Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2942/14.7T8SNT-A.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
INDEFERIMENTO LIMINAR
VENDA JUDICIAL
ARRENDAMENTO POSTERIOR AO REGISTO DA HIPOTECA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Tendo os embargos de terceiro sido deduzidos após a venda judicial (execução), ex vi arts. 350 e 344/2 CPC, há lugar ao seu indeferimento liminar.

2. O direito do locatário caduca em caso de venda judicial de um imóvel hipotecado cujo arredamento seja posterior ao registo da hipoteca, ex vi art. 824/2 CC.

SUMÁRIO: (da responsabilidade da relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório: 
  
       
DD deduziu, por apenso à execução sumária intentada pelo Banco X contra CD e MD, embargos de terceiro, em 28/3/17, concluindo pelo reconhecimento do seu direito e a posição que detém sobre o imóvel cuja entrega se peticiona.

Alegou, em síntese, que, por acaso, teve conhecimento, em 20/3/17, que o imóvel onde habita com o seu agregado familiar e que constitui a sua casa de morada de família foi penhorado, em processo executivo intentado pelo Banco X, processo e penhora ocorrida à sua revelia.

Por contrato de arrendamento, de 1/11/2013, tem a posse do locado, tendo efectuado obras no valor de € 5.000,00.
Invocou o direito de retenção para garantia do crédito.

O imóvel foi penhorado e adjudicado ao Banco exequente, em venda judicial, mediante propostas em carta fechada, em 28/9/2016.

Sobre o imóvel incidiam hipotecas que foram objecto de registo – Ap. 49 e 50 de 2008/02/08 e Ap. 2964 de 28/12/2008.
           
Os embargos foram indeferidos liminarmente, com fundamento no facto de terem sido intentados após a venda judicial e na caducidade do contrato de arrendamento (art. 824/2 CC) – fls. 23 a 26.

Inconformado, apelou o embargante formulando as conclusões que se transcrevem:
A A sentença recorrida não só não ter feita adequada e justa ponderação dos factos de acordo com os elementos fornecidos pelo processo como não fez a boa aplicação do direito competente, que imporiam decisão diferente.
B No regime jurídico em vigor, decorrente da reforma processual de 1995/1966 os embargos de terceiro não se destinam apenas à defesa da posse lesada por uma decisão judicial mas também à defesa de qualquer deito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, ou seja, foi ampliado o seu âmbito, onde se inclui, entre outras, o próprio despejo.
C Os direitos" substanciais" também podem ser invocados pelos lesados, ou seja, a legitimidade activa foi e está desvinculada da posse, sendo seu âmbito qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência;
D O indeferimento imediato dos embargos, anteriores à produção da prova, apenas está reservado aos casos de caducidade do
direito a embargar, da ilegitimidade do embargante ou da manifesta improcedência do pedido
E– Assim, deve revogar-se a decisão recorrida e os embargos recebidos.

Não foram deduzidas contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Vejamos, então:

Atentas as conclusões do apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 639 e 640 CPC – a questão que cabe decidir é a de saber se os embargos de terceiro devem ou não ser recebidos.

Os embargos de terceiro traduziam-se num processo especial limitado à defesa da posse ofendida por diligência judicialmente ordenada, designadamente, penhora, arrolamento, arresto, posse judicial avulsa e o despejo – cfr. art. 1037 CPC.

O terceiro ofendido (por não ter tido intervenção no processo) pudesse, como lesado, fazer-se restituir à posse. 

Após a reforma (DL 329-A/95, de 12/12) o processo especial passou a ser caracterizado como sendo um incidente da instância com vista a neutralizar um acto judicialmente ordenado com a virtualidade de ofender o direito patrimonial do impetrante, tendo sido revogadas as acções possessórias do conjunto dos processos especiais (arts. 1033 a 1043 CPC).

“Em termos estruturais o que caracteriza os embargos de terceiro é a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes da causa e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado por terceiro” – Ac. STJ de 6/11/2012, proc. 786/07.ITJVNF-B.P1.S1, in www.dgsi.pt.

Os embargos de terceiro são  uma sub-espécie da oposição espontânea, sob a denominação de oposição mediante embargos de terceiro (arts. 351 e sgs. CPC). E assim, como é do conceito de oposição, encontramo-nos perante um incidente que permite a um terceiro intervir na causa para fazer valer o confronto de ambas aas partes, um direito próprio, total ou parcialmente incompatível com por aquelas deduzidas – cfr. Amâncio Ferreira, in Curso do Processo de Execução, 5ª ed. Pág. 48.

No fundo os embargos de terceiro representam uma forma particular de reclamação tendente à revisão, pelo mesmo órgão juridiscional, da questão sobre que incidiu a decisão que derivou a diligência posta em causa. Não visam, porém, a destruição da prova em que assentou a decisão que ordenou a diligência dita ofensiva.

A estrutura dos embargos é essencialmente caracterizada, não tanto pela particularidade de se consubstanciarem numa acção declarativa que corre pos apenso a uma acção executiva, com a especificidade de inserirem uma sub-fase introdutória de apreciação sumária da sua viabilidade, mas, sobretudo por a pretensão do embargante se inserir num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de algum acto judicial de afectação ilegal de um direito patrimonial do embargante – Salvador da Costa, in Os incidentes da Instância, 4ª ed., 195/196 e Ac. STJ de 15/1/2013, relator Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt.

Assim, se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro – art. 351 CPC.

Este art. foi alterado com a reforma do CPC (Lei 41/2013 de 26/6), sob o art. 342/1, com a seguinte redacção: “Se a penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte  na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

Daqui se extrai, que os embargos de terceiro se estribam em dois fundamentos: ofensa do exercício da posse (ofensa da posse em nome próprio correspondente ao direito de propriedade ou a um direito real limitado de gozo – art. 1251 CC) e/ou ofensa da titularidade de um direito incompatível com a execução em causa, nomeadamente o direito de propriedade.

Os embargos são processados por apenso e são deduzidos “nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois dos respectivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados” – art. 344/1 e 2 CPC.

Este prazo de 30 dias é um prazo de caducidade, recaindo sobre o embargado o ónus de alegação e prova da extemporaneidade, no caso dos embargos não terem sido liminarmente indeferidos – cfr. art. 343/2 CPC.

In casu, constata-se que o imóvel do qual o embargante é arrendatário foi vendido (propostas em carta fechada), em sede de execução, em 28/9/16 e que os embargos foram intentados, em 28/3/17.

Assim, tendo os embargos sido deduzidos após a venda judicial, ex vi arts. 350 e 344/2 CPC, há lugar ao seu indeferimento liminar.

Alega o embargante ser titular de um arrendamento sobre o imóvel vendido, arrendamento esse constituído, em 1/11/2013.

A questão que se coloca é a de saber qual a natureza do direito do arrendatário, se é um direito real ou, antes, um direito creditório.
Defendemos, como a maioria dos autores, que o direito ao arrendamento é um direito de natureza pessoal ou creditícia, com contornos que se assemelham aos direitos reais, nomeadamente o de usar contra o locador dos meios facultados ao possuidor – cfr.         art. 1037/2 CC.

“Ora, face a este estatuto dualista, o caminho metodologicamente correcto para esclarecer dúvidas e resolver problemas de regulamentação, o intérprete deverá socorrer-se, nuns casos, aos princípios que disciplinam os direitos reais e noutros, aos princípios que regem as obrigações, consoante os interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das situações ditadas pelo legislador para os problemas de que directa e expressamente se ocupa” –    cfr. Prof. M. Henrique Mesquita, in “Obrigações Reais e Ónus Reais - 183.

O arrendamento constitui um verdadeiro ónus sobre o imóvel e sobre o seu valor, dada a sua natureza vinculística.

Por seu turno, constituindo a hipoteca uma garantia de um crédito em que o valor do imóvel é fundamental na concessão do empréstimo (subjacente à constituição da hipoteca) e na determinação do respectivo quantitativo, constituindo o arrendamento um dos elementos relevantes para a sua avaliação.
Se o imóvel está arrendado o credor hipotecário pode conhecer dessa circunstância, sendo-lhe a mesma oponível por ter sido constituída em momento anterior.

Se o arrendamento for posterior ao da constituição e registo da hipoteca, o credor hipotecário vê-se confrontado com uma situação que razoavelmente não podia contar e que lhe é desfavorável.

“Assim, por via da interpretação teleológica e com base em argumentos de analogia ou semelhança das situações práticas, designadamente, de natureza sócio-económicas que não, necessariamente, no sentido técnico-jurídico de integração de lacunas, deverá entender-se que a norma constante no art. 824/2 CC de que, na venda em execução, os bens são transmitidos livres dos direitos reais de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real, quer de natureza pessoal, de que a coisa vendida seja objecto e que produzam efeitos em relação a terceiros”.

Assim, dada a sua eficácia em relação a terceiros, o arrendamento deve ser, para este efeito, equiparado a um direito real.

De outro modo, colocar-se-ia em causa o desiderato da lei de que a venda se faça pelo melhor preço possível.

Apesar da solução penalizar o arrendatário, entendemos que os interesses do credor hipotecário prevalecem sobre aquele, uma vez que, in casu, o registo da hipoteca é anterior à constituição do arrendamento podendo o arrendatário ter dela conhecimento.

Destarte, ex vi art. 824/2 CC, o direito ao arrendamento caducou com a venda judicial do imóvel sobre o qual impendia um arrendamento, soçobrando o fundamento em que se alicerçaram os embargos - cfr. Ac. STJ de 9/7/2015, relator João Camilo, entre outros, in www.dgsi.pt.

Concluindo:
1– Tendo os embargos de terceiro sido deduzidos após a venda judicial (execução), ex vi arts. 350 e 344/2 CPC, há lugar ao seu indeferimento liminar.
2– O direito do locatário caduca em caso de venda judicial de um imóvel hipotecado cujo arredamento seja posterior ao registo da hipoteca, ex vi art. 824/2 CC.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a decisão.
Custas pelo embargante.


Lisboa, 08-03-2018


(Carla Mendes)
(Octávia Viegas)
(Rui da Ponte Gomes)