Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2815/14.3TBOER.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: SEGURO DE VIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I. Em regra, no contrato de seguro de grupo, não se repercute na esfera jurídica da seguradora a atuação culposa da tomadora do seguro aquando da adesão do segurado.
II. É anulável, ao abrigo do art.º 429.º do Código Comercial (em vigor à data da celebração do contrato), o contrato de seguro do ramo vida em que os segurados assinaram, sem o lerem, questionário clínico, preenchido por uma funcionária do banco/tomador, em que constava uma situação clínica mais favorável do que a real, situação real essa que os segurados haviam comunicado à dita funcionária.
III. Na situação descrita em II. a seguradora não tem direito à reversão do prémio, prevista no § único do art.º 429.º do Código Comercial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Em 16.6.2014 Maria (…) instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra (…) Companhia de Seguros, S.A..

A A. alegou, em síntese, que em 13.5.2008, juntamente com o seu marido, contraiu junto do Banco (…) um empréstimo hipotecário para aquisição de um imóvel. Foi igualmente celebrado com a ora R. um contrato de seguro, que salvaguardaria a mencionada instituição bancária quanto ao reembolso de 50% do valor do mútuo, no caso de falecimento de um dos mutuários e também salvaguardaria o mutuário sobrevivente, quanto ao pagamento do remanescente em falta, na proporção da quantia segura. Sucede que o marido da A. faleceu em 24.6.2011. Porém, tendo a A. acionado o seguro, a seguradora, ora R., declinou qualquer responsabilidade no pagamento do montante em dívida, invocando constatar que “à data da adesão ao seguro de vida o segurado era portador de quadro clínico susceptível de influenciar a verificação do risco.” Ora, o questionário clínico que foi necessário preencher nos termos do seguro foi preenchido telefonicamente pela mediadora da R., a gestora de conta do Banco, tendo na ocasião a A. e o seu marido chamado a atenção para o episódio clínico que tinha sido vivido pelo marido da A.. A gestora de conta, por considerar que tal episódio havia sido debelado, optou por nada fazer constar, tendo mais tarde a A. e o seu marido assinado tal questionário conforme fora preenchido pela dita mediadora.

A A. terminou pedindo que a R. fosse condenada a liquidar ao Banco o remanescente que se verificava pendente de liquidação à data do decesso do marido da A., na proporção do seguro contratado, no montante de € 41 748,78, acrescido de juros desde a propositura da ação.

A R. contestou, alegando que o falecido marido da A. prestara falsas declarações sobre o seu estado de saúde, no aludido questionário clínico, influenciando a decisão da R. aceitar celebrar o seguro de vida nos respetivos termos e condições. Existia, assim, fundamento para a anulabilidade do seguro de vida, nos termos do art.º 429.º do Código Comercial, anulabilidade que a R. declarou à A. por carta de 28.9.2011. Em reconvenção, a R. invocou o direito à reversão a seu favor dos prémios de seguro pagos, no valor total de € 4 057,27.

A R. terminou pedindo que fosse julgada procedente a exceção de anulabilidade do contrato de seguro em causa, absolvendo-se, em consequência, a R. do pedido, e se julgasse a reconvenção procedente por provada e, em consequência, se condenasse a A. na reversão a favor da R. Seguradora dos prémios de seguro pagos no valor de € 4 057,27.

A A. respondeu, pugnando pela improcedência da exceção e do pedido reconvencional, concluindo como na petição inicial.

Foi elaborado saneador tabelar, definido o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizou-se audiência final e em 10.7.2015 foi proferida sentença em que se julgou a ação parcialmente procedente e improcedente a reconvenção e em consequência:

a) Condenou-se a R. a pagar ao Banco, a quantia de € 41 748,78, correspondente a 50% do valor em dívida no contrato de mútuo celebrado com o Banco;

b) Condenou-se a R. a pagar à A. juros de mora à taxa legal sobre a quantia acima referida, vencidos desde a data da propositura da ação até integral pagamento;

c) Absolveu-se a R. do demais peticionado;

d) Absolveu-se a A. do pedido reconvencional.

A R. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:

1. No dia 19 de março de 2008, a recorrida e o seu falecido marido celebraram com a recorrente o contrato de seguro do ramo vida, titulado pela apólice n° (…).

2- O falecido marido da recorrida subscreveu o questionário clinico relativo seguro do ramo vida, titulado pela apólice n° (…).

3-No questionário clínico subscrito pelo falecido marido da recorrida consta sobre o estado de saúde deste, que:

"- Não esteve hospitalizado por motivo de doença;

- Não é objeto de vigilância médica e não toma medicamentos regularmente;

- Não se submeteu a exames médicos;

- Não se submeteu a intervenção cirúrgica (incluindo biopsia);

- Não sofreu, nem sofre de cancro.

14-Verificam-se todos os pressupostos da anulabilidade do contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice n° (…) (artigo 429° do Código Comercial).

15-0 falecido marido da recorrida subscreveu o questionário clínico após este ter sido integralmente preenchido,

16-0 falecido marido da recorrida assumiu as respostas sobre o seu estado de saúde constantes do questionário clínico.

17-0 questionário clinico não constitui documento assinado em branco (artigo 378° do Código Civil).

18-A recorrente, a recorrida e o seu falecido marido convencionaram que o questionário clínico devia ser reduzido a escrito.

19-As declarações escritas constantes do questionário clínico prevalecem sobre as declarações verbais anteriores sobre o estado de saúde do falecido marido da recorrida (artigo 223° do Código Civil).

20-Na proposta relativa ao seguro de vida titulado pela apólice n° (…), consta a indicação da opção de cobertura C (2 segurados a 50%) e com capital seguro de 95.000,00€.

21.-A opção C de cobertura implica que o capital seguro corresponda a metade do capital mutuado em dívida emergente do contrato de mútuo associado ao contrato de seguro de vida titulado pela apólice n° (…).

22-Nos presentes autos não se encontra provado o valor em dívida ao Banco emergente do contrato de mútuo associado ao contrato de seguro de vida titulado pela apólice n° (…), na data do óbito do marido da recorrida.

23-0 ónus da prova do valor em divida ao Banco emergente do contrato de mútuo associado ao contrato de seguro de vida titulado pela apólice n° (…), incumbia à recorrida.

24- Prova que a recorrida não produziu.

25-Na sentença recorrida decidiu-se condenar a recorrente no pagamento ao Banco da quantia de 41.748,78€, apesar de não se ter provado o valor em dívida ao Banco emergente do contrato de mútuo associado ao contrato de seguro de vida titulado pela apólice n° (…).

26 - Na sentença recorrida ao decidir-se pela condenação da recorrente no pedido e pela absolvição do recorrido do pedido reconvencional, violou – se o disposto nos artigos 429° do Código Comercial e 223°, 342°, no 2, e 378° do Código Civil.

27 - Termos em que, deve conceder-se inteiro provimento ao presente recurso de apelação, e em consequência, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão em que se decida absolver a recorrente do pedido e condenar a recorrida no pedido reconvencional, como é de inteira Justiça.

A apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO

As questões a apreciar neste recurso são as seguintes: validade do contrato de seguro de vida objeto dos autos; direito à reversão dos prémios de seguro por parte da seguradora.

Primeira questão (validade do contrato de seguro)

O tribunal a quo deu como provada, e não foi questionada, a seguinte

Matéria de facto

1. A Autora foi casada com Luís (…) (art. 3º da p.i.).

2. Luís (…) nasceu em 31 de Março de 1948 (art. 20º da p.i.)

3. No âmbito do referido matrimónio, o então casal contraiu um financiamento junto do Banco, vindo o mesmo a ser concedido, mediante escritura de mútuo com hipoteca celebrada em 13 de Maio de 2008, no montante de €95.000,00 (arts. 4º e 6º da p.i).

4. O financiamento destinou-se à aquisição de um prédio urbano sito em Oeiras, na Rua (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o nº (…) e inscrito na matriz sob o art. (…) (arts. 5º da p.i e 36º da contestação).

5. Para tanto foram negociados com o Banco os termos em que o mútuo viria a ser concedido (art. 7º da p.i).

6. Nesse âmbito, mediante sugestão da gestora de conta do Banco, E (…), que deu conta das respectivas vantagens para a contratação do empréstimo, a Autora e o seu marido subscreveram uma proposta de seguro de vida, na qualidade de clientes/segurados, no âmbito do “Seguro de Vida Grupo Temporário Contributivo” celebrado pelo Banco, na qualidade de tomador do seguro, e pela Ré, na qualidade de seguradora, proposta aceite pela Ré, mediante apólice nº (…), cujas condições particulares e gerais foram juntas à contestação como doc. nº2, a fls. 67 e segs., e se dão integralmente reproduzida, o qual salvaguardaria o Banco, enquanto beneficiário, quanto ao reembolso de 50% do valor do mútuo, caso ocorresse algum sinistro (arts. 9º da p.i e 6º da réplica, 10º a 13º da contestação).

7. Deixando ao mutuário sobrevivo em caso de falecimento de um deles, a salvaguarda do pagamento do remanescente do empréstimo em falta, na proporção da quantia segura (art. 10º da p.i).

8. A proposta respeitante ao contrato de seguro foi subscrita pela Autora e marido em 19 de Março de 2008 (art. 6º da contestação).

9. Na referida proposta, junta à contestação como doc. 1 e que se dá por integralmente reproduzida, consta a indicação da opção de cobertura C (2 segurados a 50%) e com o capital seguro de €95.000,00 (art. 9º da contestação).

10. A opção C de cobertura implica que o capital seguro corresponda a metade do capital mutuado em dívida emergente do contrato de mútuo associado ao contrato de seguro de vida titulado pela apólice nº (…) (art. 14º da contestação).

11. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 03 de Abril de 2008 e posterior à assinatura da proposta de seguro, E (…) da agência de Paço d’ Arcos, contactou telefonicamente a Autora e procedeu ao questionário clínico da Autora e do marido (art. 17º da p.i em parte, e 3º da réplica).

12. Na ocasião a Autora respondeu às questões colocadas, respondendo afirmativamente à questão de saber se fumava, e informou E (…) acerca do episódio clínico vivido pelo marido, transmitindo que este tinha sofrido adenocarcinoma do recto e tinha sido sujeito a intervenção cirúrgica no IPO para remoção dessa massa neoplásica no intestino, após o que os exames feitos tinham revelado ausência de perigo (arts. 18º da p.i e 2º da réplica em parte).

13. No dia 03 de Abril de 2008, a Autora e o marido deslocaram-se à agência a pedido de E (…), para assinar documentação relativa ao empréstimo e seguro, e, conjuntamente com a assinatura de outros documentos, limitaram-se a assinar o questionário clínico junto como doc. nº 4, a fls. 25 e 26, e que se dá por inteiramente reproduzido, sem o ler previamente, o qual se mostrava pré-preenchido nos termos que dele constam (art. 17º da p.i. em parte).

14. Na data em que o questionário clínico foi respondido verbalmente pela Autora ao telefone, já o falecido Luís (…) tinha sofrido de adenocarcinoma do recto (art. 22º da contestação – parcialmente confessado).

15. Na referida data o falecido Luís (…) tinha sido hospitalizado (art. 23º da contestação).

16. Era objecto de vigilância médica (art. 24º, 1º parte, da contestação - confessado).

17. Tinha sido submetido a exames médicos (art. 25º da contestação - confessado).

18. Tinha sido submetido a intervenção cirúrgica (art. 26º da contestação - confessado).

19. Na data da assinatura da proposta de seguro e na data da assinatura do questionário o falecido Luís (…) tinha conhecimento do seu estado de saúde (art. 30º da contestação).

20. Em 04/01/2008 a Dra. S (…) do IPO de Lisboa, havia subscrito o relatório médico subsequente a exame anátomo-patológico, junto à contestação como doc. nº 4, a fls. 87, e que se dá por inteiramente reproduzido, acerca de Luís (…), onde se pode ler, além de mais: “Documentam-se alterações reparativas em relação com polipectomia anterior não se observando aspectos de displasia nem infiltração neoplásica” (arts. 19º da p.i e 19º da contestação).

21. Em 25/03/2009 a Prof. P (…) do IPO de Lisboa, subscreveu o relatório médico junto à contestação como doc. nº 5, a fls. de fls. 88, acerca de Luís (…), subsequente a exame anátomo-patológico e que se dá por inteiramente reproduzido, onde se pode ler, além de mais: Trata-se de status pós polipectomia por adenocarcinoma em adenoma (…) há alterações reparativas epiteliais e da lâmina própria relacionáveis com polipectomia anterior, mas não há tecido de neoplasia nesta amostra. A amostra foi processada na totalidade” (art. 20º da contestação).

22. Luís (…) faleceu em 24 de Junho de 2011 (art. 12º da p.i).

23. No seu certificado de óbito consta: “causa directa: doença que levou directamente à morte: adenocarcinoma do reto devido a metastização hepática” (art. 18º da contestação).

24. No caso do falecido Luís (…) ter declarado no questionário clínico que padecia de adenocarcinoma do recto, que era objecto de vigilância médica, que tinha sido hospitalizado e submetido a intervenção cirúrgica e ter declarado que tinha sido submetido a exames médicos, a Ré teria recusado a celebração do contrato de seguro, ou, no mínimo, submeteria o mesmo a termos e condições diversos daqueles em que o celebrou (art. 29º da contestação).

25. Com referência ao contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice nº (…) foram pagos prémios de seguro no valor total de €4.057,27 (art. 74º da contestação).

26. Só em 16/09/2011, a Ré tomou conhecimento dos relatórios médicos referentes ao falecido Luís (…) juntos à contestação como docs. nºs 4 a 6, os quais lhes foram remetidos pela Autora (art. 43º e 44º da contestação).

27. Por carta datada de 28/09/2011, remetida à Autora, junta à contestação como doc. nº 7 e que se dá por integralmente reproduzida, a Ré declarou “(…) constata-se que à data de adesão ao seguro de vida o segurado era portador de quadro clínico susceptível de influenciar a verificação de risco (…) pelo que a partir da presente data o seguro é considerado nulo e de nenhum efeito” (arts. 15º e 16º da p.i e 34º da contestação).

O Tribunal a quo consignou ainda na sentença a seguinte

Matéria de facto não provada:

Não se provou:

1. A matéria alegada pela Autora constante dos arts. 18º da p.i. e 2º da réplica (apenas no que toca ao facto de também o marido da Autora ter informado a funcionária do Banco acerca do episódio clínico por si vivido);

2. A matéria alegada pela Ré nos arts. 16º (que o falecido tenha preenchido e subscrito o questionário clínico na data da subscrição da proposta de seguro), 17º (quanto a tais declarações terem sido efectuadas pela Autora ou por Luís (…), posto que se provou que ambos se limitaram a assinar o questionário pré-preenchido por outrem), e 24º, 2ª parte, da contestação.

O Direito

Está provado que em maio de 2008 a A. e o seu marido contraíram um empréstimo junto do Banco (…), tendo em vista a aquisição de um prédio urbano. Na mesma ocasião aderiram a um contrato de seguro de grupo, do ramo vida, que havia sido celebrado entre o aludido Banco e a ora R.. Nos termos dessa adesão a ora R., seguradora, obrigou-se a pagar ao tomador de seguro, beneficiário, o correspondente a metade do empréstimo em dívida, no caso do falecimento de um dos mutuários/segurados, ficando os aderentes, mutuários/segurados, obrigados a suportar o correspondente prémio de seguro. Aquando da assinatura da proposta de adesão ao seguro os mutuários/aderentes/segurados assinaram também um questionário clínico. Nesse questionário perguntava-se, nomeadamente, se os segurados já tinham sido hospitalizados, se eram objeto de vigilância médica, se tinham sido submetidos a exames médicos, se tinham sido sujeitos a intervenção cirúrgica. O questionário foi preenchido com resposta negativa a todas estas questões.

Ora, nessa ocasião, o marido da A. tinha feito exames médicos, tinha sido hospitalizado, fora alvo de intervenção cirúrgica ao intestino em virtude de cancro, era objeto de vigilância médica.

Em 24.6.2011 o marido da A. faleceu, em virtude de cancro.

A A. acionou o seguro de vida junto da R., mas esta arguiu a nulidade do contrato, ao abrigo do disposto no art.º 429.º do Código Comercial.

Com efeito, o aludido artigo, que se encontrava em vigor à data da adesão da A. e do seu marido ao aludido seguro de grupo (foi revogado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16.4, que consagrou o atual regime jurídico do contrato de seguro e entrou em vigor em 01.01.2009), dispunha o seguinte, sob a epígrafe “Consequência das declarações inexactas ou reticentes”:

Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.

§ único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio.”

Está aqui em causa a viciação da vontade da seguradora, que aceitou cobrir o risco de ocorrência de um sinistro com base numa avaliação de circunstâncias que não correspondia à realidade, de molde que, se à seguradora tivesse sido transmitida a situação real, não teria contratado ou fá-lo-ia em condições diferentes das efetivamente negociadas.

Embora a lei apelide o vício em causa de nulidade, é unânime o entendimento de que se está, face aos interesses em presença, de uma anulabilidade (vide, v.g., acórdãos do STJ, de 02.12.2013, processo 2199/10.9TVLSB.L1.S1 e de 27.3.2014, processo 2971/12.5TBBRG.G1.S).

In casu a seguradora veio a descobrir que o segurado, aquando da celebração do contrato, padecia de uma situação clínica mais gravosa do que aquela que constava no questionário clínico que subscrevera, situação que não podia deixar de conhecer. Daí que, conforme se provou, se na resposta ao questionário constasse a situação real, “a Ré teria recusado a celebração do contrato de seguro, ou, no mínimo, submeteria o mesmo a termos e condições diversos daqueles em que o celebrou” (n.º 24 da matéria de facto).

Ora, a A. defende-se afirmando que informara, verbalmente, a funcionária do BES, gestora de conta, dos aludidos factos respeitantes ao marido e que ela e o marido não tinham preenchido o questionário clínico, ou seja, o mesmo foi-lhes entregue já preenchido, tendo-o assinado sem o lerem.

Esta versão dos factos ficou provada (vide n.ºs 11, 12 e 13 da matéria de facto).

Significa isto que a seguradora deverá ser obrigada a cumprir o contrato?

Cremos que não.

Contrariamente ao alegado pela apelada e, aparentemente, considerado na sentença recorrida, o banco não é comissário, intermediário ou representante da R. na outorga do seguro. O Banco (…) é uma das partes no contrato de seguro, mais precisamente o seu tomador (alínea b) do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 176/95, de 26.7), tendo acordado com a R. a constituição de um seguro de grupo, definido no Dec.-Lei n.º 176/95, de 26.7, como “seguro de um conjunto de pessoas ligadas entre si e ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum” (alínea g) do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 176/95), neste caso na modalidade de seguro de grupo contributivo (“seguro de grupo em que os segurados contribuem no todo ou em parte para o pagamento do prémio” – alínea h) do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 176/95).

Conforme se pondera no acórdão do STJ, de 09.7.2014 (processo 841/10.0TVPRT.L1.S1), o contrato de seguro de grupo caracteriza-se pelo facto de a sua formação se registar em dois momentos distintos: num primeiro momento, é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador do seguro e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo.

Esta peculiar relação triangular (tomador do seguro, seguradora, aderente/segurado) em que se estrutura o seguro de grupo determina particularidades, no que concerne ao regime das cláusulas contratuais gerais, previsto no Dec.-Lei n.º 446/85, de 25.10 (com as alterações legais publicitadas). Com efeito, do disposto no art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 176/95 e, atualmente, no art.º 78.º do Dec.-Lei n.º 72/2008, resulta que a obrigação de comunicação, esclarecimento e explicitação das cláusulas contratuais gerais do contrato, que nos contratos de seguro “bidimensionais” recaem sobre a seguradora, nos contratos de seguro de grupo incidem sobre a tomadora do seguro, a menos que algo diferente resulte das estipulações das partes.

No que se refere à repercussão na esfera jurídica da seguradora da omissão culposa do dever de informação e esclarecimento a que estava vinculado o banco/tomador do seguro aquando da adesão das pessoas seguras, o STJ tem entendido, reiteradamente, que os efeitos de tal omissão não se comunicam ou transmitem à seguradora, em termos de lhe ser oponível a amputação do contrato da cláusula contratual geral não comunicada (vide, v.g., STJ, 25.6.2013, processo 24/10.0TBVNG.P1.S1; 09.7.2014, processo 841/10.0TVPRT.L1.S1; 20.5.2015, processo 17/13.5TCGMR.G1.S1, todos consultáveis im www.dgsi.pt).

Poderia aventar-se a responsabilização da seguradora em termos objetivos, invocando-se o regime da responsabilidade do comitente por atos do comissário ou dos representantes legais ou auxiliares, decorrentes das previsões normativas dos artigos 500.º e 800.º do Código Civil. Ter-se-ia em conta a existência de interesses comuns entre a seguradora e o tomador do seguro, frequentemente elementos do mesmo grupo empresarial, qualificando-se a atividade do banco como intermediário ou angariador na celebração dos concretos contratos com os aderentes, aí se encontrando fundamento normativo para imputar à seguradora as consequências da atuação irregular do seu associado e mediador na comercialização do produto financeiro em causa. Porém, e essa tem sido a jurisprudência reiterada do STJ, tal visão prático-económica do fenómeno do seguro de grupo não pode, sem mais, “alterar a estrutura e fisionomia jurídica fundamentais desse tipo negocial, assente numa relação contratual básica estabelecida entre duas entidades (tomador de seguro/seguradora), colocadas em plano de total paridade jurídica (o contrato de seguro acordado entre ambas não pode obviamente configurar-se como contrato de adesão), nenhuma das quais se pode considerar juridicamente como intermediária, auxiliar ou comissário da outra no momento da subscrição das concretas adesões ao clausulado estabelecido” (STJ, acórdão de 25.6.2013, processo 24/10.0TBVNG.P1.S1, supra citado).

Revertendo ao caso dos autos, provou-se que a A. e o seu marido se limitaram a assinar, sem o lerem, o questionário clínico cuja cópia consta a fls 25 e 26 dos autos, o qual fora preenchido por outrem e foi assinado juntamente com outros documentos. Assim, o banco não cumpriu o dever de garantir que a contraparte tinha plena consciência e compreensão das declarações que emitia e das obrigações daí decorrentes. Mais, provou-se que no questionário clínico constavam respostas que eram diferentes daquelas que a A. havia prestado, verbalmente, à funcionária do banco.

Contudo, como se disse, a seguradora é alheia a tal comportamento da tomadora do seguro. Aliás, sendo o banco/tomador do seguro beneficiário da obrigação de pagamento desencadeada pelo sinistro, a procedência da pretensão da A. favoreceria o banco prevaricador (deixando este de correr o risco decorrente de eventuais dificuldades de cumprimento do contrato de mútuo, por parte da mutuária sobrevivente, decorrentes do falecimento do outro mutuário), à custa da R.. Sendo certo que a A. e o marido não estão inteiramente isentos de censura, ao assinarem um documento sem o lerem, tanto mais que tal ocorreu não no âmbito de uma transação de consumo corrente, mas se inseria em negócio de particular relevo para qualquer pessoa, seja a contração de um encargo de valor avultado, destinado à aquisição de um imóvel. E o documento que assinaram sem ler era facilmente identificável, assim como era facilmente percetível a sua finalidade e relevância. Tal questionário, junto a fls 25 e 26 dos autos, era composto por apenas duas folhas e encontrava-se redigido, como se vê pelo seu exame, de forma facilmente percetível, tanto quanto às perguntas como às respostas que nele já constavam.

Afigura-se-nos, assim, que a pretensão da A. deve improceder.

Segunda questão (direito à reversão dos prémios de seguro por parte da seguradora)

A anulação de um negócio importa a destruição dos seus efeitos, retroativamente, devendo, em regra, cada parte restituir aquilo que recebeu (art.º 289.º n.º 1 do Código Civil).

Porém, nos termos do § único do art.º 429.º do Código Comercial, “se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio.”

A má-fé pressupõe, aqui, o dolo, ou seja, a perceção da falsidade, por ação ou omissão, da declaração emitida (v.g., acórdão do STJ, de 27.3.2014, processo 2971/12.5TBBRG.G1.S).

Ora, como decorre da matéria provada, a A. e o seu marido assinaram o questionário clínico sem o lerem, não tendo tido a perceção das desconformidades nele existentes em relação à situação clínica do marido da A., situação clínica que conheciam. Assim, a sua conduta é, tão só, qualificável de negligente.

Daí que a pretensão reconvencional da R., de reversão dos prémios de seguro a seu favor, deva improceder.

DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e consequentemente revoga-se a sentença recorrida e em sua substituição:

1.º Julga-se procedente a exceção de anulabilidade do seguro do ramo vida supra identificado e consequentemente absolve-se a R. do pedido;

2.º Julga-se a reconvenção não provada e improcedente e, consequentemente, absolve-se a A. do pedido reconvencional.

As custas, tanto na primeira instância como na apelação, são a cargo de ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento.


Lisboa, 17.12.2015

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

Olindo dos Santos Geraldes