Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3942/2005-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I - O estatuto dos contratos é, em princípio, o da lei vigente no momento da sua conclusão porque as partes se comprometem na previsão desse equilíbrio de interesses constante do regime vigente, que constitui a matriz da vida e da economia da relação contratual.
II - O critério genérico neste domínio é o de que a lei nova só poderá, sem retroactividade, reger os efeitos futuros dos contratos em curso quando tais efeitos possam ser dissociados do facto da conclusão do contrato, o que em relação à empreitada de obras públicas não sucede (art. 12º, nº 2 CCivil).
III - A circunstância de determinada pessoa colectiva ter deixado de ser um ente público não obsta a que seja demandada perante os tribunais administrativos por causa daquelas relações jurídicas que nasceram, anteriormente a essa transformação, sob a égide do direito público como objectivamente administrativas e permaneceram submetidas ao mesmo regime material.
IV - O que para o efeito releva é a natureza substancial de direito público do contrato, porque esse é o factor atributivo de competência (art. 9.º, 2 e art. 51.º, n.º 1, g) do ETAF-84, aplicável ao caso).
V – O regime jurídico das empreitadas de obras públicas actualmente aplica-se aos contratos de empreitada celebrados por sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos (cfr. as alterações introduzidas pela Lei n.º 94/97, de 23/8 ao DL 405/93, de 10/12 e, depois, o art. 3.º, n.º 1, al. g) do DL n.º 59/99, de 2 de Março).
VI - E a al. e) do n.º 1 do art. 4.º do actual ETAF levou mais longe a dissociação entre a natureza dos sujeitos e a competência contenciosa ao submeter à jurisdição dos tribunais administrativos questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos entre sujeitos de direito privado só porque lei específica os submeta a um procedimento contratual regulado por normas de direito público.
(FG)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. E, L.da intentou, em 26.05.2000, no Tribunal Cível de Lisboa (16ª Vara), acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a C, S. A., pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia global de 281 325 852$00, acrescida de juros de mora até efectivo pagamento.
Alegou que a ré, após negociações, adjudicou à autora, em 22.10.1992, a execução da obra denominada “Arranjos Exteriores” do edifício da sua sede, pelo valor de 126 487 495$00, dos quais 68597 900$00 diziam respeito à construção dos arranjos exteriores e deveriam ser realizados em 5 meses a contar da data da adjudicação e 57 889 595$00 respeitavam à construção das floreiras e coberturas, obra que deveria ser realizada no prazo de dois meses, também a contar da adjudicação; por culpa exclusiva da ré, que obrigou a autora a fazer prolongadas paragem na execução da obra, os trabalhos arrastaram-se por 39 meses, o que acarretou para a autora um aumento das despesas, computado em 60 000 contos e igual valor de prejuízos decorrente do cancelamento ou não aceitação de outros compromissos profissionais.
Mais alegou a autora que, nos termos do acordado com a ré, era da sua responsabilidade a conservação e limpeza dos locais sucessivamente concluídos, tarefa nunca pensada para o longo período de execução dos trabalhos, pelo que a ré deve à autora a quantia constante de factura que lhe apresentou, no valor de 52 425 000$00.
Invocou ainda (artigos 125º e seguintes da petição inicial) que, a pedido da dona da obra, realizou trabalhos a mais e teve que dar apoio ao sistema automatizado de rega a cargo daquela conforme facturas emitidas, no valor total de 13 185 355$00 e 27 809 655$00, respectivamente, a que acrescem juros de mora.

Citada, veio a ré contestar, deduzindo, para além do mais, a excepção da incompetência absoluta do Tribunal Cível.
Invocou, no que respeita à matéria dessa excepção que, a causa de pedir da acção se traduz no pretenso incumprimento de uma empreitada de obras públicas, sendo que a ré, ao tempo da celebração do contrato, era uma empresa pública, a que cabia a qualificação de instituto público, pelo que o tribunal competente para dirimir as questões emergentes desse contrato é o Tribunal Administrativo, nos termos dos artigos 224º do DL nº 405/93, de 10.12, aplicável por força do art. 241º do mesmo diploma, preceito que reproduz o art. 220º do DL nº 235/86, de 18.08, razão pela qual devia ser absolvida da instância.

A autora respondeu à matéria dessa excepção, invocando, muito em síntese, que, não obstante, no contrato se ter feito apelo ao regime do DL nº 235/86, de 18 de Agosto, que regulava as Empreitadas de Obras Públicas, para além de não ser pacífico o entendimento de que a CGD fosse um Instituto Público, a transformação daquela em sociedade anónima, operada em 1993, ter-se-á de considerar que o contrato em causa passou a ter que se reger pelo direito privado.

Em sede de despacho saneador, após se ter considerado que o contrato de empreitada inicialmente formalizado entre as partes teria de ser apreciado à luz do DL nº 287/93 (o mesmo só não acontecendo com os trabalhos constantes dos artigos 122º a 128º da petição inicial, que, derivando de contratos de prestação de serviços já celebrados depois da transformação da ré, se situam no domínio do direito privado), foi a autora convidada a “apresentar nova petição, devidamente reformulada, expurgada de tudo o que tenha a ver com o contrato de empreitada, sua interpretação, seu eventual incumprimento” (fls. 499).

Dizendo-se inconformada, agravou a autora, esclarecendo fazê-lo no que toca à questão suscitada sobre a incompetência do Tribunal (fls. 512 e 517).
Admitido com esse alcance, a autora alegou e, no final, formulou, em síntese, as seguintes conclusões:
A) O contrato a que se reportam os autos é um contrato de prestação de serviços;
B) O DL nº 235/86, que à data disciplinava as empreitadas de obras públicas, não qualifica como tal o contrato celebrado;
C) Ainda assim, alguns trabalhos cujo pagamento se encontra em dívida pela agravada foram realizados por força da celebração de outros contratos de prestação de serviços, regidos pela lei civil, que não o contrato inicial/base;
D) Todas as questões suscitadas pela autora em sede de petição inicial deverão ser apreciadas nos termos da lei civil e julgadas no Tribunal cível, que é o competente,
E) O despacho recorrido viola o disposto no art. 66º do CPC.

Terminou pedindo a revogação do despacho recorrido e que o Tribunal a quo fosse julgado competente para apreciar “o pedido integral da presente acção”.

A recorrida contra alegou, pedindo a “rejeição” do recurso, basicamente porque sendo a questão central do mesmo apurar se o contrato está ou não inserido na previsão do art. 220º nº 2 do DL 235/86, esta faceta do problema não merecera qualquer atenção da recorrente.

O despacho recorrido foi mantido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Apesar de não ter havido decisão expressa do Tribunal recorrido, no sentido de se julgar incompetente em razão da matéria para o pedido tal como foi formulado na petição, é indubitável que é esse o entendimento que está subjacente ao decidido. O tribunal julgou-se incompetente para tudo o que excede o que na petição se pede sob a epígrafe "D-Dos autos pendentes", sendo essa a questão central que a recorrente pretende ver apreciada no presente recurso, atento o decaimento que o mesmo envolve.

Posto isto, importa averiguar se a competência em razão da matéria para conhecer da acção cabe à jurisdição administrativa, porque se o não for a competência é dos tribunais judiciais (art. 66.º do CPC), o que envolve a resposta às seguintes questões essenciais:
1.ª - Qual a natureza inicial do contrato de que emerge o litígio;
2ª – Qualificado esse contrato como de empreitada de obras públicas, se a alteração da natureza jurídica do dono da obra, de empresa pública para empresa de capitais exclusivamente públicos, afecta a competência para conhecer dos litígios dele emergentes.
3.ª - Não afectando, se além da parte do pedido relativamente ao qual o despacho recorrido reconheceu a competência dos tribunais comuns - parte essa que não vem impugnada -, devem ainda considerar-se fundados noutra ou noutras causas de pedir diversas da inicial os pedidos correspondentes à manutenção dos espaços ajardinados e ao apoio manual ao sistema de rega.

3. Começamos por lembrar que a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, “seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). Como diz MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, a competência do tribunal "afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde será o quid decisum)"). A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão (cfr., entre muitos outros, acórdãos do Tribunal de Conflitos de 23/9/04-Proc.5/04, de 26/4/06-Proc.4/05, de 25/5/06-Proc.26/05, in http://www.dgsi.pt). O que não impede que o tribunal proceda à qualificação jurídica dos factos em que o autor funda a sua pretensão quando disso dependa a determinação da jurisdição competente, como nas situações conflituais em geral depende, porque não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664.º do CPC).

Importa também referir que, já estando o processo pendente à data da entrada em vigor do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (alterada, pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro e pela Lei n.º 107-A/20003, de 31 de Dezembro), que ocorreu em 1 de Janeiro de 2004 (art. 9.º do ETAF), a questão tem de ser apreciada à luz das anteriores regras de delimitação de competência dos tribunais administrativos ( art. 2.º da Lei n.º 13/2002).
Dispunha o art. 3.º do anterior Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril (doravante, ETAF-84 e a que pertencerão todas as disposições legais citadas sem outra referência), repetindo o n.º 3 do art. 212.º da Constituição da República, que incumbia aos tribunais administrativos e fiscais dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais. Na distribuição desta competência pelas diversas categorias de tribunais integrantes desta ordem jurisdicional, com que essa disposição geral se completava ou preenchia, a alínea g) do n.º 1 do art. 51.º atribuía aos tribunais administrativos de círculo a competência para conhecer das acções sobre contratos administrativos e sobre a responsabilidade das partes pelo seu incumprimento.
A noção operante de contrato administrativo era fornecida pelo art. 9.º que depois da enunciação, um tanto tautológica, de que, para efeitos de competência contenciosa, se considerava contrato administrativo “o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo” (n.º 1), enumerava exemplificativamente como tendo esta natureza os contratos de “empreitadas de obras públicas, de concessão de obras públicas, de concessão de serviços públicos, de concessão de uso privativo do domínio público e de exploração de jogos de fortuna e azar e os de fornecimento contínuo e de prestação de serviços celebrados pela Administração para fins de imediata utilidade pública” (n.º 2). Definição e enumeração com que, no essencial, veio a coincidir o conceito de contrato administrativo do art. 178.º do Código de Procedimento Administrativo, o que torna inútil averiguar se o art. 9.º do ETAF-84 devia considerar-se formalmente substituído pelo inscrito neste último preceito, porque a solução material é coincidente.

4. Não se suscitam dúvidas, sendo aspecto aceite pelas partes e pela decisão recorrida, quanto à caracterização do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida em Setembro/Outubro de1992, com o objecto descrito nos artigos 2.º e 3.º da petição inicial (compreendendo a construção de todos os espaços ajardinados, quer interiores, quer exteriores, do edifício sede da recorrida, nos termos descritos nos projectos de construção civil e de plantações), como contrato de empreitada. A divergência incide sobre a sua qualificação desta empreitada como contrato civil de empreitada ou como empreitada de obras públicas.
É certo que na conclusão A) das suas alegações a recorrente afirma, sem distinguir, que o contrato objecto do presente recurso é um contrato de prestação de serviços. Porém, esta afirmação deve ser interpretada, no contexto dessa peça processual, como referida aquilo que sustenta decorrer de contratos autónomos relativamente ao contrato inicial. Efectivamente, a recorrente continua a referir-se nas alegações ao contrato base inicial como sendo de empreitada (fls. 525) e assim o apresentou na petição inicial. De todo modo, sempre se dirá que esse contrato inicial é, independentemente da qualificação como civil ou administrativo, seguramente um contrato de empreitada, porque a prestação essencial da recorrente consistia na realização da obra identificada mediante um preço, incluindo trabalhos de construção civil e plantações com fornecimento dos materiais respectivos e não o mero resultado do trabalho, o que corresponde à noção genérica de empreitada (cfr. arts. 1154.º e 1207.º do Código Civil).

5. Ao tempo da celebração de contrato em causa (Outubro de 1992), o regime jurídico dos contratos de obras públicas contava do Decreto-lei n.º 235/86, de 18 de Agosto. Ora, no caderno de encargos, que nenhuma das partes contesta integrar o contrato, clausulou-se expressamente que na execução dos trabalhos e fornecimentos abrangidos pela empreitada e na prestação dos serviços nela incluídos se observaria o Decreto-Lei n.º 235/86, de 18 de Agosto (Caderno de Encargos, I - Cláusulas Gerais, n.º 1.1.1. ), pelo que a questão poderia parecer, à primeira vista, resolvida. Seria, porém, prematuro retirar desta disciplina material do contrato pelo regime jurídico geral das empreitadas de obras públicas, com base na mera disposição das partes no instrumento contratual, a conclusão imediata de que o contrato é um contrato de empreitada de obras públicas para efeitos contenciosos, isto é, que a competência cabe aos tribunais administrativos. Com efeito, caberia na liberdade contratual de direito privado (art. 405.º do Código Civil) a recepção de elementos daquele modelo legal típico que não traduzam o exercício de poderes de autoridade, para integrar o conteúdo do negócio de direito privado, designadamente pela conveniência em absorver no contrato de direito civil a mais exaustiva regulação do contrato de empreitada de obras públicas. Valeria essa remissão não com a força de regime legal, mas como transmutação dessa disciplina em cláusula contratual, economizando as partes a reprodução de uma regulação que entendem convir-lhes. Isso só não poderia estender-se àqueles aspectos do regime jurídico que só são concebíveis perante a natureza do contrato como de direito público, designadamente os aspectos contenciosos, porque a mera vontade das partes não tem virtualidade para modificar a competência dos tribunais em razão da matéria, que é de ordem pública (cfr. ac. STA, de 13/7/92, BMJ, n.º 419, pag. 689).

Importa, portanto, averiguar se os contratos de empreitada em que a Caixa fosse dono da obra cabiam no âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 235/86. Se couberem, o contrato em causa é um contrato administrativo por expressa disposição da lei, sem necessidade de demonstração de ambiência de direito público para descortinar a existência de uma relação jurídica administrativa de fonte contratual, metodologia que só se impõe quando estivermos perante uma realidade que não caiba em qualquer das categorias contratuais típicas de direito público.

O art. 1.º do Decreto-Lei n.º 235/86, sob a epígrafe “Âmbito de aplicação da lei” dispunha:
“1 – O presente diploma aplica-se às empreitadas destinadas à realização de trabalhos de construção, reconstrução, restauro, reparação, conservação ou adaptação de bens imóveis que, no território nacional, corram total ou parcialmente por conta do Estado, de associação pública ou de instituto público.
2 – (…)
3 – A aplicação deste diploma às empresas públicas, bem como a empresas de economia mista ou concessionárias do Estado ou de outras entidades públicas, dependente de portaria do ministro competente.

Resulta imediatamente da leitura dos transcritos n.ºs 1 e 3 que, à data da celebração do contrato em causa, era decisivo saber se o dono da obra tinha a natureza de instituto público ou antes de empresa pública. Enquanto as empreitadas celebradas por entes que coubessem na primeira categoria caíam ipso facto no âmbito do diploma, aquelas em que o dono da obra fosse da segunda não o eram necessariamente, sendo em regra contratos civis. Na falta de disposição especial, designadamente dos respectivos estatutos, o regime do contrato de empreitada de obras públicas só lhes seria aplicável se se verificasse a condição prevista no n.º 3 (regime que veio a manter-se no Decreto-Lei n.º 405/93, de 10 de Dezembro; cfr. neste diploma a al. a) do art. 239º, que previa a aplicação do diploma às empresas públicas e às sociedades anónimas de capitais maioritária ou exclusivamente públicos identificadas em portaria do ministro competente). A sujeição, com carácter generalizado, dos contratos de empreitada de obras públicas celebrados por empresas públicas ao regime de direito administrativo previsto no DL 405/93 só surgiu com a Lei nº 94/97, de 3 de Agosto, que deu nova redacção ao art. 1º do diploma, passando o seu nº 1 a dispor que "O presente diploma aplica-se às empreitadas de obras públicas promovidas pela administração estadual, directa e indirecta, administração regional e local, bem como pelas empresas públicas e sociedades anónimas de capitais maioritária ou exclusivamente públicos". Porém, como o contrato em causa é anterior a esta redacção, o seu regime inovador não lhe é aplicável - art. 12º do C. Civil).

Até à sua transformação em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos pelo Decreto-Lei n.º 287/93, de 1 de Setembro, a Caixa Geral de Depósitos regia-se por um conjunto de diplomas que, no seu conjunto formavam o seu Estatuto, designadamente o DL. n°48 953, de 5.04.1969, o Decreto-Lei n.º 693/70, de 31 de Dezembro e o regulamento aprovado pelo Decreto n.º 694/70, da mesma data.
Daquele primeiro diploma legal, e para o que neste momento interessa, importa transcrever os seguintes preceitos:
Artigo l°: A Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, que pode designar-se apenas por Caixa Geral de Depósitos, passa a reger-se pelo disposto no presente diploma e nos regulamentos que venham a ser adoptados em sua execução, continuando em vigor a legislação que lhe é aplicável em tudo o que não seja alterado por este decreto-lei e suas normas regulamentares.
Artigo 2°: A Caixa Geral de Depósitos é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituto de crédito do Estado e a administração das instituições a que se referem os artigos 4.º e 6.º.
Artigo 3.º: Como instituto de crédito do Estado, incumbe à Caixa colaborar na política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento social, na acção reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição selectiva do crédito.”
O Decreto-Lei n.º 48 953 foi posteriormente completado pelo Decreto Lei n° 693/70, de 31/12. Porém, atentando nos seus preâmbulo e texto, verifica-se que são aditadas novas normas e alteradas outras, porém, todas elas respeitam ao funcionamento da caixa, ou seja, mais concretamente, são atinentes ao seu objecto que é a oferta no mercado de serviços de natureza bancária e financeira em condições de relativa concorrência com os demais elementos do sistema. Em cumprimento do disposto no DL. n° 48 953, de 5/4/1969 e no sentido de completar a reorganização efectuada por tal diploma legal e pelo DL. n° 693/70, de 31/12 foi publicado o Decreto n°694/70, de 31/12 que aprovou o novo Regulamento da Caixa Geral de Depósitos. Neste regulamento continua a qualificar-se a CGD como uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituto de crédito do Estado e a administração da Caixa Geral de Aposentações e o Montepio dos Servidores do Estado, sob a designação genérica de Caixa Nacional de Previdência, e da Agência Financial de Portugal no Rio de Janeiro, criada pelo Decreto de 29 de Dezembro de 1887 (arts. 1°, 3° e 4º).

Apesar das profundas modificações quanto ao regime jurídico da intervenção do Estado na economia e da composição e organização do sector público empresarial que se seguiram ao 25 de Abril, designadamente no sector financeiro e de crédito, a Caixa manteve-se com esta natureza e esta estrutura orgânica publicística. Designadamente, nunca adoptou a forma jurídica de empresa pública, cujo regime geral foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril, com as alterações posteriores (revogado pelo Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro). E manteve significativos aspectos publicísticos, além da forma jurídica e da estrutura orgânica, de que são exemplos a atribuição aos tribunais tributários da competência para as execuções para cobrança coerciva de créditos de que a Caixa e suas instituições anexas fossem titulares (art. 61.º do DL 48 953; cfr., entre vários outros no mesmo sentido, qualificando a Caixa como "instituto" e reconhecendo a constitucionalidade do regime, ac. n.º 509/94, do Tribunal Constitucional, disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt) e a sujeição do respectivo pessoal a um regime disciplinar de direito público (cfr. ac. de 7/5/2005, Proc. 755/04, do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, disponível in http://www.dgsi.pt).

Uma das consequências da manutenção desta natureza jurídica formal da Caixa como instituto público, apesar do seu incontestado carácter empresarial do ponto de vista económico e doutrinal, foi o reconhecimento jurisprudencial de que os contratos de empreitada por si celebrados como dono da obra eram contratos de empreitada de obras públicas, por se enquadrarem na previsão do n.º 1 do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 235/86, como pode ver-se, entre muitos outros, nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 13/12/95-Proc. 19581, de 29/10/96-Proc. 18 983, de 31/1/96-Proc. 19 927, de 12/1/98-Proc. 19 728 e de 13/10/99-Proc.23 868, sumariados in http://www.dgsi.pt)

Pode, portanto, concluir-se que o contrato a que se referem os artigos 2.º e 3.º da petição inicial é imperativamente um contrato de obras públicas, pelo que competentes para os litígios dele emergentes eram, no momento em que o contrato foi celebrado, os tribunais administrativos. É, para este efeito irrelevante, a distinção entre gestão pública e gestão privada, porque um contrato com este objecto típico é imperativamente um contrato administrativo por designação da lei. No domínio contratual, aquela distinção só tem utilidade quando a qualificação tiver de se fazer face à cláusula geral, não quando se trate de um contrato objecto de qualificação legal expressa.

6. Posto isto, como a competência se determina pela lei vigente no momento em que a acção é proposta (art. 22.º da LOFTJ) e porque o factor atributivo da competência é a natureza do contrato, importa saber se a alteração da natureza jurídica da Caixa, operada pelo Decreto-Lei n.º 287/93, com a sua transformação em sociedade anónima de capitais públicos e a consequente subordinação integral ao direito privado (art. 1.º deste diploma legal), mais rigorosamente às regras que regem as empresas privadas do sector, implicou também a transformação do contrato de empreitada de obras públicas celebrado em 1992 em contrato de direito privado, com a consequente perda de competência dos tribunais administrativos.
A resposta terá de ser negativa.
Celebrado ao abrigo de um certo regime jurídico, com a natureza de contrato de direito público que daí decorre, e sendo nessa base que se formou e estabeleceu a vontade das partes, só mediante disposição legal expressa ou por acordo poderiam as relações entre as partes ser submetidas a regulação diversa. Aliás, pelo menos em parte a empreitada foi executada anteriormente à transformação da Caixa em sociedade anónima e a consequente perda da qualidade de pessoa jurídica de direito público. Esta só ocorreu em 1 de Setembro de 2003 e os trabalhos deviam estar executados até 22 de Março de 2003 (cfr. artigos 15.º a 19.º da petição inicial e artigo 48.º da contestação). Ora, o Decreto-Lei n.º 287/93 limita-se a dispor que a Caixa sucede à Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência e continua a personalidade jurídica desta, conservando a universalidade dos direitos e obrigações que integram a sua esfera jurídica no momento da transformação (art. 2.º, n.º 1). Sucede, portanto, nas relações jurídicas do extinto instituto público tal como este as detinha.
É certo que o diploma também dispõe que a Caixa passa a reger-se pela legislação geral e especial aplicável às sociedades anónimas (art. 1.º, 2), mas não pode retirar-se daqui norma sobre o regime jurídico dos contratos de empreitada anteriormente celebrados, solução que, relativamente a situações jurídicas como a que neste processo se discute envolveria retroactividade ou a cisão da execução de um contrato que constitui um continuum de realização progressiva por regimes jurídicos diversos, o que não pode entender-se desejado pelo legislador sem uma clara manifestação nesse sentido. A lei só dispõe para o futuro e esta norma dispõe genericamente sobre o regime a que passa a ficar sujeita a actividade da Caixa e não directamente sobre o conteúdo das relações jurídicas contratuais em que esta é parte, abstraindo dos factos que lhes deram origem (art. 12.º do Código Civil).
Com efeito, o estatuto dos contratos é, em princípio, o da lei vigente no momento da sua conclusão porque as partes se comprometem na previsão desse equilíbrio de interesses constante do regime vigente, que constitui a matriz da vida e da economia da relação contratual. Como ensina Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pag. 241, o critério genérico neste domínio, que encontra suficiente cobertura na fórmula do n.º 2 do art. 12 do Código Civil, é o de que a lei nova só poderá, sem retroactividade, reger os efeitos futuros dos contratos em curso quando tais efeitos possam ser dissociados do facto da conclusão do contrato, o que em relação à empreitada de obras públicas não sucede.

Acresce que a circunstância de a Caixa ter deixado de ser um ente público não obsta a que seja demandada perante os tribunais administrativos por causa daquelas relações jurídicas que nasceram, anteriormente a essa transformação, sob a égide do direito público como objectivamente administrativas e permaneceram submetidas ao mesmo regime material. O que para o efeito releva é a natureza substancial de direito público do contrato, porque esse é o factor atributivo de competência (art. 9.º, 2 e art. 51.º, n.º 1, g) do ETAF-84). Aliás, à data da propositura da acção o regime jurídico das empreitadas de obras públicas fora progressivamente estendido aos contratos de empreitada celebrados por sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos (cfr., numa primeira fase, as alterações introduzidas pela Lei n.º 94/97, de 23 de Agosto ao Decreto-Lei 405/93, de 10 de Dezembro e, depois, o art. 3.º, n.º 1, al. g) do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março). Embora não se trate de diplomas aplicáveis ao contrato em causa, que lhes é anterior, este regime demonstra que a natureza actual de ente público do dono da obra não é condição sine qua non para a sujeição a vinculações contratuais de direito público e a consequente competência da jurisdição administrativa em face do critério objectivo de repartição de competências, pelo que a circunstância de a competência da jurisdição administrativa sobreviver à perda daquela natureza não é absolutamente anómalo (Note-se que a al. e) do n.º 1 do art. 4.º do actual ETAF levou mais longe esta dissociação entre a natureza dos sujeitos e a competência contenciosa ao submeter à jurisdição dos tribunais administrativos questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos entre sujeitos de direito privado só porque lei específica os submeta a um procedimento contratual regulado por normas de direito público).

Tanto basta para confirmar o despacho recorrido na parte em que declina a própria competência, atribuindo-a aos tribunais administrativos, para conhecer do que respeita ao incumprimento do prazo contratado e à revisão de preços.

7. Todavia, o mesmo não sucede quanto aos demais pedidos.
Tal como a autora configura a acção na petição inicial o seu crédito sobre a ré decorre, de acordo com as próprias epígrafes sob as quais a autora arruma os factos que alega, do seguinte:
a) incumprimento do prazo contratado;
b) manutenção dos espaços ajardinados;
c) revisão de preços;
d) autos pendentes;
e) apoio manual ao sistema automatizado de rega.

O despacho recorrido - nesta parte não impugnado - aceitou a competência dos tribunais comuns para aquilo que a petição apresenta sob a epígrafe de "autos pendentes", considerando que, segundo a causa de pedir apresentada pela autora, essas quantias correspondiam a trabalhos resultantes de contratos de prestação de serviços posteriores à transformação da Caixa em sociedade anónima e que não estavam compreendidos no contrato de empreitada.
Sucede que este mesmo raciocínio, na parte em que tem subjacente a ideia que inicialmente se pôs em evidência de que a competência dos tribunais se afere em função dos termos em que a acção é proposta, vale, no essencial, para os pedidos que se fundam na manutenção dos espaços ajardinados e no apoio manual ao sistema automatizado de rega.
Com efeito, a autora alega que a manutenção dos espaços ajardinados no período a que correspondem as facturas em causa não estava compreendida nas obrigações emergentes do contrato de empreitada, tendo sido efectuada a pedido da Caixa ou, pelo menos, com a sua tácita aceitação e com benefício para esta correspondente ao custo que nunca pagou ( cfr., p. ex., artigos 59.º a 64.º). Funda nessa contratação de prestação de serviços, autónoma em relação à empreitada e, subsidiariamente, no enriquecimento sem causa (cfr. artigos 104.º a 112.º da petição) o pedido de condenação no pagamento das quantias que pede sob esta epígrafe da petição ("C- DA MANUTENÇÃO"). Configurada a acção por qualquer destas causas de pedir, não se trata de matéria da competência dos tribunais administrativos. É certo que esta prestação de serviços não coberta pelos deveres emergentes da empreitada teria começado antes da transformação da Caixa em sociedade anónima, o que poderia reacender o problema da sua qualificação. Mas não se trataria de contrato administrativo porque, atendendo ao objecto da prestação, de modo algum pode ser considerado como tendo "fins de imediata utilidade pública", como seria necessário para que, como contrato de prestação de serviços, pudesse ser qualificado como contrato de direito público ( cfr. art.º 9.º, n.º 2, parte final, do ETAF-84). Efectivamente, para que um contrato de prestação de serviços seja de natureza administrativa torna-se necessário que tenha por objecto prestações relativas ao cumprimento de atribuições da pessoa colectiva e de associar, duradoura e especialmente, outra pessoa ao cumprimento dessas atribuições (cfr. acórdão do Tribunal de Conflitos de 11/1/90, in Acórdãos Doutrinais n.º 344/345).
Ora, é da mais elementar evidência que ao manter os espaços ajardinados dos edifícios da Caixa o particular não está com isso a ser associado à prossecução dos fins em função dos quais a Caixa era ente público ou a proporcionar directamente os meios para essa prossecução.
E o mesmo vale, mutatis mutandis, para as quantias que a autora peticiona a título de apoio manual ao sistema automatizado de rega (artigos 129.º e sgs da p. i.). Com efeito, a autora alegou claramente que esse serviço foi prestado a solicitação da autora, ao abrigo de um contrato autónomo relativamente à empreitada (cfr., entre outros, artigos 140.º a 143.º, 149.º e 177.º da p.i.). Aliás, aqui nem sequer se coloca a dúvida emergente da data em que esse alegado acordo foi estabelecido.

8. É certo que a construção jurídica que a autora apresenta tem como pressuposto - sem que aqui importe averiguar o compromisso quanto a saber se é matéria integrante da causa de pedir ou matéria de excepção - que tais trabalhos não estivessem compreendidos nas obrigações da autora decorrentes da empreitada. Colocar-se-á, portanto, como passo obrigatório da apreciação da pretensão, uma questão de interpretação de um contrato administrativo, matéria que, como anteriormente se afirmou, não cabe na competência dos tribunais comuns, a título principal. Mas isso não é obstáculo a que se afirme a sua competência, porque se trata de questão prejudicial, com o remédio previsto no art. 97.º do Código de Processo Civil sobrestar ou conhecer a título incidental e com efeitos limitados à decisão da causa para que o tribunal é competente.

9. Decisão
Pelo exposto, concedendo parcial provimento ao recurso, decide-se:
a) Confirmar o despacho recorrido no que respeita à incompetência dos tribunais comuns, em razão da matéria, para conhecer da acção na parte em que se funda no contrato de empreitada (pedido resultante do incumprimento do prazo contratado e revisão de preços);
b) Revogá-lo, no mais na parte impugnada, declarando os tribunais comuns competentes em razão da matéria para conhecer da acção também no que respeita à manutenção dos espaços ajardinados e ao apoio manual ao sistema automatizado de rega.
c) Condenar as partes nas custas do recurso, na proporção do respectivo vencimento.
Lisboa, 19 de Outubro de 2006.
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo Geraldes)
((Ana Luísa Passos G.)