Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
626/1998.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
CONHECIMENTO OFICIOSO
AUDIÊNCIA DE PARTE
NULIDADE
ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO
Sumário: I – A lei não comina com a nulidade as cláusulas a que se reporta o art. 8 do dl 446/85, de 25-10, como o faz no art. 12 do mesmo diploma com respeito às cláusulas proibidas; todavia, ao dizer que as mesmas se consideram excluídas dos contratos reputa-as de inexistentes.
II - Tratando-se de uma questão de inexistência jurídica, é permitido o seu conhecimento oficioso pelo Tribunal – logo, ao apreciá-la, mesmo que não invocada pelas partes, o juiz não conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento.
III – A não audição das partes, prévia à decisão de uma questão sobre a qual elas não tiveram possibilidade de se pronunciarem, correspondendo à violação do disposto no nº 3 do art. 3 do CPC, traduz-se numa nulidade processual prevista pelo art. 201 do mesmo Código – que não numa nulidade da sentença que com aquela se não confunde e a que se não pode reconduzir; assim, dispunha a parte do prazo de 10 dias para a arguir junto do tribunal em que fora cometida (junto do Tribunal de 1ª instância) dela não cabendo directamente recurso para o Tribunal da Relação, sem que aquele primeiramente a apreciasse, consoante resulta das disposições conjugadas dos arts. 205, nºs 1 e 3 e 153 do CPC.
IV - No chamado contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel este destina-se ao uso de um único utilizador e cada uma das prestações mensais relativas a tal uso corresponde a uma fracção da quantia global a reembolsar ao locador, não se tratando de remunerar o locador pela concessão temporária do gozo da coisa locada, mas de reembolsá-lo da quantia que adiantou na sua aquisição, acrescida de juros remuneradores da intermediação financiadora.
V – Neste contrato, em caso de atraso na restituição da coisa locada, os locatários não estão obrigados a satisfazer à locadora valor idêntico ao do aluguer mensal por cada mês decorrido para além da data em que ocorreu o termo do contrato, não se lhe aplicando o disposto no art. 1045 do CC.
VI - A celebração do contrato de aluguer de longa duração não conduz automaticamente à aquisição da coisa pelo locatário, mesmo após aquele ter findado - beneficiando o locatário de uma promessa de venda, terá lugar, então, a celebração do contrato de compra e venda, só então se transferindo a propriedade.
VII – No caso dos autos a sanção pecuniária compulsória cuja aplicação foi requerida está correlacionada com a entrega do veículo; a concretização da condenação naquela entrega, típica prestação de coisa, é possível através da execução específica, nos termos do art. 827 do CC, não havendo lugar à aplicação da sanção pecuniária compulsória prevista no nº1 do art. 829-A do CC, não se subsumindo este caso a tal previsão.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
                                                           *
I - «T..., SA», intentou a presente acção declarativa com processo sumário contra Maria e António.
Alegou a A., em resumo:
Na sequência do que lhe foi solicitado pela «Garagem, Lda.», por ela e em nome dos RR., a A. adquiriu, com destino a dar de aluguer aos RR. o veículo automóvel de marca Citröen, modelo C 15 D, com a matrícula ...., sendo que por contrato particular, com início em 25-10-92, a A. deu de aluguer aos RR. o referido veículo.
O prazo do aluguer foi de trinta e seis meses, sendo mensal a periodicidade dos alugueres, num total de trinta e seis, no montante de 64.443$00 cada, incluindo IVA.
Os RR. receberam da A. o veículo automóvel, mas não pagaram a esta a totalidade dos alugueres. Tendo o contrato, entretanto, chegado ao respectivo termo, os RR. não restituíram à A. o veículo.
Concluiu ter a haver dos RR. os alugueres vencidos e não pagos, os valores mensais idênticos aos de cada aluguer, desde a data do termo do contrato até à efectiva recuperação do veículo, valores referentes a Imposto de Circulação do Veículo e juros de mora, estando aqueles, ainda, obrigados a restituir o veículo e a satisfazer à A. os valores dos danos que este apresentasse e de eventuais quilómetros suplementares percorridos – o contrato previa uma utilização de 3.000 Km/mês - bem como uma indemnização por lucros cessantes.
Pediu a A. a condenação dos réus a pagarem, solidariamente, a quantia de Esc. 2.260.040$00, mais Esc.: 522.112$60 de juros vencidos até à propositura da acção — 17 de Julho de 1998 — mais os juros que, à taxa legal de 15% sobre a dita quantia de Esc. 2.260.040$00 se vencerem desde 18 de Julho de 1998 até integral pagamento, mais os montantes idênticos aos do valor dos alugueres — à razão de Esc.: 64.443$00 por mês — que se vencerem, aos 25 do mês a que respeitem, desde 25 de Julho de 1998, inclusive, até à efectiva restituição do veículo automóvel, e os juros que, à taxa legal de 15%, sobre os referidos montantes idênticos ao valor dos alugueres se vencerem desde o vencimento de cada um deles até integral pagamento, bem como, a restituir à A. o veículo automóvel cujo valor é de Esc.: 1.650.000$00, e, ainda, no pagamento da sanção pecuniária compulsória, da quantia de Esc.: 10.000$00 por dia, durante os primeiros 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado, quantitativo a passar a ser de Esc.: 20.000$00 por dia nos 30 dias seguintes, e a Esc.: 30.000$00 por dia daí em diante, e até integral cumprimento da respectiva condenação, ou no montante que vier a ser fixado na sentença a proferir, bem como no pagamento das custas, procuradoria, e mais legal.
Os RR. contestaram, alegando, designadamente, terem querido comprar o veículo e não alugá-lo, não se tendo obrigado a restituí-lo à A., devendo a esta, apenas, o montante de 193.329$00  de prestações que não pagaram, estando disponíveis para pagar aquela quantia em atraso e uma verba final estipulada mas de valor não determinado a cujo apuramento a A. não se disponibilizou.
Mais referiram pretender a A. a aplicação de cláusulas proibidas, as cláusulas 8ª e 9ª do contrato, face ao disposto nos arts. 12 e 19-c) do dl 446/85, de 25-10 e, como tal, nulas.
Concluíram pela improcedência da acção em tudo o que exceda o montante de 193.329$00, acrescido da verba correspondente ao valor residual.
Na réplica a A. requereu a ampliação do pedido que formulara, considerando-se o pedido ampliado para 2.280.020$00 (195.549$00 [correspondentes ao efectivo valor dos alugueres em dívida] + 2.079.936$00 [importância equivalente à dos alugueres respeitantes ao período que decorre desde a data do termo do contrato até à data da propositura da acção] + 4.535$00 [de imposto de circulação do veículo]) mais 514.858$60 de juros vencidos até à propositura da acção, mais os juros que à taxa legal de 15% se vencerem sobre aquela quantia de 2.280.020$00 desde 18 de Julho de 1998 até integral pagamento, mais os montantes idênticos aos do valor dos alugueres – à razão de 64.998$00 por mês – que se vencerem aos 25 de cada mês, desde 25 de Julho de 1998 até à efectiva restituição do veículo e os juros que à taxa legal de 15% se vencerem sobre os referidos montantes, bem como a restituir à A. o veículo automóvel dos autos cujo valor é de 1.650.000$00 e, ainda, no pagamento da sanção pecuniária compulsória, da quantia de 10.000$00 por dia, durante os primeiros 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado, quantitativo a passar a ser de 20.000$00 por dia nos 30 dias seguintes, e a 30.000$00 por dia daí em diante, e até integral cumprimento da respectiva condenação, ou no montante que vier a ser fixado na sentença a proferir, bem como no pagamento das custas, procuradoria, e mais legal.
A ampliação do pedido foi admitida.
O processo prosseguiu, vindo, a final, a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os RR. a pagarem à A. a quantia de Esc,: 195.549$00 (ora de € 975,39), acrescida dos juros de mora que, às taxas legais sucessivamente em vigor se venceram e vencerem sobre as seguintes quantias de capital:
1) Esc.: 555$00 (ora de € 2,77), desde 25 de Janeiro de 1995, até integral pagamento;
2) Esc.: 64.998$00, ora de € 324,21, (prestação 29ª), desde 25 de Fevereiro de 1995, até integral pagamento;
3) Esc.: 64.998$00, ora de € 324,21, (prestação 34ª), desde 25 de Julho de 1995, até integral pagamento)
4) Esc.: 64.998$00, ora de € 324,21, (prestação 35ª), desde 25 de Agosto de 1995 até integral pagamento.
A A. interpôs recurso de apelação.
Nas alegações de direito que apresentaram (fls. 362 e seguintes) os RR. haviam requerido a condenação da A. como litigante de má fé em multa e indemnização a seu favor.
Foi proferida decisão em que se consignou não se afigurarem provados os elementos essenciais para condenar a A. como litigante de má fé e admitido recurso dos RR. no que a tal decisão respeita.
A A. concluiu nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1. Devia ter sido considerado como provado nos autos que o contrato celebrado entre a A., ora recorrente, e os RR, ora recorridos é um contrato de aluguer de veículo sem condutor.
2. Ao omitir, como omitiu, tais factos provados nos autos o Sr. Juiz a quo violou, de forma aliás grosseira e flagrante, o disposto nos n.ºs 2 e 3 do  artigo 659º do Código de Processo Civil, o que constituí nulidade de conhecimento oficioso.
3. Deve, pois, dar-se expressamente por provado nos autos que o contrato celebrado entre a A. e os RR é um contrato de aluguer.
4. O contrato celebrado entre recorridos e recorrente é um contrato de aluguer de veículo sem condutor, nos termos e de harmonia com o disposto nos artigos 1022º e seguintes do Código Civil, mas sujeito a algumas particularidades, designadamente decorrentes do próprio clausulado do contrato e, ainda das normas ínsitas no Decreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, e até das constantes do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 15/88, de 16 de Janeiro, e não um contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade nem um contrato de locação financeira nem um contrato a estes equiparável, e não é pelo facto de ter sido também celebrada uma promessa unilateral de venda como a dos autos que assim deixa de ser.
5. O que a A. e os RR celebraram foram dois contratos perfeitamente distintos e autónomos, um de aluguer de veículo sem condutor, regulado pelos artigos 1022º e seguintes do Código Civil, e pelo Decreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, e o outro, um contrato promessa de venda, regulado pelos artigos 410º e seguintes do Código Civil, este para valer apenas e unicamente caso se tivessem verificado as condições logo acordadas na dita promessa de venda, ou seja bom cumprimento de todas as cláusulas do contrato de aluguer, designadamente o pagamento de todos os alugueres acordados, aliás na data aí expressamente referida.
6. O contrato de aluguer dos autos é, pois, um contrato de aluguer de veículo sem  condutor regulado pelos artigos 1022º e seguintes do Código Civil, e pelo Decreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, distinto e autónomo da promessa de venda, regulada pelos artigos 410º e seguintes do Código Civil, para valer apenas e unicamente sob as  condições nela acordadas, que no caso em apreço nunca se verificaram.
7. Não está, pois, em causa nos autos qualquer contrato de compra e venda a prestações, nem qualquer contrato ao qual seja aplicável qualquer dos regimes específicos da compra e venda a prestações.
8. É perfeitamente válida e eficaz a resolução do contrato de aluguer dos autos operada pela ora recorrente, sendo que os recorridos estão desde a data da resolução obrigados a restituir à ora recorrente o veículo automóvel dos autos, bem como, nos termos do disposto no artigo 1045º do Código Civil, a pagar-lhe um montante mensal idêntico ao do aluguer desde a data da resolução até à data em que venha a restituir à A. recorrente o veículo locado, que sempre foi e é propriedade plena da recorrente.
9. Está mais que provado nos autos e ressalta de toda a documentação a eles juntos que o veículo dos autos é propriedade da A., ora recorrente, donde não conseguir-se vislumbrar em que base legal assenta o raciocínio o Senhor Juiz a quo ao pretender que os RR., ora recorridos não têm que restituir o veículo à sua proprietária, face ao incumprimento do contrato dos autos que se encontra também neles provado.
10. Os RR., ora recorridos, estão obrigados a restituir à A., ora recorrente, o veículo dos autos, propriedade desta, atento o disposto no artigo 17º, nº 4 do Decreto-Lei nº 354/86, de 23 de Outubro
11. A possibilidade da aquisição do veículo dos autos pelos RR., ora recorridos, estava evidentemente dependente do cumprimento integral do contrato de aluguer de veículo sem condutor dos autos.
12. A “questão” – da pretensa exclusão das condições gerais do contrato – não é do conhecimento oficioso.
13. As condições gerais acordadas no contrato dos autos – que os recorridos não puseram sequer em causa - encontravam-se integralmente impressas no contrato de aluguer dos autos quando os RR. ora recorridos e a A. recorrente nele apuseram as suas assinaturas.
14. Depois do contrato dos autos ter sido assinado, não foi inserta, aposta, imprimida, ou redigida qualquer cláusula no referido contrato, designadamente, qualquer cláusula prevista nas condições gerais do mesmo.
15. Aliás, consta expressamente do contrato dos autos e está provado nos autos que: “...é celebrado o presente contrato que se rege pelas condições gerais impressas no verso  deste documento e pelas seguintes condições particulares:...”
16. Acresce que, consta expressamente do contrato dos autos – e foi, aliás, expressamente referido na sentença recorrida - e está até expressamente provado nos autos que “o Locatário e o seu fiador declaram ter tomado conhecimento e aceite sem reservas as Condições Gerais e Particulares a que fica submetido este contrato”. (vide doc. nº 2 junto aos autos com a petição inicial) pelo que dúvidas não restam quanto à vinculação dos RR., ora recorridos, às mesmas.
17. Acresce, ainda, que é evidente que constando expressamente da folha do contrato assinada pelo locatário que o contrato tem condições específicas e condições gerais e que o locatário declara ter tomado delas conhecimento e tê-las aceite sem reservas, um declaratário normal infere a existência de  condições gerais que se não estão na primeira folha têm que estar noutra ou no verso.
18. Não existe, pois, qualquer violação do disposto na alínea d) do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
19. Não há, pois, que excluir o que quer que seja do contrato dos autos, designadamente as condições gerais do contrato acordadas entre o A., ora recorrente, e os RR., ora recorridos.
20. Aliás quanto à referida “questão”- alegada violação do disposto no artigo 8º, alínea d) do Decreto-Lei 446/85 – que nunca esteve em causa nos autos e que apenas o Sr. Juiz a quo decidiu por forma a poder negar à recorrente o direito que lhe assiste – implicam ainda a violação dos artigos 490º, 505º e 659º, n.º 3, do Código de Processo Civil por parte do Sr. Juiz a quo.
21. Nos autos, nunca se pôs sequer a questão da pretensa exclusão das condições gerais do contrato, designadamente por as mesmas se encontrarem no verso do contrato, nem qualquer parte interessada manifestou vontade de se aproveitar do que quer que seja nesse sentido.
22. A eventual exclusão das ditas cláusulas gerais do contrato dos autos não acarretaria a nulidade do referido contrato, pelo que nem sequer se trata de qualquer pretensa nulidade do contrato dos autos ou da aplicação do disposto no artigo 286º do Código Civil.
23. Não tinha, nem podia pois, o Sr. Juiz conhecer da “questão” da pretensa exclusão das condições gerais do contrato dos autos.
24. Mas o Sr. Juiz a quo violou ainda o disposto no artigo 3º do código de Processo Civil, designadamente no que concerne à proibição das chamadas “decisões-surpresa”.
25. Como dos autos ressalta, nunca foi dada à A., ora recorrente, oportunidade para se pronunciar relativamente à dita questão que, por auto recriação, o Sr. Juiz a quo decidiu “ir buscar” para dizer que considerava excluídas do contrato dos autos as condições gerais nele acordadas entre as partes.
26.Mas ao proceder como procedeu o Sr. Juiz a quo relativamente à referida “questão”, verifica-se ainda que a sentença padece de nulidade por violação do artigo 668º, n.º 1, parte final da alínea d), do Código de Processo Civil, ou seja, por excesso de pronúncia.
27. É, pois, por todas as razões apontadas ERRADA a decisão do Sr. Juiz a quo de considerar excluídas do contrato dos autos as condições gerais nele expressamente acordadas entre as partes.
28. Quanto á alegada nulidade das clausulas 8ª e 9ª das condições gerais do contrato dos autos, face ao teor do disposto no artigo19º, alínea c) do Decreto-Lei 446/85, não assiste novamente razão ao Senhor Juiz a quo.
29. As Cláusulas 8ª e 9ª das Condições Gerais do contrato dos autos não consubstanciam evidentemente cláusulas penais e muito menos desproporcionadas aos danos a ressarcir.
30. O que releva portanto para se saber se, à luz dos referidos artigos 12º e 19º, alínea c), do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, se uma cláusula penal é ou não nula é o facto de, consoante o quadro negocial padronizado, tal cláusula penal ser ou não  desproporcional aos danos a ressarcir, e não a finalidade das partes, ou seja, a que título a cláusula penal foi estipulada.
31. As Cláusulas 8ª e 9ª das Condições Gerais do contrato dos autos consubstanciam cláusulas penais.
32. A cláusula 9ª, nº 3, das condições gerais do contrato dos autos limita-se a dispor que a Locadora fica autorizada a retirar a viatura ao locatário sempre que a sua restituição não se efective voluntariamente, não consubstanciando evidentemente qualquer cláusula penal.
33. A Cláusula 8ª das Condições Gerais do contrato de aluguer dos autos não consubstancia cláusula penal, atento que nela não se liquida ou fixa o valor da indemnização dos prejuízos sofridos pela recorrente, A. na acção, no caso de resolução do contrato por incumprimento do mesmo por parte dos RR., ora recorridos.
34. Acresce que, ainda que se entendesse - o que se refere por mero dever de patrocínio e a título meramente académico - que a referida Cláusula 8ª das Condições Gerais do contrato de aluguer dos autos constitui cláusula penal - e não constitui, como se explicitou - o certo é que tal pretensa clausula penal não seria excessiva e muito menos manifestamente excessiva, pelo que jamais seria nula.
35. Nada se contém na dita Cláusula 8ª, das Condições Gerais do contrato de aluguer do veículo automóvel dos autos que configure desproporção sensível ou excesso manifesto entre a pretensa pena nela estabelecida e os prejuízos a ressarcir.
36. Tal desproporção deve ser apreciada em abstracto, no âmbito do quadro negocial padronizado e não face ao caso concreto.
37. Deve sempre atender-se à especificidade do contrato dos autos como contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel sem condutor que é.
38. É que nos contratos de aluguer de veículo sem condutor, atenta a sua longa duração, existe um grande risco de perecimento e desvalorização do veículo.
39. Acresce que, a A., ora recorrente, apenas adquiriu - como adquire sempre - o veículo dos autos, a solicitação dos RR, ora recorridos, e para lho dar de aluguer.
40. Não tem pois fundamento a pretensa manifesta excessividade do acordado nas Cláusulas 8ª e 9ª das Condições Gerais do contrato dos autos, não sendo as mesmas contrárias - mesmo que consubstanciassem cláusulas penais, o que não consubstanciam conforme explicitado - nem ao disposto nos artigos 12º e 19º, ambos do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, nem ao disposto no artigo 812º do Código Civil.
41. A A., ora recorrente, atento o incumprimento por parte dos RR., ora recorridos, do contrato dos autos, apenas peticiona, as quantias a que tem direito nos termos legais e resultantes do estabelecido no contrato celebrado.
42. Inexiste, pois, o alegado abuso de direito por parte da A., ora recorrente. 
43. Ao decidir como o fez na sentença recorrida o Sr. Juiz a quo, para além de demonstrar inequivocamente a sua firme vontade em negar à ora recorrente o direito que lhe assiste, violou, aplicou e/o deixou de aplicar, e interpretou erradamente o disposto nos artigos 334º, 410º, 812º, 934º, 936º e 1022º e seguintes, e 1045º do Código Civil, nos artigos 3º, 264º, 490º, 505º, 659º, n.ºs 2 e 3, 664 e 668º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil, na alínea d) do artigo 8º, artigo 12º e 19º, alínea c), todos do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, e no artigo 17º, nº 4 do Decreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro.
            Os RR. contra alegaram nos termos de fls. 545 e seguintes.
            Já os RR. concluíram a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
            A) Age de má fé quem, como a Autora, invoca um contrato de aluguer sem condutor de um veículo automóvel quando bem sabia ter firmado um contrato de venda desse mesmo veículo, com transferência imediata da propriedade para os compradores,
            B) Age de má fé quem, como a Autora, após ser confrontada com uma promessa unilateral de venda por si subscrita a favor dos Réus continua a insistir, dolosa e falsamente, que o contrato foi um aluguer de longa duração sem condutor, com obrigatoriedade de restituição do veículo;
            C) Ao agir como agiu a Autora, dolosamente, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão da causa;
            D) E impediu a descoberta da verdade, que só foi conseguida graças aos Réus;
E) Assim, deve ela, pois, ser condenada como litigante de má fé em multa em montante que este Venerando Tribunal fixará e na indemnização de 2.500,00 Euros a favor dos Réus considerando os honorários dos seus mandatários e o número (4) e a extensão (480 Km, ida e volta) das deslocações a esta cidade de Lisboa que eles se viram obrigados a fazer, multa e indemnização previstas, respectivamente, nos artigos 456° e 457º do Código de Processo Civil, preceitos legais violados pela sentença recorrida.
F) Dando, deste modo, provimento ao presente recurso, Vossas Excelências farão mais uma vez Justiça!
A A. contra alegou consoante fls. 556 e seguintes.
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            II – 1) O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1 – A Autora denomina-se actualmente "T, S. A." e anteriormente denominava-se "S, S. A." (al. A) da Matéria Assente);
2 – Os Réus pretendiam adquirir o veículo automóvel de marca Citroën, modelo C 15 D, com a matrícula ...., tendo para o efeito contactado a firma "Garagem, Lda." (al. B) da Matéria Assente);
3 – Os Réus não pagaram à Autora parte da prestação n° 28 – Esc.: 555$00 –, que se venceu em 25 de Janeiro de 1995, as prestações 29ª, que se venceu em 25 de Fevereiro de 1995, 34ª, vencida em 25 de Julho de 1995, e 35ª, com vencimento em 25 de Agosto de 1995 (al. C) da Matéria Assente);
4 – Os Réus não podiam pagar a pronto o veículo automóvel e daí a intervenção da Autora (resposta ao quesito 1);
5 – A Autora adquiriu o veículo com vista à celebração do contrato com os Réus (resposta ao quesito 2);
6 - Os Réus e a Autora subscreveram o contrato cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 30 (resposta ao quesito 3);
7 – O prazo do contrato foi de trinta e seis meses, sendo mensal a periodicidade dos pagamentos, num total de trinta e seis prestações, no montante de Esc.: 64.443$00 cada, incluindo já o IVA respectivo (resposta ao quesito 4);
8 – O montante mensal das prestações de Esc.: 64.443$00 correspondia a Esc.: 55.554$00 de prestação, acrescida de Esc.: 8.889$00 de IVA, à taxa legal então em vigor de 16%, sujeita às alterações legais posteriores (resposta ao quesito 5);
9 – A) Consta do verso do contrato a cláusula 3ª, soba epígrafe "Preço", onde lê que:
"1. O preço retribuição do aluguer consiste:
a) no pagamento periódico dos montantes e nas datas indicadas em condições particulares, independentemente dos quilómetros percorridos pelo veículo.
b) num montante variável, a determinar e liquidar no termo da vigência deste contrato, correspondente ao número de quilómetros suplementares percorridos pelo veículo, para além dos 3.000 quilómetros/mês, ao preço de Esc.: 18$00 por cada quilómetro suplementar. (...)";
B) Consta do verso do contrato a cláusula 8ª, sob a epígrafe "Rescisão e Denúncia", onde lê que:
"1. O incumprimento pelo locatário de quaisquer das obrigações assumidas no presente contrato dará lugar à possibilidade da sua resolução pela locadora, tornando-se efectiva essa resolução à data da recepção pelo locatário de comunicação fundamentada nesse sentido.
(...)
3. A resolução por incumprimento não exime o locatário do pagamento de quaisquer dívidas em mora para com a locadora, da reparação de danos que o veículo apresente, do valor dos eventuais quilómetros suplementares calculados numa base proporcional aos meses decorridos desde o início do contrato e de uma indemnização à locadora por lucros cessantes".
C) Consta do verso do contrato a cláusula 9ª, sob a epígrafe "Restituição do veículo", onde lê que:
"1. Findo o contrato, ou efectuada a rescisão nos termos da cláusula 8ª, o veículo será restituído no local e perante a entidade indicada, a qual procederá à inspecção do mesmo e determinará e cobrará não só o montante previsto para quilómetros suplementares, bem como o necessário à reparação de quaisquer danos no veículo da responsabilidade do locatário.
2. A não restituição do veículo, nos termos do número anterior acarreta que o mesmo passe a ser utilizado ou detido contra a vontade da respectiva proprietária, fazendo incorrer o locatário em responsabilidade criminal prevista nos artigos 296° e 300° do Código Penal Português.
3. Sem prejuízo do estipulado no número anterior, a locadora fica autorizada a retirar a viatura ao locatário sempre que a sua restituição não se efective voluntariamente nos termos do n° 1 da presente cláusula" (resposta ao quesito 6),
10 - Consta das condições particulares do contrato que a importância relativa a cada uma das prestações mensais deveria ser paga pelos Réus, à Autora, antecipadamente, no dia 25 de cada mês, por meio de transferência bancária (resposta ao quesito 7);
11 – Após a celebração do referido contrato os Réus receberam o veículo automóvel referido, que passaram a utilizar, veículo automóvel que, para o efeito a Autora propositadamente adquirira (resposta ao quesito 8);
12 - O contrato findou em 25 de Outubro de 1995 (resposta ao quesito 9).
                                                                       *
II – 2 - O juiz, ao proferir a sentença, deve ter em conta todos os factos que considere provados, ainda que não tenham sido dados como assentes na fase da condensação, nem apurados em julgamento, e a Relação pode fazer idêntico aditamento ainda que disso as partes não falem nem oportunamente tenham reclamado ([1]).
Como é sabido, a peça condensatória não é definitiva, mas, sempre que necessário, reformável ([2]), sendo «inegável que a Relação, na apreciação da matéria de facto, pode e deve, nos termos do art. 659, nº 3 (ex vi do art. 713, nº 2, do C. Proc. Civil) tomar em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito ([3]).
            Assim, numa sistematização dos factos provados, por se considerar com interesse para a decisão, aditam-se à matéria de facto provada as seguintes alíneas:
            13 – A A. adquiriu o veículo referido em 5) pelo preço de 1.650.000$00 (facto alegado pela A. no art. 21 da p.i, com a precisão decorrente dos arts. 120 e 122 da réplica e comprovado pelo documento de fls. 31 cujo original, mais legível, se encontra a fls. 127, não impugnado pelos RR. – que ao facto e ao documento se referem no art. 3 da contestação, com a inexactidão resultante da dificuldade de leitura do documento originalmente junto).
            14 – Através da denominada «Promessa Unilateral de Venda» documentada a fls. 343, datada de 30-10-92, a A. prometeu vender aos RR., ou a quem estes indicassem, a viatura de matrícula ...., «em 25/10/95, encontrando-se todos os pagamentos devidamente efectuados relativamente ao Contrato de Aluguer ....», sendo que «o valor de venda da referida viatura é estipulado tomando em consideração o bom cumprimento de todas as cláusulas do Contrato de Aluguer ... e a devolução do depósito caução já efectuado pelo locatário» (facto que integra a alegação dos RR. constante do art. 13 da contestação, comprovado pelo documento por estes junto a fls. 343).
                                                                       *
            III - Na sentença recorrida seguiu-se o seguinte raciocínio: o contrato de aluguer de longa duração de automóveis novos é um contrato indirecto em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade; estando em causa uma questão relacionada com a aquisição da propriedade do imóvel são aplicáveis ao caso as regras da compra e venda a prestações; a propriedade da coisa já se transmitiu para os RR. faltando a estes pagar o remanescente do preço; a A. tem direito ao valor das prestações que ficaram em dívida (195.549$00), acrescidas de juros à taxa legal; a A. não logrou fazer prova com respeito às quantias referentes ao Imposto de Circulação; as cláusulas 8ª e 9ª das Condições Gerais do Contrato são nulas na parte final do nº 3 daquela primeira (onde estabelece que a resolução por incumprimento não exime o locatário do pagamento de uma indemnização à locadora por lucros cessantes) e nº 3 daquela segunda (onde a locadora fica autorizada a retirar a viatura ao locatário sempre que a restituição não se efectue voluntariamente nos termos do nº 1); a totalidade das cláusulas que integram as Condições Gerais não são oponíveis aos RR., porque feridas de nulidade - constam do verso do documento, desacompanhadas de qualquer assinatura, devendo considerar-se excluídas; mesmo que assim se não entendesse a A. encontrar-se-ia a agir em abuso de direito ao reclamar as quantias pretendidas para além do valor das prestações em dívida; não procede a pretensão da A. ao peticionar quantias a título de valores equivalentes às rendas mensais desde o termo do contrato até à entrega do veículo.
            Definindo as conclusões de recurso o objecto deste, conforme decorre dos arts. 684, nº 3, e 690, nº 1, do CPC, as questões que essencialmente se nos colocam, atentas as conclusões apresentadas pela apelante/A. – acima reproduzidas – face à sentença recorrida são as seguintes: se a sentença padece de nulidade por excesso de pronúncia; caracterização do contrato que foi celebrado entre a A. e os RR. e regras ao mesmo aplicáveis; se não há que excluir do contrato as «condições gerais», não existindo qualquer violação do art. 8-d) do dl 446/85, de 25-10; se, até à restituição do veículo à A., os RR. estão obrigados a pagar-lhe um montante mensal idêntico à da prestação convencionada; se os RR. estão obrigados a restituir o veículo à A..
            No que respeita ao recurso interposto pelos RR., atentas as respectivas conclusões, a única questão que se coloca é a de se a A. deverá ser condenada como litigante de má fé em multa e indemnização a favor dos RR..
                                                                       *
            IV – 1 – A - Vejamos em primeiro lugar o que respeita à alegada nulidade da sentença.
            Defende a apelante/A. que na decisão recorrida o tribunal extravasou os seus poderes de cognição de factos para além dos que foram alegados pelas partes, o que determina a nulidade da sentença prevista no art. 668, nº 1-d) do CPC, não podendo o Juiz conhecer da questão da exclusão das condições gerais por as mesmas se encontrarem no verso do contrato, uma vez que nenhuma das partes a tal aludiu.
            De acordo com o art. 660, nº 2, do CPC, na sentença, devendo o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Em conformidade, o nº 1 – d) do art. 668 do CPC, dispõe ser nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
            Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes é nula a sentença em que o faça.
Se o juiz conheceu de questão que nenhuma das partes lhe submeteu, procedendo assim apesar de nem a lei processual nem a lei substantiva lhe permitirem o poder de apreciação oficiosa, cometeu aquela nulidade, exercendo actividade exorbitante ou excessiva ([4]).
O art. 8 do dl 446/85, de 25-10, declara quatro grupos de cláusulas que diz considerarem-se excluídas dos contratos singulares – entre elas as inseridas em formulários depois da assinatura de algum dos contratantes.
Como referem, a propósito, Almeida Costa e Menezes Cordeiro ([5]) ao «estabelecer uma disciplina global das cláusulas contratuais gerais, o legislador previu, no tocante aos contratos efectivos que nelas se baseiem, dois grupos de situações patológicas: por um lado, a celebração de contratos singulares com inobservância de certas regras pré-negociais, aplicáveis qualquer que seja o seu conteúdo; por outro lado, a celebração dos mesmos contratos com um conteúdo que a lei vede. No primeiro caso, as cláusulas contratuais gerais atingidas não se incluem nos contratos singulares. Diversamente, se ocorre a segunda hipótese, elas são nulas».
Efectivamente, a lei não comina com a nulidade as cláusulas a que se reporta o art. 8 do dl 446/85, como o faz no art. 12 do mesmo diploma com respeito às cláusulas proibidas; todavia, ao dizer que as mesmas se consideram excluídas dos contratos reputa-as de inexistentes.
Neste sentido, diz-nos Galvão Telles ([6]) que aquelas cláusulas «pelo circunstancialismo de que se revestem, são pura e simplesmente excluídas do contrato. Têm-se por não escritas. Mais do que simples nulidade, afecta-as autêntica inexistência jurídica. O contrato, em princípio permanece de pé, mas esvaziado de tais cláusulas, que se mostram desprovidas de qualquer valor ou efeito, ainda que provisório ou secundário».
A A., na p.i., referiu-se ao contrato celebrado entre as partes que deu «por inteiramente reproduzido» (art. 5), vindo a resultar da resposta ao quesito 3) que «os Réus e a Autora subscreveram o contrato cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 30».
Tendo em conta o teor do mencionado contrato documentado a fls. 30 e o disposto no art. 8 do dl 446/85, de 25-10, o Tribunal de 1ª instância concluiu deverem considerar-se excluídas todas as cláusulas constantes do verso do contrato.
Tratando-se de uma questão de inexistência jurídica, é permitido o seu conhecimento oficioso pelo Tribunal – logo, ao apreciá-la, o juiz não conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento.
Assim, a nulidade em causa – nulidade da sentença, prevista na alínea d), segunda parte, do nº 1 do art. 668 do CPC -  não foi cometida no caso dos autos.
                                                                       *
IV – 1 – B - Com aquela questão não se confunde a referente à não observação do princípio do contraditório e eventual nulidade processual dali decorrente.
Dispõe o nº 3 do art. 3 do CPC: «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Considera a apelante/A. que o tribunal de 1ª instância não deu cumprimento a este preceito quando oficiosamente considerou excluídas as cláusulas constantes do verso do contrato.
Sucede que tal conforma uma nulidade processual prevista pelo art. 201 do CPC.
Preceitua este artigo: «Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa».
            Por nulidades do processo entendem-se quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, a que esta faça corresponder, embora não de forma expressa, uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais ([7]).
            Miguel Teixeira de Sousa ([8]) refere que a «violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do art. 201º, nº 1: dada a importância do contraditório, é indiscutível que a sua inobservância pelo tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa».
            Saliente-se, todavia, que a nulidade do acto processual, de que cuida em geral o art. 201, se distingue das nulidades específicas das sentenças e dos despachos.
            Admitindo que a não audição das partes, prévia à consideração de exclusão das cláusulas em que a A. se baseava, correspondendo à violação do disposto no nº 3 do art. 3 do CPC se traduz numa nulidade processual prevista pelo art. 201 do CPC – que não  numa nulidade da sentença que com aquela se não confunde e a que se não pode reconduzir – dispunha a apelante do prazo de 10 dias para a arguir junto do tribunal em que fora cometida, ou seja, junto do tribunal de 1ª instância, dela não cabendo directamente recurso para este tribunal, sem que aquele primeiramente a apreciasse, consoante resulta das disposições conjugadas dos arts. 205, nºs 1 e 3 e 153 do CPC ([9]).
            Ora, a apelante somente na alegação de recurso veio suscitar a questão referente à mencionada nulidade. Tal arguição é, pois, intempestiva para além de deslocada, não nos cabendo dela conhecer -  a nulidade sanou-se, aliás, por falta de oportuna arguição.
            Improcedem, pois, nesta parte as conclusões da apelação da recorrente.
                                                                       *
IV – 2 - Atentemos agora à caracterização do contrato celebrado entre a A. e os RR..
Provou-se que A. e RR. subscreveram o contrato escrito documentado a fls. 30, constando do rosto de tal documento:
«Contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor Nº ....
Condições Particulares
Emitido em Lisboa, 23/10/1992
Entre S, SA, adiante designada Locadora, e Maria e António adiante designado Locatário, é celebrado o presente contrato que se rege pelas condições Gerais impressas no verso deste documento e pelas seguintes Condições Particulares:
1ª - O veículo locado é de marca e modelo CITREN C 15D, com a matrícula ..... …»
Estabeleceu-se nas referidas Condições Particulares que o prazo do contrato era de trinta e seis meses, sendo mensal a periodicidade dos pagamentos, num total de trinta e seis prestações, no montante de 64.443$00 cada, incluindo já o IVA respectivo, correspondendo aquele montante a 55.554$00 de prestação, acrescida de 8.889$00 de IVA, à taxa legal então em vigor de 16%, sujeita às alterações legais posteriores e que a importância relativa a cada uma das prestações mensais deveria ser paga pelos RR. à A., antecipadamente, no dia 25 de cada mês, por meio de transferência bancária.
 Como resulta do que acabámos de referir, estamos perante um contrato que foi denominado de «contrato de aluguer de veículo sem condutor». Todavia, como é sabido, não é apenas por as partes atribuírem determinada designação a um contrato que ele é tido como tal - o nome que as partes dão a um contrato não é vinculativo para o julgador.
Ora, provou-se que pretendendo os RR. adquirir o referido veículo automóvel - de marca Citroën, modelo C 15 D, com a matrícula .... - contactaram a firma «Garagem, Lda.»; como os RR. não podiam pagar a pronto aquele veículo, daí a intervenção da A. que o adquiriu, pelo preço de 1.650.000$00, com vista à celebração de um contrato com os RR. - o contrato cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 30. Após a celebração do referido contrato os RR. receberam o veículo automóvel - que, para o efeito, a A. propositadamente adquirira - e passaram a utilizá-lo. Acresce que através da denominada «Promessa Unilateral de Venda» documentada a fls. 343, a A. prometeu vender aos RR., ou a quem estes indicassem, a viatura de matrícula ...., no condicionalismo ali previsto.
Tendo em conta este circunstancialismo específico afigura-se que o aluguer em causa nos autos se reconduzirá a um aluguer de longa duração.
No chamado contrato de aluguer de longa duração (ALD) o veículo destina-se ao uso de um único utilizador e cada uma das prestações mensais relativas a este uso corresponde a uma fracção da quantia global a reembolsar ao locador. Escreve Paulo Duarte ([10]) «do que se trata, portanto, não é de remunerar o locador pela concessão temporária do gozo da coisa locada, mas de reembolsá-lo da quantia que adiantou na sua aquisição, acrescida de juros remuneradores da intermediação financiadora em que, afinal se traduz a sua intervenção».
Gravato de Morais ([11]) menciona que no ALD um dos contraentes concede ao outro o gozo temporário e retribuído de determinada coisa, um bem móvel, podendo o contrato conter, todavia, uma promessa (unilateral ou bilateral) de venda ou integrar uma proposta irrevogável de venda inserida na própria locação, sendo que naquele primeiro caso a transferência de propriedade ocorre com a posterior celebração do contrato de compra e venda e que no segundo se dará com a aceitação pelo locatário da proposta de venda ([12]).
Acrescenta este autor que «o locador, durante o período de vigência do negócio, percebe não só o valor suportado com a compra, mas ainda o lucro financeiro. Portanto, no seu termo, o objecto encontra-se integralmente pago, pelo que naturalmente o locatário tem todo o interesse na sua aquisição. Depois de manifestar essa vontade ao locador, concluir-se-á o contrato de compra e venda – só aqui se transferindo, com a celebração deste, a propriedade do bem – por um preço pré-determinado, em regra equivalente ao valor da coisa à data da realização do contrato de aluguer de longa duração».
E, ainda, que «tal negócio envolve a prévia aquisição do bem pelo locador com o intuito de, ulteriormente, conceder o seu gozo ao locatário. Este, por sua vez, obriga-se ao pagamento de uma renda que não corresponde ao mero gozo (…) Aliás, a aquisição do bem é o objectivo primordial a atingir pelo locatário (de longa duração), dado que no termo do contrato já o pagou na totalidade».
Pedro Pais de Vasconcelos ([13]), por seu turno, refere: «O contrato de “aluguer de longa duração” de automóveis novos é um contrato indirecto em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade. Qualificar este contrato simplesmente como contrato de aluguer de automóveis ou como contrato de venda a prestações com reserva de propriedade resulta, em qualquer dos casos, no desrespeito pela vontade contratual». Esclareça-se que este autor define o contrato indirecto como um contrato de tipo modificado que se caracteriza por a modificação do tipo incidir sobre o seu fim: o contrato corresponde ao tipo de referência em tudo menos no fim que é atípico, no sentido de que não é o fim característico do tipo de referência (podendo, embora, ser o fim correspondente à função característica de um outro tipo contratual – desde que não o próprio do tipo de referência)
Perspectivando o contrato de aluguer de longa duração como um contrato atípico ele reger-se-ia pelas estipulações das partes - art.º 405.º do CC - pelas disposições gerais dos contratos e, se necessário, pelas disposições (não excepcionais) dos contratos tipificados na lei com os quais apresenta analogia ([14]). 
Pedro Pais de Vasconcelos que, como vimos, qualifica o contrato de aluguer de longa duração como um contrato indirecto, salienta que estes (os contratos indirectos) podem suscitar questões entre as partes em matérias que não tenham sido previstas e estipuladas e que não sejam resolvidas pelo tipo de referência, a ser resolvidas por interpretação complementadora em que o princípio da boa fé exige a relevância do fim realmente tido em vista pelas partes na celebração do contrato. Sendo o contrato indirecto um contrato de tipo modificado em que a modificação incide no fim contratual, essa modificação, diferença ou divergência é suficiente para afastar a tipicidade; isto, sendo embora um contrato quase típico, com uma disciplina muito próxima do tipo de referência, revelando-se a diferença naquilo em que o fim concordantemente tido em vista pelas partes esteja em questão ([15]).
                                                                       *
IV – 3 - Caracterizado o contrato, debrucemo-nos sobre a subsistência (ou exclusão) das «Condições Gerais» impressas no seu verso.
Tais «Condições Gerais» reconduzem-se a cláusulas contratuais gerais, sendo estas proposições pré-elaboradas que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a propor ou a aceitar. Caracterizam-se pela sua generalidade -  uma vez que se destinam a ser propostas a destinatários indeterminados ou a ser subscritas por proponentes indeterminados - e pela sua rigidez – são elaboradas sem prévia negociação individual, de tal modo que sejam recebidas em bloco por quem as subscreva ou aceite, não tendo os intervenientes possibilidade de modelar o seu conteúdo, introduzindo nelas alterações ([16]). Incluindo-se no contrato cláusulas contratuais gerais o contrato forma-se nesta vertente, pela adesão de uma das partes a «condições gerais», prévia e unilateralmente fixadas pela outra parte. Efectivamente, consoante resulta do art. 4 do dl 446/85, de 25-10, as cláusulas contratuais gerais inseridas em propostas de contratos singulares incluem-se nos mesmos, para todos os efeitos, pela aceitação, com observância do disposto naquele capítulo.
No caso que nos ocupa não existem dúvidas de que as cláusulas contratuais gerais se encontram impressas no verso do contrato, enquanto a assinatura dos contraentes está aposta no rosto do mesmo – isto muito embora no texto constante daquele rosto, como introdução, se refira que entre as partes é «celebrado o presente Contrato que se rege pelas Condições Gerais impressas no verso deste documento e pelas seguintes Condições Particulares» e, antecedendo as assinaturas, se refira que o locatário declara «ter tomado conhecimento e aceite sem reservas as Condições Gerais e as Condições Particulares a que fica submetido este Contrato».       Preceitua o art. 8 do dl 446/85 que se consideram excluídas dos contratos singulares: a) as cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do art. 5º; b) as cláusulas comunicadas com violação do dever de informação (a que alude o art. 6º), de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo; c) as cláusulas que «pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real»; d) as «cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes».
            O entendimento praticamente unânime adoptado na jurisprudência do STJ sobre tal questão leva-nos a assumir uma posição diversa de posição anteriormente adoptada - cujos argumentos, todavia, continuam, na nossa perspectiva, a afigurar-se adequados. 
            Transcreve-se, pois, parte do acórdão do STJ datado de  6-3-2008 ([17]) em que, aliás, é referida diversa jurisprudência predominante sobre o tema, dizendo-se a propósito:
 «A finalidade da norma é a de evitar uma aceitação fictícia, virtual ou aparente das cláusulas, não estando minimamente assegurado, na situação prevista, que o contratante médio tenha lido, se tenha apercebido ou tido sequer qualquer contacto prévio com as cláusulas que foram apostas num local diverso – embora muito próximo – daquele onde assinou – cfr. Gravato de Morais “in” Contratos de Crédito ao Consumo, 2007, página 143.
            E sendo esta a finalidade do preceito, não é de atender a interpretação do mesmo no sentido de que estando cláusulas referentes a “condições gerais” do contrato insertas no verso de um documento assinado pelos contratantes na parte frontal, aqui se referindo a existência dessas condições, se tem que entender que o contratante médio tinha tido conhecimento dessas cláusulas.
É que a lei não pretende apenas evitar o desconhecimento da existência das cláusulas na altura em que são apostas as assinaturas.
Pretende essencialmente evitar que nesse momento haja o desconhecimento do seu conteúdo.
E para esse efeito, impõe a obrigatoriedade de a assinatura do consumidor ter que ser posterior à aposição dessas cláusulas.
Trata-se, pois, de uma norma imperativa.
Que não comporta outra interpretação – artigo 9º do Código Civil - senão a que as assinaturas dos outorgantes num contrato singular onde estejam inseridas cláusulas contratuais gerais têm que ser apostas depois dessas cláusulas.
            É irrelevante, pois, para o efeito, que antes dessas assinaturas se tenha feito referência à existência daquelas cláusulas apostas depois dessas assinaturas.
Ou que as cláusulas existissem já na altura dessa aposição.
Ou que as cláusulas constassem do verso do documento em cuja parte frontal as assinaturas tinham sido apostas.
Onde a lei não distingue, não deve o intérprete distinguir.
Em todos estes casos, as assinaturas foram apostas antes das cláusulas contratuais gerais».
            Para concluir:
«No verso, constam cláusulas denominadas de “condições gerais”.
A seguir a estas cláusulas, não existem quaisquer assinaturas dos contraentes.
Face ao que acima ficou dito, tais cláusulas, pelo facto de terem sido inseridas em formulário depois das assinaturas dos contratantes, consideram-se excluídas do contrato».
Seguindo esta corrente jurisprudencial dominante concluímos, pois, serem de considerar excluídas do contrato as cláusulas contratuais gerais constantes do verso do documento.
Prejudicada fica, assim, a questão versada na sentença recorrida e mencionada nas alegações de recurso da nulidade das cláusulas 8ªe 9ª do contrato.                                                       *
IV – 4 - Na sequência, cumpre pronunciarmo-nos concretamente sobre a pretensão da A. em haver dos RR. um valor idêntico ao do aluguer mensal por cada mês decorrido para além da data em que ocorreu o termo do contrato.
Dispõe o art. 1045 do CC:
«1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.»
No acórdão do STJ de 28-10-2003 ([18]) a propósito da referida disposição legal e de um contrato de ALD entendeu-se: «consideramos que a norma do art. 1045 do CC não se aplica à situação aqui ajuizada. Na verdade, conforme se ponderou noutro aresto deste Supremo Tribunal (acórdão de 30-10-01, processo nº 8581/01), a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada prevista naquele preceito justifica-se por a renda corresponder ao valor de uso da coisa locada, sendo este o prejuízo do credor. Semelhante regime, contudo, mostra-se completamente desajustado no caso do aluguer de longa duração, pois que então o valor da coisa vai sendo amortizado enquanto o contrato perdura, subsistindo no termo deste um valor residual. É correcto dizer-se, pois, que o prejuízo sofrido pelo locador em consequência do atraso na restituição se traduz, então, na diferença ente o valor residual previsto no contrato e o valor venal no momento da entrega».
O mesmo entendimento fora manifestado no acórdão do STJ de 11-4-2002 ([19]), ali se referindo: «…importa observar que a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada prevista no art. 1045 do Código Civil se justifica por ser a renda correspondente ao valor de uso da coisa locada, sendo este o prejuízo do locador. No caso de mora, a indemnização é elevada ao dobro (nº 2 do mesmo artigo). Ora, este regime mostra-se totalmente desajustado no caso de alugueres de longa duração, no decurso dos quais o valor da coisa locada é amortizado, subsistindo nos termos do contrato um valor residual. O prejuízo sofrido pelo locador, consequência do atraso na restituição, traduz-se na diferença entre o valor residual previsto no contrato e o valor venal no momento da entrega, como o entendeu o legislador francês ao estabelecer nesta diferença a indemnização devida pelo locatário… Contrariamente ao que vários acórdãos deste Tribunal têm entendido…afigura-se, pois, manifesto que este tipo de contratos não foi tido em consideração pelo Legislador ao estabelecer a indemnização prevista no art. 1045 do Código Civil».
Mais recentemente, no seu acórdão de 24-5-2005 ([20]) o STJ veio a manifestar a mesma posição, em caso em tudo semelhante ao destes autos. Referiu-se, então, designadamente, que «o disposto no art.º 1045º, n.º 2, do Código Civil, não tem aplicação aos contratos de aluguer de veículo automóvel, sem condutor, de longa duração, por se tratar de um tipo de contrato não previsto pelo legislador ao fixar nesse dispositivo os montantes indemnizatórios devidos por falta de restituição do bem locado no termo do respectivo contrato, tanto mais que, como é a hipótese dos autos, o objectivo inicial de ambas as partes era o de possibilitar ao locatário a aquisição do veículo no termo do contrato, o que implica que as sucessivas rendas pagas integrassem, ao menos em parte, amortização do preço do veículo…»
            Tendo em consideração o que acima expusemos em IV – 1) aderimos, obviamente, ao entendimento manifestado nos acórdãos que acabámos de parcialmente transcrever.
Saliente-se que se cada uma das prestações mensais estipuladas corresponde a uma fracção da quantia global a reembolsar ao locador, tratando-se de reembolsar o locador da quantia que adiantou na sua aquisição do bem (com acréscimo de juros remuneradores da intermediação) não faria sentido manter-se o recebimento daquela prestação como se o valor do aluguer correspondesse à contrapartida do mero gozo.
Tratando-se de um contrato indirecto, de um contrato de tipo modificado em que a modificação incide no fim contratual, essa modificação é bastante para afastar a aplicação do art. 1045 do CC.
De onde se conclui não estarem os RR. obrigados a satisfazer à A. valor idêntico ao do aluguer mensal por cada mês decorrido para além da data em que ocorreu o termo do contrato (25-10-1995).
Tendo em conta a conclusão a que chegámos prejudicada fica a questão aludida na sentença e de cuja solução ali adoptada a apelante/A. discorda na alegação de recurso referente à existência de abuso de direito.
                                                           *
IV – 5 – Haverá agora que atender à peticionada restituição do veículo.
Também nesta parte é determinante o que expendemos em IV – 2) sobre o contrato a que se reportam os autos.
Como vimos, a A. vinculou-se a, em determinado circunstancialismo, vender o veículo aos RR., decorrido o prazo estipulado no contrato de aluguer de longa duração. Existindo aquela promessa unilateral de venda a transferência de propriedade ocorreria com a posterior celebração do contrato de compra e venda e só então.
A celebração do contrato de ALD não conduz automaticamente à aquisição da coisa pelo locatário, mesmo após aquele ter findado. No termo do contrato o locatário terá todo o interesse na aquisição; beneficiando, como no caso dos autos, de uma promessa de venda, proceder-se-á, então, à celebração do contrato, só então se transferindo a propriedade.
Nestas circunstâncias, tendo cessado o contrato de ALD em 25-10-1995 e não tendo sido entretanto celebrado o contrato de compra e venda prometido - não tendo os RR. procedido, aliás, ao pagamento das prestações em falta, o que na economia da promessa unilateral era pressuposto para a celebração da compra e venda – não se justifica que os RR. continuem a deter o veículo, fazendo-o sem qualquer título, devendo o mesmo ser entregue à A..
                                                           *
IV – 6 –  Porque o Tribunal de 1ª instância não considerou a entrega do veículo automóvel a que se reportam os autos, não abordou o que respeita à sanção pecuniária compulsória cuja aplicação fora requerida pela A., tendo tal questão ficado prejudicada. Cumpre, pois, face à posição que agora tomámos, pronunciarmo-nos sobre ela.
O dl 262/83, de 16-6, aditou ao CC o art. 829-A cujo nº 1 preceitua que nas obrigações de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal, a requerimento do credor, condene o devedor no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.
Como melhor explica Calvão da Silva ([21]) nas obrigações que «têm como objecto uma prestação de coisa – coisa que é o objecto mediato, sendo a prestação (conduta ou comportamento) o objecto imediato – a actuação da condenação no cumprimento é possível através da execução específica. Nos termos do art. 827º do Código Civil, se a prestação consistir na entrega de coisa determinada, o credor tem a faculdade de requerer, em execução, que a entrega lhe seja feita judicialmente… A execução visa, deste modo, a entrega do objecto da prestação devida, ou seja, da própria coisa, in natura, dando ao credor tudo aquilo que lhe é devido e a que tem direito segundo a lei substantiva e que obteria pelo cumprimento. Esta correlação da tutela da condenação in natura e do processo executivo nas obrigações de prestação de coisas certas e determinadas (obrigações específicas) seja qual for a sua espécie – obrigação de dar, obrigação de entregar, obrigação de restituir – só não funciona ante a verificada impossibilidade de entrega judicial da coisa, caso em que a execução específica se converte em execução para pagamento de quantia certa».
Referindo mais adiante ([22]) que as prestações de coisas são fungíveis: mesmo «que a coisa a prestar seja infungível, isto é, insubstituível por outra (art. 207º), há sub-rogabilidade do devedor sem qualquer prejuízo para o credor, que vê o seu interesse plenamente satisfeito pela entrega da coisa, quer seja feita pelo devedor, quer seja feita por terceiro».
Concluindo que resulta claro do preceituado no nº 1 do art. 829-A que o legislador não consagrou a sanção compulsória como mecanismo coercitivo de aplicação geral, mas a limitou às obrigações de “non facere” e de “facere” cujo cumprimento requer a intervenção insubstituível do devedor, com excepção das que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas; «o legislador confinou a sanção pecuniária compulsória às obrigações de carácter pessoal – obrigações de carácter intuitus personae cuja realização requer a intervenção do próprio devedor, insubstituível por outrem – fazendo dela um processo subsidiário, aplicável onde a execução específica não tenha lugar» ([23]). O legislador preocupou-se, então, com a realização das prestações não susceptíveis de execução específica, consagrando um meio de pressionar o devedor ao cumprimento, apenas, dessas obrigações.
A sanção pecuniária compulsória cuja aplicação foi requerida pela A. está correlacionada com a entrega do veículo dos autos. Como resulta do exposto supra, a concretização da condenação naquela entrega, típica prestação de coisa, é possível através da execução específica, nos termos do art. 827 do CC.
Não há, pois, lugar à aplicação da sanção pecuniária compulsória prevista no nº1 do art. 829-A do CC, não se subsumindo a tal previsão o caso dos autos.
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IV – 7 - Por fim, há que apreciar o recurso dos RR., respeitante à questão da má fé.
De acordo com o nº 1 do art. 456 do CPC, tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. Esclarece o nº 2 do mesmo artigo que se diz litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Diversamente do que anteriormente sucedia, com a reforma introduzida pelo dl 320-A/95, de 12-12, passou a sancionar-se ao lado da litigância dolosa a litigância temerária, caracterizando hoje a má fé quer o dolo quer a negligência grave, com o intuito de atingir uma maior responsabilização das partes. Refere-se no preâmbulo do citado diploma que como «reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagram-se expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos…»
Como decorre do supra exposto constituem, entre outras, actuações ilícitas da parte a dedução de pretensão com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido, bem como a apresentação duma versão dos factos deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade ([24]).
São igualmente abrangidos os fundamentos de facto e os de direito, tão reprovável sendo o comportamento processual da parte que fundamenta a sua pretensão num conjunto de factos inverídicos ou insusceptíveis de conduzir ao efeito pretendido como a que invoca determinado enquadramento jurídico de todo desajustado à situação de facto que invoca ([25] ).
A lei impõe agora ao autor que, antes de intentar uma acção, pondere a sua razoabilidade, evitando-a se não houver fundamento sério para a dedução da pretensão, sendo ilegítima uma atitude irreflectida ou sem qualquer base mínima de apoio.
No caso que nos ocupa não poderemos afirmar que a A., com dolo ou negligência grave, haja violado o seu dever de verdade e probidade e que a respectiva pretensão por si deduzida tivesse óbvia falta de fundamento que a A. não devesse ignorar. É que para ocorrer condenação como litigante de má fé não basta que à parte não assista razão; terá de se verificar uma manifesta falta de fundamento, o que aqui não sucede.
É certo que a A., na exposição que fez dos factos, não aludiu à promessa unilateral de venda, mas isso não se reconduz inteiramente à apresentação de uma versão dos factos deturpada ou omissa; por outro lado, o enquadramento jurídico apresentado não se mostra de todo desajustado à situação invocada, tendo, aliás, sido proferidas decisões judiciais que se coadunam com a argumentação desenvolvida pela A..
Pelo que não se verifica, da parte da A., litigância de má fé.
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação da A., alterando a sentença recorrida no que concerne à entrega à A. do veículo automóvel de matrícula ...., entrega que condenam os RR. a efectuar, no mais mantendo o decidido naquela sentença; mais acordam em julgar improcedente o recurso dos RR. mantendo a decisão recorrida no que concerne à litigância de má fé da A.
Custas da acção por A. e RR. na proporção de 60% para 40% e da apelação da A. pelos mesmos na proporção de 75% para 25%; quanto ao recurso dos RR. as custas são por estes.
Lisboa, 18 de Junho de 2009
Maria José Mouro
Neto Neves
Teresa Albuquerque

[1]              Ver o acórdão do STJ de 29-2-2000 a cujo sumário se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

[2]              Ver, a propósito, o acórdão do STJ de 20-10-89, BMJ nº 390, pag. 372.
[3]              Acórdão do STJ de 5 de Maio de 2005 ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo nº 05B870.
[4]              Ver Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil Anotado», vol. V, pag. 52. 
[5]              Em «Cláusulas Contratuais Gerais», Almedina, 1986, pag. 27.
[6]              «Manual dos Contratos em Geral», 4ª edição, pag. 322.
[7]              Anselmo de Castro, «Direito Processual Civil Declaratório», vol. III, pag. 103.
[8]              «Estudos Sobre o Novo Processo Civil», pag. 48.
[9]              Como refere Alberto dos Reis, no «Comentário ao Código de Processo Civil», vol. II, pag. 513, no que concerne à apreciação jurisdicional das nulidades «pode enunciar-se este princípio: quem julga é o tribunal perante o qual a nulidade ocorreu, ou o tribunal a que a causa estava afecta no momento em que a nulidade se cometeu».
[10]             “Algumas questões sobre o ALD”, em Estudos de Direito do Consumidor n.º 3, 2001. pág. 210.
[11]             «Manual da Locação Financeira», pags. 53-55.           
[12]             No caso dos autos, como vimos, a A.. através da «Promessa Unilateral de Venda» documentada a fls. 343, prometeu vender aos RR. a viatura a que se reportam os autos, «em 25/10/95, encontrando-se todos os pagamentos devidamente efectuados relativamente ao Contrato de Aluguer 302553».
[13]             «Contratos Atípicos», 1995, pags. 244-246.
[14]             Ver, a propósito, Galvão Telles, «Manual dos Contratos em Geral», 4.ª edição, pág.468.
[15]             Obra citada, pags. 251-254.
[16]             Menezes Cordeiro, «Tratado de Direito Civil Português», Parte Geral, tomo I, pags. 415-417.
[17]             Ao qual se poderá aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 07B4617.
[18]             Publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, ano XI, tomo 3, pag. 119.
[19]             Ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/ , proc. 02B812-
[20]             Ao qual, igualmente, se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/ , proc.05A1421.
[21]             «Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória», 1987, pags. 357 e segs.
[22]             Pag. 368, nota 665.
[23]             Calvão da Silva, obra citada pag. 450 e também em «Sanção Pecuniária Compulsória», BMJ nº 359, pags, 39 e segs.
[24] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, «Código de Processo Civil Anotado», vol. II, pag. 195.
[25] Abrantes Geraldes, «Temas da Reforma do Processo Civil», vol. I, pag. 99, nota 131.