Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10440/18.3T9LSB.L1-9
Relator: PAULA PENHA
Descritores: DETENÇÃO DE DISPOSITIVOS ILÍCITOS
CONTRA-ORDENAÇÃO
CRIME
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I–A criminalização da detenção e/ou distribuição, para fins comerciais, de dispositivos ilícitos (prevista nos termos do art. 104º, nº 1, al. a), nº 2 e nº 3, da Lei nº 5/2004, de 10-2, ao qual corresponde o actual art. 166º, nº 1, al. a), nº 2, al. a), e nº 3, da Lei nº 16/2022, de 16-8) visou e visa fazer face à expansão de um mercado paralelo de fornecimento de dispositivos ilícitos, à revelia dos respectivos operadores (em especial para os operadores de televisão por cabo), sem a correspondente contrapartida para estes e à consciência da ilicitude que a generalidade dos utilizadores tinha e tem das consequências desse seus comportamentos .

II–São requisitos cumulativos deste tipo legal de crime:
. a produção/fabricação, importação, distribuição, venda, locação ou mera detenção (bastando que o agente pratique qualquer uma destas acções aí expressamente aí previstas;
. com intuito comercial (isto é, com intenção lucrativa, pretendendo o agente ganhar dinheiro, negociando tais dispositivos);
. relativamente a um ou vários dispositivos ilícitos (que tanto pode ser um equipamento propriamente dito e/ou um programa informático que será ilícito porque concebido ou adaptado para permitir aceder a um serviço protegido, sem a necessária autorização do respectivo prestador do serviço.

III–O legislador colocou o acento tónico para a criminalização dessas proibidas condutas/actividades no facto de serem levadas a cabo «para fins comerciais».
Por isso, se uma tal actuação ilícita tiver intuito comercial/lucrativo por parte do agente configura a prática do sobredito crime.
Se uma tal actuação ilícita for em benefício estritamente privado para o agente, desprovida de intenção comercial ou lucrativa, só configura uma prática contra-ordenacional (contra-ordenação muito grave nos termos previstos pelo art. 113º, nº 3, al. zz), relativamente às condutas do art. 104º, nº 1, als. b) e c), da Lei nº 5/2004, de 10-2 e/ou contra-ordenação grave nos termos do art. 113º, nº 2, al. oo), relativamente às condutas do art. 104º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2004, de 01-2).



Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa


RELATÓRIO


No âmbito do Processo Comum Singular n.º 10440/18.3T9LSB do Juízo Local Criminal de Lisboa – J7, foi submetido a julgamento o arguido, A (nascido a 24/3/1988, solteiro, desempregado e residente na Rua ...), acusado da prática, em autoria material e em concurso efetivo de:
- um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelos artigos 221.°, n.°1, 2, e 5, alínea a), do Código Penal;
- um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.°, n.°1, e 2, da Lei n.°109/2009, de 15 de setembro;
-um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.°, n.°1, alínea a), e n.°2, alínea a), e n.°3, da Lei n.°5/2004, de 10 de fevereiro;
- um crime de usurpação, previsto e punido pelos artigos 195.°, n.°1, por referência ao artigo 187.°, n.°1, alínea a), e 197.°, n.°1, do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos.

Realizado o julgamento pela Exmª Juiz foi proferida e depositada (em 22/6/2022) sentença na qual foi decidido (transcrição):
«A) Absolver o arguido, A, da prática, como autor, de um crime de burla informática, previsto e punido pelo artigo 221.°, n.° 1, e n.° 5, do Código Penal;
B) Absolver o arguido, A, da prática, como autor, de um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.°, n.° 1 e n.° 2, alínea a) e n.° 3, da Lei n.° 5/2004, de 10 de fevereiro;
C) Condenar o arguido, A, pela prática, como autor, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.°, n.°1 e 2, da Lei n.° 109/2009, de 15 de setembro, na pena de quatro meses de prisão;
D) Condenar o arguido, A, pela prática, como autor, de um crime de usurpação, previsto e punido pelos artigos 195.°, n.° 1, por referência ao artigo 187.°, n.° 1, alínea a), 197.°, n.° 1, do Código dos Direitos de Autor de Direitos Conexos, na pena de um ano de prisão e na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de £6 (seis euros), num total de £1.200 (mil e duzentos euros);
E) Em cúmulo jurídico, abrangendo as penas de prisão fixadas em C) e D), condenar o arguido na pena única de um ano e dois meses de prisão;
F) Suspender a pena de prisão, pelo período de um ano e dois meses, sob regime de prova;
G) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais (artigos 513.° e 514.° do Código de Processo Penal e 8.° n.° 9 do Regulamento das Custas Processuais), fixando-se em 2 UC a taxa de justiça;
H) Julgar o pedido de indemnização civil formulado por "NOS Comunicações, S.A.", improcedente, absolvendo o demandado do pedido;
I) Condenar a NOS Comunicações, S.A., nas custas do pedido de indemnização civil (cfr. artigo 527.°, n.° 1, do Código de Processo Civil).
Deposite e notifique.
Remeta boletim ao registo criminal. »
*

A Digna Procuradora do Ministério Público interpôs o presente recurso, relativamente à absolvição do arguido pelo crime de detenção de dispositivos ilícitos,   terminando com as seguintes conclusões e o respectivo pedido (transcrição):
«III – CONCLUSÕES:
Concluindo, dir-se-á, pois, que:
1) O arguido A foi submetido a julgamento e condenado pela prática de: i. um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, na pena de quatro meses de prisão; ii. um crime de usurpação, previsto e punido pelos artigos 195.º, n.º 1, por referência aos artigos 187.º, n.º 1, alínea a) e 197.º, n.º 1, do Código dos Direitos de Autor de Direitos Conexos, na pena de um ano de prisão e na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €6 (seis) euros, num total de €1.200 (mil e duzentos euros); iii. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de um ano e dois meses de prisão.
2) E, por sua vez, foi o arguido absolvido da acusação contra ele formulada pela prática de um crime de burla informática, previsto e punido pelo artigo 221.º, n.º 1, e n.º 5, do Código Penal e de um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) e n.º 3, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro.
3) O nosso recurso visa unicamente a parte relativa à absolvição do arguido pela prática de um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.º, n.ºs 1 alínea a), n.º 2, alínea a) e n.º 3, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, sendo que concordamos com os demais termos da sentença.
4) Na parte absolutória a sentença não pode, ainda que, parcialmente, a nosso ver, colher aplauso - e daí a interposição do presente recurso -, pois temos por líquido que os factos dados como provados impunham que o arguido fosse condenado, também, como autor de um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.º, n.º s 1, alínea a), 2, alínea a) e n.º 3, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro.
5) Efetivamente dos factos provados não resulta que o arguido tivesse, com a ajuda de um equipamento móvel acedido a serviço protegido, mas resulta claramente dos factos provados que o arguido acedeu a programa informático tendo em vista o acesso a serviço protegido, sem autorização do prestador do serviço.
6) A esse respeito vejam-se os factos dados como provados sob os n.ºs 12, 13, 14, 15, 19, 22 e 23.
12. Desde pelo menos abril de 2016, o arguido A, o qual possui conhecimentos técnicos informáticos que lhe permitiam descodificar canais de operadoras de rede de televisão por cabo e fibra, decidiu proceder à descodificação não autorizada do serviço digital de televisão e partilhar a divulgação de canais codificados a terceiros, a troco de quantias monetárias;
13. Para tanto, o arguido utilizou equipamentos receptores de televisão não homologados pelos operadores de televisão, bem como forneceu aos seus "clientes"hiperligações a páginas de internet que permitiam a visualização de canais codificados.
14. Os clientes podiam, deste modo, visualizar os canais codificados, apenas com um equipamento receptor independente, ligado à internet ou mediante a instalação na sua televisão, telemóvel ou outro aparelho com acesso à internet de uma aplicação fornecida pelo arguido.
15. De forma não concretamente determinada o arguido acedeu aos servidores on line denominados http://iptvdirecto.com, http://panel.iptvnc.online, http://originaliptv.com:8000 e outros de denominação desconhecida para onde comutou o sinal de televisão por cabo.
19. Os interessados contactavam o arguido, através do Facebook e/ou das referidas contas de e-mail, sendo que aquele envia-lhes um link para instalação de uma aplicação (designadamente da aplicação Plex Media Server) que depois instalavam nas suas televisões, telemóveis e outros aparelhos electrónicos com acesso à internet.
22. A partilha do sinal televisivo, nos moldes em que era oferecido pelo arguido, incluiu os canais codificados;
23. Desde modo, pelo menos, desde abril de 2016 até novembro de 2019, o arguido através dos servidores/receptores denominados http://iptvdirecto.com, http://panel.iptvnc.online, http://originaliptv.com:8000 e outros concretamente não apurados, partilhou sinal televisivo com um número não concretamente determinado de pessoas, sem o consentimento e contra a vontade da NOS.
7) Dos factos provados 12, 13, 14, 15, 19, 22 e 23 resulta indiscutível que o arguido detinha dispositivo ilícito e distribuía esse dispositivo, o que lhe permitia visionar e partilhar com outros programas da TV Cabo sem o pagamento da correspondente contrapartida pecuniária, obtendo o próprio proventos económicos em virtude da partilha efetuada e sem autorização do prestador do serviço.
8) Assim, considerando a factualidade dada como provada, impunha-se condenar o arguido pela prática deste ilícito.
9) Relativamente à medida da pena a aplicar, deverá atender-se, nomeadamente:
a. A intensidade do dolo revelado no facto, que é direto e intenso;
b. A circunstância de o arguido não ter evidenciado qualquer arrependimento; e
c. A inexistência de antecedentes criminais por parte do arguido.
10) Assim, atendendo a todas essas circunstâncias e aos demais critérios de determinação da medida da pena enunciados no artigo 71.º do Código Penal, e numa moldura que vai de prisão até 3 anos ou pena de multa se ao caso não for aplicável pena mais grave, consideramos que só a pena de prisão, pelo menos com a duração de dois anos, satisfaz as necessidades da punição.
11) Nestes termos, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser parcialmente revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que condene o arguido, também, como autor de um crime de detenção de dispositivo ilícito, p.e p. pelo artigo 104.º, n.ºs 1 alínea a), n.º 2 alínea a) e n.º 3 da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro, em pena de prisão.
12) Por fim, entendemos que, no caso concreto, existem elementos suficientes para fazer-se a determinação da medida da pena, pelo que, tal solicitamos ao tribunal de recurso.
V. Exas., porém, e como sempre, farão Justiça! »
*

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhou o recurso interposto pela colega junto da 1ª instância, emitindo o seu parecer no sentido da procedência do mesmo.
*

A assistente (NOS Comunicações, S.A.) respondeu ao recurso, pugnando pela sua procedência. Para o efeito, tendo aderido aos fundamentos expostos pelo Ministério Público quer junto da 1ª instância quer junto desta Relação e salientado que o facto provado nº 13 integra a prática do crime de detenção de dispositvos ilícitos.
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Efectuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e realizou-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
     
FUNDAMENTAÇÃO
Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso e os poderes de cognição deste Tribunal são delimitados pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada (nas quais sintetiza as razões do pedido nos termos do art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal doravante com a abreviatura CPP), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (nomeadamente nos termos dos arts. 410º, nºs 2 e 3, do CPP) – sendo pacífica a doutrina e a jurisprudência a este propósito, salienta-se acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 7/95, de 19/10/1995 (em dgsi.pt), o acórdão do STJ de 19/6/1996 (em BMJ nº 458, págs. 98 e segs.), o acórdão do STJ de 15/4/2010 (em dgsi.pt),  Germano Marques da Silva (em “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, pág. 335) e Simas Santos e Leal-Henriques (em “Código de Processo Penal Anotado”, 2ª edição, Vol. II, p. 801).
No caso em apreço, as questões suscitada pelo recorrente são:
1ª questão – O arguido cometeu o crime de detenção de dispositivos ilícitos  ?
2ª questão (Caso haja resposta afirmativa à questão anterior) – A pena correspondente deverá, pelo menos, ser de 2 anos de prisão ?
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Apreciação do recurso
Por se mostrar relevante, iremos transcrever a sentença proferida pela 1ª instância (na parte relativa aos factos e respectiva subsunção ao direito aplicável):
« I — Relatório
Para julgamento, em processo comum e com a intervenção de tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra:
A, solteiro, filho de B e de C, natural de ..., Amarante, nascido em 24/03/1988, portador do Cartão de Cidadão n.°..., residente na Rua ....
Imputa-lhe a prática em autoria e em concurso efectivo de:
- um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelos artigos 221.°, n.°1, 2, e 5, alínea a), do Código Penal;
- um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.°, n.°1, e 2, da Lei n.°109/2009, de 15 de setembro;
- um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.°, n.°1, alínea a), e n.°2, alínea a), e n.°3, da Lei n.°5/2004, de 10 de fevereiro;
- um crime de usurpação, previsto e punido pelos artigos 195.°, n.°1, por referência ao artigo 187.°, n.°1, alínea a), e 197.°, n.°1, do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos.
A fls. 1031 veio a demandante NOS COMUNICAÇÕES, S.A. formular pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de £36.841,70 (trinta e seis mil oitocentos e quarenta e um euros e setenta cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos, a título de danos patrimoniais invocados.
Subsidiariamente, peticiona que lhe seja atribuída indemnização equitativa, nos termos previstos pelo artigo 566.°, n.° 3, do Código Civil.
O arguido apresentou a contestação de fls. 1192 a 1197, impugnando os factos que lhe são imputados; requereu a junção de documentos e arrolou uma testemunha.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal.
*

Inexistem questões prévias, incidentais ou nulidades que obstem à apreciação do mérito da causa.
II — Fundamentação
Matéria de facto provada
Da instrução e discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto:
Da acusação:
1. A "NOS Comunicações, S.A." é uma operadora de rede de televisão por cabo que presta um serviço de distribuição de emissões televisivas, de forma simultânea e integral, através da sua rede de distribuição por cabo, sob a marca NOS.
2. O serviço prestado pela referida operadora, além de pacotes base de programação (com uma mensalidade base, inclui a possibilidade de acesso a um ou mais canais de televisão designados por Canais Codificados de Acesso Condicionado, designadamente:
- a "Sport TV"
- a "Eleven Sport"
- a "TV Cine"
- a Caça e Pesca
- a "Disney Cinemagic
- a TV Globo
- a Toros e TV
3. Tais canais de televisão são transmitidos sob codificação e comercializados como opção adicional ao serviço base;
4. O serviço digital de televisão prestado pela NOS está protegido por sistemas de codificação do fabricante "Nagravision", o qual permite gerir os canais a que cada cliente pode ter acesso de acordo com o serviço contratado;
5. Os Canais Codificados de Acesso Condicionado apenas são acessíveis e visualizados pelos clientes depois de descodificado o respectivo sinal através de um equipamento disponibilizado pela NOS, designado por "Power Box" (no caso de sistema de distribuição por cabo) ou receptor de sinal (no caso de satélite);
6. Este equipamento, que interage com o sistema informático de acesso condicional da NOS, gere o acesso aos canais codificados, aos quais os clientes apenas têm acesso mediante o pagamento do preço devido pela utilização do próprio equipamento e da mensalidade devida pelo acesso aos Canais Codificados de Acesso Condicionado;
7. Assim, para que possam visualizar os referidos Canais Codificados, os clientes da NOS terão de dispor de um equipamento receptor oficial e de um cartão (denominado smartcard) associado a esse mesmo equipamento;
8. Cada cartão funciona, única e exclusivamente, num determinado equipamento receptor, sendo que o mesmo define quais os canais a descodificar;
9. A autorização de descodificação está armazenada no referido cartão, o qual regista os canais a que cada cliente tem acesso, procedendo assim à desencriptação dos canais a visualizar, se autorizada;
10. Estes cartões estão protegidos com mecanismos de segurança que impedem o acesso ao conteúdo dos mesmos;
11. Os clientes que subscrevem canais de acesso condicionado pagam à referida operadora os seguintes valores: a mensalidade respeitante ao "serviço base"; a mensalidade referente aos canais de acesso condicionado subscritos e a mensalidade devida pela utilização do equipamento receptor disponibilizado pela NOS;
12. Desde pelo menos abril de 2016, o arguido A, o qual possui conhecimentos técnicos informáticos que lhe permitiam descodificar canais de operadoras de rede de televisão por cabo e fibra, decidiu proceder à descodificação não autorizada do serviço digital de televisão e partilhar a divulgação de canais codificados a terceiros, a troco de quantias monetárias;
13. Para tanto, o arguido utilizou equipamentos receptores de televisão não homologados pelos operadores de televisão, bem como forneceu aos seus "clientes" hiperligações a páginas de internet que permitiam a visualização de canais codificados.
14. Os clientes podiam, deste modo, visualizar os canais codificados, apenas com um equipamento receptor independente, ligado à internet ou mediante a instalação na sua televisão, telemóvel ou outro aparelho com acesso à internet de uma aplicação fornecida pelo arguido.
15. De forma não concretamente determinada o arguido acedeu aos servidores on line denominados http://iptvdirecto.com, http://panel.iptvnc.online, http://originaliptv.com:8000 e outros de denominação desconhecida para onde comutou o sinal de televisão por cabo.
16. Simultaneamente, o arguido divulgou, entre amigos e conhecidos, designadamente na rede social Facebook, que dispunha de facilidade em partilhar o sinal de televisão por cabo, através da internet, mediante o pagamento, por parte destes de valores variáveis não concretamente apurados;
17. Com efeito, no dia 21 de abril de 2016 o arguido criou as páginas de Facebook denominadas https://www.facebook.com/iptvdirecto (indicando o número de telemóvel 916.386.093, registado em seu nome junto da Vodafone), https://www.facebook.corn/IP-TV-do Norte e https://www.facebook.corn/almiromccoelho, a fim de divulgar a prestação de tal serviço.
18. Mais criou as contas de correio electrónico com os endereços iptvdireto@iptvdireto.com e almiromanue199@gmail.com (indicando igualmente o número de telemóvel 916.386.093), a fim comunicar com os seus "clientes".
19. Os interessados contactavam o arguido, através do Facebook e/ou das referidas contas de e-mail, sendo que aquele envia-lhes um link para instalação de uma aplicação (designadamente da aplicação Plex Media Server) que depois instalavam nas suas televisões, telemóveis e outros aparelhos electrónicos com acesso à internet.
20. O arguido mais indicava a cada um dos seus "clientes" que o pagamento do serviço de partilha de canais (com uma periodicidade mensal, trimestral ou anual, conforme o acordado) deveria ser efectuado para a entidade 11708 pertencente à MEC) WALLET e diferentes referências, das quais aquele era o único beneficiário;
21. O arguido também fornecida o NIB ... da conta bancária por si titulada, junto do Banco Millennium BCP, para que os seus "clientes" procedessem à transferência do valor do serviço prestado, nos termos supra descritos;
22.  A partilha do sinal televisivo, nos moldes em que era oferecido pelo arguido, incluiu os canais codificados;
23. Desde modo, pelo menos, desde abril de 2016 até novembro de 2019, o arguido através dos servidores/receptores denominados http://iptvdirecto.com, http://panel.iptvnc.online, http://originaliptv.com:8000 e outros concretamente não apurados, partilhou sinal televisivo com um número não concretamente determinado de pessoas, sem o consentimento e contra a vontade da NOS.
24. No dia 27 de novembro de 2019, o arguido tinha na sua residência, sita na Rua ... ... n.°..., em ..., A______, além do mais, os seguintes bens:
- uma Box com o número de série ..., acompanhada do respectivo carregador com o número D1518027521;
- um torre de computador marca NOX de cor preta, com o número NX20061901000109;
- uma torre de computador sem marca, modelo ou número, de cor preta;
- um computador portátil com o número ...;
- uma torre de computador de cor preto-sem qualquer número de série, marca ou modelo;
- um computador portátil de cor preta, da marca ASUS, com dizeres ZON FIBRA, com o respectivo cabo com o número ...;
- documento em papel onde constam pagamentos com referência ao mês de novembro;
- documento em papel onde constam pagamentos com referência a NET+;
- seis documentos em papel referente a utilização de cartão American Express;
- uma torre de computador de cor cinza/preta, sem qualquer número, referência ou modelo
e sem cabos de alimentação;
- um telemóvel de marca Samsung de cor preta com cartão SIM ....
25. O arguido actuou com o propósito, aliás concretizado, de mediante a utilização de equipamentos e programas informáticos concebidos e adaptados para o efeito, utilizar e distribuir, sem autorização, programas e dados informáticos disponibilizados pelas operadoras de TV Cabo aos seus clientes e mediante o pagamento de uma contrapartida monetária;
26. Através da sua actuação, logrou o arguido alterar o normal funcionamento da exploração dos serviços de telecomunicações que a NOS, entre outras operadoras, prestava.
27. Com a descrita actividade logrou o arguido obter proveitos económicos correspondentes aos valores pagos pelos clientes por si angariados, em valor não concretamente apurado;
Do pedido de indemnização civil:
28. No ano de 2016, a mensalidade básica da NOS era no de £37,19, sendo o custo adicional dos canais Sport TV, Benfica TV e TV Cine era, respetivamente, de £27,99; £9,90 e £5;
29. No ano de 2017, a mensalidade básica da NOS era no de £35,92, sendo o custo adicional dos canais Sport TV, Benfica TV e TV Cine era, respetivamente, de £27,99; E9,90 e €5;
30. No ano de 2018, a mensalidade básica da NOS era no de £35,08, sendo o custo adicional dos canais Sport TV, Benfica TV e TV Cine era, respetivamente, de £27,99; £9,90 e £5;
31. No ano de 2019, a mensalidade básica da NOS era no de £34,60, sendo o custo adicional dos canais Sport TV, Benfica TV e TV Cine era, respetivamente, de £27,99; £9,90 e £5;
Mais se provou:
32. O arguido está desempregado desde abril de 2021, dando ocasionalmente aulas de desportos de combate, atividade que dá um rendimento de cerca de €220 mensais;
33. Vive com a companheira, com uma filha com 18 meses; com os pais e com a avó em casa dos seus pais;
34. A companheira do arguido é operária fabril e aufere cerca de £700 mensais;
35. Estudou até ao 9.° ano, complementado com um curso de musculação e cardiofitness;
36. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

Matéria de facto não provada
Da acusação:
1.-O serviço prestado pela referida operadora tinha uma mensalidade base, tendo a "Sport TV" a mensalidade de 23,99 euros; a "Eleven Sport" a mensalidade de 10,99 euros; a "TV Cine" uma mensalidade de 10,00 euros; a Caça e Pesca uma mensalidade de 5,00 euros; a "Disney Cinemagic, uma mensalidade de 5,00 euros; a TV Globo, uma mensalidade de 10,00 euros e a Toros e TV uma mensalidade de 10,00 euros.
2.-Para o efeito descrito no ponto 12 dos factos provados, o arguido utilizou cartões da operadora NOS validamente emitidos (com subscrição legítima do serviço de televisão por cabo), os quais, inseriu num computador e/ou equipamento receptor, ligado à internet, permitindo, desse modo, o acesso de terceiros aos conteúdos televisivos codificados.
3.- Ou seja, o arguido, utilizando para o efeito um sistema informático, partilhou os cartões previamente adquiridos junto da NOS, aliciando os clientes desta operadora a, mediante uma contrapartida financeira, que lhe era directamente paga, acederem aos referidos canais sem nada pagaram àquela operadora;
4. Que os canais visualizados pelos "clientes" do arguido pertencessem à NOS;
5. Na execução do mencionado plano, em data concretamente não apurada, mas anterior a abril de 2016, o arguido, ou outro indivíduo a seu pedido, celebrou com a NOS um contrato de prestação de serviço de distribuição de emissões televisivas;
6. Aquando da assinatura do referido contrato a NOS forneceu ao arguido um aparelho de descodificação do sinal (power box) e um cartão associado aos serviços subscritos (smartcard) para ser introduzido nesse mesmo aparelho e sem o qual a mesma não funcionaria.
7. O arguido também vendeu Boxes Android aos seus clientes, por valores situados entre os 40,00 euros e os 45,00 euros, nas quais estes introduziam um código por ele fornecido, assim permitindo o acesso aos canais da NOS por ele partilhados.
8. Que o sinal televisivo, nos moldes em que era oferecido pelo arguido, incluisse os canais que este ou alguém a seu pedido tinham validamente subscrito com a NOS;
9. Que os valores cobrados pelo arguido para partilhar o sinal de televisão por cabo, através da internet, sejam entre os e 60 euros e os £120 euros anuais.
10. Através da actuação do arguido a NOS viu-se privada do valor não pago pela subscrição de pacotes base de programação, acrescido do valor devido pelo acesso aos Canais Codificados dos seus clientes, no valor de, pelo menos, 12.704,31 euros.
11. Que o arguido tenha usado programas e dados informáticos apenas disponibilizados pela NOS aos seus clientes;
12. Como consequência da conduta do arguido, a NOS sofreu um prejuízo económico fruto da diminuição dos contratos relativos à subscrição de pacotes base de programação e de canais codificados de eventuais clientes.
13. Com a descrita actividade o arguido causou um prejuízo à NOS de valor correspondente ao valor não pago pela subscrição de pacotes base de programação, acrescido do valor devido pelo acesso aos Canais Codificados dos seus clientes, no montante de, pelo menos, 12.704,31 euros.
Do pedido de indemnização civil:
14. Por força da conduta praticada pelo arguido a NOS ficou privada dos valores correspondentes às mensalidades devidas como contrapartida financeira dos serviços de acesso aos canais base e codificados da televisão NOS;
15. A quota de mercado da NOS no que respeita aos serviços de televisão por subscrição em Portugal era de 43,5% em 2016; de 42,6% em 2017; de 41,2% em 2018 e de 39,9% em 2019;
16. Em 2016, dos subscritores dos canais base, cerca de 40,5% dos clientes da NOS eram subscritores de canais premium;
17. Em 2017, dos subscritores dos canais base, cerca de 41,2% dos clientes da NOS eram subscritores de canais premium;
18. Em 2018, dos subscritores dos canais base, cerca de 40,2% dos clientes da NOS eram subscritores de canais premium;
19. Em 2019, dos subscritores dos canais base, cerca de 39,9% dos clientes da NOS eram subscritores de canais premium.
(…)
III — Enquadramento jurídico dos factos
Determinada a matéria de facto relevante, importa subsumi-la jurídico-penalmente.
É imputada ao arguido a prática dos seguintes crimes:
- um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelos artigos
221.°, n.°1, 2, e 5, alínea a), do Código Penal;
- um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.°, n.°1, e 2, da Lei n.°109/2009, de 15 de setembro
- um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.°, n.°1, alínea a), e n.°2, alínea a), e n.°3, da Lei n.°5/2004, de 10 de fevereiro;
- um crime de usurpação, previsto e punido pelos artigos 195.°, n.°1, por referência ao artigo 187.°, n.°1, alínea a), e 197.°, n.°1, do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos.

Do crime de burla informática e nas comunicações:
O artigo 221.°, n.° 1, do Código Penal dispõe da seguinte forma:
"Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorreta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizado no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa."
Este artigo prevê e pune o crime de burla informática, cuja verificação atinge o bem jurídico do património.
Este crime é um crime de dano, "cuja consumação depende da efectiva ocorrência de um prejuízo patrimonial de outra pessoa." (in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 329, § 3, comentário de A. M. Almeida Costa). Ou seja, desde logo, é preciso que o agente, com a sua conduta, provoque um real prejuízo no património de outrem e que, em consequência da sua atuação, o titular do património atingido se veja privado de dispor livremente dos valores ou dos bens que o constituíam, por estes terem sido retirados pelo agente da sua esfera de atuação, de modo ilegítimo.
Exige-se também, para o cometimento deste crime, que a "lesão do património se produza através da utilização de meios informáticos", "mediante a interferência directa num sistema informático (...)." (op. cit., pg. 329 e 330, respetivamente).
Os meios informáticos são entendidos de modo amplo, tendo em conta a enorme diversidade de instrumentos e meios informáticos que estão ao dispor das pessoas, quotidianamente, na sua vida corrente, começando pelos computadores e terminando nos terminais bancários.
A alínea a) do n.° 5, do artigo 221.° do Código Penal, prevê que a pena aplicável ao crime é de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias, quando o prejuízo provocado com a prática dos factos for superior a 50 unidades de conta, ou seja, £5100 (cfr. artigo 202.°, alínea a), do Código Penal).
Quanto ao elemento subjetivo, a verificação deste ilícito típico exige o dolo, em qualquer das suas modalidades, não admitindo a punição a título de negligência, e sendo suficiente o dolo dirigido a obter, para si e para outrem, um enriquecimento ilegítimo.
No caso dos autos, com relevância para apreciação da responsabilidade do arguido pela prática do crime de burla informática que lhe é imputado verifica-se que não resultou provado que, com a sua conduta, o arguido tenha provocado prejuízo patrimonial à queixosa NOS.
Ora, considerando que o prejuízo patrimonial, nos termos supra descritos, é elemento do tipo objetivo do ilícito, haverá que concluir pela falta de preenchimento do um dos elementos do tipo objetivo do crime de burla informática.
Por conseguinte, deverá o arguido ser absolvido da prática do crime de burla informática de que vem acusado.

Do crime de acesso ilegítimo:
A propósito do crime de acesso ilegítimo, prevê o artigo 6.°, n.° 1, da Lei n.° 109/2009, de 15 de setembro, que "Quem, sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele, de qualquer modo aceder a um sistema informático, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias."
Por seu turno, o n.° 2, do supra referido artigo estabelece que "Na mesma pena incorre quem ilegitimamente produzir, vender, distribuir ou por qualquer outra forma disseminar ou introduzir num ou mais sistemas informáticos dispositivos, programas, um conjunto executável de instruções, um código ou outros dados informáticos destinados a produzir as ações não autorizadas descritas no número anterior."
O bem jurídico protegido é a segurança do sistema informático.
O crime concretiza-se através de qualquer modo normalmente idóneo de aceder a um sistema ou rede informáticos.
O tipo objetivo do ilícito identifica-se com o acesso desacompanhado de autorização para o efeito.
O crime de acesso ilegítimo incorpora atualizações decorrentes dos compromissos internacionais que Portugal assumiu a esse propósito e, em particular, da Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, não exigindo, na sua atual redação, qualquer intenção específica, como, por exemplo, a de causar prejuízo ou a de obter qualquer beneficio ilegítimo. Ou seja, o elemento subjetivo do tipo preenche-se com o dolo genérico.
Ora, no caso sub judice, tendo em consideração a factualidade assente, resulta claro estarem preenchidos todos os elementos do crime de acesso ilegítimo.
Com efeito, demonstrou-se que desde pelo menos abril de 2016, o arguido A, o qual possui conhecimentos técnicos informáticos que lhe permitiam descodificar canais de operadoras de rede de televisão por cabo e fibra, decidiu proceder à descodificação não autorizada do serviço digital de televisão e partilhar a divulgação de canais codificados a terceiros, a troco de quantias monetárias, e que, para tanto, o arguido utilizou equipamentos receptores de televisão não homologados pelos operadores de televisão, bem como forneceu aos seus "clientes" hiperligações a páginas de internet que permitiam a visualização de canais codificados.
Os clientes podiam, deste modo, visualizar os canais codificados, apenas com um equipamento receptor independente, ligado à infra-estrutura de rede do operador e à internet ou mediante a instalação na sua televisão, telemóvel ou outro aparelho com acesso à internet de uma aplicação fornecida pelo arguido.
Mais se demonstrou que, de forma não concretamente determinada o arguido acedeu aos servidores on line denominados http://iptvdirecto.com, http://panel.iptvnc.online, http://originaliptv.com:8000 e outros de denominação desconhecida para onde comutou o sinal de televisão por cabo e divulgou, entre amigos e conhecidos, designadamente na rede social Facebook, que dispunha de facilidade em partilhar o sinal de televisão por cabo, através da internet, mediante o pagamento, por parte destes, de quantias não concretamente determinadas.
Assim, pelo menos, desde Abril de 2016 até Novembro de 2019, o arguido através dos servidores/receptores denominados http://iptvdirecto.com,http://panel.iptvnc.online, http://originaliptv.com:8000 e outros concretamente não apurados, partilhou sinal televisivo com um número de pessoas concretamente não determinado.
Em conclusão, verificados que estão todos os elementos constitutivos do ilícito típico em apreciação e não se verificando qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, conclui-se que o arguido cometeu um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.°, n.°s 1 e 2, da Lei n.° 109/2009, de 15 de setembro, pelo qual deverá ser condenado.

Do crime de detenção de dispositivos ilícitos:
Vem ainda o arguido acusado da prática de um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.°, n.°1, alínea a), e n.°2, alínea a), e n.°3, da Lei n.°5/2004, de 10 de fevereiro:
Dispõe o artigo 104.° da Lei n.° 5/2004, de 10 de fevereiro:
1- São proibidas as seguintes actividades:
a) Fabrico, importação, distribuição, venda, locação ou detenção, para fins comerciais,  de dispositivos ilícitos;
b) Instalação, manutenção ou substituição, para fins comerciais, de dispositivos ilícitos;
c) Utilização de comunicações comerciais para a promoção de dispositivos ilícitos;
d) Aquisição, utilização, propriedade ou mera detenção, a qualquer título, de dispositivos ilícitos para fins privados do adquirente, do utilizador, do proprietário ou do detentor, bem como de terceiro.
2- Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por:
a) «Dispositivo ilícito» um equipamento ou programa informático concebido ou adaptado com vista a permitir o acesso a um serviço protegido, sob forma inteligível, sem autorização do prestador do serviço;
b) «Dispositivo de acesso condicional» um equipamento ou programa informático concebido ou adaptado com vista a permitir o acesso, sob forma inteligível, a um serviço protegido;
c) «Serviço protegido» qualquer serviço de programas televisivo, de rádio ou da sociedade da informação desde que prestado mediante remuneração e com base em acesso condicional ou o fornecimento de acesso condicional aos referidos serviços considerado como um serviço em si mesmo.
3- Os actos previstos na alínea a) do n.° 1 constituem crime punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa se ao caso não for aplicável pena mais grave.
4- A tentativa é punível.
5- O procedimento criminal depende de queixa.
No caso dos autos, a factualidade descrita pelo Ministério Público e julgada provada, não permite concluir que o arguido tenha procedido ao fabrico, importação, distribuição, venda, locação ou detenção, para fins comerciais, de dispositivos ilícitos.
Por conseguinte, não se mostra preenchido o tipo legal objetivo do crime imputado ao arguido, que, em consequência, deverá ser absolvido da prática de um crime de detenção de dispositivos ilícitos.

Do crime de usurpação:
Por fim, vem o arguido acusado da prática de um crime de usurpação, previsto e punido pelo artigo 195.°, n.° 1, por referência aos artigos 187.°, n.° 1, alínea a) e 197.°, n.° 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
Incorre na prática do crime previsto e punido pelo artigo 195.°, n° 1 do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, todo aquele que, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas pelo referido Código.
Consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos do mencionado Código, a que pertencem todas as normas infra indicadas sem menção de origem, incluindo-se nessa proteção os direitos dos respetivos autores (cfr. artigo 1.°, n° 1).
As criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, quaisquer que sejam o género, a forma de expressão, o mérito, o modo de comunicação e o objetivo, compreendem, designadamente, composições musicais, com ou sem palavras, obras cinematográficas, televisivas, fonográficas, videográficas ou radiofónicas (cfr. artigos 2.°, n.° 1, als. e) e 0)
O direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais. No exercício dos direitos de carácter patrimonial, o autor tem direito exclusivo de dispor da sua obra e de frui-la e utilizá-la, ou autorizar a sua fruição ou utilização por terceiro, total ou parcialmente (cfr. artigo 9.°, n.'s 1 e 2).
Os artigos 67.° e 68.° contêm as normas respeitantes à fruição e utilização de obra. Assim, dispõe o n.° 1 do primeiro dos indicados normativos que o autor tem o direito exclusivo de fruir e usar a obra, no todo ou em parte, no que se compreendem, nomeadamente, as faculdades de a divulgar, publicar e explorar economicamente por qualquer forma, direta ou indiretamente, nos limites da lei. Por seu turno, dispõe o n° 2 do segundo dos referidos normativos que assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes, a reprodução, adaptação, representação, execução, distribuição e exibição cinematográficas (cfr. alínea c) - e a reprodução total ou parcial, qualquer que seja o modo por que for feita — cfr. alínea i).
O artigo 75.° enumera as situações de licitude de utilização de obra, sem o consentimento do autor, sujeitando, no entanto, tais situações ao cumprimento das formalidades previstas pelo artigo 76°.
Dispõe, também, o artigo 81.°, sob a epígrafe Outras Utilizações, que é consentida a reprodução para uso exclusivamente privado, desde que não atinja a exploração normal da obra e não cause prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor, não podendo ser utilizada para quaisquer fins de comunicação pública ou comercialização.
O artigo 187.°, por seu turno, sob a epígrafe "Direitos dos organismos de radiodifusão" prevê que:
1- Os organismos de radiodifusão gozam do direito de autorizar ou proibir:
a) A retransmissão das suas emissões por ondas radioeléctricas;
b) A fixação em suporte material das suas emissões, sejam elas efectuadas com ou sem fio;
c) A reprodução da fixação das suas emissões, quando estas não tiverem sido autorizadas ou quando se tratar de fixação efémera e a reprodução visar fins diversos daqueles com que foi feita;
d) A colocação das suas emissões à disposição do público, por fio ou sem fio, incluindo por cabo ou satélite, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido;
e)A comunicação ao público das suas emissões, quando essa comunicação é feita em lugar público e com entradas pagas.
2- Ao distribuidor por cabo que se limita a efectuar a retransmissão de emissões de organismos de radiodifusão não se aplicam os direitos previstos neste artigo.
3- Presume-se titular de direitos conexos sobre uma emissão de radiodifusão aquele cujo nome ou denominação tiver sido indicado como tal na respectiva emissão, conforme o uso consagrado.
O crime previsto pelo artigo 195.°, n.° 1, que tutela em exclusivo a dimensão patrimonial do direito de autor, é punível com pena de prisão até 3 anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infração - agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência - se o facto constitutivo da infração não tipificar crime punível com pena mais grave (cfr. artigo 197.°, n.° 1).
Sendo o crime praticado com negligência, corresponde-lhe pena de multa de 50 a 150 dias, sendo que, em caso de reincidência, não há suspensão da pena.
O bem jurídico que se pretende proteger com a incriminação em causa, como refere José Branco, in Comentário das Leis Penais Extravagantes", vol. II, Universidade Católica Portuguesa, pág. 248, anotações 2' e 3', é "(...) o complexo de direitos que constituem o direito de autor. (...) os direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal(...)".
Nos presentes autos foi apresentada queixa crime pela NOS, S.A.
Pese embora a queixosa NOS não seja a titular do bem jurídico protegido, porquanto, apenas tem direitos de transmissão dos canais de TV Cabo — não tendo direitos sobre os conteúdos exibidos pelos canais que transmite, nem tendo, como decorre do disposto no artigo 187.°, n.° 2, do supra referido Código, a faculdade de autorizar ou proibir a retransmissão dos conteúdos difundidos pelos organismos de radiodifusão — o crime de usurpação é um crime público e, como tal, a procedibilidade dos autos não depende de apresentação de queixa por parte do titular dos direitos.
In casu, com relevo, resultaram provados os seguintes factos:
- Desde pelo menos abril de 2016, o arguido A, o qual possui conhecimentos técnicos informáticos que lhe permitiam descodificar canais de operadoras de rede de televisão por cabo e fibra, decidiu proceder à descodificação não autorizada do serviço digital de televisão e partilhar a divulgação de canais codificados a terceiros, a troco de quantias monetárias;
- Para tanto, o arguido utilizou equipamentos receptores de televisão não homologados pelos operadores de televisão, bem como forneceu aos seus "clientes" hiperligações a páginas de internet que permitiam a visualização de canais codificados.
- Os clientes podiam, deste modo, visualizar os canais codificados, apenas com um equipamento receptor independente, ligado à internet ou mediante a instalação na sua televisão, telemóvel ou outro aparelho com acesso à internet de uma aplicação fornecida pelo arguido.
- De forma não concretamente determinada o arguido acedeu aos servidores on line denominados http://iptvdirecto.com, http://panel.iptvnc.online, http://originaliptv.com:8000 e outros de denominação desconhecida para onde comutou o sinal de televisão por cabo.
- Simultaneamente, o arguido divulgou, entre amigos e conhecidos, designadamente na rede social Facebook, que dispunha de facilidade em partilhar o sinal de televisão por cabo, através da internet, mediante o pagamento, por parte destes de valores variáveis não concretamente apurados;
- Os interessados contactavam o arguido, através do Facebook e/ou das referidas contas de e-mail, sendo que aquele envia-lhes um link para instalação de uma aplicação (designadamente da aplicação Plex Media Server) que depois instalavam nas suas televisões, telemóveis e outros aparelhos electrónicos com acesso à internet.
- A partilha do sinal televisivo, nos moldes em que era oferecido pelo arguido, incluiu os canais codificados;
- Desde modo, pelo menos, desde abril de 2016 até novembro de 2019, o arguido através dos servidores/receptores denominados http://iptvdirecto.com, http://paneliptvnc.online, http://originaliptv.com:8000 e outros concretamente não apurados, partilhou sinal televisivo com um número não concretamente determinado de pessoas, sem o consentimento e contra a vontade da NOS.
- O arguido actuou com o propósito, aliás concretizado, de mediante a utilização de equipamentos e programas informáticos concebidos e adaptados para o efeito, utilizar e distribuir, sem autorização, programas e dados informáticos disponibilizados pelas operadoras de TV Cabo aos seus clientes e mediante o pagamento de uma contrapartida monetária;
- Através da sua actuação, logrou o arguido alterar o normal funcionamento da exploração dos serviços de telecomunicações que a NOS, entre outras operadoras, prestava.
- Com a descrita actividade logrou o arguido obter proveitos económicos correspondentes aos valores pagos pelos clientes por si angariados, em valor não concretamente apurado.
Ora, resulta do elenco dos factos provados que o arguido, com a sua conduta, preencheu os elementos objetivos e subjetivos do tipo, porquanto, consciente e deliberadamente, sem autorização do produtor ou do organismo de radiodifusão, utilizou obra alheia, difundindo-a, contra a vontade do organismo de difusão.
Preencheu, assim, o arguido, com o seu apurado comportamento, os elementos objetivos e subjetivos — estes últimos na modalidade de dolo direto — do crime pelo qual foi acusado, sendo certo que, no caso, não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude dos factos ou da culpa do arguido, pelo que deverá ser condenado pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido pelo artigo 195.°, n.° 1, por referência aos artigos 187.°, n.° 1, alínea a) e 197.°, n.° 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

IV — Medida concreta da pena
Feito, pela forma descrita, o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.
O crime de acesso ilegítimo, nos termos previstos pelo artigo 6.°, n.° 1, da Lei n.° 109/2009, de 15 de setembro, é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Por seu turno, tal como decorre do artigo 197.°, n.° 1, do CDADC, o crime de usurpação é punível como pena de prisão até 3 anos e multa entre 150 a 250 dias.
Tal como decorre do artigo 70.° do Código Penal, o nosso sistema jurídico-penal dá preferência às reações criminais não detentivas sobre as penas privativas da liberdade, desde que aquelas satisfaçam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, as quais se encontram plasmadas no artigo 40.° do Código Penal.
A preferência pela pena não privativa da liberdade é imposta e justificada por finalidades exclusivamente preventivas. Havendo um juízo favorável de prognose social - em atenção a considerações de prevenção especial de socialização - só deve negar-se a aplicação da medida não detentiva quando a execução da pena de prisão se revele necessária ou mais conveniente do ponto de vista da defesa do ordenamento jurídico, ou seja, da tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada ¬prevenção geral de integração.
In casu, as exigências de prevenção geral são médias quanto ao crime de acesso ilegítimo e elevadas relativamente ao crime de usurpação — relativamente ao qual, por sere de prática comum, impõe-se a necessidade de revalorizar a norma, fazendo incutir no espírito da comunidade a necessidade absoluta de respeitar os direitos de autor sobre obras alheias.
No que respeita às exigências de prevenção especial, afigura-se-nos que as mesmas deverão ser consideradas no seu grau baixo, porquanto, o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais e, pese embora a gravidade dos factos cometidos, está socialmente inserido, sem que, entretanto, se conheçam factos que façam concluir pela continuidade da atividade delituosa.
No entanto, considerando o elevado período de tempo que perdurou a atividade do arguido; os montantes que tal atividade facilmente lhe poderão fazer render, e o sofisticado e intrincado esquema que desenvolveu com vista à prática dos crimes, entendemos que a condenação numa pena de multa seria insuficiente para assegurar as exigências mínimas de tutela do ordenamento jurídico. Com efeito, tal circunstância colocaria o arguido em situação patrimonialmente vantajosa, podendo ser por si entendida como a confirmação da ideia da compensação do crime.
Por conseguinte, entendemos que, no caso concreto, só uma pena detentiva da liberdade poderá assegurar as finalidades da punição.
*

Nos termos do disposto no artigo 71.° do Código Penal, a determinação da medida concreta aplicável tem como critérios a culpa e as exigências de prevenção, geral e especial, que cabem no caso concreto, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o agente, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.
A este respeito, depõem em desfavor do arguido, as já referidas necessidades de prevenção geral.
A favor do arguido, que não confessou; não demonstrou arrependimento nem consciência da gravidade dos factos praticado será apenas de atender à sua inserção social e à inexistência de antecedentes criminais.
A ilicitude situa-se no seu grau médio relativamente a ambos os ilícitos em que incorreu. Com efeito, o dolo é acentuado, aqui funcionando como circunstância agravante o facto de o arguido ter prolongado a execução do crime por um longo período de tempo.
Ponderadas as circunstâncias supra referidas e tomando por referência a medida da culpa e as exigências de prevenção que no caso se fazem sentir, decide-se aplicar ao arguido as seguintes penas:
- pela prática de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.°, n.° 1, da Lei n.° 109/2009, de 15 de setembro, a pena de 4 meses de prisão;
- pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido pelo artigo 195.°, n.° 1 do CDADC, a pena de 1 ano de prisão e 200 dias de multa, que atentas as condições econ+omicas do arguido que resultaram provadas, se fixa à taxa diária de €6.
*

Atendendo a que, na situação concreta nos encontramos perante um caso de concurso de crimes, cumpre determinar a pena única resultante desta circunstância, nos termos do disposto no artigo 77.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal.
De acordo com as regras da punição do concurso, haverá que determinar, em primeiro lugar, a moldura penal do mesmo, a qual terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes - não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa - e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Para a definição da pena concreta, deve levar-se em consideração, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Assim, no caso concreto, a moldura penal do concurso cifra-se entre o mínimo de um ano de prisão e o máximo de um ano e quatro meses de prisão.
Atendendo à gravidade dos factos, à personalidade do arguido espelhada no comportamento por si adotado, tendo aqui presentes as considerações tecidas a propósito das necessidades de prevenção geral e especial e, sobretudo, considerando que o crime de acesso ilegítimo constituiu um "crime-meio" relativamente ao crime de usurpação, entende-se como justa a condenação do arguido na pena única de um ano e dois meses de prisão.
De acordo com o disposto no artigo 50.°, n.° 1, do Código Penal, "o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".
Esta norma consagra um dos princípios inerentes ao nosso sistema penal, assente na consideração das penas de prisão como ultima ratio da repressão criminal, impondo ao juiz o dever de suspender a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, sempre que o circunstancialismo que rodeia o delinquente possibilite um juízo de prognose positivo quanto aos efeitos da simples ameaça de prisão sobre as finalidades da pena.
No caso dos autos, pese embora se entenda que a gravidade dos factos desaconselha a substituição da pena de prisão por trabalho, considerando que o arguido não tem antecedentes criminais registados, entende o tribunal que a ameaça séria de cumprimento de pena ainda é suficiente para fazer incutir no seu espírito a necessidade de alterar o seu comportamento, adequando-a às regras do comportamento em sociedade.
Tendo tal convicção por pressuposto, formulando um juízo de prognose favorável quanto às potencialidades da sua ressocialização, decide-se que a execução da pena de um ano e dois meses de prisão será suspensa, por igual período.

V — Do pedido de indemnização civil
Cabe agora analisar e decidir do fundamento e procedência do pedido cível deduzido pelo demandante.
Dispõe o artigo 129.° do Código Penal que: "A indemnização de perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil."
Em tais termos, o regime jurídico aplicável aos presentes autos é o que resulta do disposto nos artigos 483.° e seguintes e 562.° do Código Civil.
De acordo com o referido artigo 483.° "Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação."
Assim, são pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos:
a) a verificação de um facto voluntário do agente;
b) a ilicitude desse facto;
c) um nexo de imputação do facto ao lesante;
d) a ocorrência de um dano;
e) a existência de um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Importa, por conseguinte, averiguar se in casu os factos que resultaram provados integram os pressupostos da obrigação de indemnizar.
Ora, em face da factualidade provada, não restam dúvidas de que o demandado, com a sua atuação, incorreu na prática de um crime de acesso ilegítimo e na prática de um crime de usurpação e, por conseguinte, violou dolosamente os direitos de distribuição dos organismos de radiofusão responsáveis pelos canais de TV divulgados, assim se tendo constituído na obrigação de indemnizar os danos sofridos decorrentes dessa violação (cfr. artigo 562.° do Código Civil).
Decidida a questão da existência de uma conduta culposa e violadora de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, impõe-se apreciar a verificação dos restantes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: a existência de danos como consequência direta e necessária da conduta do arguido.
Considerando que só os danos resultantes da violação estão abrangidos pela obrigação de indemnizar, é necessário determinar, de entre as várias condições do evento danoso, as que legitimam a imposição dessa obrigação sobre o agente. Tal determinação faz-se de acordo com o disposto no artigo 563.° do Código Civil, nos termos do qual: "A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão."
O artigo 562.° do Código Civil estabelece, como princípio geral, que: "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação".
Na fixação da indemnização, nos termos do artigo 496.° do Código Civil, são considerados quer os danos patrimoniais, quer os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Os danos peticionados pela demandante assumem a natureza de danos patrimoniais.
Quanto a estes danos, é possível a reconstituição natural, já que estão em causa quantias monetárias (cfr. artigo 562.° do Código Civil), devendo a indemnização calcular-se de acordo com o disposto no n.° 1 do artigo 564.° do mesmo diploma.
Na situação em causa, o cálculo da indemnização corresponderia ao valor global do prejuízo que o arguido determinou à demandante.
Porém, não se provou que, com a sua atuação, o arguido haja provocado prejuízo patrimonial à demandante NOS, Comunicações, S.A., pois, a demonstração de tal prejuízo sempre dependeria da prova de que, em virtude da atuação do arguido, alguma das pessoas a quem este facultou ilegalmente o acesso a canais TV Cabo codificados, tenha deixado de celebrar contratos com o a demandante.
Não tendo tal facto resultado provado, não estão demonstrados os prejuízos que a demandante invoca ter sofrido e dos quais pretende ser indemnizada.
Por conseguinte, não se verificando um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, julga-se improcedente o pedido de indemnização civil formulado e, em consequência, absolve-se o demandado do pedido.

VI-Decisão
Por todo o exposto, o Tribunal decide:
A)- Absolver o arguido, A, da prática, como autor, de um crime de burla informática, previsto e punido pelo artigo 221.°, n.° 1, e n.° 5, do Código Penal;
B)- Absolver o arguido, A, da prática, como autor, de um crime de detenção de dispositivos ilícitos, previsto e punido pelo artigo 104.°, n.° 1 e n.° 2, alínea a) e n.° 3, da Lei n.° 5/2004, de 10 de fevereiro;
C)- Condenar o arguido, A, pela prática, como autor, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6.°, n.°1 e 2, da Lei n.° 109/2009, de 15 de setembro, na pena de quatro meses de prisão;
D)- Condenar o arguido, A, pela prática, como autor, de um crime de usurpação, previsto e punido pelos artigos 195.°, n.° 1, por referência ao artigo 187.°, n.° 1, alínea a), 197.°, n.° 1, do Código dos Direitos de Autor de Direitos Conexos, na pena de um ano de prisão e na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de £6 (seis euros), num total de £1.200 (mil e duzentos euros);
E)- Em cúmulo jurídico, abrangendo as penas de prisão fixadas em C) e D), condenar o arguido na pena única de um ano e dois meses de prisão;
F)- Suspender a pena de prisão, pelo período de um ano e dois meses, sob regime de prova;
G)- Condenar o arguido no pagamento das custas criminais (artigos 513.° e 514.° do Código de Processo Penal e 8.° n.° 9 do Regulamento das Custas Processuais), fixando-se em 2 UC a taxa de justiça;
H)- Julgar o pedido de indemnização civil formulado por "NOS Comunicações, S.A.", improcedente, absolvendo o demandado do pedido;
I)- Condenar a NOS Comunicações, S.A., nas custas do pedido de indemnização civil (cfr. artigo 527.°, n.° 1, do Código de Processo Civil).
Deposite e notifique.
Remeta boletim ao registo criminal. »
*
  
Questão prévia – Conforme já vimos, nestes autos e , o arguido foi condenado na pena de 1 ano de prisão e 200 dias de multa com taxa diária de € 6, pela imputada prática de um crime de usurpação, previsto e punível pelo art. 195º, nº 1, (por referência ao art. 187º, nº 1, al. a), e 197º, nº 1) todos do Código de Direitos de Autor.
Acontece que esse artigo 195º foi alterado através do art. 2º da Lei nº 92/2019, de 4-9, passando a ter a seguinte redacção: 
«Artigo 195.º
[...]
1 - ...
2 - ...
3 - ...
4 - O disposto nos números anteriores não se aplica às situações de comunicação pública de fonogramas e videogramas editados comercialmente, puníveis como ilícito contraordenacional, nos termos dos n.os 3, 4 e 6 a 12 do artigo 205.º ».
E este artigo 205º (para o qual remete) também passou a ter a seguinte redacção:
Artigo 205.º
[...]
(…)
3 - Constitui contraordenação punível com coima entre 125 (euro) e 1500 (euro), no caso das pessoas singulares, e de 250 (euro) a 7500 (euro), no caso das pessoas coletivas, a comunicação ao público de fonogramas previamente editados comercialmente, obras e prestações neles incorporadas, sem autorização do respetivo autor, produtor do fonograma ou dos seus representantes, se a mesma for legalmente exigida, nas seguintes modalidades:
a) Sob a forma de execução pública, por qualquer meio e em qualquer lugar público, na aceção do n.º 3 do artigo 149.º;
b) Sob a forma de radiodifusão audiovisual de fonogramas previamente incorporados em obras audiovisuais com autorização dos respetivos titulares.
4 - Constitui contraordenação punível com coima entre 125 (euro) e 1500 (euro), no caso das pessoas singulares, e de 250 (euro) a 7500 (euro), no caso das pessoas coletivas, a comunicação ao público, em qualquer lugar público na aceção do n.º 3 do artigo 149.º, de videogramas previamente editados ou estreados comercialmente, através de emissões e retransmissões televisivas disponibilizadas ao público, bem como das obras e prestações neles incorporadas, sem as autorizações do respetivo autor, do produtor de videogramas ou dos seus representantes, se a mesma for legalmente exigida.
6 - Constitui contraordenação punível com coima entre 125 (euro) e 1500 (euro), no caso das pessoas singulares, e de 250 (euro) a 7500 (euro), no caso das pessoas coletivas, a utilização de um fonograma e videograma por quem, estando autorizado a utilizá-lo para os fins previstos nos n.os 3 e 4, exceda os limites da autorização concedida.
7 - A negligência e a tentativa são puníveis, sendo os montantes mínimos e máximos das coimas aplicáveis reduzidos para metade em caso de negligência, e sendo a sanção especialmente atenuada em caso de tentativa.
8 - Na determinação da medida da coima, além dos critérios gerais aplicáveis, tem-se em conta a gravidade da lesão, a sua frequência e o alcance da difusão ilícita dos fonogramas e videogramas, assegurando-se que o montante da coima concretamente aplicada não será, fora dos casos de pagamento voluntário da coima, inferior aos valores que seriam devidos caso o infrator tivesse solicitado autorização para utilizar os direitos em questão.
9 - Em caso de reincidência, os montantes mínimos e máximos das coimas aplicáveis são elevados para o dobro.
10- Nas situações em que há lugar a procedimento contraordenacional, em função da gravidade da infração e da culpa do agente, podem ser aplicadas, simultaneamente com a coima, as seguintes sanções acessórias:
a) A perda, a favor do Estado, dos bens apreendidos sendo aplicável com as necessárias adaptações o disposto nos n.os 3 a 5 do artigo 201.º;
b) A interdição temporária do exercício de atividade no âmbito da qual ocorreu a contraordenação;
c) A privação temporária do direito do infrator em participar em feiras ou mercados.
11 - (Anterior n.º 4.)
12 - A instauração de um procedimento de contraordenação pelos factos previstos nos n.os 3, 4 ou 6, não prejudica o recurso, por parte dos titulares dos direitos, lesados ou ofendidos, a qualquer outro meio de tutela legalmente previsto.
De acordo com o art. 8º desta Lei:
«1 - As contraordenações previstas nos n.os 3, 4 e 6 do artigo 205.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de março, com a redação dada pela presente lei, são aplicáveis a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor sempre que tais factos fossem criminalmente puníveis na data em que foram praticados.
2 - Os processos-crime abrangidos pelo disposto no número anterior instaurados até à data da entrada em vigor da presente lei são convolados em procedimentos contraordenacionais, passando a ser tramitados e instruídos nos termos do regime contraordenacional previsto no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de março, com a redação dada pela presente lei, com as seguintes especificidades:
a) Cabe ao Ministério Público determinar a remessa dos autos à Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), que instrui o correspondente processo contraordenacional, aproveitando todos os atos processuais entretanto já praticados, sendo subsidiariamente aplicável o disposto no Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos em matéria de contraordenações;
b) Nos processos-crime que se encontrem em fase de instrução ou de julgamento, devem os juízes titulares remeter os autos ao Ministério Público, para os efeitos previstos na alínea anterior.

Tendo esta Lei entrado em vigor 30 dias após a sua publicação (conforme estipula o seu art. 11º desta Lei), isto é, em 4/10/2019.
Ora, tendo em conta que a factualidade assente nos autos em apreço se reporta ao período temporal de (pelo menos) Abril de 2016 até Novembro de 2019,  aquando da entrada em vigor desta nova redacção ainda estava a decorrer tal actuação do arguido, por isso, sendo-lhe aplicável.
E, mesmo que já tivesse cessado tal actuação, sempre lhe seria aplicável por força daquela norma transitória do art. 8º desta Lei.
Por isso, impõe-se considerar que os respectivos factos praticados pelo arguido deixaram de configurar a prática de um crime de usurpação, tendo passado a ter cariz meramente contra-ordenacional.
Mais concretamente, a supra transcrita actuação do arguido que, durante o período de (pelo menos) Abril de 2016 até Novembro de 2019, distribuiu por um número não concretamente apurado de pessoas e através de uma contrapartida económica que essas lhe pagaram pelo acesso que o arguido lhes facultou a canais de televisão por cabo que eram transmitidos sob codificação e comercializados por operadoras de televisão apenas aos clientes destas (sendo exemplo desses canais a “TV Cine” , a “Disney Cinemagi”, a “TV Globo” e a “Sport TV”). Tendo o arguido efectuado tal difusão, dando origem, indirectamente, à subsequente transmissão de obra alheia levada a cabo por parte de um número indeterminado de pessoas e, pelo menos, a favor dessas pessoas, sem autorização do organismo de radiodifusão.
Aliás, a propósito de, directa, transmissão em estabelecimento comercial de obra alheia difundida por canal de televisão, quer a nossa doutrina (nomeadamente referida na anotação a esse artigo em “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, de José Branco e Paulo Pinto de Albuquerque, volume II, edição 2011, pág. 253) quer a nossa jurisprudência já vinham considerando que não configurava a prática de um crime e já havia sido proferido o acórdão de fixação de jurisprudência nº 15/2013 (publicado no Diário da República I Série de 16/12/2013), no sentido de não carecer de autorização do autor da mesma e de não integrar a prática de crime de usurpação (previsto pelo art. 195º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos na redacção anterior à actual).
Nesta conformidade e ao abrigo do disposto no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 4/95 de 7/6/1995 (publicado no Diário da República I Série-A de 6/7/1995) e  no art. 2º do Código Penal, oficiosamente, impõe-se alterar aquela parte da decisão da 1ª instância, absolvendo o arguido da prática do imputado crime de usurpação e da respectiva pena de 1 ano de prisão e 200 dias de multa à taxa diária de € 6.

1ª questão – O arguido cometeu o crime de detenção de dispositivos ilícitos ?
Na sentença recorrida, o Tribunal de 1ª instância considerou que a factualidade apurada não integra a prática deste crime pelo arguido.
O Ministério Público quer junto da 1ª instância quer junto deste Tribunal superior, assim como a assistente, consideram que sim.
Cumpre apreciar e decidir.
Para o efeito, importa começar por atentar ao tipo legal de crime em questão.
Os factos apurados e imputados ao arguido remontam ao período temporal de (pelo menos) Abril de 2016 até Novembro de 2019.
Durante esse período estava em vigor a Lei nº 5/2004, de 10-2, denominada como Lei das Comunicações Electrónicas que vigorou, pelo menos, até 16/8/2022 (data da publicação da actual Lei nº 16/2022, de 16-8 que, através do seu art. 11º, al. a), revogou aquela) e a qual previa o seguinte tipo legal de crime no seu art. 104º intitulado « Dispositivos ilícitos» com a seguinte redação (na parte com interesse para o caso em apreço e que se manteve inalterada desde a versão originária da Lei nº 5/2004) :
1 - São proibidas as seguintes actividades:
a) Fabrico, importação, distribuição, venda, locação ou detenção, para fins comerciais, de dispositivos ilícitos; (…)
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por:
a) «Dispositivo ilícito» um equipamento ou programa informático concebido ou adaptado com vista a permitir o acesso a um serviço protegido, sob forma inteligível, sem autorização do prestador do serviço;
b) «Dispositivo de acesso condicional» um equipamento ou programa informático concebido ou adaptado com vista a permitir o acesso, sob forma inteligível, a um serviço protegido;
c) «Serviço protegido» qualquer serviço de programas televisivo, de rádio ou da sociedade de informação desde que prestado mediante remuneração e com base em acesso condicional ou o fornecimento de acesso condicional aos referidos serviços considerado como um serviço em si mesmo.
3 - Os actos previstos na alínea a) do n.º 1 constituem crime punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se ao caso não for aplicável pena mais grave.

Segundo os ensinamentos doutrinais de Pedro Miguel Figueira Verdelho (em “Comentário das Leis Penais Extravagantes” de Paulo Pinto de Albuquerque, volume I, edição de 2010, págs. 465 a 469):
Este tipo legal de crime surgiu na sequência da transposição de várias Directivas do Parlamento Europeu e do Conselho (desde a primeira a nº 98/84/CE de 20-11, às subsequentes nºs 2002/19/CE, 2002/20/CE e 2002/21/CE todas de 7-3, alteradas pela n.º 2009/140/CE de 25-11 e das nºs 2002/22/CE de 7 de Março, alterada pela nº 2009/136/CE, de 25-11 e nº 2002/77/CE, da Comissão Europeia, de 16-9) relativas à protecção jurídica dos serviços que se baseiam ou consistam num acesso condicional, como é o caso das tecnologias digitais em moldes comerciais.
Pois, desde então, vinha-se e vem-se assistindo à crescente utilização de dispositivos ilícitos que permitiam e permitem o acesso gratuito a tais serviços de acesso condicionado (em que é exigido um pagamento para aceder aos mesmos).
E, mais do que isso, também se foi constatando que tal se desenvolvia num quadro de comercialização de tais dispositivos ilícitos. Isto é, não se confinando a uma actuação em benefício ilegítimo estritamente privado (para o utilizador final que não contrata nem paga tal serviço que usufrui ilicitamente), mas fazendo dela um ilícito negócio lucrativo (ao pretender ganhar dinheiro, negociando tais dispositivos ilicitamente, em detrimento do lícito negócio do respectivo operador desse serviço cuja prestação/fornecimento desse serviço em si mesmo carecia de maior protecção) – havendo necessidade de fazer face à expansão de um mercado paralelo de fornecimento de dispositivos ilícitos, à revelia dos respectivos operadores (em especial para os operadores de televisão por cabo), sem a correspondente contrapartida para estes e à consciência da ilicitude que a generalidade dos utilizadores tinha e tem das consequências nefastas desse seus comportamentos .
Pelo que, tal actuação ilícita em benefício estritamente privado para o agente, desprovida de intenção comercial ou lucrativa, manteve-se com cariz contra-ordenacional (contra-ordenação muito grave nos termos previstos pelo art. 113º, nº 3, al. zz), relativamente às condutas do art. 104º, nº 1, als. b) e c), da Lei nº 5/2004, de 10-2 e/ou contra-ordenação grave nos termos do art. 113º, nº 2, al. oo), relativamente às condutas do art. 104º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2004, de 01-2) e tal actuação ilícita com intuito comercial/lucrativo foi criminalizada (mais concretamente através do crime previsto no supra-transcrito preceito legal  - art. 104º , nº 1, al. a) e nº 3, da Lei nº 5/2004, de 10-2).
Assim, o nosso legislador colocou o acento tónico para a criminalização dessa proibida conduta/actividade no facto de ser levada a cabo «para fins comerciais», mas sem que tenha definido ou delimitado o sentido desta expressão que pode ter alguma ambiguidade interpretativa.
Para o efeito e conforme refere, certeiramente, o Acórdão do TRE de 14/7/2010 (no processo 22/06.8FAVRS.E1 acessível em dgsi.pt): fazendo uma leitura integrada e sistemática da génese do preceito, se tem de concluir que o legislador apenas quis punir no art. 104º, nº 1, al. a), as condutas a jusante do particular, ou seja, a comercialização, enquanto colocação no mercado de dispositivos ilícitos.
Sendo que tais actos/actividades proibidas e com comercialização/colocação no mercado de dispositivos ilícitos por parte de um arguido: tanto pode dizer respeito a equipamentos, como também a programas informáticos. Pois qualquer um deles é considerado um dispositivo ilícito, desde que seja concebido ou adaptado pelo arguido com vista a permitir o acesso a um serviço protegido, sob forma inteligível, sem autorização do prestador de serviço – cfr. a definição da expressão «dispositivos ilícitos» contida na supra-transcrita al. a) do nº 2 do art. 104º.  

Aliás, a actual Lei das Comunicações Electrónicas (aprovada pela já referida Lei nº 16/2022, de 16-8) no seu art. 166º, nº 1, al. a), nº2, al. a), e nº 3, reproduziu nos seus exactos termos aquele supra transcrito art. 104º, nº 1, al. a), nº 2, al. a) e nº 3, da Lei vigente aquando dos factos em apreço.
E, por isso, nem sequer se vai apreciar, em termos de sucessão de leis no tempo, a possibilidade da sua aplicabilidade ao caso em apreço que, porventura, se colocaria caso o actual regime fosse mais favorável ao arguido – cfr. os arts. 1º, nº 1, e 2º do Código Penal.

Continuando a seguir os ensinamentos doutrinais de Pedro Miguel Figueira Verdelho (na obra e páginas supra citadas):
Através do tipo legal de crime em apreço visam-se proteger as condições de concorrência sã e transparente no mercado dos serviços que se baseiam ou que consistam num acesso condicionado  - como é o caso paradigmático das tecnologias digitais em moldes comerciais e, em especial, dos operadores de televisão por cabo – e, reflexamente, também se pretende tutelar outros direitos legalmente protegidos como os direitos de autor e conexos.
São requisitos cumulativos deste tipo legal de crime:
 . a produção/fabricação, importação, distribuição, venda, locação ou mera detenção = bastando que o agente pratique qualquer uma destas acções (expressamente previstas na al. a) do nº 1 do supra transcrito art. 104º);
. com intuito comercial = com intenção lucrativa, pretendendo o agente ganhar dinheiro, negociando tais dispositivos (sendo este o elemento subjectivo do tipo em termos de culpa dolosa prevista no art. 14º do Código Penal);
. relativamente a um ou vários dispositivos ilícitos = tanto pode ser um equipamento propriamente dito e/ou um programa informático que será ilícito porque concebido ou adaptado para permitir aceder a um serviço protegido, sem a necessária autorização do respectivo prestador do serviço (nos termos expressamente definidos pelas supra transcritas alíneas a), b) e c) do nº 2 do art. 104º) como é caso paradigmático dos falsos receptores de sinal de televisão por cabo não autorizados pelo prestador de serviço de televisão por cabo e/ou de programa ou código informático que permite o acesso não autorizado, pelo respectivo operador, a canais de televisão codificados, aos quais só se pode aceder mediante pagamento ao respectivo operador.

Vejamos o caso em apreço.
Nestes autos, a Exmª julgadora da 1ª instância considerou que a factualidade apurada não preenchia os requisitos objectivos deste tipo legal de crime. E, embora nada mais tenha dito a este respeito, depreende-se que só considerara susceptível de preencher este tipo legal de crime as demais condutas constantes da acusação pública que ficaram por provar e a quais, nomeadamente, envolviam a utilização pelo arguido de cartões de uma operadora e de boxes android.
Ora – salvo o devido respeito pela Exmª julgadora da 1ª instância  e, apesar de não ter ficado provada a factualidade descrita nos itens 2 e seguintes da matéria de facto não provada – , a verdade é que o circunstancialismo fáctico já apurado, por si só, já configura a prática pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, daquele tipo legal de crime previsto naquela Lei das Comunicações Electrónicas que estava em vigor naquele período temporal.
Por isso, desde já, se adianta que, perante a incontroversa factualidade constante da sentença (já supra transcrita e aqui dada por reproduzida, com destaque para aquela já imputada na acusação pública) e sua subsunção àquele regime legal aplicável a tal factualidade, afigura-se-nos que assiste razão ao Digno recorrente.
Pois, conforme já vimos, a prática deste crime não tem, necessariamente, de ser efectuada através de um equipamento, propriamente, dito ilícito. Também pode ser efectuada através de um programa informático ilícito,  desde que:
- este seja concebido ou adaptado pelo arguido com vista a permitir o acesso a um serviço protegido, sob forma inteligível;
- tal suceda sem autorização do prestador de serviço;
- e tal suceda com fins comerciais/mercantis/lucrativos.
Ora, no caso concreto em apreço (conforme ficou provado e a seguir se indica em itálico), desde pelo menos Abril de 2016 que este arguido, utilizando os seus conhecimentos técnicos informáticos, logrou descodificar canais de operadoras de rede de televisão por cabo e fibra, descodificação esta (do serviço digital de televisão) que o arguido não estava autorizado a efectuar e que efectuou não só em proveito próprio, como também em proveito de outras pessoas, a troco de dinheiro que estas lhe pagavam para ele partilhar a divulgação de tais canais codificados.
Para efeito (para além de utilizar, em proveito próprio, equipamentos receptores de televisão não homologados pelos operadores de televisão), o arguido fornecia a esses “seus clientes” hiperligações a páginas de internet que lhes permitiam visualizar canais de televisão codificados, bastando estes terem um equipamento receptor independente ligado à internet ou bastando estes instalarem na televisão, telemóvel ou outro aparelho com acesso à internet a aludida aplicação fornecida pelo arguido.
Tendo até o arguido publicitado entre amigos e conhecidos, nomeadamente através da rede social Facebook que dispunha de facilidade em partilhar, através da internet, o sinal de televisão por cabo, mediante o pagamento por estes de quantia pecuniária de valores variáveis. Tendo o arguido criado 3 páginas de Facebook destinadas a publicitar tal oferta de prestação de tal serviço, tendo numa delas o seu número de telemóvel e noutra delas o seu nome. E, também para o efeito, tendo o arguido criado contas de correio electrónico para comunicar com os “seus clientes”.
Após o arguido ser contactado pelos interessados, através do Facebook e/ou através daquelas conta de e-mail, o arguido enviava-lhes um link para a instalação de uma aplicação (nomeadamente da aplicação Plex Media Server) que depois eles instalavam nas suas televisões, telemóveis ou outros aparelhos electrónicos com acesso à internet.
Esta partilha do sinal televisivo efectuada pelo arguido incluía canais codificados e tal sucedeu desde, pelo menos, Abril de 2016 até Novembro de 2019, com um número não concretamente apurado de pessoas, em troca de quantias pecuniárias variáveis, pagas em proveito do arguido e sem autorização nem consentimento do prestador de serviço. 
Para o efeito, o arguido indicava aos “seus clientes” o pagamento desse seu serviço de partilha de canais com uma periodicidade, variável conforme o acordado, que podia ser mensal, trimestral ou anual. Pagamento esse a ser feito para uma entidade pertencente à Mec Wallet e diferentes referências das quais era o único beneficiário e, também, o arguido fornecia o NIB de uma conta bancária por si titulada  para esses “seus clientes” procedessem à transferência, em proveito do arguido, do valor desse seu serviço prestado nos termos sobreditos.
Tendo o arguido agido com a intenção, que concretizou, através de equipamentos receptores de televisão não homologados pelos operadores de televisão e através de programas informáticos concebidos e adaptados para o efeito, respectivamente, de lograr utilizar e lograr distribuir/partilhar por outras pessoas, que lhe pagavam quantias monetárias para o efeito, sem que o arguido estivesse autorizado a utilizar e a distribuir/partilhar tais programas e dados informáticos disponibilizados pelas operadores de TV Cabo aos seus clientes.
Em suma, só nos resta afirmar, nestas sobreditas e indiscutíveis circunstâncias de tempo e modo, que o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime (que lhe havia sido imputado na acusação pública) previsto e punível pelo art. 104º, nº 1, al. a), nº 2, al. a), e nº 3, da Lei nº 5/2004, de 10-2.

2ª questão – A pena correspondente deverá, pelo menos, ser de 2 anos de prisão ?
O Digno recorrente considera que, relativamente a este crime, só uma pena de prisão com duração mínima de 2 anos será suficiente para satisfazer as elevadas necessidades quer de prevenção geral dada a crescente frequência deste tipo de criminalidade, quer de prevenção especial dada a intensidade da culpa do arguido com dolo directo e sem revelar arrependimento e dada a ausência de antecedentes criminais.
Cumpre apreciar e decidir.
Face à resposta afirmativa dada à questão anterior e face aos demais elementos já constantes dos autos, quer a propósito da demais factualidade apurada, quer a propósito do outro crime (de acesso ilegítimo) pelo qual já foi condenado nestes autos o arguido, importa aferir qual a pena parcelar correspondente a (mais) este crime e reformular a pena única tendo em conta (mais) esta pena parcelar.
O crime (agora) em apreço (de detenção e distribuição para fins comerciais de dispositivos ilícitos) é punível com pena de prisão de 1 mês até 3 anos ou com pena de multa se ao caso não for aplicável pena mais grave – cfr. o nº 3 do art. 104º da Lei 5/2004, de 10-2 em conjugação com o art. 41º, nº 1, do Código Penal (doravante com a abreviatura CP).
Conforme foi referido (e bem) pela Exmª Juiz da 1ª instância [a propósito da determinação daquela outra pena concreta já aplicada nestes autos, a este mesmo arguido, relativamente àquele outro crime praticado pelo mesmo], justifica-se a opção por uma pena de prisão, em detrimento de uma mera pena multa que poderia ser entendida como confirmação daquela vulgar ideia de que o crime compensa (tanto mais neste caso em que o arguido obtivera proveito económico) e que comprometeria as finalidades da punição no caso concreto (cfr. o art. 70º do CP).
Para efeitos da medida concreta desta espécie de pena (de prisão), importa atentar aos seguintes preceitos:
Sob o título «As consequências jurídicas do facto», o art. 40º do CP consigna que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1) e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (nº 2).
Com o título «Determinação da medida da pena», o art. 71º do CP consiga o seguinte:
“1- A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2- Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3- Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena. “

Desta forma, o legislador penal pretendeu legitimar a finalidade das penas em consonância com o princípio constitucional consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP : segundo o qual só podem ser restringidos, por lei, direitos, liberdades e garantias na medida do estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
E colhendo quer os ensinamentos doutrinais de Figueiredo Dias, quer os ensinamentos jurisprudenciais do STJ (em “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 78-85 e em “Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime”, Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, págs. 84-121, o acórdão do STJ de 16-01-2008, no processo n.º 4565/07 e o acórdão do STJ de 25/5/2016, no processo nº 101/14.8GBALD.C1.S1, ambos em dgsi.pt):
As penas como instrumentos de prevenção geral são instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes: através das ameaças penais estatuídas pela lei; da realidade da aplicação judicial das penas; e da efectividade da sua execução. Então surgindo a prevenção geral positiva ou de integração = como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. E como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar. Em suma, o ponto de partida/a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal do arguido.
O ponto de chegada da pena está nas exigências da prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização e da prevenção negativa.
Mas, tudo isto, sempre sem olvidar o princípio da culpa inerente ao nosso Estado de Direito Democrático: em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa). Significando isto que a concepção retributiva da pena não pode nunca atentar contra o princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana do arguido e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena e, assim se obtendo uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.
Assim, o princípio da culpa no nosso sistema penal serve com incondicional proibição de excesso, como limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas [ quer sejam de prevenção geral positiva de integração e/ou de prevenção geral negativa de intimidação, quer sejam de prevenção especial positiva de socialização e/ou de prevenção especial negativa de segurança ou de neutralização ].
Deste modo e perante cada caso concreto, a pena deve ser encontrada pelo Juiz dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e negativa (que são, respectivamente, o limite máximo e o limite mínimo desta “moldura” de pena -  pois a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores) e ponderando as circunstâncias do caso concreto, bem como o nível e preemência das necessidades especiais que se lhe apresentem de prevenção especial positiva e negativa (que são, respectivamente, a re-socialização do arguido e a prevenção da sua reincidência – tais as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, os seus antecedentes criminais), ao mesmo tempo que também estas lhe transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente (sem ultrapassar a medida da culpa concreta), o juiz fixará o quantum da pena.
Voltando ao caso em apreço, conforme já vimos:
são preementes as necessidades de prevenção geral (perante o aumento deste tipo de criminalidade com nefastos efeitos para a concorrência sã e transparente, nomeadamente no mercado dos operadores da televisão por cabo com acesso condicional);
militam contra o arguido: a elevada ilicitude dessa sua actuação criminosa (revelada pelo seu modo de actuação durante um período temporal superior 3 anos), a culpa grave (com dolo directo), o proveito económico que daí lhe adveio (embora de valor não concretamente apurado) e a sua personalidade (revelada pela não confissão, pela não demonstração de arrependimento e pela não assunção da gravidade de tal actuação); e militam a favor do arguido a sua média escolaridade (9.° ano, complementado com um curso de musculação e cardiofitness), a sua inserção social, profissional e familiar (está desempregado desde abril de 2021, dando ocasionalmente aulas de desportos de combate, atividade que dá um rendimento de cerca de €220 mensais e vive com a companheira, com uma filha com 18 meses, com os pais e com a avó em casa dos seus pais) e a ausência de antecedentes criminiais.
Por isso, tendo em conta a moldura abstracta da pena de prisão aplicável ao crime em apreço e todas as circunstâncias do caso concreto, consideramos ajustada a pena concreta de 10 meses de prisão correspondente a este crime de detenção e distribuição, para fins comerciais, de dispositivos ilícitos.

Agora, importa reformular a pena única, tendo em conta (mais) esta pena parcelar por forma a punir tais práticas criminosas deste arguido, na forma consumada e em concurso efectivo.
Como sabemos, a figura jurídica do concurso efectivo e heterogéneo de crimes, está prevista no art. 30º, nº 1, do CP, segundo o qual: “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos…”.
E a doutrina fala na figura do concurso real quando são vários os factos/actuações do mesmo agente através dos quais são violados vários bens jurídicos protegidos por várias incriminações/tipo legais – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, em “ Comentário do Código Penal”, 4ª edição actualizada, págs. 233 a 241.
Em suma e voltando ao caso concreto, não há dúvidas de que aquelas apuradas actuações do arguido, naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar, e com aquelas apuradas vontades/intenções dolosas do arguido, foram subsumidas e agora devem ser subsumidas à prática consumada, em concurso real e efectivo, daquele tipo legal de crime (de acesso ilegítimo) pelo qual já fora condenado nestes autos e de mais este tipo legal de crime (de detenção e distribuição, para fins comerciais, de dispositivos ilícitos),  cada um deles com desvalor jurídico autónomo tendo em conta o respectivo bem jurídico atingido (da segurança do sistema informático cujo acesso estava desacompanhado de autorização e da concorrência transparente ao nível dos serviços de televisão por cabo). 
E este concurso de (agora dois) crimes será relevante para efeitos de punição do arguido, conforme a previsão do art. 77º do CP.
A este propósito e com o título «Regras da punição do concurso» impõe o art. 77º do CP (na parte com interesse para o presente caso):
“1- Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2- A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
Não tendo o legislador optado (no apuramento da pena no concurso de crimes) pelo sistema de acumulação material, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta/única se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas, também e especialmente, pelo respectivo conjunto (não como mero somatório de factos criminosos), mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente – cfr. a título exemplificativo Cristina Líbano Monteiro em “A pena «unitária» no concurso de crimes (em RPCC, ano 16-2006,págs.151-169) e o acórdão do STJ de 21/11/2012 (no processo 86/08.0GBOVR.P1.S1, em dgsi.pt).
Conforme já vimos, a Exmª julgadora da 1ª instância já havia fixado e sem qualquer controvérsia a pena parcelar de 4 meses de prisão para o crime de acesso ilegítimo. E agora fixou-se a pena parcelar de 10 meses de prisão para o crime de detenção e distribuição de dispositivos ilícitos.
Posto isto, em cúmulo jurídico, temos como limite máximo abstracto a pena de 14 meses de prisão e como limite mínimo abstracto a pena de 10 meses de prisão – cfr. o art. 77º, nºs 1 a 3, do CP.
Tendo em conta esta moldura abstracta única, o conjunto dos factos apurados, a personalidade do arguido, consideramos ajustada a pena única de 12 meses de prisão.

Resta-nos uma última palavra a propósito da execução desta pena única de prisão.
Conforme a Exmª juiz da 1ª instância já o havia entendido (e bem), também este Tribunal  superior considera justificar-se a suspensão da execução da pena de prisão.
Pois, no caso concreto, a protecção dos bens jurídicos (da segurança do sistema informático cujo acesso estava desacompanhado de autorização e da concorrência transparente ao nível dos serviços de televisão por cabo) atingidos pelas condutas criminosas deste arguido, durante um período superior a 3 anos e que teme voltarem a ser afectados no futuro pelo mesmo arguido, não pode, por si só, justificar a imediata sujeição deste arguido ao meio prisional através do cumprimento de uma pena de prisão efectiva.
A nossa criminologia reconhece que “aquele que sofre uma pena de prisão é desinserido profissional e familiarmente, sofre contágio prisional, fica estigmatizado com o labéu de ter estado na prisão e não é compensado, muitas vezes, com uma efectiva socialização” – conforme, tão expressivamente, refere a Exmª Profª. Drª. Anabela Miranda Rodrigues, comentário ao acórdão do STJ de 21/3/1990 publicado em RPCC, 2, 1991, pág. 255. 
Daí o surgimento do instituto da suspensão da execução da pena de prisão  cuja filosofia é: “apontar ao arguido o rumo certo no sentido de, doravante, adequar o seu comportamento às exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo seu comportamento posterior. Para isso, sendo necessária a capacidade de o arguido sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir” – conforme as  exemplares palavras do Exmº Juiz Conselheiro Sousa Guedes no acórdão do STJ de 8/5/1997 no processo 96P1293.
Assim, o nosso legislador atribui ao Tribunal o poder-dever de suspender a execução de uma pena de prisão, desde que se preencham dois requisitos (cumulativos) previstos no nº 1 do art. 50º do CP:
- um requisito formal que é a pena concreta aplicada não ser superior a 5 anos;
- e um requisito material que é, perante os concretos factores aí expressamente elencados (da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da sua conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias deste) o Tribunal concluir por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido.
Sendo que, neste domínio da prognose social favorável (fazendo minhas as palavras dos Exmos Juízes Conselheiros  Simas Santos e Leal Henriques em “Código Penal Anotado”, vol. I, 4ª ed., 2014, págs. 711-712) está:  “a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e não cometerá nenhum crime  no futuro. O tribunal deve correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente certeza”.
E para que esse risco prudente dê frutos (no sentido de ser obtida a pretendida a ressocialização do arguido em liberdade, com a simples ameaça da pena de prisão) o Tribunal tem o poder-dever (perante as circunstâncias de cada caso concreto e segundo o regime contido nos arts. 50º a 54º do CP): de fixar o respectivo período de suspensão entre 1 a 5 anos e de subordinar essa suspensão ao cumprimento de deveres por parte do arguido em liberdade e/ou à observância de regras de conduta por parte do arguido em liberdade e/ou a um regime de prova assente num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social ao arguido em liberdade.
Ora, regressando ao caso em apreço e avaliando todo a concreta  factualidade apurada (nos termos supra transcritos e aqui dados por reproduzidos), à luz de todos estes critérios legais, afigura-se-nos equilibrada/ajustada a suspensão da execução dessa pena de prisão de 12 meses, durante igual período de 12 meses e com sujeição a um regime de prova com acompanhamento e reintegração social do arguido, a levar a cabo pelos serviços de reinserção social durante esse mesmo período, mediante solicitação nesta conformidade, com vista a prevenir que o arguido repita tais condutas criminosas.
Desta forma, consideramos que o arguido não ficará impune face aos dois crimes cometidos e , simultaneamente, o arguido ficará ciente de que a sua não sujeição ao ambiente prisional para cumprimento efectivo dessa pena única, apenas, dependerá de si próprio.
Pois, durante os próximos 12 meses, este arguido não poderá cometer qualquer crime e terá de cumprir esse regime de prova (nos termos e com os efeitos previstos pelos arts.53º e 54º do CP) .
E, caso tal não seja cumprido pelo arguido, este sujeitar-se-á à revogação da suspensão da execução da pena ou à prorrogação do período de suspensão (nos termos e com os efeitos previstos nos arts. 55º, 56º e 57º, nº 2, do CP).

DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em:
I-Absolver o arguido, A, da prática de um crime de usurpação e da respectiva pena face à redacção dada pela Lei nº 92/2019, de 4-9, ao art. 195º, nº 4, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos; 
II-Julgar procedente, nos termos sobreditos, o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente:
Condenar o arguido, A, na pena de 10 meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção e distribuição, para fins comerciais, de dispositivos ilícitos, previsto e punível pelo art. 104º, nº 1, al. a), nº 2 e nº 3, da Lei nº 5/2004, de 10-2;
Em cúmulo jurídico, abrangendo esta pena parcelar de prisão e a pena parcelar de 4 meses de prisão pela qual já fora condenado nestes autos (pela prática de um crime de acesso ilegítimo), condenar este arguido na pena única de 12 meses de prisão;
Ficando esta pena única de prisão suspensa na sua execução por igual período de 12 meses, acompanhada de regime de prova a efectuar pelos serviços de reinserção social.
*
Sem tributação.
Notifique.
D.n.


(Este acórdão foi elaborado pela relatora, visto pelos adjuntos e por todos assinado digitalmente)



Lisboa, 09 de março de 2023 


                                                                      
A Juiz Desembargadora Relatora
Paula de Sousa Novais Penha
O Juiz Desembargador Adjunto           
Carlos da Cunha Coutinho
A Juiz Desembargadora Adjunta
Raquel Correia de Lima