Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
117/16.0PEPDL-A.L1-9
Relator: VITOR MORGADO
Descritores: INTERROGATÓRIO DO DETIDO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Na ‘indicação circunstanciada dos motivos da detenção’ referida no nº 1 do artigo 141º do Código de Processo Penal – a cargo do Ministério Público – não basta fazer constar tão só os factos que substanciam os elementos objetivos do crime (ou dos crimes) que justificam a detenção e a promovida aplicação de medidas de coação, devendo também aí figurar os factos que traduzam os respetivos elementos subjetivos

(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I – O Ministério Público elaborou despacho conducente à apresentação do arguido detido D... ao primeiro interrogatório judicial a que se refere o artigo 141º do Código de Processo Penal, no qual procedeu à indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentavam, nos seguintes termos:

«Indiciam os autos a prática pelo arguido D... de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 2l°, 1 do Dec. Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, com referência à tabela I-C, anexa ao mesmo diploma.

O arguido foi detido em flagrante delito nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritas no auto de detenção de 56 a 57, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

Para concretização desta atividade o arguido adquiria elevada quantidade de haxixe, em placas, junto de indivíduos cuja identidade se desconhece, as quais transportava para a sua residência.

Nessa residência, o arguido procedia ao corte do haxixe de acordo com as quantidades pretendidas pelos seus clientes.

Depois, diariamente, o arguido entregava os pedaços de haxixe a terceiros que o contactavam para esse efeito na sua residência ou em outros locais previamente combinados.

Entre outros indivíduos, o arguido vendia frequentemente haxixe a B… e aos indivíduos conhecidos pelas alcunhas de “Sardinha”, “Nelson Pilote” e “Ricardo Lagoa”.

Por esta razão, no dia 15 de agosto de 2016, Agentes da P.S.P. deram cumprimento aos mandados de busca emitidos nos autos para a sua residência, sita na Rua xxx, em Ponta Delgada.

No decurso da busca realizada foram encontrados e apreendidos ao arguido:

- 1 (uma) placa de haxixe, com o peso de 99,58 gramas;

- 7 (sete) embrulhos em plástico contendo cada um deles 10 (dez) línguas de haxixe, com o peso total de 97,10 gramas;

- 5 (cinco) línguas de haxixe, com o peso de 9,48 gramas;

- A quantia monetária de 180,00€;

- 1 (um) televel com o IMEI 354798070040689.

O haxixe apreendido ao arguido era o remanescente de outras quantidades desta substância que o arguido adquirira em data não concretamente apurada e destinava-o para venda a terceiros.

As quantias monetárias apreendidas eram provenientes de vendas de haxixe anteriormente feitas.

                                                      *

Prova:

- Auto de apreensão de fls. 25 a 26;

- Testes rápidos de fls. 27, 28 e 29;

- Depoimento de fls. 5 a 6;

- Fotogramas de fls. 30 a 32; (…)»

                                                      *

Realizado o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, com observância dos requisitos formais previstos naquele artigo 141º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Juiz de Instrução proferiu o seguinte despacho:

«§ 1 Quanto à detenção do arguido, a mesma mostrou-se levada a efeito por autoridade policial e em flagrante delito, em razão do que a tenho por válida, nos termos dos artigos 254º, nº 1, alínea), 255º, nº 1, alínea a), 256º, nº 1, todos do Código de Processo Penal.

§ 2 Quanto aos factos, o arguido confessou os que constam da promoção de fls. 72 e 73, que de resto bem se sustentam no depoimento testemunhal de fls. 5-6 e no auto de apreeno de fls. 25-26 e testes de fls. 27-29. Mais se apurou, que o arguido já foi condenado em 27.6.2012, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade punido pelo artigo 2, alínea a) do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e em 9.3.2015, pela prática de um crime de furto qualificado punido pelo artigo 204º do Código Penal, em ambos os casos em pena de prisão suspensa na sua execução. Como se sabe, o juiz de Instrução Criminal, enquanto juiz de liberdades, não tem uma atuação proactiva no processo, antes estando limitado pelo teor da promoção do Ministério Público, que assim o vincula, não podendo ir para além dela, na medida em que assim prejudique o arguido, tudo, em última análise, em razão da estrutura acusatória do processo penal, sancionada pelo artigo 32º, nº 5, da CRP e aflorada no artigo 268º, nºs 3 e 4, e 269º, nº 2, do Código de Processo Penal. Ora, sabe-se que a aplicação de uma medida de coação, de qualquer medida de coação, pressupõe a prática de um crime; também se sabe que este (como qualquer crime), a mais dos elementos objetivos, comporta um elemento subjetivo. Mais concretamente, no que se refere à promoção do Ministério Público (prisão preventiva), a mesma exige a indiciação de um crime doloso” (artigoº 202º do Código de Processo Penal). Obviamente, o carácter doloso deste crime há de estar projetado e desenhado na promoção do Ministério Público, que, na medida em que vincula tematicamente o juiz, de ser autossuficiente, nela se consignado todos os elementos do tipo, incluindo os elementos subjetivos dele. Ora, vista a promoção de fls. 72 e s., não vislumbro a descrição do dito elemento e, como tal, está à partida cerceada a aplicação de medida de coação nos termos dos artigos 191º e ss., pois, como disse, todas elas pressupõem a indiciação integral de um ilícito típico e culposo. Pelo exposto, não aplico ao arguido medida de coação.

Notifique e restitua à liberdade

                                                     *

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso, cuja motivação acabou por condensar nas seguintes conclusões:

«1. Constitui objeto do presente recurso a decisão proferida a fls. 76 a 77 pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal, que no decurso do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, decidiu no sentido de, não aplicar medida de coação ao arguido, D...;

2. A nosso ver o entendimento perfilhado pelo Mmº JIC carece de fundamento legal não tendo qualquer apoio na letra ou no espírito da lei e esquece os princípios subjacentes às dilincias probatórias realizadas em sede de inquérito.

3. De facto, durante o inquérito compete exclusivamente ao Juiz de instrução proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o qual tem de obedecer aos formalismos legais em conformidade com o disposto no artigo 141ºdo Código Processo Penal;

4. Do auto de apresentação de arguido detido o que deve constar são os elementos vertidos no nº 4, alíneas c, d e e) do artigo 141º do Código Processo Penal.

5. De acordo com este preceito, o que compete ao Ministério Público na sua promoção de apresentação de arguido detido é indicar o motivo da detenção e descrever os factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo, bem como indicar os elementos do processo que indiciam os factos imputados.

6. E, como resulta de fls. 72 a 74 da promoção de apresentação do arguido detido constam todos os elementos exigidos pela supracitada disposição.

7. Se é verdade que a promoção de apresentação de arguido detido não contém uma declaração expressa do elemento subjetivo do tipo de crime imputado ao arguido, não o é menos, salvo melhor entendimento, que inexiste exigência legal nesse sentido e nesta fase, em que está unicamente em causa a aplicação de medida de coação diversa da medida de Termo de Identidade e Residência, estando por isso afastada a obrigatoriedade de se descrever o elemento subjetivo do tipo de crime imputado.

8. Afigura-se-nos pois que o Mmº Juiz confundiu a acusação com o 1º interrogatório judicial de arguido.

9. E, como já se demostrou, o nosso despacho cumpria integralmente o plasmado no artigo 141º do Código de Processo Penal, sendo certo que ao invés do que alega o Mmº JIC o princípio do acusatório vertido no nosso diploma legal não tem o sentido e alcance que lhe atribui.

10. Na verdade, ao invés do que parece entender o senhor Juiz, o processo penal, é um processo de estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial.

11. O que se procura no processo penal é a verdade material e não a verdade formal.

12. De facto, o princípio da investigão significa que, em última instancia, recai sobre o juiz o encargo de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento.

13. Ora, no caso vertente do auto de apresentação de detido por nós elaborado constavam todos os elementos tendentes a permitir-nos imputar ao arguido a prática do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi detido.

14. Mesmo o elemento subjetivo do crime de tráfico de estupefacientes ressaltava claramente dos elementos vertidos no auto.

15. Em qualquer dos casos se o Mm° JIC entendia que o elemento subjetivo do Crime estava indicado de forma irregular, o que se invoca apenas por hipótese académica, devia ter notificado o Ministério Público para retificar tal pretensa irregularidade. O que não fez.»

Finalizou o recorrente a sua impugnação pedindo que seja revogado o despacho proferido pelo Mmº JIC, e que seja proferido, “em sua substituição, um despacho onde se aplique medida de coação ao arguido D..., nos termos do disposto no artigo 141º do Código de Processo Penal”.

                                                     *

O arguido não apresentou qualquer resposta.

Antes de ordenar a subida do recurso, o Ex.mo Juiz do Tribunal recorrido, usando da faculdade prevista no artigo 414º, nº4, do Código de Processo Penal, lavrou douto despacho de sustentação que consta de folhas 98-99 do processo principal.

                                                     *

Nesta 2ª instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto.

Cumpre decidir.

                                                      *

II – O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ([1]), sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Os elementos necessários para alicerçar a decisão do presente recurso encontram-se todos acima vertidos em I.

A única verdadeira questão a dilucidar através do presente recurso consiste em determinar se da “indicação circunstanciada dos motivos da detenção” referida no nº 1 do artigo 141º do Código de Processo Penal – a cargo do Ministério Público – basta fazer constar tão só os factos que substanciem os elementos objetivos do crime (ou dos crimes) que justificam a detenção e a promovida aplicação de medidas de coação, ou se também aí devem figurar os factos que traduzam os respetivos elementos subjetivos. 

                                                      *

Tanto quanto nos foi dado perceber na pesquisa jurisprudencial que nos foi possível empreender, o tema do presente recurso tem sido muito escassamente tratado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores.

É indubitável que o atual Código de Processo Penal – de matriz assumidamente acusatória – se encontra em vigor desde 1988 e que o esclarecedor aditamento do adjetivo ‘circunstanciada’ (qualificando a ‘indicação’), resultou já da Lei nº 48/2007, de 29/8.

De um ponto de vista dogmático, o despacho de sustentação (aliás, no desenvolvimento do despacho recorrido) constitui uma peça processual em que, à inexcedível elegância do discurso, se junta uma lógica jurídico-formal quase inexpugnável.

É este o seu teor:

«§ 2 É inequívoco que a estrutura constitucional do nosso processo é acusatória, sendo isso que resulta expressamente do artigo 32º nº5, da CRP, e depois se extrai de uma multitude de normas constantes do diploma processual penal fundamental, o Código de Processo Penal. Essa estrutura, para além do mais que agora para aqui menos importará, postula um princípio acusatório ou da acusação do qual decorre que as tarefas de acusar e de julgar estão cirúrgica e reciprocamente delimitadas, quer do ponto de vista normativo quer no que se refere às pessoas concretas que exercem as funções respetivas: investigador/acusador e julgador não podem confundir-se numa mesma pessoa.

§ 3 Essa estrutura (e esse princípio), desvelam-se depois, como disse já, em certas normas processuais penais e de entre elas, numa por vezes olvidada mas sumamente importante que é o artigo (e para o que aqui importa) 268º/1/a/b/3/4, do CPP. Essa norma não é mais do que a expressão da estrutura acusatória do processo penal, dela resultando que essa estrutura não é uma que se possa divisar apenas no confronto entre acusação e julgamento, é dizer a um nível, se assim se quiser, “macroscópico”: ela vale igualmente na interação entre o órgão titular da investigação, que é o MP (artigo 219º/1, da CRP), e o juiz de instrução (= JI), órgão responsável por garantir a incolumidade ou a razoabilidade das restrições de direitos e liberdades fundamentais "dentro" daquela fase de investigação (por isso nessa veste melhor será nomeado como "juiz das liberdades" ou "juiz das garantias").

§ 4 É por isso que dispõe o artigo 268.º/2/3/4 do CPP que o JI instrução age sempre, nestas matérias, "a requerimento" – se citações fossem necessárias, diz PAULO DÁ MESQUITA, Processo Penal, Prova e Sistema Judiciário, 2010, p. 229, "[a] terciariedade e a passividade do juiz enquanto órgão monofuncional ou de garantias, correspondem ao sentido, institucional e procedimental, da garantia judiciária relativamente a medidas que afetem direitos liberdades e garantias." (itálico no original). Contra isto (adiantando objeção cogitável e previsível, mas em todo o caso infundada) não vale argumentar que o n4 do artigo 268.º do CPP até permite ao JI, quando o requerimento não lhe seja feito em separado (sendo que em 22 anos de prática processual nunca vi um desses requerimentos em separado), ordenar que lhe sejam apresentados os autos. É que ao contrário do que poderia ser-se levado a pensar, em todo caso manifestamente contra o que resulta da estrutura acusatória constitucionalmente sancionada (artigo 32.º/5, da CRP), aquela apresentação dos autos a mando do JI não serve para ele colmatar lacunas do requerimento do MP ou selecionar provas que ele não indicou: serve antes, precisamente de acordo com a tónica "negativa" ou "delimitativa" das funções do juiz das liberdades, para que este possa confirmar ou infirmar o alegado e pretensamente demonstrado no requerimento pelo Ministério Público – nunca para ir além desse requerimento!

§ 5 E com isto prende-se, se vê, a outra nota do chamado "procedimento para acusação" (note-se que aqui acusação não é referida em sentido próprio, como peça acusatória, antes se referindo a todos os incidentes promovidos pelo MP, nomeadamente no âmbito do artigo 268º do CPP). Pedindo novamente emprestadas as palavras a um dos autores que mais e melhor se debruçou sobre o ponto, “[d]o princípio do pedido decorre que a promoção, para ser válida, tem de conter todos os elementos necessários à decio judicial e objeto do incidente é fixado pelo requerimento do MP(ob. cit., p. 228 - itálico no original, sublinhado adicionado por mim), prosseguindo adiante que o "órgão judicial, enquanto terceiro com poder de decio, não pode ser corresponsabilizado pela fundamentão do pedido nem pela selão das provas do mesmo, nem pelo respetivo risco, sob pena de se diluir a destrinça funcional e, consequentemente, a legitimação procedimental." (ob. cit., p. 231). Contra isto não vale dizer (por cautela avanço-o) que a lei dispõe que o requerimento do MP, nomeadamente para primeiro interrogatório de arguido detido e para aplicação de medida de coação, "não está sujeito a quaisquer formalidades" (artigo 268º/3, parte final, do CPP): desnecessidade de formalidades não é desnecessidade de fundamentação! A (desejável) simplicidade, brevidade, etc., do requerimento não substituem e nem fazem as vezes da autossuficiência dele, pois como se viu bastamente pelo respetivo requerimento só o MP é responvel sendo-o o JI pela sua apreciação - que não pelos seus méritos ou deméritos. É nisto, em termos práticos e nem sempre compreendidos, que se resolve (também) a estrutura acusatória do processo.

§ 6 Como se vê, falar da estrutura acusatória do processo, não é discretear sobre uma abstração. Se se quiser que o desenho constitucionalmente sufragado tenha uma funcionalidade que vá para além do adorno dos discursos jurídicos é preciso trazê-lo quotidianamente à ptica processual penal. Tosando as palavras e naturalmente sem qualquer intuito ofensivo: só uma mentalidade acusatória pode a conviver harmoniosa e coerentemente com a normatividade constitucional; ou inversamente, é preciso que a acusatoriedade pressuposta na Constituição da República e no CPP expulse resquícios de uma mentalidade ppria de um sistema inquisitório ou inquisitório mitigado.

§ 7 Chegado aqui estou já em condições de dizer, porque inequívoco, que o requerimento da digna procuradora adjunta, para aplicação ao arguido de medida de coação não contém (como não continha noutro inquérito que me fora presente na mesma ocasião e igualmente para interrogatório) a descrição de quaisquer factos atinentes ao tipo subjetivo de crime imputado ao arguido. A digna procuradora-adjunta parece pressupor (fá-lo, salvo o devido respeito, contra a evidência da lei), que o requerimento para a aplicação de medida de coação dispensa a alegação dos factos atinentes ao tipo subjetivo de crime. Não estou certo se defenderia o mesmo ponto de vista relativamente aos factos atinentes ao tipo objetivo de crime - mas o que é certo, a todas as luzes, é que a aplicação de uma medida de coação pressupõe a prática de um crime, como explicitamente se menciona nos artigos 197.º, 198.º, 199.º, 200.º, 20l.º e 202.º (estes últimos três até se referem a "crime doloso"). A esta luz, e da falada estrutura acusatória do processo e seus corolários práticos (não apenas enunciados), não compreendo como se pode defender que a promoção para primeiro interrogatório e aplicação de uma medida de coação dispense a indicação, ao lado dos elementos objetivos do crime em causa, os seus elementos subjetivos que valem tanto como aqueles!

§ 8 Claro, di-lo-ei sem rebuço, que talvez a falha não tivesse sido ensejo para recurso, mas tão para retificação dela (pelo MP; claro) - não vislumbro qualquer princípio que a isso se opusesse. A digna-procuradora-adjunta pugna no sentido de que devia o JI -la convidado a tal. É duvidosa essa possibilidade, que precisamente pressupõe uma relação entre o MP e o JI que a estrutura acusatória quis colocar ao largo: o JI como figura tutelar do MP. Breve, a opção pela acusatoriedade do processo penal é, concomitantemente, uma opção pela autorresponsabilização dessa fundamental magistratura que é o MP. Não é possível sol na eira e a chuva no nabal: um processo penal acusatório f. um JI que dá ordens ou mesmo corrige a atuação do MP (como de certa forma no CPP de 1929) - tertium non datur! Seja como for, mesmo que por hipótese (não concedendo) sobre o JI impendesse o dever (ancorado em norma ou princípio ignoto) de convidar o MP a corrigir as suas peças, a falta (de convite devido) sempre padeceria, apenas de irregularidade a arguir nos estreitíssimos termos e tempos previstos no artigo 123.º, do Código Penal (para uma hipótese paralela, de não cumprimento do dever de convite, cf. PINTO DE ALBUQUERQUE, CCPP, 2007, Lisboa, p. 742, n. 9) - o que não foi o caso. Certo é que a opção da digna procuradora-adjunta foi a do recurso e não a da correção da peça, na altura ou posteriormente, ou nem da promoção de medida de coação, tenha ainda razões para tanto. Numa estrutura acusatória, repito, também por essa opção só o MP é responsável

 Poder-se-ia objetar ao que vem defendido no despacho recorrido que, em fase tão preliminar do processo, não se pode exigir do acusador público uma definição irrevogável do objeto do processo, o que é, sem dúvida, verdadeiro: podem vir a ser acrescentados, na acusação, factos parcial ou inteiramente novos, sem que o Ministério Público tenha que fazer uso de qualquer mecanismo semelhante ao previsto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal, para a fase de julgamento.

No entanto, com a exigência de circunstanciação prevista no nº 1 do artigo 141º, não se exige que sejam referidos todos os factos que venham a constar da acusação, mas apenas os factos que constituam crimes que sejam passíveis de permitir a aplicação ao arguido de determinadas medidas de coação, indispensáveis para acautelar a melhor aplicação possível da justiça penal do caso concreto. Ora, mormente nos crimes dolosos (como o dos autos), os factos que desenham os elementos subjetivos são tão decisivos como os atinentes aos elementos objetivos.

Assim, a omissão da sua alegação constitui imperfeição que não decorre, em regra, de qualquer dificuldade de investigação, mas de uma deficiência técnico-jurídica que deve ter consequências, sob pena de perpetuação de más práticas.

Não desconhecemos que, no sumário respeitante ao acórdão da Relação do Porto de 15/06/2016, proferido no processo 33/14.0TELSB-A.P1 ([2]) se escreve que (I) a comunicação dos factos prevista no artigo 141º/4 CPP aquando do primeiro interrogatório judicial, deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais ([3]) que lhe são imputados e da sua relevância jurídico-criminal, por forma a que lhe seja dada “oportunidade de defesa”, parecendo que, assim, se pretende afastar a necessidade de comunicação dos elementos subjetivos pertinentes.

Porém, depois de lermos o texto do acórdão (onde se verifica também a comunicação de factos subjetivos), ficamos com a convicção de que não é esse o sentido interpretativo ali visado: quer-se apenas dizer que, na hipótese aí em análise, se desceu suficientemente aos pormenores do ocorrido, sem que a indicação se quedasse por meras generalidades.

Volvendo ao nosso caso, entendemos que a falta de indicação de factos consubstanciadores dos elementos subjetivos do crime que se pretendia imputar ao arguido resultou de uma insuficiência da promoção, que impediu o Tribunal recorrido de considerar configurado o crime que justificaria a aplicação de qualquer medida de coação diversa do termo de identidade e residência.

O recurso não merece, pois, provimento.

                                                      *

III – DECISÃO      

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção (Criminal) em julgarem não provido o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando, consequentemente, o douto despacho recorrido.


      *

Sem custas.

Lisboa, 19 de janeiro de 2017

Vítor Morgado

Maria do Carmo Ferreira

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[1] Ver, nomeadamente, o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Acedível em in www.dgsi.pt.
[3] Sublinhado nosso.