3, o acesso ao TAD só é admissível em via de recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas referidas no n.º 1, ou seja quando estas tenham tomado estas decisões, no exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina. Não se vê que dos factos elencados pelas requerentes, resulte que tenha existido decisão final (comunicada esta às requerentes) tomada pelas requeridas e inserida no exercício de poderes de regulamentação, organização e disciplina, em conexão com actividade desportiva, que tenha de ser submetida em via de recurso ao TAD. Não se vislumbra sequer, nem foi invocada qualquer disposição regulamentar, norma de natureza técnica ou de carácter disciplinar, ou outra que permita ao tribunal recorrido afirmar que este litígio só pode e deve, ser submetido ao TAD
O mesmo entendimento está subjacente à decisão do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-06-2018 no qual se pode ler: « art.º 4.º da Lei do TAD vem então dispor sobre as matérias que necessariamente têm de ser submetidas a este tribunal, prevendo que lhe compete conhecer dos conflitos que decorrem dos actos e omissões das Federações Desportivas, das Ligas Profissionais e de outras entidades desportivas no que respeita ao exercício dos respectivos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, ou seja, dos actos e omissões que resultam do exercício dos seus poderes públicos. Estes actos ou omissões que esta norma prevê que sejam submetidos obrigatoriamente ao TAD são aqueles que resultam do exercício por aquelas entidades dos seus poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, sendo estes que relevam do ordenamento jurídico desportivo, ou relacionados com a prática do desporto submetida a tal regulamentação, conforme prevê o art.º 1.º da Lei 74/2013 que define o objecto do TAD
O que está em causa na acção que nos ocupa são actos relacionados com a organização interna da federação desportiva, com a definição da sua estrutura orgânica. Nesse aspecto particular, a federação, ora Ré, não exerce quaisquer poderes públicos, comporta-se como qualquer pessoa colectiva privada e encontra-se sujeita aos respectivos estatutos e à lei geral que rege as pessoas colectivas e em particular as associações.[4]
Assim, entendemos que a presente acção não está compreendida no âmbito da competência necessária do Tribunal Arbitral do Desporto.
Procedem as conclusões da Apelante.
IV-DECISÃO
Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, por consequência, revogando a decisão recorrida, julgar improcedente a excepção da incompetência absoluta por preterição do Tribunal Arbitral do Desporto, ordenando o prosseguimento da acção nos tribunais judiciais.
Custas pela Recorrida.

Lisboa, 2 de Julho de 2020
Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Anabela Cesariny Calafate
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[1] Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, in O Regime Jurídico do Tribunal Arbitral do Desporto – Anotado e Comentado, Lisboa, 2016, pág. 34, APUD Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2019, Processo 4375/18.7T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Aprovados em Assembleia Geral de 28-03-2018.
[3] Disponível em www.dgsi.pt
[4] Neste sentido vide também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2019, Processo 4375/18.7T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.