Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6029/20.5T8LSB.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
CONVENÇÃO DE REGULARIZAÇÃO DE SINISTROS
CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: A LAV consagra o princípio da competência do árbitro para conhecer da própria competência – competência da competência -, nas vertentes positiva (artº 18º, nº 1) e negativa (artº 5º).
Sendo consabido que na análise a efetuar pelo tribunal estadual se deve atuar com reserva e contenção, afigura-se que o âmbito de aplicação temporal da convenção de arbitragem enquanto elemento de aplicabilidade que se basta, in casu, com a data da interpelação efetuada na aplicação CRS, integra o restrito núcleo de casos em que o tribunal estadual pode julgar improcedente a exceção, em caso de manifesta inaplicabilidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

Companhia de Seguros A, SA instaurou ação declarativa de condenação sob a forma comum contra B - Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação da Ré ao pagamento do valor de € 40.063,16, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, bem como outros montantes que a Autora venha a despender em consequência do acidente dos autos, a liquidar em ampliação de pedido, incidente de liquidação ou em execução de sentença.
Para o efeito alegou, em síntese, que em consequência de acidente de viação, que foi simultaneamente de trabalho, a A. pagou à sinistrada, em cumprimento do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado, as despesas com assistência médica, serviços médicos e todas as outras despesas que a Autora suportou, cabendo-lhe pagar ainda as que aquela vier a suportar com o sinistro ocorrido. O acidente verificou-se por culpa do condutor do veículo seguro na R., onde a sinistrada seguia como passageira. A A. pretende na presente ação exercer o direito de regresso.
A R. apresentou contestação, tendo, além do mais, excecionado a incompetência absoluta dos tribunais estaduais, por preterição do tribunal arbitral. Alegou, em suma que a A. e a R. são associadas da Associação Portuguesa de Seguradores e aderentes da “Convenção de Regularização de Sinistros - CRS”, bem como signatárias do “Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho”; o acidente de viação em apreço ocorrido em 27/09/2011 foi, simultaneamente, de trabalho para a sinistrada F; o art. 3º nº 2 a) da Convenção prevê a expressa renúncia ao recurso a qualquer outra via judicial ou arbitral para a resolução de todos os litígios que surjam entra elas, estando as partes obrigadas a recorrer a esta Convenção; a convenção de arbitragem é um negócio jurídico que gera o direito potestativo de submeter à decisão por árbitros um litígio compreendido no seu objeto e que vincula ambas as partes, pelo que o presente litígio tem que ser dirimido no âmbito da Convenção e não pode ser apreciado nos Tribunais Judiciais.
A R. juntou com a contestação dois documentos, a Convenção CRS e Protocolo.
Notificada para se pronunciar quanto às exceções a A. pugnou pela improcedência da exceção de incompetência absoluta, por a convenção de arbitragem ser inaplicável ao sinistro dos autos, nos termos dos artºs 35º da Convenção e 11º, nº 1 do Protocolo.
Após realização de audiência prévia foi proferida decisão que julgou verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, por preterição de tribunal arbitral voluntário e, em consequência, declarou o tribunal judicial incompetente para a tramitação e absolvição da causa e absolveu a ré da instância.
Na referida decisão pode ler-se o seguinte:
“In casu, por um lado, não suscitam dúvidas a validade e a eficácia da convenção de arbitragem firmada entre as partes quanto à questão da submissão à jurisdição arbitral dos litígios que surjam entre elas e dos litígios respeitantes à aplicabilidade, execução ou interpretação da Convenção de Regularização de Sinistros ou do Protocolo a esta associado.
Por outro lado, e apesar do disposto nos artigos 35º, n.º 2 da Convenção de Regularização de Sinistros e 11º, n.º 1 do Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho, a verdade é que não resulta inequivocamente demonstrada a manifesta inaplicabilidade ou inexequibilidade da Convenção de Regularização de Sinistros ou do Protocolo a esta associado, face aos elementos constantes dos autos e ao disposto nos artigos 4º, n.º 2 e 8º, n.º 1, alínea j) da Convenção de Regularização de Sinistros e 8º, n.º 2 do Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho.
Nestes termos, forçoso é concluir que a Convenção de Regularização de Sinistros é suscetível de vincular as partes litigantes e de conter o presente litígio no seu objeto, sendo que, no caso do litígio quanto à aplicabilidade, execução ou interpretação da Convenção de Regularização de Sinistros ou do Protocolo a esta associado, resulta claro que o mesmo terá de ser dirimido pelo orgão de gestão executiva, nos termos do artigo 8º, n.º 1, alínea j), da Convenção de Regularização de Sinistros e 8º, n.º 2 do Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho.”
A A. interpôs recurso desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“1) A Apelante não se pode conformar com o sentido da decisão prolatada mediante despacho Saneador Sentença, pela Mm. ª Juiz do Tribunal “a quo”, no sentido de, encontrando-se em condições de julgar, desde logo, manifesta a inaplicabilidade da Convenção de Regularização de Sinistros e do Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho, ter decidido no sentido contrário.
2) Do caminho trilhado pela Mm. ª Juiz no exame da questão cuja análise e decisão se lhe impunha, resulta inequívoco que a Mm. ª Juiz do Tribunal “a quo” procedeu ao correcto enquadramento jurídico da questão, tomando, no entanto, a decisão oposta à que resultaria da aplicação da Lei.
3) O conhecimento da excepção aduzida pela Apelada não implicava o conhecimento do objecto da Convenção e do Protocolo, cabendo apenas a análise do âmbito de aplicação temporal de tais instrumentos.
4) Tratando-se de uma excepção dependente de arguição pelas Partes, no exame e decisão acerca da sua procedência, o Julgador sempre terá de se ater na alegação e documentação junta pelas partes, o que, in casu, implica a consideração da factualidade assente mediante acordo e a sua subsunção aos instrumentos juntos aos autos com a Douta Contestação, sob documentos n.º 1 e 2.
5) Importa ter presente que, aquando da prolação do Saneador Sentença, a Mm. ª Juiz do Tribunal “a quo” já tinha por assente, por acordo entre as partes, quer a data de verificação do acidente, [27-09-2011], quer a data de resposta à interpelação efectuada pela aqui Apelante, [24-06-2016].
6) Tendo presente o que antecede, ou seja, as datas de verificação do acidente que motiva os autos e ainda o facto de a interpelação ter ocorrido em data anterior a 24-06-2016, resulta evidente, gritante e manifesto, da simples leitura do preceituado no artigo 35.º da Convenção de Regularização de Sinistros, bem como do plasmado no artigo 11.º do Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho, a não aplicabilidade de tais instrumentos ao caso dos presentes autos.
7) De facto, o referido Protocolo apenas se aplica, conforme expressamente previsto no mesmo, a acidentes ocorridos em data posterior a 01 de Janeiro de 2018.
8) Por sua sorte, a sobredita Convenção apenas entrou em vigor aos 02 de Maio de 2017, apenas se aplicando aos processos com interpelação entrada na aplicação CRS em data posterior à referida data de entrada em vigor.
9) Caso o conhecimento da situação dos presentes autos estivesse vedado à Mm. ª Juiz do Tribunal “a quo”, estar-se-ia a esvaziar em absoluto o preceituado no artigo 5.º, n.º 1 da Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, desprovendo-o de qualquer aplicação prática.
10) De acordo com a Doutrina e Jurisprudência maioritárias, tem-se por inequívoca ou manifesta, a inaplicabilidade de uma determinada convenção de arbitragem, quando a sua apreciação não dependa de produção de prova, conforme, entre outros, Acórdão proferido por unanimidade pela 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, aos 20-03-2018, no âmbito do processo n. º 1149/14.8T8LRS.L1.S1.
11) No caso sub judice, conforme referido, a aferição da inaplicabilidade dos instrumentos dependia apenas da consideração da matéria assente, em conjugação com a leitura de um artigo de cada um dos instrumentos, termos em que, não pode senão ser considerada manifesta tal inaplicabilidade, impondo-se assim à Mm. ª Juiz do Tribunal “a quo” que julgasse a excepção invocada improcedente, conforme, entre outros, Acórdão proferido pela 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, aos 21-06-2016, no âmbito do processo n. º 301/14.0TVLSB.L1.S1.
12) A decisão proferida pelo Tribunal “a quo” consubstancia-se numa efectiva denegação da justiça, violando o preceituado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, termos em que, impõe-se a sua impugnação por outra conforme à Lei Fundamental.
13) Sempre se refira igualmente que, ao abrigo do princípio da economia processual, considerando os elementos de que a Mm. ª Juiz do Tribunal “a quo” dispunha no momento da prolação do Saneador Sentença, impunha-se-lhe o conhecimento do mérito da causa, não sendo admissível relegar para os Tribunais Arbitrais a tramitação de uma causa que manifestamente cabe aos Tribunais Estaduais.
14) O Tribunal “a quo” dispunha, efectivamente, de todos os elementos necessários em ordem à prolação de uma decisão de mérito que pusesse termo definitivo ao litígio.
15) A decisão do Tribunal “a quo” deve ser impugnada, nos termos do disposto nos art. 660º do Código de Processo Civil, devendo a excepção de incompetência absoluta do Tribunal ser julgada improcedente e, nessa sequência, o processo descer à 1ª instância para serem promovidas todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, designadamente, sendo produzida prova em sede de Audiência de Discussão e Julgamento;
16) Com o que, concedendo provimento ao recurso, anulando a decisão do Tribunal “a quo” e ordenando a realização de diligências probatórias, designadamente, produção de prova em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, farão V. Exas. a costumada e sempre sã JUSTIÇA!”
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A R. apresentou contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:
“1 - As Alegações da Recorrente foram construídas sobre premissas que não estão corretas.
2 - A Convenção Arbitral é um negócio jurídico bilateral, na medida em que resulta da convergência da vontade das partes.
3 - Perante este tipo de Convenção, as partes ficam constituídas no ónus de, querendo ver decidido litígio que se compreenda no seu objeto, preferirem a jurisdição arbitral, privada, à jurisdição pública.
4 - Recorrente e Recorrida são aderentes da “Convenção de Regularização de Sinistros - CRS”, que corresponde ao Doc.1 anexo à Contestação da Apelada.
5 - De igual modo, são signatárias do “Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho”, que corresponde ao Doc.2 anexo, igualmente, à Contestação da Apelada.
6 - Por força da adesão à Convenção de Regularização de Sinistros e mediante a outorga deste Protocolo, a Recorrente enquanto signatária, vinculou-se a respeitar as regras que regulam os prazos, as comunicações e a via Arbitral, que deverá observar em caso de sinistro.
7 - Esclarece o art. 3º nº 1 desta Convenção, que a adesão a qualquer um dos Protocolos implica a subscrição automática da Convenção de Regularização de Sinistros.
8 - Sob a epígrafe “Princípios Fundamentais”, o art. 3º nº 2 a) do Doc.1 prevê a expressa renúncia ao recurso a qualquer outra via judicial ou arbitral para a resolução de todos os litígios que surjam entra elas, estando as partes - Recorrente e Recorrida - obrigadas a ativar esta Convenção.
9 - Se a Recorrente aceitou aderir, está vinculada ao cumprimento das regras impostas pelo Protocolo.
10 - Todavia, ao instaurar a presente Ação Comum no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a Recorrente violou conscientemente as regras que subscreveu e as quais estava obrigada a respeitar.
11 - Perante o decurso do tempo, a Recorrente já não pode usar a via arbitral. Mais importante, nunca pôde usar a via judicial, para reclamar eventual direito de crédito.
12 - Para que se verifique a exceção dilatória da preterição de tribunal arbitral basta que se alegue e prove no tribunal judicial a existência de convenção de arbitragem que não seja manifestamente nula ou ineficaz e que seja apenas suscetível de vincular as partes no litígio e de conter tal litígio no seu objeto.
13 - A nulidade manifesta é a invalidade que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo apenas na consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade. E mesmo nestes casos, quando existam dúvidas sobre a validade da convenção, o tribunal judicial deve optar pela procedência da exceção de preterição de tribunal arbitral voluntário.
14 - Sendo aderente da “Convenção de Regularização de Sinistros”, a Recorrente sabe que o primeiro Protocolo relativo a este tipo de acidentes foi assinado pelas Seguradoras em 30/07/1997 e as regras previstas em cada um destes Instrumentos foram sucessivamente transpostas para as novas versões.
15 - A Recorrente tem pleno conhecimento que esta Convenção substituiu o anterior Protocolo em vigor, que também previa exatamente a questão agora em apreço, nos seus precisos termos. Os Protocolos têm sido renovados, mas sempre prevendo a aplicação aos sinistros entretanto ocorridos.
16 - Nos termos da alínea b) do art. 96º e do art. 99º do C.P.C., a preterição de Tribunal Arbitral determina a incompetência absoluta do Tribunal, obsta a que este Tribunal Judicial conheça do mérito da causa e constituiu uma exceção dilatória que dá lugar à absolvição da Recorrida instância, em harmonia com os arts. 576º nº 2, 577º al. a) e 278º nº 1 al. a) do CPC.”
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A factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a constante do relatório que antecede, bem como a seguinte, decorrente do acordo das partes em face das posições assumidas nos articulados e dos documentos juntos aos autos, não impugnados:
1. A A. peticiona o pagamento de quantias que foi condenada a pagar à sinistrada no processo de acidente de trabalho, por via do direito de regresso.
2. O acidente de viação, simultaneamente de trabalho, ocorreu no dia 27/11/2011. 
3. A R. respondeu à interpelação efetuada pela A. na aplicação CRS em 24/06/2016.
4. A. e R. são aderentes da “Convenção de Regularização de Sinistros - CRS”, junta como documento nº 1, com a contestação.
5. A. e R. são signatárias do “Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho”, documento junto como nº 2 com a contestação.
6. A “Convenção de Regularização de Sinistros – CRS” é do seguinte teor, na parte que ora releva:
“Artº 2º A presente Convenção visa simplificar e agilizar a regularização de sinistros, estabelecendo um conjunto de princípios e regras comuns aplicáveis aos Protocolos a ela associados e regulando o sistema de resolução de litígios e o sistema de reembolsos entre signatárias.”
artº 3º, nº 2, al. a) “Nos termos da presente Convenção de Regularização de Sinistros, as signatárias obrigam-se a recorrer à presente Convenção para resolução de todos os litígios que surjam entre elas, renunciando expressamente ao recurso a qualquer outra via judicial ou arbitral.”
artº 35º, sob a epígrafe “Entrada em Vigor”
“1. A presente convenção entra em vigor a 2 de maio de 2017, substituindo a convenção anteriormente em vigor.
2. A presente Convenção aplica-se a todos os processos cuja interpelação dê entrada na Aplicação CRS após a sua entrada em vigor.”
artº 4º, nº 2
“Para além dos litígios entre signatárias emergentes dos sinistros enquadrados nos seus protocolos, ficam ainda abrangidos pela presente Convenção os litígios que o Conselho de Direção da APS venha a submeter à sua jurisdição, nos precisos termos em que tal jurisdição vier a ser concedida.
artº 8º nº 1, al j) : Compete ao órgão de gestão executiva dirimir litígios quanto à aplicabilidade, execução ou interpretação da presente Convenção e dos Protocolos a ela associados.
7. O “Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho”, é do seguinte teor, na parte que ora releva:
artº 1º, nº 1:“O presente Protocolo é aplicável aos acidentes que são simultaneamente de trabalho e de automóvel.”
Artº 8º, nº 2 : Em caso de litígio quanto à aplicabilidade, execução ou interpretação do presente Protocolo, o mesmo será dirimido pelo órgão de gestão executiva da Convenção de Regularização de Sinistros (CRS).
artº 11º, nº 1: “O presente Protocolo entra em vigor a 01 de janeiro de 2018, substituindo o anterior e aplicando-se aos acidentes ocorridos a partir desta data.”
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).
Assim, a única questão a decidir consiste em determinar se a presente ação é da competência do tribunal arbitral ou dos tribunais judiciais.
Nos termos do disposto no art. 96º, al. b) do CPC a preterição do tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal e, de acordo com o prescrito no artº 99, nº 1, verificada a incompetência absoluta tal implica a absolvição do Réu da instância.
De harmonia com o preceituado no artº 1º, nº 1 da Lei 63/2011, de 14/12 (doravante LAV), qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial que não esteja submetido por lei especial exclusivamente aos tribunais estaduais ou a arbitragem necessária pode ser cometido pelas partes à decisão de árbitros, mediante convenção de arbitragem.
“A convenção de arbitragem, em qualquer das suas modalidades, é um negócio jurídico que gera, para ambas as partes, o direito potestativo de submeter à decisão de árbitros um litígio compreendido no sue objeto; e que vincula ambas as partes à sujeição correlativa de, independentemente da sua vontade, ver um litigio que caiba no seu objeto ser cometido a árbitros. Simultaneamente a convenção de arbitragem constitui ambas as partes no ónus de, querendo ver decidido litígio que se compreenda no seu objeto, preferirem a jurisdição arbitral, privada, á jurisdição pública.” [i]
A A. e a R. são aderentes da Convenção de Regularização de Sinistros (CRS) e do Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho.
A seguradora da entidade patronal que houver pago a indemnização de acidente de viação e, simultaneamente, de trabalho tem direito, por força da sub-rogação, ao reembolso da indemnização que satisfez ao responsável civil pelo acidente de viação, nos termos do disposto no art. 17º, nº 1 e 4 da Lei nº 98/2009.
O litígio em causa nos presentes autos, onde se discute o direito da A. a receber da R. as quantias indicadas, decorrente do pagamento à sinistrada em virtude de acidente de trabalho, simultaneamente de viação, em resultado da celebração de contrato de seguro com a respetiva entidade patronal, corresponde a um interesse de natureza patrimonial da A..
Decorre dos artºs 3º, nº 2, al. a) da Convenção CRS e 1º, nº 1 do Protocolo que a resolução do litígio emergente de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, entre as respetivas seguradoras, deve ser dirimido em tribunal arbitral.
O artº 3º, nº 2, al. a) da Convenção CRS constitui cláusula compromissória, em conformidade com o disposto no artº 1º, nº 3 da LAV.
A A./apelante pugna pela manifesta inaplicabilidade da convenção de arbitragem ao litígio dos autos com fundamento na data de início da aplicação dos instrumentos (Convenção CRS e Protocolo) que foram juntos aos autos, uma vez que a Convenção de Regularização de Sinistros entrou em vigor em 2 de maio de 2017, aplicando-se aos processos com interpelação entrada na aplicação CRS em data posterior àquela (artº 35º) e tal interpelação ocorreu em data anterior a 24/06/2016. Por sua vez, o Protocolo de que as partes são signatárias apenas se aplica a acidentes ocorridos em data posterior a 1 de janeiro de 2018 (artº 11º, nº 1) e o acidente dos autos verificou-se em 27/11/2011.
 “O tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.” – artº 18º, nº 1 da LAV.
Nos termos do disposto no artº 5º, nº 1 da LAV “o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.”
Os preceitos citados consagram o princípio da competência do árbitro para conhecer da própria competência – competência da competência -, nas vertentes positiva (artº 18º, nº 1) e negativa (artº 5º).
“Assim, o tribunal estadual perante o qual seja invocada a convenção de arbitragem só deve declinar a sua competência para decidir o litígio, se aquela convenção de arbitragem não for ‘manifestamente’ nula, ineficaz ou inexequível, independentemente de esse litígio já estar ou não perante um tribunal arbitral constituído.” [ii]
 “Se for manifesta – isto é, se for óbvia, evidente – a nulidade, a ineficácia ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, o juiz pode declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a exceção.” [iii]
 “A competência dos tribunais estaduais para verificar a inaplicabilidade da convenção de arbitragem restringe-se aos casos em que a sua nulidade, ineficácia ou inexequibilidade é manifesta (art. 5.º da LAV), cabendo à parte interessada o ónus de alegar (logo em 1.ª instância e não apenas em sede de apelação) e provar os pertinentes factos.” [iv]
“Ao apreciar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, devem os tribunais judiciais actuar com reserva e contenção, de modo a reconhecer ao tribunal arbitral prioridade na apreciação da sua própria competência, apenas lhes cumprindo fixar, de imediato e em primeira linha, a competência dos tribunais estaduais para a composição do litígio que o A. lhes pretende submeter quando, mediante juízo perfunctório, for patente, manifesta e insuscetível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia ou inaplicabilidade da convenção de arbitragem invocada.
Manifesta inexistência (nulidade, ineficácia ou inexequibilidade) é aquela que não necessita de mais prova para ser apreciada, afastando, à partida, qualquer alegação de vícios da vontade na celebração do contrato e deixando ao tribunal judicial apenas a consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade.” [v]
“Face ao princípio consagrado no art. 18.º, n.º 1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.” [vi]
O critério legal da manifesta nulidade, ineficácia ou inexequibilidade da convenção de arbitragem, único que permite ao tribunal estadual julgar improcedente a exceção de preterição de tribunal arbitral, tem sido entendido na doutrina e jurisprudência de molde a abranger, por exemplo, os casos de inaplicabilidade em virtude do seu objeto, aferida por referência à causa de pedir invocada e pedido formulado, o que reveste necessariamente análise desta, ainda que perfunctória.
Sendo consabido que na análise a efetuar pelo tribunal estadual se deve atuar com reserva e contenção, afigura-se que o âmbito de aplicação temporal da convenção de arbitragem enquanto elemento de aplicabilidade que se basta, in casu, com a data da interpelação efetuada na aplicação CRS, integra o núcleo de casos em que o tribunal estadual pode julgar improcedente a exceção, em caso de manifesta inaplicabilidade.
A Convenção em causa entrou em vigor em 2 de maio de 2017, sendo aplicável aos processos com interpelação entrada na aplicação CRS em data posterior à referida data de entrada em vigor; a interpelação efetuada pela ora A. na aplicação CRS ocorreu em data anterior a 24/06/2016. Com efeito, não estando provada a data da interpelação, a mesma ocorreu necessariamente antes da resposta.
É quanto basta para se concluir que a Convenção de Regularização de Sinistros é manifestamente inaplicável ao litígio dos autos. O mesmo sucedendo em relação ao Protocolo, uma vez que apenas abrange acidentes ocorridos em data posterior a 1 de janeiro de 2018.
É irrelevante que a apelada tenha alegado – apenas em sede de resposta à alegação de recurso - que anteriormente à Convenção e Protocolo que juntou aos autos, A. e R. eram aderentes da Convenção e Protocolo que foram substituídos pelos instrumentos dos autos e que continham regras idênticas. Além de a alegação ser intempestiva nenhuma prova da mesma foi efetuada.
Na decisão recorrida entendeu-se ser a Convenção de Regularização de Sinistros suscetível de vincular as partes litigantes e de conter o presente litígio no seu objeto, atento o disposto nos artºs 8º, n.º 1, alínea j), da Convenção de Regularização de Sinistros e 8º, n.º 2 do Protocolo de Acidentes que são simultaneamente de Automóvel e de Trabalho e por não resultar inequivocamente demonstrada a manifesta inaplicabilidade ou inexequibilidade da Convenção de Regularização de Sinistros ou do Protocolo a esta associado, face aos elementos constantes dos autos.
No que respeita à aplicação temporal, os elementos constantes dos autos, relativos à data do sinistro e data da interpelação, são inequívocos, não carecendo de mais indagação. Também não suscitam dúvidas a interpretação dos artºs 35º da Convenção e 11º do Protocolo, que regem sobre a entrada em vigor de cada um dos instrumentos (cfr. respetiva epígrafe).
Por sua vez, os artºs citados na decisão recorrida, têm a seguinte epígrafe “âmbito de aplicação”, “competências do órgão de gestão executiva” (artºs 4º e 8º da Convenção, respetivamente)  e “resolução de litígios” (artº 8º do Protocolo). Da inserção sistemática e respetivo teor resulta que tais artigos não regem sobre a aplicação no tempo dos instrumentos onde se inserem, ao invés dos mencionados artºs 35º da Convenção e 11º do Protocolo. Estes últimos são os que regulam a questão em apreço no presente recurso, da aplicação temporal ao litígio.
Concluindo, cabia à apelada, que invocou a exceção, alegar e provar a existência de convenção de arbitragem aplicável ao litígio – o que não logrou fazer -, sendo manifesto que a convenção de arbitragem junta aos autos não é aplicável.
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, e consequentemente, decide-se revogar a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que, julgue improcedente a exceção de preterição de tribunal arbitral invocada pela R., e determinando o prosseguimento da ação, se a tanto nada mais obstar.
Custas do recurso a cargo da apelada.

Lisboa, 30 de Setembro de 2021
Teresa Sandiães
Octávio Diogo
Cristina Lourenço
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[i] Lopes dos Reis, A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, dezembro 1998, pág. 119-1120.
[ii] António Sampaio Caramelo, A competência da competência e a autonomia do tribunal arbitral, ROA, ano 73, pags. 292 e seguintes.
[iii] Lopes dos Reis, ob. citada, pág. 1129
[iv] Acórdão do STJ de 08/02/2018, disponível em www.dgsi.pt
[v] Acórdão do STJ de 21/06/2016, disponível em www.dgsi.pt
[vi] Acórdão do STJ de 20/03/2018, disponível em www.dgsi.pt