Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1108/08.0TBMTJ.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
DEFEITO DA COISA
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
ÓNUS DA PROVA
PRIVAÇÃO DE USO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.Compete ao vendedor provar que a anomalia da viatura, vendida em segunda mão, manifestada no prazo da respetiva garantia, não existia à data da entrega do veículo ao consumidor.
II.A mera e forçada privação do uso do veículo constitui para o respetivo proprietário um dano patrimonial, que é economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 24.4.2008 Paulo e mulher Sónia intentaram na comarca de Montijo ação declarativa de condenação com processo sumário contra Paulo, Unipessoal, Lda.

Os AA. alegaram que em 09.8.2007 o A. marido adquiriu num stand da R., sito no Montijo, um veículo automóvel usado, alegadamente apenas com 760 km. Porém, logo no dia da aquisição, na viagem para Tavira, onde o A. reside, o veículo teve de ser imobilizado e, depois, rebocado, por excessivo aquecimento do motor. O A. teve de gastar € 5 787,68 na correspondente reparação do automóvel, que o R. se recusa a suportar. O A. esteve mais de três meses sem poder utilizar a viatura. Na data da aquisição o A. estava convencido de que a viatura se encontrava em perfeitas condições de funcionamento, o que lhe havia sido garantido pela R..

Os AA. terminaram pedindo que a R. fosse condenada ao pagamento da quantia de € 5 787,68 e ainda € 3 500,00 a título indemnizatório, tudo acrescido de juros de mora desde a data da propositura da ação até integral pagamento, à taxa legal em vigor.
A R. contestou, arguindo a ilegitimidade processual da A. mulher e negando responsabilidade no alegado, imputando ao A. má utilização do veículo e impugnando, por desconhecimento, os danos invocados. Concluiu pela sua absolvição da instância ou, em qualquer caso, pela improcedência da ação, por não provada.

Os AA. responderam à exceção arguida, concluindo pela sua improcedência.

Foi proferido saneador em que se julgou improcedente a aludida exceção de ilegitimidade da A. mulher e se procedeu à seleção da matéria de facto assente e controvertida.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento e em 22.10.2015 foi proferida sentença, na qual se julgou a ação totalmente procedente, por provada, tendo em consequência a R. sido condenada a pagar aos AA. a quantia de € 9 287,68, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% contados desde a citação até integral pagamento.

A R. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
I.A douta sentença recorrida enferma de erros na apreciação da prova produzida, incluindo a prova gravada.

II.Foram incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto:
a)Ponto 7 dos factos provados, cujo teor é o seguinte: “Na viagem que fez com o veículo, o autor circulou dentro dos limites legais de velocidade e com uma condução normal.”
b)Ponto 27 dos factos provados, cujo teor é o seguinte: “O autor não tem outra viatura.”
c)Ponto 1 dos factos dados por não provados, cujo teor é o seguinte: “Na altura em que a ré entregou o veículo ao autor, o mesmo foi inspeccionado e verificado, não tendo sido detectada qualquer avaria, designadamente, o apoio do motor partido.”
d)Ponto 30.º da Base Instrutória, cujo teor é o seguinte: “Foi o autor que, na viagem para Tavira, avariou e danificou o veículo”.
e)Ponto 3 dos factos dados por não provados, cujo teor é o seguinte: “No decurso da viagem, o autor comunicou à ré que a viatura estava em aquecimento e que tinha decidido parar numa oficina.”
f)Pontos 4 e 5 dos factos dados por não provados, na seguinte parte: “Mais tendo dito que o tubo de água estava danificado, pelo que o amarrou [...] e de seguida decidiu continuar viagem (para Tavira).”

III.Impõe-se a prolação de decisão diversa da ora impugnada sobre os referidos pontos da matéria de facto com base no exame e na análise conjugada dos documentos de fls. 15 a 18 e 137 e das declarações do Autor Paulo (ouvido no dia 17.03.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 127 a 130, das 14:53:40 horas às 15:12:41 horas, segundo o CD que contem a gravação e foi disponibilizado pela Secretaria do Tribunal) e dos depoimentos das testemunhas António (ouvido no dia 17.03.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 127 a 130, das 15:14:35 horas às 15:46:04 horas, segundo o referido CD), Daniel (ouvido no dia 17.03.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 127 a 130, das 15:49:15 horas às 16:27:24 horas, segundo o mesmo CD), Sérgio (ouvido no dia 17.03.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 127 a 130, das 16:27:25 horas às 17:17:00 horas, segundo o mesmo CD), Nuno (ouvido no dia 07.04.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 132 a 134, das 14:31:55 às 14:57:52 horas, segundo o mesmo CD), José Júlio (ouvido no dia 07.04.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 132 a 134, das 15:01:17 às 15:48:03 horas, segundo o mesmo CD), Domingos (ouvido no dia 07.04.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 132 a 134, das 16:07:52 às 16:19:38 horas, segundo o mesmo CD), António (ouvido no dia 07.04.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 132 a 134, das 16:22:11 às 16:29:47 horas, segundo o mesmo CD), José António (ouvido no dia 09.05.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 138 a 141, das 15:07:58 às 15:21:17 e das 15:29:16 às 15:41:30 horas, segundo o mesmo CD), Carlos (ouvido no dia 09.05.2011 e cujo depoimento foi gravado através do sistema H@bilus media studio, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 138 a 141, das 15:42:27 às 15:57:36 horas, segundo o mesmo CD) e Alexandre (ouvido no dia 06.10.2015 e cujo depoimento foi gravado com início pelas 09:49:46 horas e fim pelas 10:23:39 horas, conforme acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 336 e 337 e o mesmo referido CD), tendo em conta as passagens dessas declarações e depoimentos acima especificamente identificadas.

IV.Face à análise crítica desses elementos de prova, é manifesto que a douta sentença recorrida assentou, no que diz respeito à fixação da matéria de facto:
a)Numa indevida desvalorização do depoimento das testemunhas Carlos, que examinou a viatura vendida pela Ré ao Autor, e José e Alexandre que depuseram com conhecimento pessoal e directo sobre os contactos mantidos pelo Autor com a última testemunha depois de ter saído com a referida viatura do Stand da Ré, na viagem que fez no mesmo dia para Tavira;
b)Numa indevida desvalorização do depoimento das testemunhas arroladas pelo Autor na parte em que, de modo espontâneo, depuseram contra a versão dos factos trazida por aquele aos autos;
c)Na violação das regras da experiência comum conjugados com o depoimento das mencionadas testemunhas quando pressupôs que a viagem do Montijo para Tavira não permitiria acelerações que originassem a fractura dos apoios do motor do Subaru em virtude de no dia em causa haver bastante trânsito para o Algarve.
Ora, a existência de muito trânsito é mais um elemento que depõe a favor da necessidade de imprimir acelerações bruscas por parte do Autor e não o contrário.
d)Na desvalorização do facto de o Autor ter percorrido com a viatura até à imobilização desta mais cerca de 47 km do que o necessário para efectuar o percurso que diz ter feito entre o Montijo e Tavira;
e)Numa indevida sobrevalorização dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Autor na medida em que os mesmos são contraditórios entre si e com a própria versão dos factos alegada pelo Autor.

V.A decisão que alterar os referidos pontos de facto deve dar por provado que:
a)“Na altura em que a ré entregou o veículo ao autor, o mesmo foi inspeccionado e verificado, não tendo sido detectada qualquer avaria, designadamente, o apoio do motor partido.”
b)“Foi o autor que, na viagem para Tavira, avariou e danificou o veículo”.
c)“No decurso da viagem, o autor comunicou à ré que a viatura estava em aquecimento e que tinha decidido parar.”
d)“Mais tendo dito que o tubo de água estava danificado, pelo que o amarrou [...] e de seguida decidiu continuar viagem (para Tavira), o que provocou o sobreaquecimento e os danos no motor, forçando a imobilização do veículo.”

E por não provado que:
a)“Na viagem que fez com o veículo, o autor circulou dentro dos limites legais de velocidade e com uma condução normal.”;
b)“O autor não tem outra viatura.”

VI.Face à factualidade que deve ser dada por provada, é manifesto que os danos sofridos pelo Autor em consequência da avaria da viatura em causa nos presentes autos não são imputáveis à Ré, mas ao próprio Autor.

VII.Não pode assim a Ré ser responsabilizada pela ocorrência desses danos, pelo que deve ser totalmente absolvida do pedido.

VIII.Sem conceder, por mera e elementar dever de patrocínio, para o caso de assim não se entender, a quantia arbitrada a favor do Autor a título de compensação pelos alegados danos não patrimoniais pelo mesmo sofridos é indevida, atendendo a que o Autor dispunha de outras viaturas para se servir no seu dia a dia, incluindo uma própria da marca Mazda que trazia para Lisboa quando ali trabalhava.

IX.Face ao que antecede, a douta sentença recorrida efectuou uma errada interpretação e aplicação das normas previstas nos artigos 805.º, n.º 1, 806.º, n.º 1 e 913.º, n.º 1, do Código Civil e 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º, n.º 2, do D.L. n.º 67/2003, de 08.04, e 2.º e 12.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, de 31.07.

X.Termos em que deve ser revogada a douta sentença recorrida, proferindo-se douto Acórdão que absolva a Ré do pedido contra ela formulado.

Os AA. contra-alegaram,terminando com as seguintes conclusões:
1.O recurso deve ser rejeitado por extemporâneo.
Se assim não se entender e com referência ao teor do alegado no recurso de apelação interposto pela ré, deve a apelante prestar caução no valor da presente acção, no prazo de dez dias, de modo a manter-se até ao trânsito em julgado da decisão final proferida no último recurso interposto.
2.Não corresponde assim à realidade o alegado no recurso pela ré;
3.Pois que a douta sentença recorrida fez criteriosa interpretação dos factos e não é merecedora de qualquer censura.
4.Todos os documentos, as declarações do autor e os depoimentos das diversas testemunhas intervenientes na audiência de discussão e julgamento foram valorados e atendidos em conta, e ainda,
5.Objecto da análise crítica devida.
6.Inexiste qualquer erro na apreciação da prova produzida, incluindo a prova gravada, e/ou consequente erro na decisão sobre a matéria de facto;
7.Inexiste, de igual modo, qualquer erro na interpretação e aplicação do direito aos factos.
8.A Mm.ª Juiz a quo na douta sentença recorrida não desvalorizou qualquer depoimento prestado, o que resulta manifesto da mesma!
9.Todos os depoimentos prestados, inclusive, os referenciados pela ré no recurso, foram tidos na devida conta na decisão em crise.
10.Pois que toda a matéria com relevância (documental, pericial e testemunhal) para o efeito e objecto de produção de prova foi atendida.
11.Em consequência da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, não resultou assim violada qualquer norma jurídica.
12.Foi correcta a aplicação da lei!
13.E bem assim, correcta a interpretação e aplicação do direito aos factos.
14.A recorrente pretende a absolvição da ré por não se confrontar com a douta sentença condenatória, contudo não tem, para o efeito, qualquer fundamento capaz de abalar ou pôr em causa a douta decisão em crise.
15.É que, os alegados fundamentos do recurso ora trazido aos autos, inexistem, simplesmente!

Os apelados terminaram pedindo que fosse negado provimento ao recurso, confirmando-se, in totum, a decisão recorrida.

A apelação foi recebida (foi tempestiva, pois a apelante foi notificada da decisão em 29.10.2015 e o prazo do recurso, que abrange impugnação de matéria de facto com prova gravada, terminava em 09.12.2015, data em que o recurso foi interposto), com efeito suspensivo, atenta a prestação de caução pela apelante.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.

Este recurso tem por objeto as seguintes questões: impugnação da matéria de facto; consequência do desfecho da impugnação da decisão de facto.

Primeira questão (impugnação da matéria de facto).

O tribunal a quo deu como provada a seguinte.

Matéria de facto.
1–Os autores são casados entre si, no regime de comunhão de adquiridos.
2–A ré dedica-se à comercialização de automóveis.
3–Os autores adquiriram à ré, em 04.08.2007, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Subaru, modelo Impreza Sedan 2.5 WRX, com a matrícula (…), pelo preço de € 43.000,00.
4–À data da aquisição, o veículo apresentava 760 quilómetros.
5–No próprio dia da aquisição e após ter circulado 327 quilómetros, o autor constatou que o veículo perdera a totalidade do líquido do circuito de refrigeração do motor.
6–E que, em consequência, o motor ficou danificado por sobreaquecimento.
7–Na viagem que fez com o veículo, o autor circulou dentro dos limites legais de velocidade e com uma condução normal.
8–Quando o autor detectou a fuga do líquido de refrigeração, colocou uma braçadeira no tubo do radiador que se encontrava solto.
9–O veículo foi depois rebocado para o Entreposto Comercial de Lisboa (importador oficial da Subaru), com vista à respectiva reparação.
10–Quando o veículo entrou no Entreposto, apresentava-se com a referida braçadeira colocada no tubo.

11–Em 20.08.2007 foi elaborado relatório técnico pelo Entreposto Comercial, concluindo-se o seguinte (cfr. fls. 14 a 18 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido):
“O motor fadigou por sobreaquecimento. O sobreaquecimento deveu-se ao desalojamento do tubo inferior do radiador, que permitiu a saída da totalidade do fluido do circuito de refrigeração do motor originando assim a gripagem do motor por sobreaquecimento. (…)
Detectou-se que o apoio de motor esquerdo se encontrava partido (…)
A fractura ocorreu por torsão. Esta situação é gerada em condições de stress em que se verifica fadiga do material, por utilização indevida ou dita de extrema severidade (em situações de arranque em que o pé no pedal de embraiagem é pura e simplesmente “atirado” para o lado e não levantado como seria expectável, numa correcta utilização). Esta situação repetida/continuada no tempo, durante algumas vezes (5 vezes?), com o motor em rotação elevada 3.000/4.000 rpm é suficiente para destruir/fracturar o apoio da forma como este se apresenta. (…)
Nas condições acima descritas o grupo motopropulsor fica destituído de um apoio dado que o mesmo é constituído por um apoio esquerdo, um direito mais dois para a transmissão, um superior e outro inferior. Os movimentos do motor no seu berço em função das acelerações e desacelerações sofridas aumentam substancialmente e causaram também a destruição (fractura) por tracção do apoio de transmissão superior.
Assiste-se assim a uma “liberdade” maior ainda do motor no seu berço, liberdade esta que conduziu à libertação do tubo inferior do radiador contribuindo para a fuga integral de fluido do circuito de refrigeração e subsequente destruição do motor.
Os motivos e a explicação supra inibem a aplicação/submissão do incidente em garantia contratual ao fabricante Fuji Heavy Industries fabricante dos veículos Subaru.
A utilização continuada da viatura com um problema técnico (apoio do motor e transmissão partidos) originou um problema consequência deste muito mais gravoso (dado que o motor não se mantinha na posição projectada pelo fabricante para um funcionamento correcto), em sequência o desalojamento do tubo de circuito de refrigeração do radiador do motor conduziu ao sobreaquecimento presente no motor. (…)
Só com uma utilização severa, inapropriada, prolongada no tempo e executada com periodicidade poderia culminar neste desfecho. (…)
Não existe histórico de ocorrências similares noutros veículos Subaru Impreza WRX Sti, importados e distribuídos pelo EC.”

12–Face ao teor desse relatório, o importador e a ré recusaram proceder à reparação do veículo.
13–O veículo havia sido adquirido pela ré em leilão realizado a 11.07.2007.
14–Os autores adquiriram a viatura convencidos de que a mesma se encontrava como se em estado novo se tratasse.
15–Pois se assim não fosse não estariam interessados em adquiri-la.
16–O importador comunicou ao autor que, após a reparação, a viatura ficaria como nova.
17–Os autores suportaram o custo da reparação, no valor de € 5.787,68.
18–Após a reparação, o veículo ficou apto a circular e sem posteriores avarias.
19–O veículo só foi novamente entregue ao autor, em condições de normal funcionamento e circulação, em 14.11.2007.
20–O autor tem uma especial admiração por veículos automóveis da marca Subaru.
21–Há vários anos que tem sido proprietário de viaturas desta marca, modelo Impreza STI.
22–A aquisição do modelo Impreza Sedan 2.5 WRX foi para o autor a concretização de um sonho.
23–O autor sofreu grande desgosto com a avaria do veículo.
24–O autor reside em Tavira e trabalha em Lisboa, onde permanece durante a semana.
25–Deslocando-se todos os fins-de-semana para Tavira.
26–O autor adquiriu a viatura para uso pessoal, designadamente, para se deslocar dentro de Lisboa, em Tavira aos fins-de-semana com a família, bem como para as viagens entre as duas localidades.
27–O autor não tem outra viatura.
28–Face à paralisação do veículo, o autor viu-se obrigado a pedir uma viatura emprestada a um amigo.
29–Se o autor tivesse optado por alugar uma viatura com características idênticas e face ao período em que ficou privado do seu uso pela avaria, desembolsaria um valor não inferior a € 10.000,00.

O tribunal a quo enunciou, ainda, os seguintes.

Factos não provados:
1–Na altura em que a ré entregou o veículo ao autor, o mesmo foi inspeccionado e verificado, não tendo sido detectada qualquer avaria, designadamente, o apoio de motor partido.
2–O autor circulou 280 quilómetros com o veículo.
3–No decurso da viagem, o autor comunicou à ré que a viatura estava em aquecimento e que tinha decidido parar numa oficina.
4–Mais tendo dito que o tubo de água estava danificado, pelo que o amarrou com arames e de seguida decidiu continuar viagem (para Tavira).
5–O que provocou o sobreaquecimento e os danos no motor, forçando a imobilização do veículo.

O Direito.

Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A apelante insurge-se contra os pontos 7 e 27 dos factos dados como provados pelo tribunal a quo, contra a inclusão, nos factos não provados, dos pontos 1, 3, 4 e 5, e bem assim contra a resposta negativa dada pelo tribunal a quo ao quesito 30.º da base instrutória (“foi o Autor que, na viagem para Tavira, avariou e danificou o veículo?”).

Para tal a apelante invoca os depoimentos e os documentos supra mencionados nas conclusões do recurso.

Vejamos.

Segundo consta do relatório mencionado no n.º 11 da matéria de facto, e foi confirmado pelas testemunhas Nuno (engenheiro mecânico, responsável de assistência do Entreposto, importador da marca Subaru em Portugal), José (engenheiro mecânico no Entreposto, autor do dito relatório) e António (mecânico do Entreposto), a viatura adquirida pelo A. à R. apresentava um apoio do motor partido, tendo sido esse facto que desequilibrou o motor, provocando oscilações anormais quando funcionava, as quais levaram à deslocação de um tubo de refrigeração do motor, por onde verteu o líquido de refrigeração, causando o aquecimento anormal do motor e os consequentes danos no mesmo. Ora, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 67/2003, de 08.4., uma vez que a dita anomalia (quebra do dito apoio do motor) se manifestou dentro do prazo de garantia, presume-se que a referida desconformidade do veículo já existia aquando da entrega da viatura ao A.. Assim, cabe à R., vendedora do veículo, o ónus da prova de que assim não foi, e bem assim o ónus da prova dos factos por si alegados, ou seja, de que os estragos sofridos pelo motor da viatura por si vendida ao A. foram causados por este, o A. (art.º 342.º n.º 2 do Código Civil).
Ora, não foi produzida prova que consiga inverter a referida presunção. É certo que a fls 137 consta uma folha que, a par de outros veículos, regista que o SUBARU adquirido pelo A. se encontrava, em 12.7.2007, em bom estado quanto ao motor, travões, direcção, transmissão, caixa e embraiagem. Mas esse documento foi produzido, como explicaram as testemunhas José (vendedor ao serviço da R.) e Carlos (diretor pós-venda numa sociedade ligada à R.), pela leiloeira a quem a R. adquirira a viatura, desconhecendo-se as condições em que foi emitido. Por outro lado, se é certo que a testemunha Carlos Gouveia declarou que o carro, pouco antes de ser entregue ao A., tinha sido devidamente vistoriado, inclusive quanto aos apoios do motor, também é verdade que afirmou que o ar condicionado do veículo funcionava, o que foi desmentido pelo A. (no seu depoimento de parte) e pelas testemunhas António (colega do A., que foi de boleia com ele na viagem para Tavira), Sérgio (amigo de infância do A., que lhe levou ao Montijo o Subaru que o A. deu à R. em retoma e depois conduziu para Tavira o Mazda em que o A. se deslocou de Lisboa para o Montijo), José (que confirmou que quando o carro foi levado para o Entreposto por causa da avaria que constitui o objeto dos autos, verificou que o ar condicionado não funcionava porque a ficha do compressor estava desligada) e Alexandre (vendedor da R. à data dos factos, que intermediou a venda do veículo ao A., confirmou que pouco depois de o A. iniciar a viagem para o Algarve, telefonou à testemunha a queixar-se de que o ar condicionado da viatura não funcionava – coisa que a testemunha desconhecia). As testemunhas Nuno e José consideraram que uma viagem para o Algarve, de 327 km, não é suscetível de causar os aludidos danos nos apoios do motor. A testemunha Alexandre, cuja inquirição atrasou o processo quatro anos (atentas as dificuldades em conseguir ouvi-lo a partir da Roménia, onde residia), acabou por ter este desabafo, bem revelador: “Ele [o A.] até me perguntou se eu não podia levar-lhe o carro ao Algarve. E graças a Deus eu tinha que fazer e não fui, se não depois a culpa era minha!

Quanto à alegação, por parte da R., de que o A. terá prosseguido viagem apesar de se ter apercebido da subida anormal da temperatura do motor, prendendo o tubo do motor com uns “arames”, o que terá provocado os aludidos danos no motor, também não foi produzida prova suficiente nesse sentido. A viatura chegou ao Entreposto, rebocada, com uma braçadeira de modelo universal, a prender corretamente o tubo de refrigeração, e não com arames, conforme testemunharam Nuno, José e António. O A. afirmou que só se apercebeu do aumento de temperatura do motor ao pé de casa, o que foi corroborado pela testemunha Daniel (amigo do A., comerciante de peças de automóveis residente em Tavira, que diz que foi quem se apercebeu que o veículo tinha muita água por baixo, e que era líquido de refrigeração, tendo então verificado que o tubo de refrigeração estava fora do sítio, tendo sido ele, segundo o A., quem colocou a dita braçadeira), Sérgio e António (que saiu do carro do A. já em Tavira, mas antes de este chegar a casa, não tendo até aí ocorrido nada de anormal). As duas únicas testemunhas que depuseram em sentido contrário merecem menos credibilidade, pelo seguinte: José fez questão de insistir que tinha acompanhado todo o negócio, estando a par do mesmo, apesar de o vendedor ter sido o seu colega Alexandre, mas afirmou que não houve carro de retoma (o que foi desmentido pelo colega Alexandre e pela testemunha Sérgio, que trouxe do Algarve o carro para a retoma) e insistiu na história dos arames, que não foi sequer confirmada pelo seu colega Alexandre, cuja conversa telefónica com o A. a testemunha teria escutado; Alexandre foi ouvido oito anos depois dos factos (em 2015; todos os restantes depoentes depuseram em 2011), o que reduz consideravelmente a fiabilidade do seu depoimento, como ele foi aliás realçando ao longo das suas declarações, as quais, de resto, foram pautadas por muita acrimónia contra o advogado dos AA., faltando à testemunha serenidade e lucidez.

A circunstância de se ter dado como provado que a viatura percorreu 327 km desde o stand da A. até ao fim da viagem ao Algarve (n.º 5 da matéria de facto), o que seria talvez mais cerca de 40 km que a distância do percurso normal até à casa do A., não basta para atribuir ao A. a responsabilidade pelo sucedido à viatura, conforme já supra exposto. De resto, as testemunhas engenheiros mecânicos Nuno e José esclareceram que o Subaru pertencente ao A. entrou no Entreposto com o motor a funcionar, embora irregularmente, ou seja, o carro ainda podia andar, com o tubo de novo colocado e com o líquido de refrigeração, embora só a prazo. Segundo as testemunhas, o mal foi causado antes da recolocação do tubo. Por outro lado, ambas as testemunhas disseram que o veículo não tinha um sinal ou luz avisadora do excesso de temperatura do motor, apenas um manómetro, que poderia não ser de imediato atendido pelo condutor. Finalmente, as testemunhas que acompanharam a viagem do A. ao Algarve (António e Sérgio) depuseram no sentido de que o trajeto foi efetuado a velocidades moderadas, sendo certo que quem conduzia na frente era Sérgio, levando o Mazda supra referido.
Entende-se, assim, que é de manter a decisão de facto atinente ao ponto 7 dos factos provados e aos pontos 1, 3, 4 e 5 dos factos não provados, bem como a resposta negativa ao quesito 30.º.

Resta apreciar o facto n.º 27 (“o autor não tem outra viatura”), que a apelante entende que não se provou.

Está aqui em causa o quesito 25.º, que tinha a seguinte redação:
O A. não tem qualquer outra viatura?

Provou-se (tal foi referido pelas testemunhas António, Daniel e Sérgio) que o casal também tinha, no período a que respeitam os factos, uma carrinha Mazda, que normalmente era usada pela A. mulher, que a levava para ir para o trabalho (sendo certo que a A. residia em Tavira). Em termos práticos, cada um dos membros do casal dispunha de uma viatura, tendo desaparecido essa disponibilidade por causa da avaria do Subaru. Daí que se tenha provado, e a R. não questionou, o que consta no n.º 28 da matéria de facto: “Face à paralisação do veículo, o autor viu-se obrigado a pedir uma viatura emprestada a um amigo.” O amigo que emprestou uma viatura ao A. foi a testemunha Domingos, empresário agrícola, residente na Moita, que acompanhou a compra do veículo e afirmou ter emprestado ao A., durante três meses, um Mercedes 350 SL. Algumas testemunhas (António, Daniel, Sérgio, Domingos) mencionaram que durante alguns períodos o A. teve acesso a viaturas de serviço, do banco onde trabalhava, mas não souberam dizer se tal ocorreu durante o período em que o carro adquirido pelo A. à R. esteve em reparação.

Tudo ponderado, por corresponder com maior rigor à prova produzida, entendemos que deve alterar-se o número 27 da matéria de facto, que deve ficar assim redigido:
27.Na época a que se reportam os autos os AA. só dispunham de uma outra viatura, uma carrinha Mazda, que era usada normalmente pela A. mulher, que a levava para ir para o trabalho (sendo certo que a A. residia em Tavira).

Segunda questão (consequência do desfecho da impugnação da decisão de facto).
Atento o factualismo apurado não pode deixar de se concluir, como na sentença recorrida, que o A. marido adquiriu à R., na qualidade de consumidor, uma viatura automóvel que apresentava defeito, o que lhe conferia, além de outras possibilidades, o direito à sua reparação, que foi efetuada pelo representante da marca em Portugal, sem prejuízo do direito à indemnização por prejuízos sofridos (cfr. artigos 913.º n.º 1, 914.º, 921.º do Código Civil, 4.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 67/2003, de 8.4 e 12.º n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31.7, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 67/2003).

Assim sendo, os AA. têm direito, como se ajuizou na sentença recorrida, ao pagamento do montante que desembolsaram pela reparação da viatura, e bem assim ao ressarcimento do dano consubstanciado na forçada privação da viatura, que ocorreu durante cerca de três meses. A este propósito reitera-se o entendimento que o ora relator e a Exm.ª primeira adjunta subscreveram no acórdão desta Relação, datado de 21.5.2009, processo nº 1252/08.3TBFUN.L1 (acessível in www.dgsi.pt e, também, na Colectânea de Jurisprudência, ano XXXIV, tomo III, pág. 78 e seguintes), de que a mera privação do uso do veículo constitui para o respetivo proprietário um dano patrimonial, que é economicamente valorizável, se necessário com recurso à equidade (art.º 566.º n.º 3 do Código Civil).

In casu, atendendo ao custo do aluguer de uma viatura idêntica pelo período de privação da mesma (€ 10 000,00, vide n.º 29 da matéria de facto), à falta que o automóvel em causa fazia (o A. residia em Tavira e trabalhava em Lisboa, carecendo da viatura para as suas deslocações) e à longa duração da privação da viatura, que só não se prolongou por mais tempo porque o A. decidiu custear do seu bolso a reparação da viatura, face à recusa do representante do fabricante e da R. em fazê-lo, afigura-se-nos razoável o montante arbitrado a este título pelo tribunal a quo (€ 3 500,00).

Conclui-se, assim, que a apelação é improcedente.

DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante, que nela decaiu.



Lisboa, 29.9.2016



Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins