Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
144/21.5YUSTR-D.L1-PICRS
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA
INQUÉRITO
DOCUMENTOS
DESENTRANHAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I. A Autoridade da Concorrência, na fase de inquérito, tem o poder de vedar o acesso aos autos em função do carácter prejudicial para a investigação desse acesso o que envolve a noção de que a mesma pode também afastar o irrelevante numa fase em que assume o protagonismo das decisões sobre o que interessa para a investigação e sobre o que não releva para a mesma;
II. O respeito do princípio do contraditório e das demais garantias processuais reconhecidas no artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não é aferível em abstracto mas em termos estritamente focados nas ocorrências específicas de um determinado processo que corra perante um Tribunal, atendendo à concreta possibilidade de exercício de direitos relativos à construção da simetria processual, maxime dos direitos de defesa;
III. Daqui resulta o afastamento liminar da necessidade de transmissão de todos os conteúdos de todos os documentos;
IV. Os direitos de defesa reportam-se sempre e apenas a documentos utilizados e relevantes;
V. A defesa visada na Lei Fundamental, por relação com a qual se desenha o correspondente direito, é a relativa à agressão processual e não ao inócuo, é a apontada ao concreto e não ao abstracto;
VI. No âmbito das contra-ordenações, existe muito menor exigência por comparação com o quadro garantístico processual penal;
VII. Na fase de inquérito, não está legalmente prevista a obrigatoriedade da notificação a outras visadas ou a terceiros de decisão de exclusão de documentos apreendidos a uma outra visada, com fundamento em irrelevância;
VIII. O exercício dos poderes atribuídos à Autoridade da Concorrência (AdC) pelo art. 17.º do Novo Regime Jurídico da Concorrência aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 08.05 , sem submissão à obrigatoriedade de notificação a outros visados ou terceiros das decisões de desentranhamento de documentos tidos por irrelevantes para a decisão, mostra-se adequado às finalidades perseguidas pelo legislador de tutela pública eficaz do Direito da concorrência («public enforcement», no jargão europeu), revela-se necessário à consecução dos objectivos normativos (já que sem a concessão de poderes autónomos de decisão não se conseguiria a pretendida efectividade) e não ultrapassa o equilíbrio devido entre essas finalidades e objectivos e os demais direitos envolvidos. É, pois, proporcional;
IX. Tal exercício foca a actividade punitiva, empresta-lhe eficácia, permite obviar à sobrecarga processual, proscreve a prática de actos inúteis (porque relativos a documentos irrelevantes), afasta, designamdamente, a classificação de confidencialidades e o acesso inútil aos autos e não viola direitos de defesa já que só há defesa contra agressão ou possibilidade desta;
X. É à luz da nota de ilicitude que a visada conhece o que releva em termos instrutórios, acede ao que se pretende demonstrar e assume noção plena dos documentos relevantes, não lhe interessando, nesse contexto, os não utilizados para estear a imputação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I. RELATÓRIO                  
PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., com os sinais identificativos constantes dos autos, impugnou judicialmente decisão proferida pela Autoridade da Concorrência datada de 10.11.2021 que indeferiu o pedido de acesso e  consulta dos elementos desentranhados do processo referenciado nos autos.
O Tribunal «a quo» descreveu os contornos da acção e as principais ocorrências processuais até à sentença nos seguintes termos:
PINGO DOCE - DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A. («PINGO DOCE»), Visada no processo de contraordenação n.º PRC/2017/11, veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela Autoridade da Concorrência (“AdC”) datada de 10.11.2021, por meio do ofício com a referência S-AdC/2021/3361, que indeferiu o pedido de acesso e de consulta dos elementos desentranhados do processo, pedindo que a decisão da AdC seja revogada e substituída por outra que defira os dois pedidos objeto do requerimento de 08.11.2021 e permita o acesso da Recorrente à(s) decisão(ões) de desentranhamento e simultaneamente aos elementos desentranhados.
2. Sustenta a sua pretensão nos fundamentos que sintetiza nas seguintes conclusões de recurso:
a. A(s) decisão(ões) da AdC que determinaram o desentranhamento da documentação apreendida a co-visadas nos autos, nomeadamente à Unilever, não foram notificados ao Pingo Doce, pelo que lhe foi vedada a possibilidade de se pronunciar sobre o(s) desentranhamento(s) da documentação apreendida, aliás, como a própria AdC reconhece.
b. No âmbito do RJC, a AdC não tem competência para analisar e decidir da relevância probatória dos elementos apreendidos, designadamente de mensagens de correio electrónico, nem para ordenar o desentranhamento de tal prova junta ao processo de contra-ordenação, como resulta da aplicação subsidiária dos artigos 17.º da Lei do Cibercrime e 179.º do CPP, ex vi artigo 13.º do RJC e 32.º do RGCO (cfr. também artigo 188.º, n.º 6, alínea c), do CPP).
c. Não é admissível uma interpretação das normas processuais que regulam a fase de inquérito do processo contra-ordenacional da qual resulte a emergência de uma espécie de ónus de suscitação de eventuais invalidades por parte de uma visada relativamente à preterição do exercício de direitos processuais (designadamente ao contraditório) de outra(s) co-visada(s).
d. No regime previsto no artigo 85.º, n.º 1, do NRJC, o interesse no recurso e a legitimidade recursiva dependem necessariamente da preexistência de um acto decisório ou de uma actuação de conteúdo decisório por parte da AdC, que seja dirigida à visada / recorrente.
e. A AdC não pode agora pretender opôr à Recorrente a falta de reacção e de impugnação judicial das decisões de desentranhamento (e o seu consequente carácter definitivo) no âmbito do PRC/2016/4, quando, na verdade, apenas esta autoridade tinha competência para determinar a sua notificação — dever esse que, em qualquer caso, não cumpriu e omitiu —, permitindo-lhe, com esse acto (em falta), conhecer o conteúdo e interpor o respectivo recurso daquelas decisões.
f. Com a execução das decisões de desentranhamento deixa de ser possível conhecer e aproveitar o eventual conteúdo relevante dos elementos por elas abrangida, não sendo possível salvaguardar qualquer garantia de contraditório relativamente ao conteúdo apreendido sobre o qual esta decisão venha a recair.
g. Trata-se, por isso, de uma questão distinta daquela que foi apreciada e decidida na decisão judicial invocadas pela AdC em abono da posição assumida na decisão de 10.11.2021 e que foi proferida no processo n.º 225/15.4YUSTR.L1. Por isso, as respostas num e noutro caso são necessariamente diferentes e não automaticamente transponíveis de uma situação para a outra, a saber:
i. No caso do aresto identificado na decisão condenatória está em causa a participação do visado na diligência em que é produzida a prova testemunhal, a qual fica registada nos autos e é, por isso, conhecida;
ii. Na decisão de desentranhamento, está em causa a remoção do processo com carácter definitivo, sem possibilidade de contradição, de elementos cujo conteúdo não chegará a ser conhecido por todos os visados no processo independentemente de nisso poderem ter um legítimo interesse (processual e/ou substantivo).
h. No recurso das medidas administrativas cuja sentença data de 25 de Outubro de 2016 (processo n.º 195/16.1YUSTR), o TCRS afirmou expressamente o dever de a AdC assegurar o efectivo direito de defesa dos visados no quadro do processo de contra-ordenação mesmo quando se trate do acesso a informação confidencial com eventual relevância exculpatória, por parte de alguma das co-visadas.
i. E o princípio afirmado nestes autos vale, em qualquer caso, ou seja, independentemente de se tratar de uma decisão de desentranhamento de prova potencialmente exculpatória ou de elementos que, tendo essa natureza exculpatória, se encontram adquiridos nos autos e sujeitos a um regime de confidencialidade.
j. Se é certo que o TCRS parece peremptório na afirmação da competência da AdC para proceder ao desentranhamento de elementos apreendidos e que se possam revelar irrelevantes para a investigação, já não é correcto afirmar que esta competência admite a desnecessidade de prévia audição dos intervenientes processuais (co-visadas) que por ela possam ser potencialmente afectados, muito em particular para lhes garantir a possibilidade de aferirem da sua utilidade para o exercício cabal do seu direito de defesa por força da sua relevância exculpatória.
k. Nenhuma das decisões judiciais identificadas na decisão permite afirmar o entendimento por ela assumido, sendo evidente que a AdC, ao negar o acesso à informação entretanto desentranhada dos autos, cerceou — e cerceia — ilegalmente o direito de defesa da aqui Recorrente.
l. A expurgação ilegal dos e-mails e «documentos» referida supra, e a consequente impossibilidade de acesso a prova potencialmente relevante para a defesa do Pingo Doce, viola o disposto nos artigos 31.º, n.ºs 1 e 2, e 33.º do RJC e cria uma radical e insanável dúvida acerca da verdade dos factos vertidos na decisão condenatória, impondo o arquivamento dos autos quanto à ora Recorrente.
m. Sendo inconstitucional a normas extraída por interpretação conjunta daqueles preceitos do RJC, segundo a qual é admissível o desentranhamento de documentos dos autos sem que à Recorrente seja dada a possibilidade de conhecer o seu conteúdo e ainda que os mesmos possam ser relevantes para o cabal exercício do seu direito de defesa, nos termos dos artigos 32.º, n.os1, 5 e 10, da CRP e 6.º da CEDH, a par da violação do direito a um processo justo e equitativo, o princípio da igualdade de armas dos sujeitos processuais (artigo 20.º, n.º 4 da CRP) e ainda os princípios da boa-fé e da transparência a que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua actuação (artigo 266.º, n.º 2, da CRP).
3. A AdC apresentou alegações, nas quais pugna pela manutenção da decisão impugnada, sintetizando os seus argumentos nas seguintes conclusões:
a) É à AdC que compete conduzir o processo contraordenacional, do modo que considere mais correto e eficiente, sendo, portanto, o dominus da fase  e inquérito do processo contraordenacional.
b) Nos termos do artigo 17.º da LdC, o legislador conferiu a esta Autoridade a competência para dirigir a fase de inquérito, sendo, neste quadro, a AdC a entidade competente para determinar quais os documentos obtidos no âmbito da sua investigação que devem manter-se no processo, porque relevantes para decisão final, e quais os documentos que devem ser expurgados do mesmo, porque irrelevantes.
c) Não existe qualquer obstáculo legal ou impedimento processual para que a AdC proceda ao desentranhamento e devolução de documentos entretanto considerados irrelevantes, inócuos e desnecessários para o apuramento da responsabilidade sancionatória das visadas, em linha com a posição jurisprudencial.
d) A competência da Autoridade da Concorrência para realizar o desentranhamento de documentos do processo promove a eficiência processual, zela pela viabilidade do próprio procedimento em questão e evita a sobrecarga dos processos com documentos irrelevantes e a oneração das empresas com classificações de confidencialidade de documentos desnecessários, bem como o problema do acesso aos documentos não utilizados como meios de prova, na medida em que os mesmos deixam, desde logo, de constar do processo.
e) De igual modo ocorre no quadro da Comissão Europeia, em que os documentos não utilizados não são mantidos no processo. No processo apenas ficam os documentos incriminatórios (Comunicação da Comissão relativa às regras de acesso ao processo nos casos de aplicação dos artigos 81.º e 82.º do Tratado CE, artigos 53.º, 54.º e 57.º do Acordo EEE e do Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho (2005/C 325/07)).
f) Os elementos desentranhados a que a Recorrente se refere reportam-se a documentação apreendida nas instalações de outra empresa visada, in casu a Unilever, que, na qualidade de titular dos elementos em causa do desentranhamento, foi devidamente notificada da decisão da AdC.
g) Não resulta da Lei da Concorrência, nem dos demais diplomas legais correlacionados, a necessidade/imposição de a AdC notificar as visadas no processo do desentranhamento de documentos apreendidos nas instalações de uma terceira visada.
h) Nada há que impeça que qualquer empresa Visada, sendo notificada de uma Nota de Ilicitude e, assim, tomando conhecimento dos elementos incriminatórios de que a AdC dispõe e pretende usar para imputar a infração, requeira a junção aos autos/apresente elementos probatórios que considere relevantes para a sua defesa. Elementos esses que poderão ser de qualquer natureza e ser de qualquer titular.
i) A Recorrente Pingo Doce não demonstra em que medida o desentranhamento dos elementos desentranhados a podem, ainda que hipoteticamente, afetar.
j) De acordo com o Tribunal de Justiça da União Europeia, acórdão Aalborg Portland e o. c. Comissão, de 7 de janeiro de 2004, “[a] não comunicação de  um documento apenas constitui violação dos direitos de defesa se a empresa em causa demonstrar, por um lado, que a Comissão se baseou nesse documento para fundamentar a sua acusação relativa à existência de uma infração (…), e, por outro, que essa acusação só poderia ser provada por referência ao dito documento (…)”.
k) Como se verifica na nota de ilicitude da AdC notificada à Recorrente Pingo Doce, esta Autoridade não utilizou, de modo algum, os elementos desentranhados que haviam sido recolhidos nas instalações da Unilever, até porque os tinha considerado irrelevantes para o processo.
l) A Recorrente Pingo Doce não alega, nem podia alegar, por não ser verdade, que esta Autoridade, em concreto, se baseou em algum dos documentos desentranhados para fundamentar a sua nota de ilicitude relativa à existência de uma infração.
m) A Recorrente também não demonstra que os factos constantes na nota de ilicitude só poderiam ser provados por referência aos documentos em apreço.
n) A existir algum nível de compressão dos direitos de defesa das visadas nesta situação – o que não se concede e apenas por razões puramente teóricas se coloca – essa mostrar-se-ia proporcional e justificada: i) a AdC tem o dominus da fase de inquérito; ii) dentro das suas competências, concluiu que os elementos em causa são irrelevantes para a descoberta da verdade material; iii) desenvolver mecanismos processuais complexos que sobrecarregam o processo por conta de elementos sem qualquer relevância para o mesmo constitui um impedimento à celeridade processual que se exige e espera de um processo contraordenacional.
o) Esta posição da Recorrente Pingo Doce é tanto mais injustificada quando, no âmbito do PRC/2016/4, também a Recorrente foi alvo de diligências de busca, exame, recolha e apreensão realizadas pela AdC nas suas instalações, foi devida e oportunamente notificada do desentranhamento do processo de provas que esta Autoridade considerou irrelevantes para o mesmo e, em momento algum, suscitou qualquer objeção, tendo-se conformado com o desentranhamento.
p) A Recorrente Pingo Doce tão pouco se opôs nem se pronunciou quanto a qualquer caráter potencialmente relevante dessa prova para si, sobre as restantes decisões de desentranhamento que foram adotadas pela AdC relativamente a outras visadas, ainda no âmbito do PRC/2016/4.
q) Não se antevê como pode a Recorrente Pingo Doce considerar que o desentranhamento de elementos de prova apreendidos nas instalações da Unilever, no âmbito do presente processo, põe em causa o exercício do seu direito de audiência e defesa.
r) Os direitos de defesa das visadas encontram-se, em determinadas circunstâncias, limitados até à estabilização do objeto do processo, que ocorre no final da fase de inquérito, momento em que aquelas tomam conhecimento dos factos relativamente aos quais se têm de defender.
s) Para além das limitações impostas pela sujeição do processo a segredo de justiça, importa salientar que o acesso a documentos confidenciais para efeitos do exercício do direito de defesa pelas visadas apenas se encontra previsto na Lei da Concorrência após terminada a fase de inquérito, isto é, para efeitos de apresentação da pronúncia à Nota de Ilicitude ou de impugnação judicial da decisão da AdC (artigos 25.º, n.º 1, 31.º, n.º 3, e 33.º, n.º 4).
t) Encontrando-se especificamente prevista na Lei da Concorrência a apreensão de qualquer tipo de documentação, independentemente do seu suporte; não estando em causa a apreensão de correspondência, mas de documentos; e sendo essa Lei posterior à Lei do Cibercrime, resulta manifesto que a intenção do legislador foi – inequivocamente – afastar o regime consagrado pela Lei do Cibercrime, cujos objeto e finalidades são manifestamente distintos daqueles que foram consagrados pela Lei da Concorrência.
u) Não procede o alegado pela Recorrente Pingo Doce, não se reconhecendo a existência de qualquer invalidade, nulidade processual ou inconstitucionalidade.
Foi proferida sentença que julgou improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida.
É dessa sentença que vem o presente recurso interposto por PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., que alegou e apresentou as seguintes conclusões e pedido:
A) Na sequência da notificação da Nota de Ilicitude, a RECORRENTE teve conhecimento de que, no âmbito do processo de contraordenação n.º PRC/2017/11, foi determinado o desentranhamento ficheiros eletrónicos apreendidos, pelo menos, à co-visada Unilever, sem que, no entanto, essa decisão lhe tivesse sido previamente notificada que pronunciasse sobre o pretendido desentranhamento e ulterior destruição da respetiva prova.
B) A RECORRENTE requereu, então, a sua notificação das decisões de desentranhamento dos ficheiros eletrónicos apreendidos nas instalações da Unilever e, simultaneamente, informação sobre eventuais outras decisões de desentranhamento de meios de prova que igualmente tivessem sido tomadas nos presentes autos, bem como a consulta aos elementos desentranhados. A sua pretensão foi indeferida in totum pela AdC, por decisão de 10.11.2021.
C) Após recurso desta decisão para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, nos termos dos artigos 83.º e seguintes do RJC, foi proferida a Sentença aqui recorrida, na qual, entre o mais, se decidiu o seguinte:
C.1 As co-visadas devem conhecer a prova produzida (ainda que, posteriormente, desentranhada), para efeitos do exercício dos seus direitos de acesso ao processo, contraditório e defesa, invocando-se três decisões judiciais, que destacam a essencialidade de aos co-visados serem dadas informações sobre o conteúdo dos documentos a que pretendem ter acesso, com vista à fundamentação do respetivo pedido de acesso;
C.2 Que qualquer decisão de desentranhamento de meios de prova terá de ser precedida de notificação aos visados e co-visados, permitindo o acesso dos mesmos aos elementos que se pretendem desentranhar e o respetivo exercício do contraditório;
C.3 Que a ausência de notificação prévia, por parte da AdC, da decisão de desentranhamento às restantes co-visadas, incluindo a ora Recorrente, e a recusa de acesso aos elementos que viriam a ser desentranhados, determinaria a invalidade processual daquela decisão.
D) A Sentença recorrida entendeu, porém, que o reconhecimento da invalidade processual não seria suficiente para a sua declaração judicial, antes cabendo à Recorrente que concretizar, por um lado, (i) em que medida os elementos desentranhados (o seu conteúdo) seriam suscetíveis de ser relevantes para o direito de defesa à luz dos factos que lhe foram imputados na Nota de Ilicitude e, por outro lado, (i) que o(s) ato(s) processual(is) implicado(s) tinham efeito no processo, em particular, nos interesses e direitos da Recorrente. Por entender que a Recorrente não observou este ónus de concretização nesta dupla vertente, a Sentença recorrida negou provimento ao recurso e julgou-o improcedente.
E) A decisão da Sentença recorrida é manifestamente ilegal: a imposição de um ónus de concretização — manifestamente impossível de cumprir,  acrescente-se, em face do concreto desconhecimento dos meios de prova apreendidos — não encontra fundamento em qualquer norma que o preveja.
F) A sentença recorrida é manifestamente contrária à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia; estando em causa, segundo a Autoridade, também a aplicação do direito da União e uma potencial infração ao artigo 101.° do Tratado (sobre o Funcionamento da União Europeia), não poderão deixar de ser respeitados os direitos fundamentais, tal como assegurados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos, aliás, do artigo 8.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa.
G) A proceder o entendimento vertido na sentença recorrida – no que não se concede –, a Recorrente estaria impossibilidade de ver reconhecida a sua pretensão de se pronunciar sobre a decisão de desentranhamento e simultaneamente de aceder ao conjunto da prova recolhida no processo, precisamente por não conseguir concretizar o que desconhece.
H) O reconhecimento da invalidade processual não depende de qualquer concretização prévia da relevância dos elementos apreendidos para a defesa aos factos imputados na Nota de Ilicitude.
I) Considerando que o pedido de acesso aos elementos é formulado num processo de contraordenação, ou seja, no âmbito de um processo de matriz sancionatória, não pode deixar de se lançar mão das normas processuais penais que regulam o direito de acesso do arguido aos autos, designadamente do artigo 89.º do CPP — acesso que não depende do cumprimento de qualquer ónus de concretização sobre a relevância dos elementos dos autos para a defesa do arguido. Destarte, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 89.º do CPP, a exigência de concretização sobre a relevância dos elementos dos autos para a preparação da defesa do arguido, como requisito de acesso aos autos, é patentemente ilegal.
J) Se do processo não consta toda a prova que nele foi produzida, a Recorrente nunca pode exercer cabalmente o seu direito de defesa perante a acusação que lhe é dirigida nos presentes autos — sendo esta a demonstração de que o ato processual inválido (a decisão de desentranhamento) afeta o conteúdo essencial do seu direito de defesa no âmbito dos presentes autos e não podendo, por isso, exigir-se maior concretização quanto aos efeitos do ato inválido na posição processual da Recorrente.
K) Perante a invalidade processual decorrente da ausência de contraditório prévio sobre a decisão de desentranhamento, cabe ao Tribunal determinar a sua notificação, bem como a notificação dos elementos por ela abrangidos de modo a permitir que a Recorrente afira da sua relevância probatória e da consequente necessidade de manutenção nos autos.
L) A Sentença recorrida violou os artigos 25.º, n.º 1, 31.º, n.ºs 1 e 2, e 33.º, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, bem como as garantias de defesa da Recorrente, constitucionalmente tuteladas nos artigos 32.º, n.ºs 1, 5 e 10, da Constituição.
M) A interpretação normativa dos artigos 25.º, n.º 1, 31.º, n.ºs 1 e 2, e 33.º, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, no sentido de que o reconhecimento judicial da invalidade processual resultante da omissão de notificação da decisão de desentranhamento e da recusa de acesso à prova produzida nos autos (e objeto dessa mesma decisão) depende da prévia concretização da relevância e dos efeitos da decisão inválida nos direitos da Recorrente, particularmente no exercício do seu direito de defesa, é inconstitucional por violação dos artigos 32.º, n.ºs1, 5 e 10, da CRP e 6.º da CEDH, a par da violação do direito a um processo justo e equitativo, o princípio da igualdade de armas dos sujeitos processuais (artigo 20.º, n.º 4 da CRP) e ainda os princípios da boa-fé e da transparência a que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua atuação (artigo 266.º, n.º 2, da CRP).
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que:
1. Reconheça a invalidade processual da decisão de desentranhamento, e, em consequência;
2. Determine a notificação à Recorrente desta decisão e a notificação dos ficheiros eletrónicos por ela abrangidos, permitindo-lhe aferir da sua relevância probatória e da consequente necessidade de manutenção desses elementos nos autos de contraordenação.
O Ministério Público junto do tribunal de primeira instância que proferiu a decisão impugnada respondeu ao recurso sem apresentar conclusões, sustentando a improcedência do mesmo.
A AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA respondeu às alegações de recurso  concluindo e defendendo:
OBJETO DO RECURSO
A. O recurso a que se responde vem interposto da Sentença do TCRS, de 10.03.2022, que negou provimento ao recurso interposto pela Recorrente, confirmando a legalidade da decisão da AdC sob escrutínio.
B. Sem prejuízo de tal confirmação, a decisão recorrida suporta-se num iter decisório e numa fundamentação que a AdC não acompanha integralmente e entende nem sempre ser a solução jurídica mais adequada ao thema decidendum.
C. Não havendo fundamentação para efeitos recursórios por parte da AdC (na medida em que foi negado provimento ao recurso interposto e confirmada a legalidade de atuação da AdC), não pode esta entidade deixar de, em sede de contra-alegações, pugnar por fundamentação distinta daquela refletida na sentença, a qual, a ser posta em prática, implicaria, nalgumas situações, uma gestão injustificadamente onerosa para a AdC da fase de inquérito dos seus processos contraordenacionais.
D. Em suma, e em antecipação do que se densificará infra, a AdC em sede de diligências de busca e apreensão apreende um conjunto de documentos, que, após um exercício de análise e triagem mais fina, se conclui pela sua irrelevância, impertinência e desnecessidade probatória. Tal circunstância faz com que a AdC proceda ao seu desentranhamento do processo e devolução dos mesmos ao respetivo titular – tem sido esta a sua atuação com pleno respaldo na jurisprudência do TCRS e do TRL.
E. O que o Tribunal recorrido vem propor é que, sempre que a AdC tenha intenção de na fase de inquérito desentranhar documentos apreendidos, a sua atuação seja distinta, promovendo invariavelmente um contraditório prévio (ao desentranhamento) junto dos demais co-visados, atuação que, na perspetiva da AdC, não encontra qualquer sustento legal.
DA ALEGADA ILEGALIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA
F. É à AdC que compete conduzir o processo contraordenacional, do modo que considere mais correto e eficiente, sendo, portanto, o dominus da fase de inquérito do processo contraordenacional, conforme reiterado pelo Tribunal a quo.
G. Nos termos do artigo 17.º da LdC, o legislador conferiu a esta Autoridade a competência para dirigir a fase de inquérito, sendo, neste quadro, a AdC a entidade competente para determinar quais os documentos obtidos no âmbito da sua investigação que devem manter-se no processo, porque relevantes para decisão final, e quais os documentos que devem ser expurgados do mesmo, porque irrelevantes.
H. Não existe qualquer obstáculo legal ou impedimento processual para que a AdC proceda ao desentranhamento e devolução de documentos entretanto considerados irrelevantes, inócuos e desnecessários para o apuramento da responsabilidade sancionatória das visadas, em linha com a posição jurisprudencial.
I. A competência da AdC e prerrogativa que o legislador concedeu à Autoridade para proceder ao desentranhamento e devolução de documentos entretanto considerados irrelevantes, inócuos e desnecessários para o apuramento da responsabilidade sancionatória das visadas fundamenta-se no facto de ser a AdC a dominus do processo na fase de inquérito e, portanto, a quem compete avaliar se os documentos apreendidos são ou não necessários para fazer a prova.
J. Não se antevê como pode a Pingo Doce considerar que o desentranhamento de elementos de prova apreendidos nas instalações da Unilever, no âmbito do presente processo, põe em causa o exercício do seu direito de audiência e defesa.
K. A invocação de qualquer vício processual – o que apenas por mera cautela de patrocínio se concebe e que não ocorreu –, seja uma nulidade ou uma irregularidade processual, implica, necessariamente, a necessidade de afetação dos atos implicados e a identificação de atos processuais concretos, bem como a concretização da suscetibilidade dos documentos apreendidos nas instalações de terceiros serem relevantes para a sua defesa.
L. Do regime das nulidades (artigo 122.º do CPP) e das irregularidades (artigo 123.º do CPP), aplicáveis ao processo de contraordenação em causa ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO e artigo 13.º da LdC, resulta, indubitavelmente, uma “necessária relação de causalidade”, não podendo a declaração de nulidade ou de irregularidade ser “autorreferente e isolada das consequências; a decisão de declaração da nulidade [ou irregularidade] «determina», isto é, deve identificar expressamente «quais os atos [consequentes] que possam considerar-se inválidos»” (nota não reproduzida).
M. A Pingo Doce não demonstra em que medida o desentranhamento dos elementos desentranhados a podem, ainda que hipoteticamente, afetar.
N. A própria Pingo Doce reconhece não ter sequer tentado concretizar em que medida os seus direitos de defesa se veem comprometidos pelo desentranhamento de documentos apreendidos nas instalações da Unilever.
O. A Pingo Doce limita-se, como bem reforça o Tribunal a quo, a invocar a violação dos seus direitos de defesa, num plano meramente abstrato e etéreo.
P. Os elementos desentranhados a que a Recorrente se refere reportam-se a documentação apreendida nas instalações de outra empresa visada, in casu a Unilever, e que esta, na qualidade de titular dos elementos em causa do desentranhamento, foi devidamente notificada da decisão da AdC de desentranhar os elementos em causa.
Q. A Recorrente Pingo Doce tão pouco se opôs nem se pronunciou quanto a qualquer caráter potencialmente relevante dessa prova para si, sobre as restantes decisões de desentranhamento que foram adotadas pela AdC relativamente a outras visadas, ainda no âmbito do PRC/2016/4.
R. De acordo com o Tribunal de Justiça da União Europeia, acórdão Aalborg Portland e o. c. Comissão, de 7 de janeiro de 2004, “[a] não comunicação de um documento apenas constitui violação dos direitos de defesa se a empresa em causa demonstrar, por um lado, que a Comissão se baseou nesse documento para fundamentar a sua acusação relativa à existência de uma infração (…), e, por outro, que essa acusação só poderia ser provada por referência ao dito documento (…)”.
S. Como se verifica na nota de ilicitude da AdC notificada à Recorrente Pingo Doce, esta Autoridade não utilizou, de modo algum, os elementos desentranhados que haviam sido recolhidos nas instalações da Unilever, até porque os tinha considerado irrelevantes para o processo.
T. A Recorrente Pingo Doce não alega, nem podia alegar, por não ser verdade, que esta Autoridade, em concreto, se baseou em algum dos documentos desentranhados para fundamentar a sua nota de ilicitude relativa à existência de uma infração.
U. A Recorrente também não demonstra que os factos constantes na nota de ilicitude só poderiam ser provados por referência aos documentos em apreço.
V. A existir algum nível de compressão dos direitos de defesa das visadas nesta situação – o que não se concede e apenas por razões puramente teóricas se coloca – essa mostrar-se-ia proporcional e justificada: i) a AdC tem o dominus da fase de inquérito;
ii) dentro das suas competências, concluiu que os elementos em causa são irrelevantes para a descoberta da verdade material; iii) desenvolver mecanismos processuais complexos que sobrecarregam o processo por conta de elementos sem qualquer relevância para o mesmo constitui um impedimento à celeridade processual que se exige e espera de um processo contraordenacional.
W. Improcede, portanto, a alegação da Recorrente Pingo Doce de violação de qualquer invalidade, nulidade processual ou inconstitucionalidade.
X. Não procede o alegado pela Recorrente Pingo Doce, não se reconhecendo qualquer ilegalidade da sentença recorrida, devendo a mesma ser mantida.
DA PERTINENTE ANÁLISE DE ALGUMA ARGUMENTAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA RELATIVA À “NECESSIDADE DE CONTRADITÓRIO PRÉVIO EM RELAÇÃO À DECISÃO DE DESENTRANHAMENTO DE MEIOS DE PROVA”
Y. Sem prejuízo de a sentença recorrida ter julgado o recurso da Pingo Doce totalmente improcedente, mantendo a Decisão da AdC, importa analisar alguns argumentos carreados para os autos pelo Tribunal a quo, com os quais, com o devido respeito, não pode a AdC estar de acordo.
Z. O princípio do contraditório encontra-se constitucionalmente refletido no artigo 32.º, n.º 5, da CRP, e é inerente ao direito a um processo justo implicado no direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no artigo 20.º da CRP, representando, por isso, uma exigência axiológica estruturante.
AA. Ao nível contraordenacional, o princípio do contraditório também é aplicável (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/99, de 5 de maio).
BB. O princípio do contraditório vigora, desde logo, no processo penal, apresentando apenas um caráter absoluto no contexto do julgamento, o seu expoente máximo; nas demais fases do processo tem apenas um caráter relativo.
CC. No contexto contraordenacional, a jurisprudência do Tribunal Constitucional é unânime ao determinar a subtração do ilícito de mera ordenação social às mais rigorosas exigências de determinação válidas para o processo penal, com reflexos imediatos no âmbito de aplicação do princípio do contraditório, que apresenta, portanto, neste contexto, um caráter relativo.
DD. Não podemos estar de acordo com o sentido que parece resultar de alguma argumentação da sentença recorrida, ao atribuir ao princípio do contraditório um caráter muito próximo do absoluto, que nem no direito penal vigora – apenas na fase de julgamento – e que é unanimemente aceite pela jurisprudência e pela doutrina que não vigora, de todo, no quadro contraordenacional, assumindo apenas uma força relativa.
EE. O legislador atribuiu à AdC, por força do artigo 17.º da Lei da Concorrência, a competência para dirigir a fase de inquérito no processo sancionatório relativo a práticas restritivas. Pelo que, “tendo a AdC competência exclusiva para conduzir o inquérito, bem como para determinar a relevância dos elementos probatórios, pode aquela autoridade administrativa ordenar a exclusão de documentação irrelevante para o objeto do presente processo”.
FF. Não resulta da Lei da Concorrência, nem dos demais diplomas legais correlacionados, a necessidade/imposição de a AdC notificar as visadas no processo do desentranhamento de documentos apreendidos nas instalações de uma terceira visada.
GG. Inexiste norma expressa habilitante que estabeleça a pertinência e a possibilidade de as co-visadas se pronunciarem acerca do juízo crítico da AdC na determinação do desentranhamento de elementos apreendidos nas instalações de outra visada.
HH. No quadro da apreciação e triagem da prova apreendida nas buscas, é à AdC que compete determinar o critério que delimita o que deve ser desentranhado do processo.
II. É unanimemente aceite que o legislador não estatuiu na Lei da Concorrência qualquer dever de a AdC notificar as visadas no processo do desentranhamento de documentos apreendidos nas instalações da visada titular dos referidos elementos e, por outro, tem entendido o Tribunal Constitucional que o princípio do contraditório assume no processo contraordenacional um caráter relativo, podendo ser restringido – o que também ocorre com as fases do processo criminal, com exceção da fase de julgamento –, pelo que não podemos acompanhar o entendimento do Tribunal a quo.
JJ. A referência pelo Tribunal a quo ao artigo 25.º, n.º 1, da LdC, como sendo a concretização na lei ordinária da necessidade de a AdC notificar as visadas no processo do desentranhamento de documentos apreendidos nas instalações da visada titular dos referidos elementos, parece-nos não ser adequada ao momento em que, efetivamente, a AdC desentranhou os documentos apreendidos nas instalações da Unilever.
KK. O desentranhamento dos referidos elementos ocorreu em 02.03.2021, quando processualmente decorria a fase de inquérito.
LL. A fase de inquérito apenas cessou em 02.11.2021, com a adoção da nota de ilicitude, momento em que iniciou a fase de instrução do processo (artigo 24.º, n.º 3, alínea a), da LdC) e que o Conselho de Administração da AdC determinou o levantamento do segredo de justiça.
MM. O artigo 25.º da LdC, convocado pelo Tribunal a quo, tem como epígrafe “Instrução do processo” e é convocável apenas com e a partir do momento da notificação da nota de ilicitude, passando o processo contraordenacional a estar na fase de instrução (prevista nos artigos 25.º a 29.º da LdC), uma fase posterior à fase de inquérito.
NN. Afigura-se claro que os contornos do procedimento adotado para a realização do desentranhamento de documentos do processo devem ser determinados pela Autoridade da Concorrência, sempre de forma a promover a eficiência processual e a zelar pela viabilidade do próprio procedimento em questão.
OO. Respeita-se, deste modo, o princípio da proporcionalidade, à luz dos três subprincípios e correspondentes testes concretizadores do mesmo, resultantes da jurisprudência constitucional: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
PP. Esta prerrogativa da AdC permite evitar a sobrecarga dos processos com documentos irrelevantes, a oneração das empresas com classificações de confidencialidade de documentos desnecessárias, bem como o problema do acesso aos documentos não utilizados como meios de prova, na medida em que os mesmos deixam, desde logo, de constar do processo.
QQ. A solução proposta pelo Tribunal a quo de lançar mão do disposto no artigo 33.º, n.º 4, da LdC, situa-se, cremos, num processo analógico – que se encontra vedado no direito penal e contraordenacional – do que no quadro de uma interpretação extensiva.
RR. O artigo 33.º, n.º 4, da LdC enquadra-se numa fase do processo em que a nota de ilicitude já foi notificada aos visados (e, nessa medida, os factos e os elementos de prova que suportam a infração, estabilizados) e de acesso a documentos contendo informação classificada como confidencial, após o procedimento de confidencialidades, e não numa fase embrionária do processo, em que ocorre o desentranhamento de documentos.
SS. O legislador não disse menos do que pretendia dizer, apenas não queria nem quer – não o tendo, de modo algum, estatuído – conceder a possibilidade de as co-visadas se pronunciarem acerca do juízo crítico da AdC na determinação do desentranhamento de elementos apreendidos nas instalações de outra visada.
TT. A convocação do artigo 33.º, n.º 4, da LdC para o caso em apreço ocorre, em nosso entender, com recurso à analogia, proibida no quadro contraordenacional.
UU. No quadro da Comissão Europeia, os documentos não utilizados não são mantidos no processo. No processo apenas ficam os documentos incriminatórios (Comunicação da Comissão relativa às regras de acesso ao processo nos casos de aplicação dos artigos 81.º e 82.º do Tratado CE, artigos 53.º, 54.º e 57.º do Acordo EEE e do Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho (2005/C 325/07)).
VV. Sem prejuízo da não vinculação das Comunicações da Comissão Europeia, a verdade é que são elementos orientadores para os Estados-membros e que devem ser ponderados., já que entre as autoridades nacionais de concorrência e a Comissão Europeia estabelecem-se relações paralelas na aplicação das regras em estreita cooperação, no contexto da Rede Europeia de Concorrência – ECN.
WW. Apesar de a AdC proceder ao desentranhamento dos elementos probatórios que considera não serem relevantes ao objeto do processo, o facto de os mesmos serem devolvidos ao seu titular, a Unilever, permite que o mesmo, concluindo pela potencial relevância que alguns desses mesmos elementos possam ter para a sua defesa, requeira à AdC que os mesmos voltem a ser juntos ao processo, o que não ocorreu.
XX. Os elementos desentranhados a que a Recorrente se refere reportam-se a documentação apreendida nas instalações de outra empresa visada, in casu a Unilever, que, na qualidade de titular dos elementos em causa do desentranhamento, foi devidamente notificada da decisão da AdC.
YY. Num momento em que apenas decorre a fase de inquérito – de investigação e de recolha probatória –, tendo presente que à AdC compete promover e defender a concorrência, orientada pelo critério do interesse público, e que, em particular, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, da LdC, “[n]a instrução dos processos, a Autoridade da Concorrência acautela o interesse legítimo das empresas, associações de empresas ou outras entidades na não divulgação dos seus segredos de negócio (…)”, torna-se absolutamente incompreensível, à luz, desde logo, do princípio da proporcionalidade e da necessidade de salvaguardar outros interesses juridicamente relevantes, defender um dever de a AdC notificar as visadas no processo do desentranhamento de documentos apreendidos nas instalações da visada titular dos referidos elementos e de permitir que aquelas se pronunciem acerca do juízo crítico da AdC na determinação do desentranhamento de elementos apreendidos nas instalações de outra visada.
ZZ. Apenas o titular dos elementos a desentranhar deve ser notificado – como foi – da decisão da AdC, porque é aquele que, nesta fase, tem interesse na referida decisão.
AAA. Em linha com o processo penal, no âmbito do processo contraordenacional por práticas restritivas da Concorrência em que foi decretado o segredo de justiça, as visadas não têm acesso aos autos do processo na fase de inquérito e desconhecem as provas recolhidas contra si.
BBB. Para além das limitações impostas pela sujeição do processo a segredo de justiça, importa salientar que o acesso a documentos confidenciais para efeitos do exercício do direito de defesa pelas visadas apenas se encontra previsto na Lei da Concorrência após terminada a fase de inquérito, isto é, para efeitos de apresentação da pronúncia à Nota de Ilicitude ou de impugnação judicial da decisão da AdC (artigos 25.º, n.º 1, 31.º, n.º 3, e 33.º, n.º 4, da LdC).
CCC. Nada há que impeça que qualquer empresa Visada, sendo notificada de uma Nota de Ilicitude e, assim, tomando conhecimento dos elementos incriminatórios de que a AdC dispõe e pretende usar para imputar a infração, requeira a junção aos autos/apresente elementos probatórios que considere relevantes para a sua defesa, nos termos do artigo 25.º, n.º 1, da LdC. Elementos esses que poderão ser de qualquer natureza e ser de qualquer titular.
DDD. Os elementos que são desentranhados constituem elementos que a AdC considera desprovidos de qualquer relevância para o objeto do processo, para o qual tem competência, sem margem para tergiversações, valorando, para efeitos de apuramento da responsabilidade contraordenacional, apenas e só os elementos que permanecem nos autos.
EEE. No quadro do entendimento quase unânime do TCRS, a AdC tem mantido sempre o procedimento de, após apreciação dos elementos apreendidos nas buscas, determinar o desentranhamento do que considere irrelevante e notificar o titular dos referidos elementos, sem lugar a notificação das outras co-visadas, que, em linha com o determinado pelo legislador, tem sido, aliás, sempre validado pelos tribunais.
FFF. Veja-se, aliás, o absurdo que a solução aventada pelo Tribunal a quo pode gerar: na fase de investigação, a AdC entende que determinado acervo documental se revela irrelevante para efeitos da demonstração da infração investigada, pretendendo, nessa medida, o desentranhamento dessa prova mas sendo obrigada a promover o contraditório dos demais co-visados quanto a esse desentranhamento que – hipoteticamente – se opõem a tal desentranhamento.
GGG. A AdC pode prosseguir com tal desentranhamento? E prosseguindo com esse desentranhamento a que os co-visados se opuseram, estes recorrem para o TCRS que terá a decisão final sobre a manutenção ou desentranhamento desses documentos do processo? Pode o poder judicial impor à AdC, na fase de investigação, que mantenha determinados documentos no processo e que os utilize para efeitos probatórios? É possível este nível de ingerência?
HHH. Podem os co-visados e o Tribunal – antes da adoção de qualquer nota de ilicitude/acusação – impor à AdC que determinados documentos permaneçam no processo e sejam utilizados pela AdC? E, se sim, em que medida e com que finalidade?
III. Salvo melhor opinião, a resposta não poderá deixar de ser negativa.
JJJ. Não pode deixar de ser valorado o facto de sempre que a questão de saber se a AdC tem um dever de notificar as visadas no processo do desentranhamento de documentos apreendidos nas instalações da visada titular dos referidos elementos foi colocada perante os Tribunais, estes validaram, perentoriamente, o procedimento da AdC de, após apreciação dos elementos apreendidos nas buscas, determinar o desentranhamento do que considere irrelevante e notificar o titular dos referidos elementos, sem lugar a notificação das outras co-visadas.
KKK. A única exceção jurisprudencial é o excerto da Sentença do TCRS de 11.01.2017, proferida no âmbito do processo 194/16.3YUSTR, com o qual a AdC, enfatize-se, nunca se conformou nem nunca o fez refletir nos seus procedimentos e que não constituía o thema decidendum do recurso, e que, apesar daquela passagem, o Tribunal julgou totalmente improcedente o recurso relativo ao desentranhamento de documentos do Recorrente.
LLL. De todo o exposto, a AdC exorta o Tribunal ad quem a confirmar a legalidade da atuação da AdC, negando provimento ao recurso interposto pela Pingo Doce, mas afastando-se da fundamentação em que o Tribunal recorrido se suporta, concluindo, ao invés, que na fase de inquérito dos processos contraordenacionais a AdC pode determinar o desentranhamento dos documentos que entende serem irrelevantes para a investigação em curso, sem ser obrigada a promover contraditório junto dos co-visados que não são titulares daquela informação.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas doutamente suprirão, deve o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, afastando-se, no entanto, o Tribunal ad quem da fundamentação em que o Tribunal recorrido se suporta, concluindo, ao invés, que na fase de inquérito dos processos contraordenacionais a AdC pode determinar o desentranhamento dos documentos que entende serem irrelevantes para a investigação em curso, sem ser obrigada a promover contraditório junto dos covisados que não são titulares daquela informação.
Foi colhido o visto do Ministério Público junto deste Tribunal que nada acrescentou ao antes defendido pelo Digno representante da mesma magistratura junto do Tribunal «a quo».
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
São as seguintes as questões a avaliar:
1. Perante a invalidade processual decorrente da ausência de contraditório prévio sobre a decisão de desentranhamento, cabe ao Tribunal determinar a sua notificação, bem como a notificação dos elementos por ela abrangidos de modo a permitir que a Recorrente afira da sua relevância probatória e da consequente necessidade de manutenção nos autos tendo a sentença recorrida violado o disposto nos artigos 25.º, n.º 1, 31.º, n.ºs 1 e 2, e 33.º, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, bem como as garantias de defesa da Recorrente, constitucionalmente tuteladas nos artigos 32.º, n.ºs 1, 5 e 10, da Constituição?
2. A interpretação normativa dos artigos 25.º, n.º 1, 31.º, n.ºs 1 e 2, e 33.º, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, no sentido de que o reconhecimento judicial da invalidade processual resultante da omissão de notificação da decisão de desentranhamento e da recusa de acesso à prova produzida nos autos (e objeto dessa mesma decisão) depende da prévia concretização da relevância e dos efeitos da decisão inválida nos direitos da Recorrente, particularmente no exercício do seu direito de defesa, é ilegal e também inconstitucional por violação dos artigos 32.º, n.ºs 1, 5 e 10, da CRP e 6.º da CEDH, a par da violação do direito a um processo justo e equitativo, o princípio da igualdade de armas dos sujeitos processuais (artigo 20.º, n.º 4 da CRP) e ainda os princípios da boa-fé e da transparência a que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua atuação (artigo 266.º, n.º 2, da CRP)?
II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Vêm fixados os seguintes factos processuais:
a. Corre termos na AdC um processo de contraordenação sob a referência interna  PRC/2016/04, por alegadas práticas restritivas da concorrência (por violação do artigo 9.º da Lei da Concorrência e artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – “TFUE”) em que é Visada a Super Bock.
b. No âmbito do referido processo de contraordenação, foi a Pingo Doce alvo de uma diligência de busca, exame, recolha e apreensão realizada pela AdC entre os dias 07.02.2017 e 27.02.2017 em cumprimento dos mandados emitidos pela Exma. Senhora Procuradora do Ministério Público da Comarca de Lisboa (DIAP – Juízo de Turno), datados de 2 e 10 de fevereiro de 2017 (de alargamento do objeto do mandado).
c. Com base em prova recolhida nas diligências descritas no parágrafo precedente, em 22.08.2017, o Conselho de Administração da Autoridade decidiu proceder à abertura de inquérito do processo de contraordenação com a referência interna PRC/2017/11, no âmbito do qual a Recorrente é Visada.
d. Neste sentido, foi ordenada a extração de certidão do acervo probatório constante do PRC/2016/4 para efeitos de instrução do processo de contraordenação PRC/2017/11 para investigar a existência de eventuais práticas proibidas pelo artigo 9.º da Lei da Concorrência e artigo 101.º do TFUE.
e. Mais se submeteu a investigação a realizar no inquérito contraordenacional PRC/2017/11 ao regime do segredo de justiça, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 32.º da Lei da Concorrência, até 02.11.2021, momento em que o segredo de justiça foi levantado, na sequência da adoção da nota de ilicitude, encontrando-se o mencionado processo contraordenacional na fase de instrução, prevista nos artigos 25.º a 29.º da Lei da Concorrência.
f. Através do Ofício com a referência n.º S-AdC/2021/614, a AdC comunicou à Unilever a decisão de desentranhamento e envio de mensagens de correio eletrónico, cuja cópia consta a fls. 43 e verso dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor.
g. A Recorrente teve conhecimento de tal Ofício na sequência da notificação da Nota de Ilicitude.
h. Tal decisão de desentranhamento foi proferida sem que a ora Recorrente tivesse sido previamente notificada para se pronunciar sobre o pretendido desentranhamento e ulterior destruição da prova.
i. Em 08.11.2021, a Recorrente dirigiu um requerimento à AdC, cuja cópia consta a fls. 59 e 60, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, no qual consta, entre o mais, o seguinte: «Nos §§ 29 a 31 da Nota de Ilicitude, pode ler-se o seguinte: “29 – No dia 02.03.2021, no seguimento do procedimento de triagem e análise da prova constante dos autos, a Autoridade considerou que 741 (setecentos e quarenta e um) ficheiros eletrónicos apreendidos nas instalações da Unilever durante as diligências de busca não detinham valor probatório relevante, designadamente por não se revelarem essenciais para a investigação no contexto da globalidade dos elementos de prova que já se encontravam no processo (cf. Auto de Desentranhamento, fls. 1527 a 1535 do processo). 30 – Nessa medida, a Autoridade determinou o respetivo desentranhamento e consequente devolução à Unilever, através da disponibilização para descarga no endereço eletrónico fornecido pela AdC, tendo os referidos ficheiros eletrónicos sido, por essa via, entregues aos mandatários da Unilever, no dia 02.03.2021 (cf. fls. 1525 a 1526 do processo). Uma vez findo o prazo para descarga, deixou de ser possível o acesso aos referidos ficheiros, sendo estes, assim, eliminados definitivamente, com certificação digital. 31 - Na sequência do referido procedimento de desentranhamento, ficaram a constar do processo 1410 (mil quatrocentos e dez) ficheiros eletrónicos apreendidos nas instalações da Unilever durante as diligências de busca.” Foi com total surpresa que a Requerente tomou conhecimento, por esta via, de uma decisão de desentranhamento, seguida da decisão de destruição, de prova apreendida, as quais nunca lhe foram notificadas, tendo sido tomadas, consequentemente, sem que sobre as mesmas a Requerente se pudesse pronunciar. Nessa medida, requer-se a imediata notificação da Requerente das decisões em causa, Sem prejuízo, de, desde já, se arguir a sua ilegalidade por violação do seu direito de audiência e defesa (artigo 32.º, n.ºs 1, 5 e 10, da Constituição), do direito a um processo justo e equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) e dos princípios da boa-fé e da transparência a que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua actuação (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição). E a sua consequente nulidade – por força do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal («CPP»), aplicável por remissão do artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações (RGCO»), ex vi artigo 83.º do Regime Jurídico da Concorrência («RJC»)– ou, assim não se entendendo, irregularidade – por força do disposto nos artigos 118.º, n.º 2, e 123.º do CPP aplicável por remissão do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, ex vi artigo 83.º do RJC. Sendo inconstitucional a interpretação de que é admissível o desentranhamento de elementos probatórios dos autos sem que à Recorrente seja dada a possibilidade de conhecer o seu conteúdo e ainda que os mesmos possam ser relevantes para o cabal exercício do seu direito de defesa, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.os 1, 5 e 10, da Constituição e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a par da violação do direito a um processo justo e equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) e ainda os princípios da boa-fé e da transparência a que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua actuação (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição CRP). Por outro lado, Desconhece a Requerente se existem outras decisões de desentranhamento de meios de prova nos presentes autos ou que possam produzir efeitos relevantes nos mesmos, pelo que, em caso afirmativo, se requer: A sua notificação imediata; A consulta dos elementos desentranhados”.
j. Por decisão de 10.11.2021, com a referência S-AdC/2021/3361, cuja cópia consta a fls. 63 a 66 dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, a AdC indeferiu o requerido, tendo considerado o seguinte: os elementos desentranhados a que a Recorrente Pingo Doce se refere reportam-se a documentação apreendida nas instalações de outra empresa visada, in casu a Unilever; também a Pingo Doce viu desentranhados do processo, no âmbito do PRC/2016/4, provas que a AdC veio a constatar que irrelevavam para o mesmo, tendo sido devida e oportunamente notificada, mas não tendo suscitado da sua parte qualquer objeção, relativamente a si ou às demais visadas no processo, tendo-se conformado com os desentranhamentos; a AdC é legalmente incumbida de garantir o respeito pelas regras de concorrência em Portugal, estando legalmente vinculada a considerar todos os elementos de facto e de direito que se lhe apresentem, incluindo naturalmente prova incriminatória e prova exculpatória. A Autoridade tem competência e total liberdade para, durante a fase de inquérito, proceder ao desentranhamento de prova apreendida irrelevante para a investigação, como resulta de entendimento jurisprudencial.
k. É esta decisão da AdC de 10.112021 que constitui o objeto do presente recurso.
Fundamentação de Direito
1. Perante a invalidade processual decorrente da ausência de contraditório prévio sobre a decisão de desentranhamento, cabe ao Tribunal determinar a sua notificação, bem como a notificação dos elementos por ela abrangidos de modo a permitir que a Recorrente afira da sua relevância probatória e da consequente necessidade de manutenção nos autos tendo a sentença recorrida violado o disposto nos artigos 25.º, n.º 1, 31.º, n.ºs 1 e 2, e 33.º, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, bem como as garantias de defesa da Recorrente, constitucionalmente tuteladas nos artigos 32.º, n.ºs 1, 5 e 10, da Constituição?
Esta questão, tal como foi redigida pela própria Recorrente e aqui reproduzida, envolve uma dupla vertente. Por um lado, compreende a sub-questão de saber se a ausência de contraditório de visadas não envolvidas na apreensão documental, no que tange à decisão de desentranhamento de documentos tidos por irrelevantes para investigação de práticas anti-concorrenciais, proferida pela entidade que dirija o inquérito contra-ordenacional, gera vício processual e qual. Por outro, respondendo-se afirmativamente à primeira pergunta, nasce a segunda vertente  problemática que se quis central e que é a relativa à determinação do que deverá ser ordenado pelo Tribunal em tal circunstância.
 Segundo a Recorrente, teria sido violado o disposto no n.º 1 do  art. 25.º do  Novo Regime Jurídico da Concorrência (doravante também (NRJC) aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 08.05. Tal preceito tem o seguinte conteúdo:
 Artigo 25.º
Instrução do processo
1 - Na notificação da nota de ilicitude a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo anterior, a Autoridade da Concorrência fixa ao visado pelo processo prazo razoável, não inferior a 20 dias úteis, para que se pronuncie por escrito sobre as questões que possam interessar à decisão do processo, bem como sobre as provas produzidas, e para que requeira as diligências complementares de prova que considere convenientes.
(...)
É manifesto, porque expressamente verbalizado pelo legislador através de construção frásica simples e semântica clara, que o elemento despoletador da aplicação do regime lançado em tal preceito é a notificação da nota de ilicitude. E esta é o produto final da fase de inquérito, conforme se extrai da al. a) do n.º 3 do art. 24.º do mesmo encadeado normativo.
O  art. 25.º invocado no recurso é, no contexto do encadeado de actos processuais regulados no NRJC, justamente a norma disciplinadora da nova fase processual aberta pela dedução daquela nota – a fase da instrução.
Ora, no caso que nos ocupa, situamo-nos a montante do regulado nesse preceito, ou seja, na fase de inquérito, o que conduz a conclusão no sentido da inaplicabilidade da referida norma à situação que aqui cumpre avaliar.
E esta conclusão deixa também uma impressão liminar, a saber, a de que a Recorrente não logrou localizar regra própria da fase de inquérito que fornecesse sustentação à sua pretensão pelo que teve que convocar regras relativas a fase diversa e encadeado distinto de actos processuais para suportar construção alheia ao regulado. Tal empresta fragilidade liminar à sua tese.
Prosseguindo na análise, temos que a Recorrente considera também que foi desrespeitado o regime emergente dos n.ºs 1 e 2 do  art. 31.º do NRJC que tem o conteúdo que ora se cita:
Artigo 31.º
Prova
1 - Constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a demonstração da existência ou inexistência da infração, a punibilidade ou não punibilidade do visado pelo processo, a determinação da sanção aplicável e a medida da coima.
2 - São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
(…)
A primeira nota que se justifica lançar na ponderação do relevo desta parte do afirmado no recurso é que se trata de preceito que, como o anterior, não se refere à fase processual em que se integrou o acto criticado, já que se reporta também à instrução e não ao inquérito.
Este elemento convoca, de imediato, as considerações lançadas quanto ao preceito anterior: não é invocável como violado um preceito inaplicável à situação apreciada.
Acresce que os artigos transcritos se referem à prova relevante, id est,  referente a factos jurídicos que apontem para a existência ou inexistência da infracção. Referencia-se, nesse  contexto, a prova admitida ou a que o deveria ser, o que corresponde a quadro situacional bem distinto do que nos ocupa. E a fase referenciada é, sempre, a da instrução e não a do inquérito.
Não há, pois, a pretendida violação de norma nem sequer aplicável ao quadro objecto de avaliação.
Finalmente, também o art. 33.º do diploma apontado teria sido posto em crise. É o seguinte o seu conteúdo:
 Artigo 33.º
Acesso ao processo
1 - O visado pelo processo pode, mediante requerimento, consultar o processo e dele obter, a expensas suas, extratos, cópias ou certidões, salvo o disposto no número seguinte.
2 - A Autoridade da Concorrência pode, até à notificação da nota de ilicitude, vedar ao visado pelo processo o acesso ao processo, caso este tenha sido sujeito a segredo de justiça nos termos do n.º 2 do artigo anterior, e quando considerar que tal acesso pode prejudicar a investigação.
3 - Qualquer pessoa, singular ou coletiva, que demonstre interesse legítimo na consulta do processo pode requerê-la, bem como que lhe seja fornecida, a expensas suas, cópia, extrato ou certidão do mesmo, salvo o disposto no artigo anterior.
4 - O acesso a documentos contendo informação classificada como confidencial, independentemente de ser utilizada ou não como meio de prova, é permitido apenas ao advogado ou ao assessor económico externo do visado e estritamente para efeitos do exercício de defesa nos termos do n.º 1 do artigo 25.º e da impugnação judicial da decisão da Autoridade da Concorrência, não sendo permitida a sua reprodução, total ou parcial por qualquer meio, nem a sua utilização para qualquer outro fim, sem prejuízo do disposto no n.º 7 do artigo 12.º, e nos artigos 14.º e 16.º da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho.
O n.º 2 do artigo citado inculca a noção de que este tem vocação para regular genericamente o direito de acesso aos autos ao referir-se à fase anterior à notificação da nota de ilicitude. Não estamos, pois, perante norma privativa da fase de instrução. Justificam-se, assim, considerações complementares sobre a matéria.
O n.º 1 reporta-se à consulta do processo e obtenção de elementos processuais, a expensas do peticionante, mediante expresso requerimento nesse sentido. Nenhuma relação tem, consequentemente, com notificações obrigatórias de conteúdos processuais. Está, assim, fora de cogitação no caso que nos ocupa.
O n.º 2 surge na sequência e em continuum lógico face ao n.º 1. E o que daí se extrai é que as ditas consultas ou obtenção de autos mediante requerimento não se materializam no quadro do exercício de um direito absoluto mas antes condicionado pelo segredo de justiça e pela avaliação feita pela Autoridade da Concorrência dos interesses da investigação, sendo excluídas se a mencionada Autoridade considerar o acesso potencialmente prejudicial para a investigação.
Daqui emergem duas noções seguras e claras: a. o preceito não se refere à questão da obrigatoriedade de notificação do conteúdo de documentos a desentranhar por irrelevantes; b. ainda  que estivéssemos no domínio específico da definição da obrigatoriedade da notificação, sempre teríamos que extrair conclusão no sentido de que a Autoridade da Concorrência, na fase de inquérito, tem o poder de vedar o acesso aos autos em função do carácter prejudicial para a investigação desse acesso o que, a maiori ad minus, sempre envolveria a noção de poderia a mesma também afastar o irrelevante numa fase em que assume o protagonismo das decisões sobre o que interessa para a investigação e sobre o que não releva para a mesma.
Colhe-se da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que o respeito do princípio do contraditório e das demais garantias processuais aclamadas  no artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não é aferível em abstracto mas em termos estritamente focados nas ocorrências específicas de um determinado processo que corra perante um Tribunal, atendendo à concreta possibilidade de exercício de direitos relativos à construção da simetria processual, maxime dos direitos de defesa – cf. os Acórdãos do TEDH Kerojärvi e Finlândia de 19 de Julho de 1995 e Mantovanelli contra França de 18 de Março de 1997. Daqui resulta o afastamento liminar da necessidade de transmissão de todos os conteúdos de todos os documentos.
Por assim ser se afirmou, no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia Mantovanelli c. França, Processo 322/81, de 18 de Março de 1997, que ainda que a necessidade de ter em conta os direitos de defesa seja um princípio fundamental do Direito da União (então comunitário) que a Comissão Europeia deve observar nos processos administrativos que podem levar à imposição de sanções por violação de regras de concorrência previstas no Tratado, a sua observância requer, inter alia, que a empresa em causa tenha a possibilidade de expressar eficazmente a sua opinião sobre os documentos utilizados pela comissão para apoiar a sua alegação de violação e não mais.
Salienta-se, aqui, pelo seu relevo quanto ao caso que nos ocupa, a menção a documentos utilizados e não a todos os documentos e menos a documentos não utilizados.
O Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão relativo aos Processos apensos C-204/00 P, C-205/00 P, C-211/00 P, C-213/00 P, C-217/00 P e C-219/00 P, Aalborg Portland A/S e o. e no acórdão de 25 de Outubro de 1983, AEG/Comissão, Processo n.º 107/82, e o o Tribunal de Primeira Instância da União Europeia, no acórdão Solvay/Comissão, processo T-30/91, carreiam a noção de que os direitos de defesa se reportam sempre e apenas a documentos utilizados e relevantes.
No acórdão AEG que se referiu no parágrafo anterior, o TJUE foi muito claro a enunciar que a exclusão de determinados documentos utilizados pela Comissão Europeia não tem significado na violação dos direitos de defesa salvo na medida em que as objecções da Comissão só pudessem ser provadas por referência a esses documentos.
No mesmo sentido, o Acórdão Aalborg Portland ao qual se fez referência supra enunciou expressamente que «a não comunicação de um documento apenas constitui violação dos direitos de defesa se a empresa em causa demonstrar, por um lado, que a Comissão se baseou nesse documento para fundamentar a sua acusação relativa à existência de uma infracção, e, por outro, que essa acusação só poderia ser provada por referência ao dito documento».
Encontramos, assim, coincidência entre a conclusão a que se chegaria por se constatar a inadequação da alegação de violação do regime do NRJC feita no recurso e por se verificar inexistirem outras normas relativas ao inquérito contra-ordenacional que impusessem a notificação de documentos tidos por irrelevantes pelo órgão inquiridor e o percurso jurisprudencial do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal de Justiça da União Europeia  quanto a tal matéria.
A conclusão pela adequação ao regime do  art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de uma interpretação não assente na abstracção dos princípios e antes estruturada por referência ao efeitos concretos de uma determinada actuação num certo processo ao nível do exercício das faculdades associadas à proibição da indefesa afastam de cogitação a possibilidade de violação de preceitos da Lei Fundamental Lusa, particularmente dos invocados n.ºs 1, 5 e 10 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa. A defesa aí referida e por relação com a qual se desenha o correspondente direito é a relativa à agressão processual e não ao inócuo, é a apontada ao concreto e não ao abstracto.
Não tem qualquer sentido, pois, suscitar-se, aqui, questão de constitucionalidade aliás, conforme jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, a colocar, no âmbito das contra-ordenações, a um nível de muito menor exigência por comparação com o quadro garantístico processual penal – vd., com interesse neste domínio, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 336/2008, 76/2016, 730/95, 612/2014, 41/2004, 466/2012, 201/2014 e 297/2016.
A opção assumida no sentido da exclusão de documentos apreendidos a outra visada com fundamento em irrelevância foi concretizada no quadro do exercício de poderes claramente atribuídos no n.º 2 do  art. 17.º do NRJC.
Não está legalmente prevista a obrigatoriedade da notificação de tal decisão, na fase de inquérito, a outras visadas ou a terceiros, nem ocorre ultrapassagem de poderes de intervenção, face à referida norma.
Não se violam direitos de defesa, pelas razões acima enunciadas – sobretudo por se tratar de documentos não utilizados com função incriminatória (tudo se alterando, claro, caso aos mesmos fosse dado relevo ao nível da atribuição de responsabilidade de mera ordenação social, já que aí surgiria a necessidade de defesa e o direito respectivo de emanação constitucional e também proveniente do Direito da União Europeia e do Direito internacional pactício).
Não se divisa a prática de acto nulo ou, até, de mera irregularidade, à luz do disposto nos  arts. 120.º e 123.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do disposto no  art. 83.º do NRJC e do n.º 1 do art. 41.º do RGCO.
Não tem a Recorrente legitimidade para arguir vício emergente da não notificação da visada a que se reportam documentos sendo que, aliás, não se extrai dos autos que a mesma não tenha ocorrido.
Não foi demonstrado, pela Recorrente, o caráter potencialmente relevante  dos elementos excluídos dos autos para os seus interesses processuais, não se tendo patenteado que da nota de ilicitude constassem como elementos de demonstração de componentes objectivos e subjectivos do tipo de ilícito os documentos retirados dos autos.
O exercício dos poderes atribuídos à Autoridade da Concorrência (AdC) nos termos do disposto no referido art. 17.º, desprovido da obrigatoriedade de notificação a outros visados ou terceiros das decisões de desentranhamento de documento tidos por irrelevantes para a decisão mostra-se adequado às finalidades perseguidas pelo legislador de tutela pública eficaz do Direito da concorrência («public enforcement», no jargão europeu), revela-se necessário à consecução dos objectivos normativos (já que sem a concessão de poderes autónomos de decisão não se conseguiria a pretendida efectividade) e não ultrapassa o equilíbrio devido entre essas finalidades e objectivos e os demais direitos envolvidos. É, pois, proporcional.
Tal exercício foca a actividade punitiva, empresta-lhe eficácia, permite obviar à sobrecarga processual, proscreve a prática de actos inúteis (porque relativos a documentos irrelevantes), afasta, designadamente, a classificação de confidencialidades e o acesso inútil aos autos e não viola direitos de defesa já que só há defesa contra a agressão ou possibilidade desta.
Tem sentido e adequação, a título ilustrativo, a menção feita pela AdC à Comunicação da Comissão relativa às regras de acesso ao processo nos casos de aplicação dos artigos 81.º e 82.º do Tratado CE, artigos 53.º, 54.º e 57.º do Acordo EEE e do Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho (2005/C 325/07) ao recordar que, aí, ou seja, no quadro da intervenção da Comissão Europeia, os documentos não utilizados não são mantidos no processo, nele apenas permanecendo os documentos incriminatórios.
Resulta do regime emergente do NRJC, em termos que a Recorrente não logrou contrariar mediante invocação de normas aplicáveis de sentido contrário, que  as visadas não têm acesso aos autos do processo na fase de inquérito e desconhecem as provas recolhidas contra si, o que releva substancialmente no âmbito apreciado.
É, pois, à luz da nota de ilicitude que a visada conhece o que releva em termos instrutórios, acede ao que se pretende demonstrar e assume noção plena dos documentos relevantes, não lhe interessando, nesse contexto, os não utilizados para estear a imputação.
Perante essa nota de ilicitude, assiste à visada o direito de juntar documentos (estes então já adequados ao que efectivamente se discuta) – cf. o n.º 1 do  art. 25.º e o n.º 4 do  art. 26.º do indicado regime.
Aqui chegados, impõe-se-nos concluir, quanto à primeira das duas  sub-questões, que não ocorreu vício processual que fira a decisão de desentranhamento.
Esta circunstância acarreta, necessariamente, conclusão, quanto à segunda vertente do perguntado, no sentido de que nada há a ordenar pelo Tribunal para superar invalidade adjectiva afinal inexistente.
Flui do exposto dever-se responder negativamente à questão suscitada, o que ora se declara.
2. A interpretação normativa dos artigos 25.º, n.º 1, 31.º, n.ºs 1 e 2, e 33.º, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, no sentido de que o reconhecimento judicial da invalidade processual resultante da omissão de notificação da decisão de desentranhamento e da recusa de acesso à prova produzida nos autos (e objeto dessa mesma decisão) depende da prévia concretização da relevância e dos efeitos da decisão inválida nos direitos da Recorrente, particularmente no exercício do seu direito de defesa, é ilegal e também inconstitucional por violação dos artigos 32.º, n.ºs 1, 5 e 10, da CRP e 6.º da CEDH, a par da violação do direito a um processo justo e equitativo, o princípio da igualdade de armas dos sujeitos processuais (artigo 20.º, n.º 4 da CRP) e ainda os princípios da boa-fé e da transparência a que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua atuação (artigo 266.º, n.º 2, da CRP)?
O respondido quanto à questão anterior desloca o eixo da problemática relevante nos autos e torna ociosa a resposta à presente questão.
É manifesto que o que temos nos autos é uma válida decisão proferida pela AdC, pelas razões técnicas supra-indicadas, sendo destituída de relevo a questão da dependência «da prévia concretização da relevância e dos efeitos da decisão inválida nos direitos da Recorrente, particularmente no exercício do seu direito de defesa» para a conclusão pela inadequação do decidido.

III. DECISÃO
Pelo exposto, negamos provimento ao recurso e, ainda que com distinta fundamentação, confirmamos a sentença impugnada.
Custas pela Sociedade Recorrente.
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Lisboa, 13.07.2022
Carlos M. G. de Melo Marinho
Paula Dória de Cardoso Pott
Ana Isabel de Matos Mascarenhas Pessoa