Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
173/20.6PALSB-A.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: LEVANTAMENTO DA APREENSÃO DE DINHEIRO
RESTITUIÇÃO AO ARGUIDO
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sendo ordenada, em sentença penal, a restituição ao arguido de determinada quantia apreendida e, sendo ele responsável pelas custas desse processo, deve ser reconhecido o direito de retenção em relação àquela quantia, nos termos do art.34, nº1, al.d, do RCP, até que se mostrem pagas as custas da responsabilidade do mesmo.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:



Iº-1.–Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº173/20.6PALSB, da Comarca de Lisboa (Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 12), por sentença de 30 de setembro de 2021, o arguido AS, foi condenado por crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, tendo o tribunal decidido, ainda, levantar a apreensão que incidia sobre €30 (auto de apreensão de fls. 7) e ordenar a notificação do arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 186, n°3, do Código de Processo Penal.

Por requerimento de 9 de dezembro de 2021, o Ministério Público requereu que o levantamento da apreensão do dinheiro e a sua entrega ao arguido apenas ocorresse depois de pagas voluntariamente as custas em dívida, cumprindo-se na negativa o disposto no art.34, do RCP.

Por despacho de 6 de janeiro de 2022, o Mmo Juiz decidiu:
“…
Fls. 190 a 192:
Indefere-se o requerido, uma vez que, o artigo 186º, n.º 2, do Código de Processo Penal preceitua que Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo de tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.”, não prevendo este normativo legal qualquer excepção, como seja, por exemplo, que os autos aguardem o prazo para o pagamento voluntário das custas (que poderá até ser extenso, no caso de incidir reclamação sobre a conta e recurso sobre a decisão da reclamação ou pagamento das mesmas em prestações), sendo certo que, o direito de retenção previsto no artigo 34º, n.º 1, alínea d), do Regulamento das Custas Processuais apenas “nasce” no caso de não vir a ocorrer o pagamento voluntário das custas, no prazo legal previsto para o efeito, não existindo ao tempo do cumprimento do mencionado artigo 186º.
Deste modo, com o devido respeito por opinião contrária, se o tribunal decidisse nos termos promovidos, estaria a retardar, sem qualquer sustentação legal, o cumprimento do acima mencionado artigo 186º, isto é, estaria a criar um obstáculo ao seu atempado cumprimento, ficcionando uma situação ainda não existente.
…”.

2.Deste despacho de 6 de janeiro de 2022, recorre o Ministério Público, concluindo:
a)-Na douta sentença …, decidiu o Mm°. Juiz a quo condenar o arguido AS  no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça no mínimo legal, ordenar o levantamento da apreensão que incide sobre o remanescente dinheiro apreendido ao arguido AS e, relativamente a este dinheiro, ordenar a notificação do mesmo nos termos e para os efeitos do artigo 186°, n.° 3, do C.P.P..
b)-Em 9/12/2021 o Ministério Público requereu que, uma vez transitada em julgado a sentença, o levantamento da apreensão do dinheiro em causa e a sua entrega ao arguido, cumprindo-se o artigo 186°, n.° 3, do C.P.P., apenas ocorram mostrando-se pagas voluntariamente as custas em dívida, cumprindo-se na negativa o disposto no art.34° do R.C.P..
c)-No douto despacho ora recorrido, proferido em 6 de janeiro de 2022, o Mmo Juiz a quo indeferiu o assim requerido, com os seguintes fundamentos:
-artigo 186º, n.º 2, do Código de Processo Penal preceitua que Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo de tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.”, não prevendo este normativo legal qualquer excepção, como seja, por exemplo, que os autos aguardem o prazo para o pagamento voluntário das custas (que poderá até ser extenso, no caso de incidir reclamação sobre a conta e recurso sobre a decisão da reclamação ou pagamento das mesmas em prestações), sendo certo que, o direito de retenção previsto no artigo 34°, n.° 1, alínea d), do Regulamento das Custas Processuais apenas “nasce” no caso de não vir a ocorrer pagamento voluntário das custas, no prazo legal previsto para o efeito, não existindo ao tempo do cumprimento do mencionado artigo 186°.
Deste modo, com o devido respeito por opinião contrária, se o tribunal decidisse nos termos promovidos, estaria a retardar, sem qualquer sustentação legal, o cumprimento do acima mencionado artigo 186°, isto é, estaria a criar um obstáculo ao seu atempado cumprimento, ficcionando uma situação aonda não existente”.
d)-Ora, o assim decidido viola o disposto no art.34° do R.C.P., uma vez que a decorrência lógica do levantamento da apreensão do dinheiro e o cumprimento do art.186°, n°3, do C.P.P. logo que decorrido o trânsito em julgado da sentença é, ou a entrega do dinheiro ao arguido, ou a declaração de perdimento do dinheiro a favor do Estado se o dinheiro não vier a ser restituído/levantado, o que inviabiliza liminarmente a retenção e afetação de tal quantia pecuniária apreendida nos autos ao pagamento das custas devidas pelo condenado.
e)-Na verdade, impõe-se salvaguardar o exercício do direito de retenção consagrado no art.34° do R.C.P. e a retenção/afetação da quantia em causa ao pagamento das custas em sede de eventual incumprimento caso, passado o prazo para o pagamento voluntário, venham a estar em dívida as custas do processo a cargo do arguido seu devedor, sendo manifestamente no caso quantia apreendida de que é titular o responsável pelas custas e que deve a este ser entregue (n°1, al. d)), requisitos estes de aplicação do preceito legal em causa.
f)-O cumprimento do art.34°, n°1, al. d), do R.C.P. mostra-se inviabilizado nos termos decididos no douto despacho recorrido ao decidir que o levantamento da apreensão do dinheiro e a notificação do arguido nos termos do art.186°, n°3, do C.P.P. deve verificar-se logo que decorrido o trânsito em julgado da sentença,
g)-por conseguinte antes da elaboração da conta de custas, deve o arguido ser notificado para o respetivo pagamento voluntário e, obviamente, da constatação nos autos passado o prazo para o pagamento voluntário do eventual incumprimento por parte do devedor de custas, fundamentos do recurso ao mecanismo previsto no art.34° do R.C.P.,
h)-isto porque no momento da constatação do incumprimento, passado o prazo para o pagamento voluntário sem que estejam pagas as custas, o dinheiro já não está apreendido à ordem dos autos, e já foi ou entregue ao arguido ou declarado perdido a favor do Estado dado o percurso lógico da aplicação do invocado art.186°, n°3, do C.P.P. logo que decorrido o trânsito em julgado da sentença.
i)-Tudo ponderado, carece de suporte legal o decidido levantamento da quantia pecuniária apreendida nos autos e cumprimento do art.186°, n°3, do C.P.P. logo que decorrido o trânsito em julgado da sentença, e a subsequente entrega ao arguido da quantia ou a sua declaração de perdimento a favor do Estado sem que se mostre elaborada a conta de custas, notificado o devedor de custas para pagamento voluntário e verificada a falta de pagamento por parte deste passado o prazo para o pagamento voluntário.
j)-Na verdade, só deve proceder-se ao levantamento da apreensão do dinheiro em causa ao arguido AS e à notificação do mesmo nos termos e para os efeitos do artigo 186°, n.° 3, do C.P.P., não logo que decorrido o trânsito em julgado da sentença mas apenas após a elaboração e a notificação ao arguido da conta de custas para pagamento voluntário das custas em dívida e se o mesmo tiver pago voluntariamente as custas.
l)-É esta a única forma de concretização da aplicação conjugada dos dois preceitos legais em equação, sem se afastar a aplicação de um deles, o art.34° do R.C.P..
m)-Face a todo o exposto, ao decidir como decidiu, o Mmo Juiz a quo no douto despacho recorrido violou o disposto no art.34, do RCP.
Termos em que, decidindo em conformidade com as conclusões que antecedem, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro decidindo-se se “proceda ao levantamento da apreensão do dinheiro em causa e à sua entrega ao arguido, cumprindo-se o art.186, nº3, CPP, mostrando-se pagas voluntariamente as custas em dívida, cumprindo-se na negativa o art.34, do RCP.

3.O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, não tendo sido apresentada resposta.

4.Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral Adjunta pronunciou-se pelo provimento do recurso.

5.Após os vistos legais, realizou-se a conferência.

6.O objeto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se, face ao levantamento da apreensão de dinheiro a restituir ao arguido e notificação do mesmo para os efeitos do artigo 186, n°3, do Código de Processo Penal, existe, ou não, fundamento para proceder à sua retenção/afetação nos termos do art. 34º, nº 1, al. d), do R.C.P.
*     *     *

IIº-1.Por sentença de 30 de setembro de 2021, o arguido foi condenado por crime de tráfico de estupefacientes em pena de prisão, determinada a restituição ao mesmo da quantia de €30 a ele apreendida no momento em que foi detido pelos factos objeto desses autos e condenado, ainda, nas custas do processo.

O arguido interpôs recurso daquela sentença, questionando a não suspensão da execução da pena de prisão, recurso julgado improcedente por douto acórdão de 5 de abril de 2022, já transitado em julgado.

A questão objeto do presente recurso foi suscitada pelo Ministério Público por requererimento de 9-12-21, em relação à qual foi proferido o despacho recorrido, datado de 6-01-22, de que recorre o Ministério Público, por recurso admitido em 14-01-22, a subir em separado.

Considerando que já transitou o douto acórdão que apreciou o recurso inteposto pelo arguido da sentença final, é definitiva a decisão de restituição ao arguido da quantia de €30, assim como a sua condenação em custas.

A questão suscitada enquadra-se na apreciação conjugada do disposto nos arts.186, do CPP e 34, do RCP.

Preceitua o artigo 186.º do Código Processo Penal sob a epígrafe Restituição de animais, coisas e objetos apreendidos”:
1- Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado
seu fiel depositário.
2- Logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.
3- As pessoas a quem devam ser restituídos os animais, as coisas ou os objetos são notificadas para procederem ao seu levantamento no prazo máximo de 60 dias, findo o qual, se não o fizerem, se consideram perdidos a favor do Estado.


Por sua vez, o artigo 34º do RCP preceitua:
1- Passado o prazo para o pagamento voluntário sem que estejam pagas as custas, multas e outras quantias contadas e não tendo sido presentada reclamação ou até que esta seja alvo de decisão transitada em julgado, o tribunal tem o direito a reter qualquer bem na sua posse ou quantia depositada à sua ordem que:
a)- Provenha de caução depositada pelo responsável pelas custas;
b)- Provenha de arresto, consignação em depósito ou mecanismo similar, relativos a bens ou quantias de que seja titular o responsável pelas custas;
c)- Provenha da consignação, venda ou remição relativa a bens penhorados que fossem propriedade do responsável pelas custas;
d) Deva ser entregue ao responsável pelas custas.


Atento o exposto supra, não restam dúvidas que o arguido é responsável por custas e que a referida quantia de €30 lhe deve ser entregue.

Diz o despacho recorrido que o nº2, do citado art.186, determina a restituição Logo que transitar em julgado a sentença,  …. e que o direito de retenção previsto no artigo 34º, n.º 1, alínea d), do Regulamento das Custas Processuais apenas “nasce” no caso de não vir a ocorrer o pagamento voluntário das custas.

O art.34, do RCP, ao estabelecer um direito de retenção, visa garantir o pagamento de serviços prestados pela máquina judiciária, para o efeito reconhecendo ao prestador desse serviço o direito de retenção de quantia que devesse entregar ao devedor das custas.

Esta obrigação de entrega, na maioria dos casos, tal como aconteceu no caso em apreço, nasce com o mesmo ato que gera o crédito de custas, a sentença final.

Ora, sabido que existe sempre um prazo para pagamento voluntário das custas após trânsito da sentença final, caso não fosse reconhecido o direito de retenção antes do decurso desse prazo, o referido art.34, não teria qualquer efeito útil.

Como é sabido, mesmo no direito civil, em certos casos, é admissível o direito de retenção como forma de garantir créditos inexigíveis e ilíquidos (art.757, Código Civil).

Por maioria de razão, em casos como o dos autos, deve ser admitido o direito de retenção como forma de assegurar o pagamento de custas da responsabilidade do credor de determinada quantia à ordem do processo que deu origem àquelas custas, pois esse credor (no caso o arguido) é responsável pelo custo de determinado serviço prestado pelo Estado através do mesmo processo judicial à ordem do qual foi apreendida a quantia que agora lhe deve ser restituída.

Não seria compreensível que a referida quantia fosse de imediato restituída ao arguido e, pouco depois, decorrido o prazo de pagamento voluntário das custas, a máquina judiciária fosse onerada com a obrigação de efetuar diligências para cobrança coersiva, com sério risco de insucesso, acabando por ser a comunidade a ter que suportar na íntegra o custo do funcionamento daquela máquina judiciária, quando o arguido foi o único responsável pela intervenção desta.

Considerando a regra da não gratuitidade da atividade judiciária, é mais justo que o devedor de custas seja sacrificado, em caso de pagamento voluntário das mesmas, com o atraso na restituição de uma quantia de que é credor, do que correr o risco de onerar a comunidade com os custos totais daquela atividade, a que só aquele devedor de custas deu causa.

Concluindo:
Sendo ordenada em sentença crime a restituição ao arguido de determinada quantia apreendida e sendo ele responsável pelas custas desse processo, deve ser reconhecido o direito de retenção em relação àquela quantia, nos termos do art.34, nº1, al.d, do RCP, até que se mostrem pagas as custas da responsabilidade do mesmo.
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IIIºDECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, em dar provimento ao recurso do Ministério Público, revogando o despacho recorrido que se substitui por outro reconhecendo a existência de direito de retenção em relação à quantia cuja entrega ao arguido foi determinada na sentença, até que se mostrem pagas as custas da sua responsabilidade.
Sem tributação.



Lisboa, 10 de maio de 2022



(Relator: Vieira Lamim)
(Adjunto: Artur Vargues)