Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5546/17.9T8SNT.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A obrigação de indemnização emergente de responsabilidade pré-contratual prevista no Art. 227.º n.º 1 do C.C. pressupõe a existência de negociações suscetíveis de criar uma razoável base de confiança no outro contraente, as quais são rompidas de forma inesperada e injustificada por uma das partes em violação manifesta de deveres de conduta impostos pelo princípio da boa-fé.
2. Nesta fase negocial conflituam, por um lado, o princípio geral da responsabilidade civil por danos causados a outrem e, por outro, o princípio da autonomia privada, que inclui o subprincípio da liberdade contratual reconhecida às partes (Art. 405º do C.C.) na vertente do poder que lhes é reconhecido recusarem a celebração do contrato. Em função disso, as partes devem estar sempre cientes da possibilidade de o contrato se não vir a realizar como risco natural do processo negocial.
3. Esse risco é evidente nas fases mais precoces da negociação, nomeadamente quando, como no caso concreto, a relação negocial consistiu numa “promessa” verbal de compra e venda de imóvel, em que nem sequer se apurou ter havido acordo sobre condições essenciais, como por exemplo o preço de venda do prédio.
4. Não há rutura inesperada e injustificada do processo negocial por uma das partes se, nessa fase, a dona do prédio desistir do negócio por motivo de se terem as partes desentendido.
5. Nesse caso, a causa efetiva do fim do processo negocial é um desentendimento objetivamente imputável a ambas as partes.
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
B intentou a presente ação de despejo, em processo declarativo comum contra RA e esposa, VA, pedindo que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento urbano celebrado entre a A. e o R. marido, sendo os R.R. de condenar a proceder à desocupação do locado, que deveria ser entregue à A., livre de pessoas e bens, e ainda a pagarem as rendas vencidas e vincendas e os consumos de eletricidade e água municipal até à efetiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora até ao cumprimento efetivo. Pediu também o pagamento dos encargos e despesas efetuadas pela A. com a propositura da presente ação.
Para tanto, alegou que é a proprietária de um prédio urbano sito na Rua J., n.º 8, tendo dado de arrendamento ao R. marido o sótão desse imóvel, mediante o pagamento de renda que agora ascende a €350,00 mensais.
Sucede que desde Agosto de 2016 os R.R. só pagaram a renda referente ao mês de Janeiro de 2017 e não pagaram os consumos de eletricidade e água municipal, conforme acordado.
Alegou ainda que, apesar de interpelados para regularizar a situação, os R.R. não o fizeram, motivo pelo qual propôs a presente ação.
Citados, os R.R. apresentaram contestação confirmando ser a A. proprietária do imóvel em causa e ter celebrado o contrato de arrendamento, mas impugnaram a demais matéria alegada na petição.
Invocaram ter procedido à entrega do imóvel em 21 de Abril de 2017 e que foi acordado, quanto aos consumos de água e eletricidade, que apenas pagariam 1/3 do valor mensal das faturas que a A. viesse a receber, sendo que sempre pagaram tal quantia até Agosto de 2016, apenas cessando esses pagamentos a partir dessa data, em virtude de a A. ter deixado de apresentar as faturas, não permitindo assim a sua correta contabilização.
Mais alegaram que em Maio de 2016, A. e R.R. acordaram verbalmente celebrar um contrato-promessa de compra e venda, mediante o qual a A. venderia aos R.R. a nua-propriedade do imóvel em questão e reservaria para si o usufruto, tendo nessa sequência contactado uma arquiteta para proceder à legalização do imóvel. Nesse contexto, invocaram também que, com a concordância da A. e na convicção de que o imóvel seria seu, procederam à transferência da quantia de €960 para pagar os honorários da mencionada arquiteta, só que, posteriormente, o negócio frustrou-se. Motivo pelo qual pretendem agora compensar esse valor com o das rendas referentes aos meses de Outubro e Novembro de 2016, assim como, parcialmente, em €260, à renda referente ao mês de Março de 2017.
Alegaram ainda que em Agosto de 2016 procederam ao pagamento da renda referente ao mês de Setembro de 2016, em 01.11.2016 pagaram a renda referente ao mês de Dezembro de 2016, em 13.12.2016 pagaram a renda referente ao mês de Janeiro de 2017 e em 08.01.2017 pagaram a renda referente ao mês de Fevereiro de 2017.
Deduziram ainda pedido reconvencional contra a A. por alegados danos não patrimoniais por si sofridos e peticionaram a condenação da A. como litigante de má-fé, em virtude de ter alegadamente alterado a verdade dos factos quanto às rendas por si pagas.
A A. replicou aceitando o pagamento de algumas das rendas mencionadas pelos R.R., mas negou o alegado acordo de venda, afirmando que os R.R. sabiam que pretendia legalizar o imóvel e reconheceu que os acompanhou a um gabinete de arquitetura, mas invocou não ter celebrado qualquer contrato de prestação de serviços com a arquiteta em causa, nem ter dado autorização para os procedimentos de legalização.
Além disso, defendeu a inadmissibilidade do pedido reconvencional, bem como a improcedência do mesmo e do pedido de condenação como litigante de má-fé, peticionando a A. igualmente a condenação dos R.R. como litigantes de má-fé.
Depois de serem os R.R. convidados ao aperfeiçoamento da sua contestação e findos os articulados, dispensou-se a realização da audiência prévia, sendo logo proferido despacho saneador, no qual foi admitida apenas parcialmente a reconvenção deduzida, que assim ficou reduzida ao pedido de reconhecimento do crédito de €960,00, com avista à sua eventual compensação, e julgou-se a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de entrega do locado, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como de condenação no pagamento de rendas vencidas e de consumos de água e de eletricidade municipal após a data de 21.04.2017. Procedeu-se aí ainda à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas de prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, com a produção de prova, veio a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente por provada, declarando validamente resolvido o contrato de arrendamento celebrado em 17.07.2004, com fundamento na falta de pagamento de rendas, e condenando os R.R., RA e esposa, VA, a pagarem, solidariamente, à A., B, a quantia global de €1.995,07, correspondente ao valor das rendas relativas aos meses de Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2016, Março e o proporcional a 21 dias de Abril de 2017, acrescido de juros de mora, calculados desde a data do respetivo vencimento, sobre as respetivas verbas de capital, à taxa legal de 4% e sucessivas taxas legais em vigor, até efetivo e integral pagamento. Os R.R. foram ainda absolvidos do pedido de pagamento das demais quantias peticionadas, sendo julgado também por improcedente a reconvenção, da qual a A. foi absolvida. De igual modo, ambas as partes foram absolvidas dos pedidos de condenação como litigantes de má-fé.
É dessa sentença que os R.R. vieram interpor recurso, apresentando no final das suas alegações as conclusões (…).
Pedem que seja dado provimento ao recurso e, em consequência, ser parcialmente retificada a sentença, mantendo-se a decisão das alíneas a) e c) do ponto 1., mas relativamente à alínea b) do ponto 1. da decisão, deverão os R.R. ser condenados apenas a pagar, solidariamente, à A., a quantia global de €1.295,07, correspondente às rendas referentes aos meses de Outubro e Novembro de 2016 e Março e o proporcional a 21 dias de Abril de 2017. Já relativamente ao ponto 2, deveria ser julgada procedente a reconvenção e, em consequência, condenada a A. a pagar aos R.R., a quantia de €960,00, correspondente aos honorários pagos pelos RR. à Sra. arquiteta Carla F., por conta da legalização do imóvel propriedade da A., autorizada por esta e no âmbito de um contrato promessa de compra e venda acordado verbalmente com os R.R. e, porque a A. e os R.R. têm créditos recíprocos, deveria efetuar-se a compensação dos mesmos e, consequentemente, deverem os R.R. apenas pagar à A. a diferença dos dois créditos, no valor de €335,07.
A A. apresentou contra-alegações (…).
Pede a improcedência do recurso mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.
O Tribunal a quo admitindo o recurso de apelação veio a reconhecer que se verifica a apontada nulidade, nos termos da al. c) do n.º 1 do Art. 615.º do NCPC, dizendo expressamente que: «afigura-se que se verifica tal oposição, face ao que resultou provado nos pontos 4. e 14. e o trecho da sentença que considera que não foi liquidada a renda referente ao mês de Agosto de 2016. De facto, sendo a renda paga antecipadamente face ao mês a que respeita e alegando a Autora que o incumprimento apenas se verificou a partir de Agosto de 2016, é contraditório afirmar que a renda referente ao mês de Agosto de 2016 não foi paga, uma vez que esta deveria ter sido paga em Julho e a Autora não alegou que o incumprimento se verificou em Julho.
«Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 617.º do NCPC, decide-se suprir a nulidade invocada e, consequentemente, há que considerar que à data da propositura da ação permaneciam por liquidar as rendas dos seguintes meses: Setembro, Outubro e Novembro de 2016, Março e o proporcional do mês de Abril de 2017, no valor global de €1.645,07 (mil seiscentos e quarenta e cinco euros e sete cêntimos) e, assim sendo, na alínea b) do dispositivo, onde se lê: “(…) a quantia global de €1.995,07 (mil novecentos e noventa e cinco euros e sete cêntimos), correspondente ao valor das rendas relativas aos meses de Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2016, Março e o proporcional a 21 dias de Abril de 2017 (…)”, deve passar a ler-se: “(…) a quantia global de €1.645,07 (mil seiscentos e quarenta e cinco euros e sete cêntimos), correspondente ao valor das rendas relativas aos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2016, Março e o proporcional a 21 dias de Abril de 2017 (…)”.»
Notificadas as partes deste despacho, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 3 e 4 do Art. 617.º do C.P.C., nada vieram dizer aos autos.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A nulidade da sentença;
b) A impugnação da matéria de facto;
c) O valor das rendas vencidas e não pagas pelos R.R.;
d) A reconvenção por compensação de créditos.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. Pela apresentação n.º 37 de 23 de Julho de 1992, mostra-se inscrita a aquisição, por partilha subsequente a divórcio, a favor da A., do prédio urbano sito no Bairro …, lote… (atual Rua J…), em Abrunheira, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º 1… e inscrito na matriz predial da união das freguesias de S. Maria, S. Miguel, S. Martinho e S. Pedro de Penaferrim sob o artigo 4… (anterior artigo 4… da extinta freguesia de S. Pedro de Penaferrim).
2. Por documento particular denominado “contrato de arrendamento para habitação duração limitada”, datado de 17 de Julho de 2004, a A., aí designada como “senhorio” e o R., RA, aí designado como “arrendatário” declararam que “…celebram o presente contrato de arrendamento, pelo prazo de cinco anos e no regime de renda livre nos termos do art. 98.º n.º 1 e 2 do R.A.U., aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro, referente ao imóvel sito na Rua J… – Abrunheira (…)”.
3. Nos termos da cláusula primeira do documento aludido em 2., “o presente arrendamento é feito pelo prazo de cinco anos com início em 1 de Julho de 2004 e término em 30 de Junho de 2009.”.
4. Da cláusula segunda do documento aludido em 2. consta que: “a renda mensal acordada é de Euros 349.16 (trezentos e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos) a qual será paga no primeiro dia útil do mês anterior aquele a que disser respeito no domicílio do senhorio ou em local por este indicado”.
5. Nos termos da cláusula terceira do documento aludido em 2., “a renda mencionada na cláusula anterior será atualizada anualmente por aplicação do coeficiente em vigor para o respetivo ano (…)”.
6. Nos termos da cláusula quarta do documento aludido em 2., “Integram-se no arrendamento e para uso privativo: parte de casa, a qual se destina a habitação permanente e exclusiva do segundo outorgante reconhecendo estes a sua aptidão para o efeito comprometendo-se a não lhe dar outro uso sob pena de resolução contratual.”.
7. Da cláusula sétima do documento aludido em 2., “o segundo outorgante obriga-se ao pagamento da água municipalizada que consumir para os seus usos domésticos ou sanitários, bem como a energia elétrica que gastar e ao despejo das fossas se for necessário.”.
8. O contrato aludido em 2. foi sucessivamente renovado, não tendo nenhum dos seus outorgantes procedido à sua denúncia ou oposto à sua renovação.
9. Em 2016 e 2017, o valor da renda mencionada em 4. ascendia a €350 (trezentos e cinquenta euros).
10. Em data não concretamente apurada, A. e R.R. acordaram, verbalmente, celebrar um contrato promessa de compra e venda referente ao imóvel aludido em 1., em moldes não concretamente apurados.
11. Na sequência do aludido em 10., os R.R. contactaram uma arquiteta para proceder à legalização do imóvel aludido em 1., uma vez que tinha sido construído sem projeto e sem licença.
12. Em 20 de Julho de 2016, os R.R. efetuaram o pagamento dos honorários da arquiteta Carla F., no valor de €960 (novecentos e sessenta euros).
13. Em meados de Agosto de 2016, A. e R.R. desentenderam-se e a A. transmitiu aos R.R. que já não iria vender-lhes o imóvel.
14. Desde o mês de Agosto de 2016, os R.R. efetuaram os seguintes pagamentos por conta das rendas:
a) Em 1 de Novembro de 2016, transferiram para uma conta bancária da A. a quantia de €350 (trezentos e cinquenta euros);
b) Em 13 de Dezembro de 2016, transferiram para uma conta bancária da A. a quantia de €350 (trezentos e cinquenta euros); e
c) Em 8 de Janeiro de 2017, transferiram para uma conta bancária da A. a quantia de €350 (trezentos e cinquenta euros).
15. Os R.R. não efetuaram o pagamento dos seus consumos de eletricidade e água municipal a partir de Agosto de 2016.
16. Por carta registada em 27 de Fevereiro de 2017, remetida aos R.R., a A., através da sua mandatária, informava o seguinte: “(…) venho com a presente carta informar V. Exas que, enquanto arrendatários do imóvel em apreço se encontram em mora no pagamento da renda referente aos meses de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2016 e Fevereiro de 2017, sobre o qual acresce a falta de pagamento de água e eletricidade, referente a sete meses. (…)”.
17. A carta aludida em 16. foi devolvida à A., por não ter sido reclamada.
18. Em 21 de Abril de 2017, a A. recebeu do R.R. as chaves e a posse do imóvel aludido em 1., livre e devoluto de pessoas e bens.
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O tribunal julgou ainda por não provados os seguintes factos:
i) A. e R.R. acordaram verbalmente no pagamento mensal da quantia de €80 (oitenta euros), referente aos consumos de eletricidade e água municipal.
ii) A. e R.R. acordaram que estes pagariam 1/3 (um terço) dos valores mensais das faturas de eletricidade e água municipal que a A. viesse a receber.
iii) Os R.R. efetuaram o pagamento aludido em 12. com a concordância da A. e na convicção de que o imóvel seria seu.
iv) A A. interpelou os R.R. verbalmente para procederem ao pagamento das restantes rendas.
v) Os R.R. deixaram de pagar os consumos de eletricidade e água porque a A. deixou de apresentar as faturas de eletricidade e água, não permitindo a sua contabilização.
vi) No início do mês de Agosto de 2016, os R.R. pagaram em numerário à A. a renda referente ao mês de Setembro de 2016.
vii) O acordo aludido em 10. foi celebrado em Maio de 2016 e previa que a A. iria vender a nua-propriedade do imóvel aludido em 1. aos R.R. e reservaria para si o usufruto.                  
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Tudo visto, cumpre apreciar.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões suscitadas na apelação cuja apreciação importará fazer, cumprirá então que sobre elas nos debrucemos, respeitando no seu conhecimento a ordem de precedência lógica.

1. Da nulidade da sentença.
Os Recorrentes suscitaram a nulidade da sentença recorrida por alegada violação do disposto no Art. 615.º n.º 1 al. c) do CF.P.C., por haver oposição da decisão com os fundamentos de facto em que assentava.
Essencialmente estaria em causa o facto de se ter dado por provado que o incumprimento da obrigação de pagamento da renda por parte dos R.R. ocorreu a partir do mês de Agosto de 2016 (facto 14), sendo que a renda era paga no primeiro dia útil do mês anterior àquela a que o pagamento dissesse respeito (facto 4). Pelo que, da conjugação destes factos decorreria a conclusão lógica de que a renda relativa ao mês de Agosto de 2016 teria sido paga em Julho de 2016 e, por isso, não estaria em dívida. No entanto, da decisão proferida na sentença partiu-se da conclusão de que a renda de agosto de 2016 estaria em falta, tendo no final os R.R. sido condenados ao pagamento da mesma.
Apesar de a Recorrida ter sustentado que não se verificava esse vício, o Tribunal a quo reconheceu o mesmo, constatando que existia a apontada contradição entre os fundamentos de facto e o sentido final da decisão.
Assim, corrigiu oficiosamente o vício, nos termos do Art. 617.º n.º 6 do C.P.C., sendo que as partes nada vieram opor a tal alteração da decisão. Pelo que, considera-se sanada a nulidade e nada mais há a decidir a este respeito.

2. Da impugnação da matéria de facto.
Estabelece o Art. 662º n.º 1 do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documentos superveniente, impuserem decisão diversa.
Nos termos do Art. 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
No caso os R.R. Recorrentes pretendem pôr em causa essencialmente factos que o Tribunal a quo julgou por não provados, mas pretendem ainda ver aditado aos factos provados uma matéria que consideram omissa, tendo em atenção a nulidade da sentença que invocou.
Cumprirá então apreciar os factos impugnados.
         (…)
Improcede a impugnação da matéria de facto não provada.

2.3 Do facto omisso nos factos provados.
Os Recorrentes pretendiam ver aditado à sentença, como facto provado, que no início do mês julho de 2016, os R.R. pagaram em numerário à A. a renda referente ao mês de Agosto de 2016. No entanto, fizeram esta impugnação da matéria de facto sob condição de não se considerar que a sentença padecia da nulidade que a propósito invocaram.
Sucede que, o Tribunal a quo veio a reconhecer esse vício e corrigiu o mesmo oportunamente. Pelo que, fica prejudicada nesta parte a utilidade da impugnação da matéria de facto.

3. Das rendas vencidas e não pagas pelos R.R..
A A. veio intentar a presente ação de despejo, invocando o incumprimento do contrato de arrendamento que vinculava ambas as partes no que estritamente se refere à obrigação de pagamento das rendas.
Mais concretamente, alegou o não pagamento das rendas vencidas nos meses de agosto a dezembro de 2016 e janeiro a abril de 2017, pedindo a condenação dos R.R. ao pagamento dos correspondentes valores em dívida, acrescidos de juros.
Os R.R. invocaram a exceção perentória de pagamento das rendas vencidas em Agosto de 2016, novembro e dezembro de 2016 e janeiro de 2017.
No despacho saneador foi julgada a extinção da instância relativamente ao pedido de despejo, considerando que o imóvel locado foi entregue à A., senhoria, em 21 de abril de 2017.
Já na sentença, após correção da nulidade que lhe foi apontada, foram os R.R. condenados a pagar à A. €1.645,07, correspondente ao valor das rendas relativas aos meses de setembro, outubro e novembro de 2016, março e o proporcional a 21 dias de abril de 2017, acrescidos de juros de mora, desde a data do respetivo vencimento, sobre as respetivas verbas de capital, á taxa legal de 4% e até efetivo e integral pagamento.
Relevou-se, para tanto, que a renda de Agosto de 2016, vencida em 1 de julho de 2016, mostrava-se paga e, bem assim, que ficou provado que os R.R. pagaram as rendas de Dezembro de 2016 a Fevereiro de 2017 (facto provado 14). Pelo que, estavam apenas em falta as rendas de setembro a novembro de 2016, março de 2017 e 21 dias do mês de abril de 2017, sendo o valor da renda mensal nos anos de 2016 e 2017 de €350,00. O que, no final, corresponde ao valor total em dívida a título de rendas de €1.645,07, tal como calculado no despacho de fls 132 a verso, que corrigiu a nulidade e refez os cálculos do capital da dívida.
Os R.R. não fizeram prova do pagamento de outras rendas para além das que constam do ponto 14 da matéria de facto, como era seu ónus (Art. 342.º n.º 2 do C.C.). Pelo que, sem necessidade de maiores considerações, mais não resta que confirmar integralmente a sentença na sua parte dispositiva, com a redação corrigida que resulta do despacho de fls 132 a verso, no que se refere à alínea b) do n.º 1 do ponto V, improcedendo as conclusões em contrário.

4. Da reconvenção por compensação de créditos.
Os Recorrentes pretendem ainda que seja julgada por procedente o pedido reconvencional, na parte que foi admitido, por forma a que se tenha em consideração que pagaram €960,00 à arquiteta Carla F. para proceder à legalização do imóvel que era propriedade da A..
Sustentam a procedência dessa pretensão no facto iii) dos factos não provados, que no seu entender deveria ser dado por provado, e ainda no disposto no Art. 227.º do C.C., pois a A., ao arrepio do princípio da boa-fé, rompeu as negociações tendentes à venda do imóvel arrendado, obrigando os R.R. a suportar esse custo, realizado com a concordância da A. e com o intuito de proceder à legalização do prédio que era propriedade daquela.
A Recorrida sustenta que o facto invocado pelos Recorrentes não foi provado, ainda que reconheça que estes possam ter agido como se fossem proprietários do prédio, sustentando que tal ocorreu à revelia da A. que, quando se apercebeu das verdadeiras intenções dos R.R. recusou assinar os documentos que lhe foram apresentados.
A sentença recorrida teve em consideração que os R.R. pagaram os €960,00 de honorários à arquiteta para efeitos de legalização do imóvel da A., a qual veio a desistir da venda, mas como não ficou provado que tal despesa tivesse sido feita com a concordância da A., partiu do pressuposto que aquela foi feita por conta e risco dos R.R..
Por outro lado, também entendeu que a demais matéria provada é insuficiente para concluir que a A., ao desistir do contrato, não atuou de boa-fé, nos termos e para os efeitos do Art. 227.º n.º 1 do C.C..
A sentença relevou também que não se provou que a legalização do imóvel se concretizou e, por isso, não se poderia sequer falar em enriquecimento sem causa.
Em suma, considerou a decisão recorrida que não se poderia concluir que os R.R. são titulares de direito de crédito sobre a A., falhando o pressuposto da reciprocidade de créditos (Art. 847.º do C.C.), o que levou ao julgamento da improcedência da reconvenção.
Contrapostas as posições, verificamos que o que está em causa é um alegado contracrédito dos R.R. sobre a A., emergente, não do contrato de arrendamento que serve de causa de pedir à ação principal, mas do alegado “incumprimento” de um “contrato-promessa de compra e venda” verbal, que teria por objeto o imóvel locado.
O contrato-promessa de compra e venda verbal que tem por objeto um bem imóvel é nulo por falta de forma (Art.s 410.º n.º 3 e 220.º do C.C.). Aliás, resultando indiciado da matéria de facto que o prédio se destinava a habitação e não tinha sequer licença de utilização, tudo levaria a crer que a compra e venda prometida não era objetiva e legalmente possível, em face das exigências legais decorrentes do Art. 1.º do Dec.Lei n.º 281/99 de 26/7, conjugado com o Art. 875.º do C.C..
Sem prejuízo, o que estava em causa, independentemente da validade formal do contrato ou da possibilidade de conhecimento oficioso desse vício (vide: Art. 410.º n.º 3 “in fine” do C.C.), era que existia um processo negocial em curso destinado precisamente à legalização prévia do imóvel, através da apresentação de um projeto na Câmara Municipal tendente à obtenção da necessária licença de utilização, por forma a tornar possível a pretendida compra e venda.
Foi para isso que os R.R. contactaram uma arquiteta (facto provado 11) e em 20 de julho pagaram €960,00 de honorários (facto provado 12). No entanto, em meados de agosto de 2016, A. e R.R. desentenderam-se e a primeira transmitiu aos segundos que já não lhes queria vender o imóvel (facto provado 13).
Sendo estes os factos objetivamente considerados por provados, cumprirá apreciar da aplicação ao caso do disposto no Art. 227.º n.º 1 do C.C..
Estabelece o Art. 227º n.º 1 do C.C. que: «Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte».
Este preceito tem uma origem histórica muito precisa, de que importará aqui dar nota de forma muito resumida, emergindo da chamada teoria da “culpa in contrahendo” formulada por Jhering em 1861.
Essa teoria nasce da constatação de que até então não era reconhecida proteção jurídica adequada ao lesado que havia contratado de boa-fé, na convicção de que o negócio celebrado era válido e eficaz, sendo depois confrontado com a sua invalidade.
É para esse tipo de situações que Jhering lança mão do conceito de “culpa in contrahendo”, fundada na responsabilidade subjetiva do contraente que deu causa ao vício de que enfermava o negócio jurídico considerado, respondendo assim pelos danos que culposamente causou à contraparte que confiou na validade do contrato.
Esta solução era justificada por evidentes razões de justiça material, que só por si deveriam ser atendíveis. No entanto, por razões de método, explicáveis no contexto da época, Jhering pretendeu fundamentar a mesma no quadro da culpa como um alegado princípio fundador do Direito Romano, então ainda aplicável na ordem jurídica germânica, através duma construção que dificilmente era sustentável e que, por isso mesmo, foi oportunamente criticada (Vide, a propósito: Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil Português”, I - Parte Geral, Tomo I, 2ª Ed., pág.s 391 a 396; Paulo Mota Pinto in “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, Vol. I, pág.s 166 a 193; e Eva Moreira da Silva in “Da Responsabilidade Pré-Contratual Por Violação dos Deveres de Informação”, pág.s 17 a 31).
Sem prejuízo deste “pecado original”, a tese da “culpa in contrahendo” teve um grande êxito e acabou por ser adotada praticamente por todas as posteriores codificações civilísticas da Europa.
Desde logo se reconheceu que era essencialmente a tutela da confiança que justificava a existência responsabilidade civil considerada, que foi concebida como uma extensão da responsabilidade contratual, restrita, no entanto, na sua versão original, à reparação do “interesse contratual negativo”. Ou seja, sustentava-se que pelo menos fossem reparados os prejuízos e despesas havidos por força do investimento e confiança do lesado na validade do negócio jurídico celebrado.
A semente lançada por Jhering veio depois a permitir que a Doutrina tenha vindo a alargar o âmbito de aplicação original da tese, não só às situações de invalidade e ineficácia do negócio jurídico, tal como tinha sido pensada pelo seu criador, mas também para os casos em que nem sequer tivesse chegado a haver um contrato, existindo apenas negociações tendentes à sua celebração, falando-se então em responsabilidade “pré-contratual” em sentido estrito.
É este o enquadramento histórico que leva ao estabelecimento do atual Art. 227º n.º 1 do C.C., com uma formulação mais abrangente, que se aplica claramente aos casos de responsabilidade “pré-contratual”, quando são causados danos à outra parte, no quadro das negociações preliminares, sem que chegue a ser efetivamente celebrado um contrato.
Muito discutida na doutrina, e com interesse para o caso concreto, foi a questão de saber se nestes casos estaríamos perante uma forma de responsabilidade civil contratual ou extracontratual, tendo em consideração que a obrigação de indemnização reportava-se a uma relação jurídica inválida, ineficaz, ou que nunca se chegou a concretizar como um contrato firme.
De algum modo havia aqui um reconhecimento legal duma obrigação de indemnização que, nem se referia à violação de direitos absolutos ou interesses alheios, tal como é estabelecido no Art. 483º n.º 1 do C.C., nem à violação de um contrato, porque este era inválido, ineficaz, ou nem sequer se tinha chegado a concretizar.
Foi com base neste tipo de considerações que alguns autores passaram a defender que nos encontrávamos perante uma 3ª via de responsabilidade civil, que não é, nem contratual, nem extracontratual (Vide, neste sentido: Baptista Machado in “Tutela da Confiança e “Venire Contra Factum Proprium”, Obra dispersa, Vol. I, pág. 567; Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 5ª Ed., pág.s 348 a 357; e Eva Moreira da Silva in Ob. Loc. Cit., pág.60 a 64).
Por nós, neste caso concreto, não vemos qualquer utilidade na consideração da existência desta alegada 3ª via. Estamos em crer que é acertado o entendimento largamente maioritário de que estamos essencialmente perante um caso de responsabilidade obrigacional “ex lege”, que decorre da violação de deveres jurídicos emergentes do princípio da boa-fé, os quais são transversais a todas as relações jurídicas, nascendo antes mesmos de serem celebrados os contratos e que persistem para lá da sua cessação (Vide, no sentido da responsabilidade contratual: Carlos Mota Pinto in “Responsabilidade Pré-Negocial pela não conclusão dos contratos” – Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Suplemento XIV, pág.s 150 a 151; Galvão Telles in “Direito das Obrigações”, 7ª Ed., pág.s 74 e 75; Antunes Varela in “Das Obrigações Em Geral”, Vol. I, 5ª Ed., pág.s 258 a 262; e Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo I, 2ª Ed., pág.s 406 a 407).
Dito por outras palavras, admitimos que podem existir relações jurídicas de natureza obrigacional constituídas exclusivamente por deveres de conduta, sem que ainda existam as obrigações principais típicas dos contratos. No entanto, esses deveres vinculam desde logo as partes, de tal forma que a violação dos mesmos pode justificar a obrigação de indemnização.
De facto, as partes devem proceder de boa-fé no cumprimento das suas obrigações e, bem assim, no exercício do direito correspondente (Art. 762º n.º 2 do C.C.), reconhecendo-se assim aqui a existência dum quadro legal próprio para as relações obrigacionais complexas, que se caracterizam precisamente por serem compostas por inúmeros tipos de prestações e deveres.
Assim, a par das obrigações principais e das a elas acessórias, que constituem uma zona nuclear duma relação jurídica obrigacional ou contratual considerada, existem outro tipo de prestações, que se traduzem na realização de regras e deveres de conduta, que esquematicamente se pode dizer que compõem uma zona periférica dessa relação jurídica. É exatamente nesta zona periférica, dos deveres de conduta de lealdade, informação e esclarecimento, que a doutrina fala no princípio da boa-fé.
O conceito de boa-fé aparece na nossa lei substantiva civil fundamentalmente em dois sentidos distintos. No sentido subjetivo é entendido como o comportamento psicológico de determinado sujeito por conhecer ou não determinado facto (v.g. Art.s 243º e 291º do C.C.). No sentido objetivo, fala-se do princípio da boa-fé, que expressa a existência dum dever de conduta honesta, correta e leal imposta aos sujeitos de determinada relação jurídica (v.g. Art.s 227º e 762º do C.C.).
Citando Larenz: «O princípio da boa-fé significa que todos devem guardar “fidelidade” à palavra dada e não frustrar ou abusar daquela confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas» (Citação da tradução constante das lições de “Direito das Obrigações” do Prof. Rui de Alarcão, Coimbra 1983, pág. 110).
Num sentido moderno, o princípio da boa-fé obriga não só que as partes se devem abster de ter comportamentos desonestos, incorretos e desleais (vertente negativa), como impõe a obrigação de cooperação, de proteção, de esclarecimento e de lealdade (vertente positiva). Ou seja, as partes devem-se mutuamente os comportamentos necessários para que o fim contratual se realize, devendo prestar as informações que se imponham, manter a fidelidade à palavra dada, e colaborar na medida em que tal seja normal e razoável esperar (vide: Pires de Lima e Antunes Varela – “Código Civil Anotado”, Vol. II, 4ª Ed. Rev. e atualizada, pág.s 1 a 3 - onde menciona a posição de Larenz no "Lerrbuch des Schudrechts", 12ª Ed., I § 10, pág. 106).
Como referido, estes deveres de conduta nascem antes e independentemente dos deveres de prestação principais, e podem subsistir mesmo depois do cumprimento destas prestações.
Neste pressuposto, a violação desses deveres de conduta pode dar lugar à obrigação de indemnizar, mesmo que o contrato não se chegue a concretizar (fala-se então de responsabilidade civil pré-contratual – teoria da “culpa in contrahendo”), ou mesmo depois do contrato extinto pelo cumprimento (surge então o conceito de responsabilidade civil pós-contratual – teoria da “culpa post pactum finitum”") - Vide: Menezes Cordeiro, “Da Boa-fé no Direito Civil”, pág.s 625 e ss.
É, portanto, da constatação da existência destes deveres de conduta, que nascem ainda na fase das negociações tendentes à celebração de um contrato, os quais são fundados no princípio da boa-fé, que a nossa lei prevê a responsabilidade civil estabelecida no Art. 227º n.º 1 do C.C., justificada pelo princípio da tutela da confiança, encontrando-se aquela subordinada ao regime jurídico da responsabilidade contratual ou obrigacional, cuja regulamentação geral consta dos Art.s 798º e ss do C.C..
Partindo desta conclusão, diremos que a obrigação de indemnização depende da verificação em concreto dos pressupostos da responsabilidade contratual, que são no essencial os seguintes:
a) A ilicitude do incumprimento duma obrigação – que no caso da responsabilidade pré-contratual se traduz no incumprimento de um dever de conduta imposto pelo princípio da boa-fé na fase das negociações do contrato;
b) A culpa – que se traduz num juízo de censurabilidade jurídica relativamente ao não cumprimento, por se concluir que o devedor poderia e deveria agir doutro modo. Culpa que, na responsabilidade contratual (obrigacional), se presume (Art. 799º do C.C.);
c) O dano – correspondente aos prejuízos causados na esfera patrimonial do credor; e
d) O nexo causal entre o facto ilícito considerado e o dano verificado (Vide: Antunes Varela in “Das Obrigações Em Geral”, Vol. II, 4ª Ed., pág.s 90 a 102).
No que tange à consideração da ilicitude no quadro da responsabilidade pré-contratual a questão oferece particular complexidade, porquanto, estão sempre em conflito o princípio geral da responsabilidade civil por danos, por um lado, com o da autonomia privada, por outro, incluindo-se neste último o subprincípio da liberdade contratual reconhecida às partes (Art. 405º do C.C.), desde logo na vertente do poder que lhes é reconhecido recusarem a celebração do contrato.
De facto, por princípio, as partes são livre de contratar, ou não contratar, sendo que ambas têm de conhecer, como risco normal das negociações, a possibilidade das mesmas não chegarem a um entendimento que satisfaça os seus interesses negociais que em concreto se contrapõem. Pelo que, não serão todas e quaisquer negociações, nem todos e quais prejuízos, que merecerão a tutela do direito numa fase do processo negocial que está sujeito a um risco assumido e conhecido por ambas as partes.
É genericamente reconhecido que não se pode considerar que as partes estão vinculadas a concluir um contrato apenas pelo facto de terem iniciado negociações. Pelo contrário, as partes devem saber que o contrato pode não ser concluído por não terem chegado a acordo, assistindo a qualquer delas o direito de romper as negociações quando chegarem a essa conclusão (Vide: Galvão Telles in “Manual dos Contratos Em Geral”, Reprint - Lex, pág.s 188 a 190; Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”. Vol. I, 5ª Ed., pág. 261; e Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 5ª Ed., pág. 348 e ss).
A jurisprudência tem vindo a reconhecer que só haverá obrigação de indemnização emergente de responsabilidade pré-contratual se existirem negociações suscetíveis de criar uma razoável base de confiança no outro contraente, as quais depois são rompida de forma inesperada e injustificada, numa situação que se reconduz na prática a uma forma de abuso de direito (Vide, a propósito, entre muitos outros: Ac. S.T.J. de 9/2/1999 C.J.S.T.J.-I, pág. 84; Ac. R.L. de 8/7/2001 C.J.-IV, pág. 77; Ac. R.P. de 26/2/1980 C.J.-I, pág. 58; e Ac. R.E. de 30/10/1997 C.J.-IV, pág. 282).
Com o mesmo tipo de preocupações, a grande maioria da doutrina também exige, como pressupostos comuns da responsabilidade pré-contratual, que tenha sido criada uma situação de confiança justificada de que o contrato iria ser concluído e que haja uma rutura das negociações sem motivo legítimo, pois só assim se poderia considerar violado o princípio da boa-fé, que é o pressuposto legal da responsabilidade civil consagrada no Art. 227º n.º 1 do C.C..
Menezes Cordeiro (Vide: “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo I, 2ª Ed., pág. 233 a 238), num estudo mais aprofundado do princípio da tutela da confiança, como concretização do princípio da boa-fé, realça que aquele implica em geral a verificação de um conjunto de pressupostos para merecer a proteção legal considerada. Assim, considera que:
1º) Tem de existir uma situação de confiança fundada na boa-fé subjetiva, ou seja na consideração ética da própria da pessoa que ignora, sem culpa, estar a lesar os direitos doutrem;
2º) Tem de existir uma justificação para essa confiança, fundada em factos objetivos capazes de tornar a crença dessa pessoa plausível;
3º) Tem de existir um investimento de confiança assente numa atividade jurídica efetiva por parte do sujeito, a qual deve ser consistente com a sua crença;
4º) Tem de haver uma imputação da confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante. Ou seja, a proteção da confiança duma parte resulta do reconhecimento de que a outra é a autora da situação de confiança e é assim causalmente responsável pela situação criada.
Estes pressupostos gerais, que inspiram a proteção legal da tutela da confiança, é que justificam a obrigação de indemnização designadamente quando, na fase da preparação dos contratos, uma das partes suscite situações de confiança que depois vem a frustrar, como será o caso de alguém que tem apenas uma vontade remota de contratar, mas age de forma a convencer a contraparte do contrário (Vide: Menezes Cordeiro in Ob. Loc. Cit. pág. 399).
Mas o princípio da boa-fé não se esgota na proteção da confiança, devendo ainda ser considerado o princípio da primazia da materialidade subjacente.
Sucintamente, este princípio faz realçar que não basta que as partes adotem comportamentos que formalmente respeitem a ordem jurídica e os objetivos que esta pretende alcançar. A boa-fé exige que os atos considerados produzam materialmente as consequências jurídicas pretendidas pela ordem jurídica, não sendo aceitáveis condutas que se traduzem atos emulativos (atos gratuitamente danosos para outrem) ou atuações gravemente desequilibradas (atos destinados a obter uma vantagem mínima para o próprio, mas que geram dano máximo para outrem) – (Vide: Menezes Cordeiro, in Ob. Loc. Cit., pág. 239).
É o princípio da primazia da materialidade subjacente que permite que haja obrigação de indemnização nas negociações emulativas, dilatórias e de chicaneira, na medida em que sejam estranhas à autonomia privada e contrárias à boa-fé, pois apesar do Direito reconhecer a liberdade de negociar e de romper as negociações, esses direitos devem ser exercidos com o propósito material da livre busca do consenso e não apenas na procura duma conformidade formal com a ordem jurídica (Vide: Menezes Cordeiro, in Ob. Loc. Cit., pág. 400).
No caso concreto dos autos é indiscutível que existiram negociações tendentes à eventual celebração de um contrato de compra e venda, traduzida numa “promessa verbal mútua de compra e venda” relativa ao imóvel arrendado a que os autos se reportam.
De facto, decorre da matéria de facto que, ainda que em condições muito imprecisas, que não foram concretamente apuradas, os R.R. acordaram, como inquilinos e promitentes-compradores, em prometer comprar à A., e esta, por sua vez, como senhoria e promitente vendedora, prometer vender àqueles o imóvel que era também objeto de contrato de arrendamento que vinculava ambas as partes.
Tudo indica ainda que ambas as partes estavam cientes da necessidade de obter a “legalização” do imóvel, como condição prévia e indispensável à celebração da escritura de compra e venda pretendida realizar.
Essa “legalização” mais não era que a obtenção da “licença de utilização”, promovendo junto da edilidade competente os procedimentos administrativos adequados para esse efeito.
Por isso foi decidido dar início a esse “processo de legalização” contratando uma arquiteta para dar início aos trâmites legais que passavam pela elaboração de um projeto de arquitetura, sendo claro da matéria de facto provada que esse encargo foi assumido diretamente pelos R.R., que pagaram os honorários devidos no valor de €960,00.
De referir que não se provou que a licença de utilização tivesse sido obtida. Aliás, apesar de tal não constar da matéria de facto, resulta da discussão que supra fizemos da mesma, que esse processo administrativo não chegou efetivamente ao fim.
Como já vimos atrás, o processo não chegou ao fim, porque era necessária a assinatura da A. e, esta, em meados de agosto de 2016, decidiu que já não queria vender o imóvel, na sequência de desentendimento havidos entre as partes.
Dito isto, a causa da rutura negocial não foi apenas a vontade da A. de não mais querer vender o imóvel aos R.R.. A causa da rutura negocial foi objetivamente o desentendimento havido entre as partes. Ou seja, a rutura é imputável a ambas as partes, sem distinções a considerar. Não se pode sequer presumir que a A. seja a principal culpada.
Ora, nestas condições não se pode dizer que houve um rompimento injustificado das negociações, nem uma situação de abuso de direito ou de manifesta violação do princípio da boa-fé.
É inquestionável que houve uma situação de confiança subjetiva e objetiva, que justificou a realização de determinado investimento por parte dos R.R., fundado na expectativa legítima de que iria ser celebrado um contrato de compra e venda no futuro. Só que o desequilíbrio final verificado, que motivou o fim da relação jurídica estabelecida entre as partes, resulta duma causalidade algo indefinida, que não pode ser imputável fundamentalmente à A., não se podendo concluir sem mais que foi esta quem violou as regras de conduta emergentes do princípio da boa-fé. Por isso, não há fundamento para considerarmos que no caso haveria lugar a responsabilidade civil pré-contratual, nos termos previsto no Art. 227.º n.º 1 do C.C..
Deste modo, a despesa com os honorários da arquiteta, que comprovadamente foi apenas por conta dos R.R., não foi só por conta, mas cumulativamente por sua conta e risco, porque foi despesa assumida numa fase muito precoce do processo negocial em que ainda não havia muita segurança sobre a vontade efetiva das partes.
Veja-se que nem sequer se apurou uma das condições essenciais para haver um contrato de compra e venda, como seja a fixação do preço (Art. 874.º e 879.º al. c) do C.C.). Pelo que, nestas condições, o risco de não haver compra e venda era ainda muito real e acabou por se consumar com o desentendimento entre as partes, numa fase em que ainda não se tinham definido os contornos das prestações principais do “contrato prometido”.
Por outro lado, como é realçado na sentença recorrida, não se provou qualquer situação de enriquecimento sem causa, porque não foi obtida licença de utilização relativa ao imóvel da A..
Aliás, quanto ao eventual empobrecimento dos R.R., ele também não deixa de estar envolto em alguma nebulosidade, nomeadamente tendo em consideração que a A. veio sustentar no seu depoimento de parte que os €960,00 pagos à arquiteta foram imputados ao pagamento das rendas de junho, julho e agosto de 2016. É certo que isso não ficou refletido desse modo na matéria de facto provada, limitando-nos nós a constatar que a A. não invocou o incumprimento do pagamento dessas rendas na sua causa de pedir.
Em face de todo o exposto, concordamos com a conclusão de que os R.R. não provaram ser titulares de qualquer direito de crédito sobre a A., apesar de terem pago €960,00 de honorários para dar início ao processo de “legalização” de um imóvel que acabaram por não adquirir.
Competindo aos R.R. o ónus de prova dos factos que integram a exceção perentória da compensação, como causa de extinção da obrigação de pagamento das rendas (Art.s 342.º n.º 2 e 847.º do C.C.), e não tendo logrado cumprir esse ónus, mais não resta que julgar a reconvenção por improcedente.
Nessa medida, as conclusões apresentadas, que vão em sentido contrário ao exposto, não merecem acolhimento, sendo de confirmar inteiramente a sentença recorrida.
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V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, quer quanto à impugnação da matéria de facto, quer quanto ao mérito da causa, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
- Custas pelos apelantes A.A. (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 16 de Outubro de 2018

Carlos Oliveira

Diogo Ravara)

Ana Rodrigues da Silva
Decisão Texto Integral: