Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
48/16.3PBCSC-A.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: PROVA
DADOS DE TRÁFEGO
LOCALIZAÇÃO CELULAR
TELECOMUNICAÇÕES MÓVEIS
SUSPEITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - Tendo, num processo crime em fase de inquérito, requerido o Ministério Público, ao Juiz de Instrução Criminal, que fosse oficiado às operadoras de telemóveis o envio de listagem contendo todos os dados de tráfego - registos completos das comunicações efectuadas e recebidas nas BTS com indicação da hora e com indicação dos números chamados e chamadores, incluindo as mensagens de texto, duração e hora das chamadas e localização celular - relativos aos cartões SIM que operaram num determinado período de tempo, quanto às antenas que identificou (19 todas situadas no Centro de Cascais), mas não estando concretizados alvos determináveis, e atingindo a diligência pretendida um universo ilimitado e indiferenciado de cidadãos que não se integram no conceito jurídico-penal de “suspeitos”, o deferimento da sua realização iria contra o disposto na al. a) do n.º 3 do art. 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, para além de não respeitar os princípios da proporcionalidade e da adequação cuja observância o n.º 4 desse normativo e o art. 18.º, n.º 2, da CRP impõem.

II - Posição diversa poder-se-ia porventura aceitar num caso em que desconhecendo-se quem eram os suspeitos a diligência requerida presumivelmente não atingisse um grande e incerto número de cidadãos mas tão só os potenciais autor(es) do crime e sua(s) vítima(s), como sucederia perante uma baixíssima densidade populacional no território para o qual se pretendia que as operadoras de telemóveis facultassem os dados conservados de tráfego e de localização celular relativos a comunicações telefónicas.

III - Situação diferente será também aquela em que um dia os avanços tecnológicos nos permitam circunscrever à localização de um único prédio ou a um raio de muito curta distância em volta deste a informação sobre o tráfego de dados de telemóveis ocorrido num determinado período de tempo, também ele reduzido, que se saiba ter sido o da consumação de um crime violento, nele se incluindo os minutos que imediatamente o antecederam e precederam.

IV - O não se ficar a conhecer o conteúdo do tráfego não exclui a possibilidade de graves repercussões na vida de um inocente estranho ao processo crime em fase de inquérito/investigação, porquanto o simples facto de uma pessoa ligar para outra, cujos números de telemóvel e de IMEI são revelados, a determinada hora, a partir de certo local e com uma duração de chamada telefónica de X tempo, já está por si só a facultar a terceiros preciosos elementos de referenciação.

(sumário elaborado pelo relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. Nos autos de Inquérito que, com o n.º 48/16.3PBCSC, correm termos no Departamento Central de Investigação e Ação Penal – 3.ª Secção, da Comarca de Lisboa Oeste – Cascais, o Ministério Público, não se conformando com o despacho, proferido em 18 de Abril de 2016, pela Mmª Juíza da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais – Instância Central – 2.ª Secção de Instrução Criminal – Juiz 2, que indeferiu o seu requerimento no sentido de que fosse oficiado às operadoras de telemóveis MEO, VODAFONE e NOS solicitando-lhes o envio da "LISTAGEM - EM SUPORTE DIGITAL E FORMATO EXCEL - CONTENDO TODOS OS DADOS DE TRÁFEGO - REGISTOS COMPLETOS DAS COMUNICAÇÕES EFECTUADAS E RECEBIDAS NAS BTS COM INDICAÇÃO DA HORA E COM INDICAÇÃO DOS NÚMEROS CHAMADOS E CHAMADORES, INCLUINDO AS MENSAGENS DE TEXTO, DURAÇÃO E HORA DAS CHAMADAS E LOCALIZAÇÃO CELULAR - RELATIVOS AOS CARTÕES SIM QUE OPERARAM ENTRE AS 01H45M E AS 02H30M DO DIA 9 DE JANEIRO DE 2016, QUANTO ÀS ANTENAS QUE SE IDENTIFICAM", veio dele interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

"a) Visam os presentes autos investigar os factos ocorridos a 9 de Janeiro de 2016, pelas 02h30m, dos quais foram vitimas AA (d.n. xx/xx/1947), BB (xx/xx/1947), e CC (d.n. xx/xx/1974), ocorridos no interior residência mesmos, sita na DD, em Cascais, os quais se mostram susceptíveis de integrar, em abstracto, a prática de crime de roubo agravado, previsto e punido pelo disposto no artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal (atento o disposto no artigo 204.º, n.º 2, alínea f) do Código Penal), e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, do Regime Jurídico das armas e suas munições.

b) Realizadas diversas diligências foi possível trazer aos autos uma descrição física dos autores (quatro indivíduos, do sexo masculino: três deles mediam cerca de 1,80m e o quarto entre 1,85m/1,90m, este de pele morena, com sotaque yyyyy, com o braço esquerdo com uma tatuagem, trazia uma peruca com rastas no cabelo e tinha olhos cor de mel), pelo que, perante tal requereu-se à M.ma Juiz de Instrução que, ao abrigo do disposto nos artigos 10.º e 7.º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, fossem as operadoras de telemóveis oficiadas para que remetessem relação de todos os cartões SIM e respectivos IMEI que tenham estado presentes e activos nas células que se discriminaram (dados de tráfego armazenados), com menção da respectiva localização celular, para o curto período temporal entre a 01h45m e as 02h30m do dia 9 de Janeiro de 2016.
c) Na promoção elaborada dá-se conta da GRAVIDADE do crime (artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho) e da INDISPENSABILIDADE da diligência, com menção de que outras não se vislumbravam que pudessem alcançar o duplo objectivo de localização e identificação dos autores dos factos e de que a listagem remetida seria sujeita à respectiva análise, sendo única e exclusivamente junta aos autos a informação pertinente para a investigação.
d) Em sede de decisão, a M.ma Juiz de Instrução, invocando os artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal – sem esclarecer as razões do afastamento do regime constante da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho invocado ou as de aplicação do diploma legal indicado -, indeferiu a diligência requerida, concluindo que "entendemos que o requerido pela Digna Magistrada do Ministério Público carece de fundamento legal", decisão da qual ora se recorre, por se entender que a mesma procedeu a uma errónea apreciação da promoção apresentada e a uma interpretação restritiva do conceito de suspeito, não sopesando, de forma adequada às necessidades impostas pela eficiência da justiça penal.
e) Em primeiro lugar, sempre se dirá que terá de se atender ao teor da diligência requerida, que mais não é do que uma listagem de números de telemóvel e de IMEI (correspondendo tal à identificação do equipamento utilizado) - uma vez que diferentes cartões podem encontrar-se associados ao mesmo aparelho - que accionaram antenas determinadas num período temporal restrito, reduzido a quarenta e cinco minutos de madrugada, e da qual não consta qualquer conteúdo das operações realizadas.
f) Em segundo lugar, sempre se dirá que, nos termos do disposto nos artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal apenas são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, devendo aqui entender-se à constante no artigo 262.º do referido diploma legal e aos princípios de idoneidade, necessidade e proporcionalidade – "estas três vertentes são requisitos intrínsecos de toda a medida processual restritiva de direitos fundamentais e exigíveis, tanto no momento da sua previsão pelo legislador, como na sua aplicação prática" (in Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar e outros, 2014, ALMEDINA). Ora, não sendo prova proibida, aferida a pertinência da diligência e mostrando-se a mesma respeitadora dos princípios indicados, teria de ser a mesma deferida.
g) Em terceiro lugar, certo é que a decisão judicial de que ora se recorre não procede a qualquer apreciação do requerido, fazendo aplicar as normas previstas no Código de Processo Penal, afastando o regime previsto na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, o qual é invocado na promoção que antecede, por se entender que constitui o aplicável à recolha de prova eletrónica por localização celular conservada, sem enunciar qualquer fundamento para tal.
h) Mais se afirme, que dúvidas inexistem quanto à gravidade do ilícito em investigação - o qual constitui, em nosso entender, no crime que maior intranquilidade gera na sociedade, em face do modo aleatório coma as vítimas são escolhidas, a indiferença pelas mesmas e pela sua vida e a violência gratuita utilizada na sua consumação - e que a informação que se pretende recolher - listagem de números e IMEI que activaram um número determinado de antenas, num período de apenas 45 minutos (curto, refira-se) -, visando alcançar a dupla finalidade de localização e identificação dos suspeitos, alcançará efeitos úteis perante a possibilidade de comparação da mesma com a de outras investigações em curso e nas quais são descritos modos de atuação similares praticados por indivíduos cujas características em tudo se assemelham às dos descritos nos presentes autos.
i) Por último, e parecendo resultar da decisão ora recorrida que a rejeição se funda na falta de identificação cabal de quem é o suspeito, sempre se dirá que, nos termos da definição constante do artigo 1.º, alínea e) do Código de Processo Penal, o mesmo é "toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou nele participou ou se prepara para participar", não se exigindo que o mesmo seja uma pessoa determinada ou identificada, mas apenas que estejamos perante "uma pessoa concreta, com determinadas características, ainda que não devidamente apurada a respectiva identidade e sobre a qual existam indícios de que cometeu ou se prepara para cometer um crime" (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10 de Julho de 2014, Processo n.º 36/14.4GDEVR-A.E1).
j) A noção de suspeito avançada no despacho de que ora se recorre, não tendo correspondência na lei, constitui uma limitação excessiva do normativo, produzindo, no limite, a ineficácia do meio de prova em causa em todos os casos em que o agente do crime não se mostra cabalmente identificado.
k) Mais se acrescente que, em todo o caso, os dados obtidos, atenta a forma como solicitados, não violariam a privacidade de qualquer cidadão. Por um lado, porque a listagem remetida apenas conteria uma lista dos números/IMEI que acederam, em determinado dia e hora, a uma determinada antena, sem qualquer informação sobre o conteúdo dessa operação e, por outro lado, porquanto a informação que seria junta aos autos respeitaria única e exclusivamente aos ‘suspeitos’ e ‘intermediários’ (artigo 10.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho) em estrito cumprimento dos princípios constitucionais erigidos nos artigos 26.º, n.º 1, 34.º, n.º 1 e 18, n.ºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa.
l) O indeferimento da diligência, uma vez que se mostram preenchidos todos os requisitos legais – gravidade e indispensabilidade – e se aferem protegidos os princípios da idoneidade, necessidade e proporcionalidade (além do mais, em face do modo como a informação seria remetida e o conteúdo a verter para os autos) vai contra as próprias finalidades da investigação criminal, nos termos do constante no artigo 262.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
m) Pelo que, com o despacho judicial proferido a M.ma Juiz de Instrução violou o disposto nos artigos 125.º, 126.º, 262.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, bem como os artigos 10.º e 7.º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho e procedeu a uma interpretação restritiva e violadora da definição constante do artigo 1.º, alínea e) do Código de Processo Penal, devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que determine a remessa dos elementos solicitados, nos termos requeridos na promoção que o antecede.
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a decisão judicial recorrida e substituindo-a por outra que determine a remessa aos autos das informações solicitadas nos termos e para os efeitos referidos, só assim se fazendo a esperada e costumada JUSTIÇA" (fim de transcrição).

3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 48.

4. Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação apôs o seu “Visto” e emitiu o seguinte parecer:

"Do despacho lavrado a fls. 45 e segs. (em certidão), pela qual foi indeferida a pretensão do MºPº em preservar e obter dados que permitam identificar eventuais suspeitos de prática de roubo agravado, vem o MºPº, atempadamente, interpor recurso (fls. 2 e segs.), a cujos argumentos aderimos por inteiro para opinarmos no sentido de que o recurso merece provimento,

Apenas se nos ocorre acrescentar que, para identificar suspeitos, a diligência pretendida mostra-se essencial (para não dizer que, a nosso ver, única), sendo que, para esse fim, a mesma é legal e admissível, como muito bem se explica nos Acs. da RL lavrados no Proc.º 833/l0.0PAMTJ-A.Ll-5 em 18-01-2011 e 97/10.5PJAMD-A.Ll-5 em 11-01-2011, bem como no da RE lavrado no Proc.º 98/08.3PESTB.E1 em 12-04-2011 e no da RC lavrado no Proc.º 174/12.8JACBR.C1 em 22-10-2014, todos eles acessíveis em www.dgsi.pt." (fim de transcrição).

5. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP).

O objecto do presente recurso resume-se à questão de saber se se mostram reunidos os pressupostos legais para que seja ordenado às operadoras de telemóveis identificadas pelo MP na promoção que veio a ser indeferida pelo despacho ora recorrido que forneçam aos autos os dados de tráfego armazenados e de localização celular ali indicados.

2. Passemos, pois, ao conhecimento desta questão. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, que é do  seguintes teor (transcrição):

"Fls. 89 a 94

Veio o Ministério Público requerer nos termos do art. 182.°, n° 2 do CPP que as operadoras de telemóveis que identifica no seu requerimento juntem aos autos, a relação de todos os cartões SIM que operaram entre as 01h45 do dia 25 de Abril de 2015[1] e as 02h30 do dia 9 de Janeiro de 2016, quanto às antenas que identifica a fls. 93 e 94, com referência às respetivas chamadas recebidas e identificação dos respetivos números a chamar, bem como às chamadas efetuadas, com a identificação dos respetivos números de destino.

Concretamente, requer o Ministério Público que aquelas operadoras juntem aos autos a "listagem - em suporte digital e formato excel, contendo todos os dados de tráfego - registos completos das comunicações efetuadas e recebidas nas BTS (infra identificadas), detalhes das comunicações eventos de rede (lixo eletrónico), com indicação da hora e com indicação dos números chamados e chamadores, incluindo as mensagens de texto, duração e hora das chamadas e localização celular - relativos aos cartões SIM que operaram entre as 01h45 do dia 25 de Abril de 2015[2] e as 02h30 do dia 9 de Janeiro de 2016, quanto às antenas que se identificam (...)" (cfr. fls. 93).

Apreciando, diremos o seguinte:

No caso em apreço, visa-se chegar à identificação dos autores dos crimes através da análise de coincidências que venham a ser encontradas nos dados obtidos através de localização celular nos locais da prática dos fatos e no período temporal em que estes ocorreram.

Nos termos do disposto no art. 187.°, nº 2 do CPP aplicável "ex vi" do art. 189.° do mesmo Código, a obtenção e junção de dados sobre a localização celular só podem ser ordenadas ou autorizadas em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo.

Por sua vez, as pessoas referidas no nº 4 do art. 187.º do CPP são os suspeitos,  arguidos, pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de arguido ou de vítima do crime.

Acresce que a noção processual de suspeito é delimitada pela al. e) do art. 1.º do CPP, sendo "toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar".

No requerimento em apreço, invoca o Ministério Público que os fatos em investigação nos autos foram praticados por quatro indivíduos do sexo masculino, todos encapuçados e calçando luvas e que os ofendidos não conseguem proceder ao reconhecimento dos autores dos fatos em virtude de estes terem atuado com os rostos cobertos.

Pede a Digna Magistrada do Ministério Público que se ordenasse às operadoras o fornecimento de todos os cartões SIM que estivessem na posse das pessoas que, além do mais, tivessem o seu telefone ligado no dia 9.01.2015, entre as 01h45m e as 02h30m, em várias áreas da localidade de Cascais, como sejam, entre outras: Cascais Praia, Cascais FDD 2Cascais MSC LC 3, Cascais PT 2, Cascais Centro.

Sucede que, partindo do conceito de suspeito que nos é dado no citado art. 1.º, al. e) do CPP, a jurisprudência tem entendido que para o preenchimento da noção de suspeito é necessário que se trate de pessoa concreta, determinável, passível de individualização.

Tal não acontece no caso dos autos em que não foi possível determinar os suspeitos do crime de roubo indiciado por se encontraram com os rostos cobertos e envergavam luvas.

Assim sendo, in casu não existe suspeitos nos termos legalmente exigidos, além do que em face do vastíssimo leque de potenciais visados atento o requerido, entendemos que no caso concreto, o interesse público em que se traduz o exercício da ação penal não deverá prevalece sobre o interesse subjacente ao sigilo profissional e das comunicações de um leque tão grande de incertos.

Neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa de 17.12.2014, disponível in www.dgsi.pt. em cujo sumário consta o seguinte:

"I - A existência de um catálogo de alvos obsta à determinação de escutas telefónicas em processo contra incertos.

II- O legislador pretendeu que a autorização judicial tivesse por referência as conversações mantidas por pessoas concretas, ainda que não seja conhecida a sua identidade civil.

III - São, portanto, inadmissíveis as escutas telefónicas determinadas a grupos de pessoas cujo único traço comum é o de ocuparem habitualmente ou esporadicamente um determinado espaço físico."

E ainda o mesmo Tribunal da Relação de Lisboa (9ª secção) no recente acórdão de 17.12.2015, proferido no processo n.º 848/14.9PFCSC-A.L1, onde consta o seguinte:

"Tal significa que a diligência pretendida iria trazer aos autos os dados de tráfego e de localização celular de um número indeterminado de cidadãos, tornando-os alvo de uma investigação na qual não têm a qualidade de suspeitos, com a inerente postergação dos direitos constitucionais à privacidade e reserva da sua vida e à inviolabilidade das comunicações, sem qualquer garantia de efeito útil, ou seja, de que entre eles se encontrassem os autores dos ilícitos, pois que, na verdade, nem é certo que estes tivessem consigo telemóveis pessoais.

E como bem se salienta no referido acórdão "não estando concretizados alvos determináveis, e atingindo a diligência pretendida um universo ilimitado e indiferenciado de cidadãos que não se integram no conceito jurídico-penal de "suspeitos", o deferimento da sua realização iria contra o disposto na al. a) do n° 3 do art. 9.° da Lei n.º 32/2008. de 17-07. para além de não respeitar os princípios da proporcionalidade e da adequação cuja observância o n.º 4 desse normativo e o art. 18.º, n.° 2, da CRP impõem."

Nestes termos e atento o expendido, entendemos que o requerido pela Digna
Magistrada do Ministério Público carece de fundamento legal.

Termos em que se indefere ao requerido.

Notifique." (fim de transcrição).

Atente-se ainda que, antes de proferir o despacho acima transcrito a Mmª Juíza a quo, em 29 de Março de 2016,  proferiu a fls. 98 este outro:

"Promoção que antecede

Antes de mais, convida-se o Ministério Público identificar as pessoas suspeitas/arguidas ou que tenham servido de intermediárias e relativamente às quais haja indícios de relacionamento com os suspeitas/arguidos (cfr. art. 187.°, nº 4 "ex vi" do art. 189.°, nº 2 do CPP)." (fim de transcrição).

Tendo o Ministério Público apenas respondido - como consta de fls. 102 - que:

"Fls. 97/98: devolva os autos ao Tribunal de Instrução, com a menção de que, mantendo-se integralmente a promoção de fls. 89 a 94, os suspeitos visados são os que melhor se  encontram descritos nas inquirições dos ofendidos a fls. 9 e 13." (fim de transcrição).

Só após o que passou a Mmª Juíza a quo a proferir a decisão ora recorrida.

3. Avancemos então.

Conforme acima se referiu, a questão que constitui o objecto do presente recurso é a de saber se o Tribunal recorrido devia ter deferido a pretensão do Ministério Público de ordenar a determinadas operadoras de telemóveis que fornecessem aos autos os dados de tráfego armazenados, com menção da sua localização celular, relativamente aos cartões SIM e respectivos IMEI presentes e activos em dadas células, nas datas e horas indicadas.

O Tribunal recorrido entendeu ser de indeferir esta diligência, fundando-se no disposto no art. 187.º, n.ºs 2 e 4, do CPP para concluir que, em face do vastíssimo leque de potenciais visados, o interesse público em que se traduz o exercício da acção penal não deverá prevalecer sobre o interesse subjacente ao sigilo profissional e das comunicações, carecendo o requerido de base legal.

Contrapõe o recorrente que o despacho posto em crise fez errónea apreciação da promoção apresentada, que não tem por fundamento as normas do CPP mas sim a Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, ficando por se perceber qual o elemento que considera omisso, e, por outro lado, procedeu a uma interpretação restritiva do conceito de suspeito, sopesando incorrectamente os direitos fundamentais potencialmente violados com a diligência e as necessidades impostas pela eficiência da justiça penal.

Vejamos, antes de mais, o que de relevante para a análise desta questão resulta dos autos:

Os mesmos tiveram início com a denúncia à PSP da ocorrência, pelas 02h30m do dia 9 de Janeiro de 2016, em Cascais, de factos suscetíveis de integrar, em abstrato, a prática de crime de roubo agravado, previsto e punido pelo disposto no artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal (atento o disposto no artigo 204.º, n.º 2, alínea f) do Código Penal), e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, do Regime Jurídico das armas e suas munições, sendo que, de acordo com o relato dos três queixosos, os factos terão sido praticados, no interior da  residência mesmos, por quatro indivíduos do sexo masculino, todos encapuçados e calçando luvas, sendo que três deles mediam cerca de 1,80m e o quarto entre 1,85m/1,90m, este de pele morena e olhos cor de mel, com sotaque yyyyy, com o braço esquerdo com uma tatuagem, trazendo uma peruca com rastas no cabelo.

Não tendo as diligências realizadas permitido alcançar a identificação dos autores dos factos, e com vista a apurá-la, o Ministério Público elaborou a promoção de fls. 35/89 e segs., nos seguintes termos:

"APRESENTE OS AUTOS À M.MA JUIZ DE INSTRUÇÃO PARA APRECIAR E DECIDIR:

Visam os presentes autos apurar os factos ocorridos a 9 de Janeiro de 2016, pelas 02h30m, momento em que quatro indivíduos do sexo masculino, todos encapuçados e calçando luvas, se introduziram na residência das vítimas AA, BB e CC, sita na DD, em Cascais, tendo para o efeito utilizado uma chave que o ofendido AA havia perdido ou deixado na porta, do lado de fora, cerca de duas a três semanas antes.

Já no interior da residência, os quatro indivíduos dirigiram-se ao primeiro andar, onde se encontram AA e BB, tendo sido nesse acta sido surpreendidos pelo primeiro, enquanto a ofendida começou a gritar por socorro. Aí, e sempre em conjugação de esforços, enquanto o ofendido agarra um dos indivíduos, vê um outro apontar-lhe uma arma de fogo, de características ainda não concretamente apuradas, enquanto um terceiro agarra a ofendida BB e tapa a boca da mesma e o quarto inicia revista ao quarto, em busca de objectos de valor. Nesse momento, chega ao quarto o ofendido CC, que ao mesmo se deslocou em auxílio dos pais, acabando por se envolver fisicamente com os mesmos, altura em que caem pelas escadas.

Acta contínuo, um dos referidos indivíduos, desferiu no ofendido CC uma facada, momento que permitiu a fuga de todos, que abandonaram a residência, viraram à direita e na Rua EE voltaram a virar à direita, possivelmente em direcção ao Largo FF.

A factualidade descrita mostra-se susceptível de integrar, em abstracto, a prática de crime de roubo, previsto e punido pelo disposto no artigo 210.º do Código Penal e crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo disposto no artigo 86.º do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

Efectuadas as primeiras diligências, foram ouvidos os ofendidos e efectuado exame pericial ao local em que os factos ocorreram, tendo ainda sido efectuada uma análise de alguns assaltos ocorridos em momento anterior e posterior à data dos factos da ocorrência em investigação nos autos, da qual resultou uma forte convicção de que alguns dos ilícitos identificados, atenta a forma de actuação dos indivíduos, composição e características identificadas semelhantes, terem sido os mesmos os seus autores, mostrando-se elevada a probabilidade de uma identificação positiva, com o cruzamento de dados que vierem a ser recolhidos.

Desde já se afirme que nenhuns dados que possam ser recolhidos ou análises que possam ser efectuadas devem ser desconsideradas, até porquanto as testemunhas, atenta a forma de actuação dos indivíduos, com os rostos cobertos, não conseguem proceder ao seu reconhecimento, para a determinação da identidade dos autores dos factos,

Perante o cenário descrito, mostra-se necessário e essencial recolher elementos probatórios que se encontram na disponibilidade das operadoras de telemóveis MEO, VODAFONE e NOS, solicitação essa que é sugerida pela autoridade policial e que a mesma entende ser de crucial importância e relevância para a prossecução da investigação e apuramento dos factos (fls. 60 a 62), mostrando-se como única possibilidade de se conseguir chegar à identificação dos autores do crime através de uma eventual localização celular dos telemóveis que os mesmos teriam na sua posse, durante a prática dos factos.

Na verdade, as Operadoras de Telecomunicações Móveis registam os números de telemóvel que em determinado momento acederam, em determinado local, à "Antena" que cobre esse mesmo local e existe a possibilidade de se encontrarem números de telemóvel que tenham sido utilizados pelo(s) autor(es) dos factos.

O uso dos meios de prova ora solicitados mostra-se regulamentado nos termos constantes dos artigos 32.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa; artigos 187.º, 188.º e 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro e artigo 4.º, n.º 1, alínea f) da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.

Na verdade, dispõe o artigo 189.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, que a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º de tal diploma e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo, exigência reforçada pelo artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.

No caso dos autos, e porque se trata de crime de roubo, encontra-se este ilícito previsto no mencionado artigo 187.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não obstando este requisito à realização da diligência de investigação. Por seu turno, no que concerne ao requisito do n.º 4, verifica-se que as pessoas em relação às quais se pedem os respectivos elementos telefónicos são suspeitos nos autos, não sendo indivíduos totalmente desconhecidos, uma vez que são conhecidas algumas das suas características, mostrando-se pessoas concretas e individualizáveis.

Pese embora se possa considerar que o pedido dos elementos constituí uma ingerência no sigilo das telecomunicações, uma vez que os dados que as operadoras irão fornecer dirão respeito aos autores dos factos mas também a outros cidadãos que não tiveram qualquer participação nos factos, a verdade é que o que se pretende são dados que permitam apurar da existência de contactos telefónicos originados na residência dos ofendidos, sendo os dados remetidos analisados e, caso não se mostrem pertinentes, serão destruídos, não havendo assim qualquer ingerência nas telecomunicações de terceiros que nada têm a ver com os factos.

A diligência a requerer tem duas funções, a de localização e a de identificação dos suspeitos que cometeram os factos. Ou seja, o que se pretende é uma mera listagem de números/IMEI (para verificar eventuais coincidências), sem qualquer outra identificação quanto ao seu utilizador.

Nos autos, pese embora não se encontrem identificados os autores dos factos, a verdade é que existe possibilidade de eles virem a ser identificados, neste sentido, veja-se o Acórdão proferido no processo n.º 36/14.4GDEVR-A.E, datado de 10 de Julho de 2014, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

O interesse do Estado na administração da Justiça prevalece sobre o direito protegido pelo sigilo das telecomunicações justificando-se a compressão de direitos fundamentais, nomeadamente o direito à intimidade da vida privada, pelo que atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea g), e 9º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, artigos 135.º, 182.º, 187.º, 188.º e 189.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, DEVERÁ A M.MA JUIZ DE INSTRUÇAO CRIMINAL DISPENSAR AQUELAS OPERADORAS DO DEVER DE SIGILO E ORDENAR-LHES QUE REMETAM AOS AUTOS:

- LISTAGEM - EM SUPORTE DIGITAL E FORMATO EXCEL - CONTENDO TODOS OS DADOS DE TRÁFEGO - REGISTOS COMPLETOS DAS COMUNICAÇÕES EFECTUADAS E RECEBIDAS NAS BTS COM INDICAÇÃO DA HORA E COM INDICAÇÃO DOS NÚMEROS CHAMADOS E CHAMADORES, INCLUINDO AS MENSAGENS DE TEXTO, DURAÇÃO E HORA DAS CHAMADAS E LOCALIZAÇÃO CELULAR - RELATIVOS AOS CARTÕES SIM QUE OPERARAM ENTRE AS 01H45M E AS 02H30M DO DIA 9 DE JANEIRO DE 2016, QUANTO ÀS ANTENAS QUE SE IDENTIFICAM:

(...segue-se listagem...)

Cascais, 21 de Março de 2016" (fim de transcrição).

Sobre essa promoção recaiu o despacho de indeferimento ora recorrido, acima transcrito.

Vejamos se assiste razão ao recorrente.

Estando em causa a transmissão às autoridades de dados conservados de tráfego e de localização celular relativos a comunicações telefónicas (ou seja, não em tempo real), haverá que ter em conta o regime específico decorrente da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, que, conforme esclarece desde logo o n.º 1 do seu art. 1.º, "regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização[3] relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações".

Tratando-se dos dados a que se refere o art. 4.º deste diploma, a sua transmissão só pode ser autorizada por despacho fundamentado do juiz de instrução e depende de determinados pressupostos (cf. o seu art. 9.º, n.ºs 1 a 3):

- a autorização ser requerida pelo Ministério Público ou pela autoridade de polícia criminal competente;

- tratar-se da investigação, detecção e repressão de crimes graves (art. 1.º n.º 1, e 2.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho);

- haver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter;

- os dados a transmitir serem relativos (i) ao suspeito ou arguido; (ii) a pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou a (iii) vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido.

E o n.º 4 do mesmo art. 9.º acrescenta que a decisão judicial de transmitir os dados deve respeitar os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados e à protecção do segredo profissional, nos termos legalmente previstos.

Ou seja, como é natural, porque estão em causa direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos, como o direito à privacidade e reserva da vida privada e familiar e à inviolabilidade das comunicações (cf. arts. 26.º, n.º 1, 34.º, n.º 1 e 18.º, n.ºs 2 e 3, todos da CRP), as respectivas restrições têm de obedecer aos pressupostos materiais da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido restrito, competindo, em primeira linha, ao legislador ordinário assegurar esses pressupostos ao legislar sobre a matéria (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, págs. 388 e 392).

Nos presentes autos está em causa a investigação de um crime de roubo agravado (em concurso com um crime de detenção de arma proibida), ilícito que se enquadra no conceito de “criminalidade violenta” e, por isso, no de “crime grave” a que alude a alínea g) do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.

A autorização judicial foi requerida pelo Ministério Público e não parece oferecer dúvidas, perante a inconclusividade dos elementos indiciários recolhidos por outras vias, nomeadamente da inspeção judiciária e exame pericial ao local, em particular da residência das vítimas, que a diligência pretendida poderia abrir novas perspectivas de investigação, revelando-se nessa medida essencial à eventual identificação dos autores dos ilícitos, de outra forma impossível ou muito difícil de obter.

A questão que verdadeiramente se coloca, não existindo ainda um “arguido” e não estando em causa as demais hipóteses previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 9.º do mencionado diploma, prende-se com o conceito de “suspeito”, que o recorrente afirma ter sido entendido de forma restritiva no despacho posto em crise.

A leitura dessa decisão permite apreender ter sido efectivamente o entendimento de que o interesse público da investigação, enquanto exercício da acção penal, não deveria prevalecer sobre o sigilo profissional e da comunicações de um leque tão grande de incertos que esteve subjacente ao indeferimento da diligência solicitada.

A noção processual de suspeito é delimitada pela al. e) do art. 1.º do CPP, sendo "toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar".

Partindo deste conceito, a jurisprudência tem entendido que para o preenchimento da noção de suspeito não é necessário que seja conhecida a identificação civil da pessoa em concreto relativamente à qual se visa a utilização do meio de obtenção de prova em causa. Contudo, não pode tratar-se de uma mera abstracção; ainda que não identificada: é necessário que se trate de pessoa concreta, determinável, passível de individualização.

Em suma, a existência de um suspeito, enquanto interveniente processual, não implica a sua identificação completa mas não dispensa a existência de dados factuais com base nos quais possa individualizar-se uma pessoa determinada, não podendo tratar-se apenas de um abstracto agente do crime.

Neste mesmo sentido pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-12-2014, proferido nesta mesma 9ª Secção pelo Exmº Desembargador Carlos Benido no processo n.º 131/14.0JBLSB-A.L1-9, da Relação de Évora de 23-09-2010, proferido no processo n.º 20/10.7GCLLE-A.E1, de 30-09-2010, proferido no processo n.º 49/10.5JAFAR-A.E1, de 21-05-2013, proferido no processo n.º 199/12.3GTSTB-A.E1, de 20-01-2015, proferido no processo n.º 648/14.6GCFAR-A.E1, e de 19-05-2015, proferido no processo n.º 54/15.5GCBNV-A.E1; da Relação do Porto de 11-02-2015, proferido no processo n.º 2063/14.2JAPRT-A.P1, todos consultáveis in www.dgsi.pt e ainda mais recentemente o acórdão desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-12-2015, não publicado, mas citado no final da decisão recorrida, o qual foi proferido no processo n.º 848/14.9PFCSC-A.L1, tendo sido relatado pela Exmª Desembargadora Cristina Branco que nos disponibilizou cópia, que inteiramente subscrevemos e aqui temos seguido.

E, como ali bem se menciona, em idêntica situação, também de roubo agravado (e sequestro) ocorrido às quatro da madrugada no concelho de Cascais:

"No caso, o que se pretende é chegar à identificação dos autores dos crimes através da análise de coincidências que venham a ser encontradas nos dados obtidos através de localização celular nos locais da prática dos factos e no período temporal em que estes ocorreram.

Mas a verdade é que, como o próprio recorrente referia na promoção que veio a ser indeferida, as demais diligências de investigação desenvolvidas foram infrutíferas, e dos autores dos ilícitos apenas se logrou apurar serem «três indivíduos, do sexo masculino, todos eles com as faces cobertas, dois deles falando com sotaque zzzzz e um expressando em português fluente», elementos que não nos parecem ser suficientes para se ter por determinável a sua identidade, sendo que, conforme consta do auto de denúncia, os queixosos «foram ainda peremptórios ao afirmar que pelo facto do ilícito ocorrer de uma forma tão inesperada e rápida não são capaz de efectuar o eventual reconhecimento dos autores do roubo».

Tal significa que a diligência pretendida iria trazer aos autos os dados de tráfego e de localização celular de um número indeterminado de cidadãos, tornando-os alvo de uma investigação na qual não têm a qualidade de suspeitos, com a inerente postergação dos direitos constitucionais à privacidade e reserva da sua vida e à inviolabilidade das comunicações, sem qualquer garantia de efeito útil, ou seja, de que entre eles se encontrassem os autores dos ilícitos, pois que, na verdade, nem é certo que estes tivessem consigo telemóveis pessoais[4].

Não estando concretizados alvos determináveis, e atingindo a diligência pretendida um universo ilimitado e indiferenciado de cidadãos que não se integram no conceito jurídico-penal de “suspeitos”, o deferimento da sua realização iria contra o disposto na al. a) do n.º 3 do art. 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17-07, para além de não respeitar os princípios da proporcionalidade e da adequação cuja observância o n.º 4 desse normativo e o art. 18.º, n.º 2, da CRP impõem." (fim de transcrição).

Posição diversa poderíamos porventura ser levados a aceitar num caso em que desconhecendo-se quem eram os suspeitos a diligência requerida presumivelmente não atingisse um grande e incerto número de cidadãos mas tão só os potenciais autor(es) do crime e sua(s) vítima(s).

Basta imaginarmos por exemplo que o assalto noturno à residência se dava num "monte alentejano", pequeno e isolado por sua natureza, ou numa casa das muitas aldeias serranas ditas do "xisto", de tal modo despovoadas fruto da emigração, em que nalgumas nem os antigos habitantes aí pernoitam, aí se quedando apenas ocasionalmente dois ou três forasteiros adeptos do turismo rural e de natureza. Ou ainda, um qualquer outro lugar em que a densidade populacional seja baixíssima, como é o caso dos concelhos de Alcoutim ou Mértola, em que o número médio de habitantes por quilómetro quadrado é de cinco (dados do INE/PORDATA com base no último recenseamento geral da população portuguesa, efetuado em 2011).

Não é manifestamente o caso do concelho de Cascais em que segundo a mesma fonte é de 2200 (dois mil e duzentos) o número médio de habitantes por quilómetro quadrado, segundo os mais recentes dados estatísticos disponíveis (2011), numa tendência de progressão geométrica desde a década de sessenta do século XX[5].

Mas mais, Cascais cobre vastas zonas de areal e praia, caso das dunas do Guincho ou da Quinta da Marinha, e de mata e serra, ou praticamente desertas, como sucede com campos de golfe e com toda a área ocupada pelo Autódromo do Estoril, consequentemente, e segundo as regras da experiência comum, o centro da vila de Cascais registará em realidade e obviamente uma densidade populacional muito superior à da totalidade do concelho.

Acresce que, os censos à população só cobrem os cidadãos que residem habitualmente em determinado local e não os que aí tem residências secundárias nem muito menos os turistas nacionais e estrangeiros que ficam alojados nas suas estadas em hotéis e outros alojamentos similares.

Sucede que Cascais, facto que é público e notório, é uma estância turística, cosmopolita, de lazer e jogo, de organização de congressos internacionais e de muitos eventos culturais e promocionais de natureza comercial, atraindo anualmente milhares de pessoas não residentes.

Segundo dados estatísticos divulgados pela Câmara Municipal de Cascais no seu site institucional[6], em 2014 o setor da hotelaria registou mais de 1,2 milhões de dormidas (1,202.918), sendo que hoje na área metropolitana de Lisboa a atividade turística e o afluxo de estrangeiros é cada vez menos sazonal, estendendo-se ao longo de todo o ano e já não só no período de Verão.

Por tudo isto, e considerando ainda que cerca da uma da manhã ainda haverá no centro de Cascais muita gente acordada bem como de que o trafego era pedido para 19 (dezanove) antenas das redes telemóvel situadas no Centro de Cascais, não será difícil de calcular em muitos milhares os dados qua constariam na tal "LISTAGEM - EM SUPORTE DIGITAL E FORMATO EXCEL - CONTENDO TODOS OS DADOS DE TRÁFEGO - REGISTOS COMPLETOS DAS COMUNICAÇÕES EFECTUADAS E RECEBIDAS NAS BTS COM INDICAÇÃO DA HORA E COM INDICAÇÃO DOS NÚMEROS CHAMADOS E CHAMADORES, INCLUINDO AS MENSAGENS DE TEXTO, DURAÇÃO E HORA DAS CHAMADAS E LOCALIZAÇÃO CELULAR - RELATIVOS AOS CARTÕES SIM QUE OPERARAM ENTRE AS 01H45M E AS 02H30M DO DIA 9 DE JANEIRO DE 2016, QUANTO ÀS ANTENAS QUE SE IDENTIFICAM", todas referentes ao Centro de Cascais.

Seria um verdadeiro arrastão.

Situação diversa será aquela em que um dia, que estamos certos chegará rapidamente, os avanços tecnológicos nos permitam circunscrever à localização de um único prédio ou a um raio de muito curta distância em volta deste a informação sobre o trafego de dados de telemóveis ocorrido num determinado período de tempo, também ele reduzido, que se saiba ter sido o da consumação de um crime violento, nele se incluindo os minutos que imediatamente o antecederam e precederam.

Com o devido respeito, afigura-se-nos que a recolha da prova em geral e em particular a atinente às comunicações telefónicas móveis, que é aquela que aqui nos é dado apreciar em termos da sua solicitada autorização para aquisição, deve ser obtida de forma fina, isto é como na pesca à linha ou, quanto muito, como na pesca de cerco, mas nunca como na pesca de arrastão, em que nem tudo o que vem à rede é peixe.

É que, tal como nesta forma de captura de espécies marinhas, acabam por vir na rede não só peixes, moluscos, crustáceos, etc., de fauna marítima autorizada, mas também lixo (literalmente) e sobretudo e infelizmente, de forma acidental, espécies protegidas e/ou ameaçadas de extinção, desde cetáceos a tartarugas marinhas, igualmente com diligências do tipo da ora requerida pelo Ministério Público viriam porventura às malhas da justiça elementos que quiçá levariam a identificar suspeitos, aqueles que esta se propõe agora com muita dificuldade apurar quem são e seguidamente melhor investigar e perseguir criminalmente, já como arguidos constituídos, acusados e/ou pronunciados, levando-os a julgamento em vista da sua condenação, como também viria "lixo"[7], havendo ainda vítimas colaterais, que seriam os milhares de cidadãos que veriam ser violada a sua privacidade, pois, contrariamente ao que pretende fazer crer o recorrente Ministério Público, o facto de se não ficar a conhecer o conteúdo do tráfego não exclui a possibilidade de graves repercussões na vida de um inocente estranho à lide, porquanto o simples facto de uma pessoa ligar para outra, cujos números de telemóvel e de IMEI são revelados, a determinada hora, a partir de certo local e com uma duração de chamada telefónica de X tempo, já está por si só a facultar a terceiros preciosos elementos de referenciação.

O Juiz de Instrução enquanto garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, constitucionalmente consagrados, não o pode permitir.

No caso concreto ainda nos apercebemos da existência de um honorável cidadão - que presentemente até goza de foro e prerrogativas especiais nesta matéria - que veria com grande e séria probabilidade o seu tráfego de dados do telemóvel figurar na listagem pedida pelo Ministério Público.

Trata-se de Sua Excelência o Senhor Presidente da República. Com efeito, o Exmº Professor Doutor RR tinha e continua a ter a sua residência particular, onde assiduamente pernoitará, no centro de Cascais a escassos metros da residência assaltada nos autos, sita na DD (de que constam duas imagens aéreas, de satélite, do google earth a fls. 38 e cinco fotografias ao nível da rua a fls. 39, todas juntas pelo LPC da PJ) e das antenas de que o Ministério Público pretende o tráfego de dados.

É certo que o Senhor Professor RR só foi eleito, pelos portugueses, para a Presidência da República em 24 de Janeiro de 2016 e só tomou posse no mais alto cargo do Estado a 9 de Março. Todavia, a 9 de Janeiro de 2016, data dos factos sob investigação, ou seja 15 dias antes da referida eleição, estava-se em plena recta final da campanha eleitoral para as presidenciais, bem se sabendo que o então candidato Marcelo Rebelo de Sousa é pessoa que dorme pouco.

Todos os canais de televisão (RTP, SIC e TVI) deram imagens em directo da sua saída da residência particular no centro de Cascais para Lisboa (sede da campanha em Belém e seguidamente para a Faculdade de Direito da UL) na noite do dia da sua referida eleição após serem conhecidos os resultados.

Tudo isto são factos públicos e notórios, os quais, concatenados com os em apreço nos autos, permitem formular o raciocínio traçado quatro parágrafos acima.

Afirma o recorrente Ministério Público que o crime de roubo em investigação nos autos gera na sociedade a maior intranquilidade, porém, acrescentamos nós, a devassa da vida íntima e/ou privada dos cidadãos perante as novas tecnologias da comunicação também gera na sociedade atual uma grande intranquilidade.

Por todo o exposto, não pode o recurso lograr procedência.

III – Decisão

Tudo visto e ponderado, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Sem custas por delas estar isento o Ministério Público.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por vinte páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do CPP)

Lisboa, 22 de Junho de 2016

Calheiros da Gama

Antero Luís

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[1] Deve ter-se por não escrito "do dia 25 de Abril de 2015" pois o período temporal de trafego solicitado situa-se nos 45 minutos que medeiam entre as 01h45 e as 02h30 do dia 9 de Janeiro de 2016, e não entre os mais de 8 meses que mediaram  das 01h45 do dia 25 de Abril de 2015 e as 02h30 do dia 9 de Janeiro de 2016. Tratou-se de manifesto erro material de escrita. Lapsus calami que claramente resulta de todo o contexto dos autos e da própria integralidade da decisão recorrida.
[2] Deve ter-se por não escrito "do dia 25 de Abril de 2015" pois o período temporal de trafego solicitado situa-se nos 45 minutos que medeiam entre as 01h45 e as 02h30 do dia 9 de Janeiro de 2016, e não entre os mais de 8 meses que mediaram  das 01h45 do dia 25 de Abril de 2015 e as 02h30 do dia 9 de Janeiro de 2016. Tratou-se de manifesto erro material de escrita. Lapsus calami que claramente resulta de todo o contexto dos autos e da própria integralidade da decisão recorrida.

[3] E só estes, porquanto logo no seu n.º 2 deste mesmo preceito se afirma que a "conservação de dados que revelem o conteúdo das comunicações é proibida, sem prejuízo do disposto na Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, e na legislação processual penal relativamente à intercepção e gravação de comunicações."
[4] Quanto aos subtraídos aos queixosos, apurou a investigação, junto das operadoras de telecomunicações, que não terão sido utilizados pelos autores dos crimes – cf. a informação da PJ de fls. 14-18.
[5] vd. http://www.pordata.pt/DB/Municipios/Ambiente+de+Consulta/Tabela
[6] in http://www.cm-cascais.pt/camara-residentes-visitantes-investidores
[7] "eventos de rede (lixo eletrónico)" na expressão usada pela Mmª Juíza a quo na decisão recorrida.