Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
108/15.8JALRA-A.L1-3
Relator: ORLANDO NASCIMENTO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ADVOGADO
SEGREDO PROFISSIONAL
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
PROVA INDICIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2016
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA O PRESIDENTE
Decisão: DEFERIDA
Sumário: 1. A constituição de advogado como arguido, só por si, não integra os pressupostos de derrogação do segredo profissional definido e delimitado pelo art.º 92.º do EOA, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro, permitida pelos art.ºs 180.º, n.º 2, do C. P. Penal, 76.º, n.º 4 do EOA e 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, se os fatos que lhe são imputados, em si mesmos e na conexão com os documentos apreendidos a fato que constitua crime, imputável ao advogado reclamante e/ou aos seus clientes, se apresentam demasiado vagos, de baixa densidade ao nível, quer da sua materialidade, por muito genéricos, quer da sua imputação subjetiva, permitindo aceitar a sua alegação de consulta, de trabalho de advogado, por contraposição a participação na conceção e execução do crime.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

I-Relatório:


Em execução de mandado de busca e apreensão no âmbito de inquérito criminal em que são investigados os crimes de fraude fiscal, associação criminosa, branqueamento, corrupção e falsificação de documentos, p. e p. pelos art.ºs 89.º, 103.º e 104.º do RGIT e art.ºs 299.º, 368.º-A, 371 a 374.º e 256.º, do C. Penal, emitido para “Escritório ... Advogados, sito na Av.ª ...Lisboa, local de trabalho de ...”, foi elaborado auto no inicio do qual consta que “O buscado foi constituído arguido, prestou TIR e foi-lhe facultada a possibilidade de contactar com o seu advogado, tendo o mesmo contactado telefonicamente com o Dr. ..., o qual informou estar a acompanhar uma diligência, mas que se deslocaria ao local buscado, assim que possível”, tendo sido apreendidos os objetos nele identificados.

O defensor do arguido apresentou reclamação, nos termos do disposto no art.º 77.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), invocando que os documentos apreendidos se encontram sujeitos à proteção do segredo profissional por se tratar de instrumentos de uso pessoal, como acontece com o telemóvel (Doc. 1), que dará acesso a informação que nada tem a ver com o objeto da investigação, respeitando à vida pessoal do arguido e clientes que não são arguidos, com os DOC. 2 a 8, que respeitam às relações com clientes que não são arguidos e como os DOC. 8 a 13, que constituem troca de correspondência eletrónica no exercício da sua atividade profissional de advogado.

A Exm.ª Magistrada do Ministério Público, pronunciou-se dizendo que “..foi realizada uma aturada pesquisa documental informática, por forma a só apreender os elementos cuja análise julgamos imprescindível para objeto da presente investigação...” e que “Relativamente aos dados pessoais ou íntimos do buscado, é nosso entender que a sua proteção se encontra perfeitamente acautelada por força do disposto no art.º 179.º do CPP e do art.º 17 e 18, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que para aquele artigo da Lei Processual Penal remetem, em que cabe ao Juiz de Instrução em exclusivo e em primeira mão, efetuar a triagem da prova apreendia eliminando a atinente àqueles dados. No que toca à prova que integra elementos protegidos pelo sigilo profissional, considera-se legitima a reivindicação ora formulada pelo ilustre mandatário do arguido, promovendo-se que a prova em questão seja selada e remetida ao Tribunal da Relação, após a sua apreensão. No que toca ao telemóvel apreendido, pelas razões invocadas pela Defesa do arguido, promove-se que seja primeiramente feita uma cópia sem visionamento do conteúdo, a qual após selada, deverá ser remetida juntamente com o resto do objeto da apreensão ao Tribunal da Relação de Lisboa (art.º 135.º do CPP), restituindo-se o respetivo equipamento ao arguido com a maior urgência possível, tendo em conta o invocado”.

O Mm.º Juiz, depois de invocar a impossibilidade de analisar no ato de apreensão cada um dos documentos, incluindo o telemóvel, em ordem a aprender apenas o material indiciário com interesse para os autos, manteve a apreensão dos documentos, a selagem dos documentos 2 a 13 e a extração de cópia do conteúdo do telemóvel (DOC. 1), facultando ao arguido o prazo de 10 dias para fundamentação da reclamação.

Posteriormente, como consta a fls. 229 a 232, foi feita cópia da informação contida no telemóvel e este entregue ao arguido.

O advogado reclamante apresentou a fundamentação prevista no n.º 3, do art.º 77, do EOA, pedindo o levantamento da apreensão de todos os documentos, com fundamento em que os mesmos respeitam às relações profissionais com os seus clientes e em que aqueles que respeitam à sua relação profissional com a SAD em causa não integram a prática de qualquer crime, por parte do reclamante, mais pedindo que, caso assim se não entenda, relativamente aos documentos 1 e 2, que os mesmo sejam expurgados de toda a informação relacionada com outros clientes, em ordem a acautelar a obrigação de reserva, que poderá ser posta em perigo, nomeadamente com a possibilidade de constituição de assistente, de qualquer órgão de comunicação social, nos termos da interpretação que vem sendo dada ao disposto no art.º 68.º, n.º 1, al. e), do CPP, com avultados danos para o arguido e para a sociedade de que é sócio.

Mais concretamente, em síntese, aduz o reclamante que, nos termos do art.º 76.º, n.ºs 1, 2 e 3, do EOA a correspondência de advogado não pode ser apreendida, e que tal regra sofre apenas a exceção prevista no art.º 76.º, n.º 4 do EOA e no art.º 180.º, do C. P. Penal, sendo pressupostos da apreensão, a constituição de arguido e a indiciação da autoria do crime referenciado pelo Ministério Público (MP9, no caso a prestação de serviços à SAD, pelo que todos os outros documentos estão protegidos pelo segredo profissional.

Mais aduz Ainda que, uma vez que o MP lhe imputa a intervenção na constituição da SAD, a elaboração de aditamentos a contratos entre SAD treinadores e jogadores e a prestação de consulta sobre encerramento de contas ano fiscal 2015/2016, a apreensão de documentos só será admissível nestas três situações, todos os outros não podendo ser apreendidos todos os outros documentos por não estarem relacionados com a prática de qualquer ilícito criminal.

E assim:

- Quanto ao DOC. 1, telemóvel, que contém informação pessoal e profissional, fotografias, vídeos, acesso a caixa de correio eletrónica, mensagens, não é admissível que venham a ser analisados os conteúdos do aparelho, extravasando a “cópia cega” a preservação de eventuais comunicações com as pessoas envolvidas na investigação dos presentes autos, sendo certo que desses conteúdos não se poderá retirar a prática de qualquer ilícito criminal pelo que a cópia cega ser eliminada.
- Quanto ao DOC. 2, 13 cadernos pautados formato A 5, neles constam as anotações de cariz pessoal e profissional relativas a todos os clientes, indiscriminadamente, não respeitando apenas à SAD, devendo ser devolvidos mesmo na parte relativa à SAD, uma vez que se limitou a executar o trabalho solicitado pelo cliente, sem intervir na prática de qualquer ilícito criminal, reunindo documentos, minutando contratos e tendo sido abordado relativamente ao encerramento das contas do ano fiscal 2015/2016, que termina a 30/6/2016, não se antevendo que tenha intervindo ou contribuído para a prática de qualquer ilícito criminal, pelo que deve manter-se o sigilo profissional, nos termos do art.º 180.º, n.º 2, do C. P. Penal.
A Entender-se o contrário deveriam ser retiradas apenas as páginas em questão, devolvendo-se os originais dos cadernos.
- Quanto aos DOC. 3, deslocações à ..., DOC. 4 Organizational and legal matters, DOC. 5, carta de administrador judicial, DOC 6, pasta de arquivo contendo documentos, DOC. 7, pasta de arquivo contendo documentos, DOC. 8, pasta com documentos, DOC 9, pen “Intenso” 32 GB, DOC 10, cópia forense de ficheiros, retirados do sistema informático da “... Associados...”, DOC 11, correio eletrónico em formato “pst” guardado em pen “Intenso, DOC. 12, documentos alocados em software de gestão documental e DOC. 13, documentos alocados em software de gestão documental, atenta a trilogia de fatos que sustentou a realização da busca, uma vez que o arguido se limitou a executar o trabalho solicitado, não intervindo na prática de qualquer crime, esses documentos estão protegidos pelo sigilo profissional.

O Exm.º Magistrado do MP respondeu à fundamentação da reclamação dizendo, em síntese, que existe derrogação do segredo profissional do advogado sempre que se trate de matéria do foro criminal relativamente à qual o advogado tenha sido constituído arguido, que o reclamante foi constituído arguido por referência aos fatos vertidos na promoção que acompanhou os mandados de busca e apreensão, de que se destacam os fatos dos art.ºs 12.º, 19.º, 29.º, 32.º, 34.º, 38.º, 41.º, 42.º, 44.º e 51.º, “...fatos concretos e objetivados nos produtos resultantes de interceções telefónicas autorizadas judicialmente nos autos...”, indiciando a colaboração ativa do arguido com o esquema de evasão fiscal, estando afastada a hipótese de recurso à constituição de arguido para efeitos da busca e apreensão a escritório de advogado.

Quanto à documentação apreendida foi a mesma objeto de seleção, por palavras-chave e pela colaboração do arguido, com vista a recolher apenas a que tenha interesse para os autos, embora com as limitações do momento, propondo-se efetuar com brevidade a análise e ponderação integral e definitiva, designadamente para efeitos do disposto no art.º 186.º, n.º 1, do C. P. Penal.

O Mm.º Juiz de Instrução, a título do parecer estabelecido pelo n.º 3, do art.º 77.º, do EOA, declarou manter a apreensão.

Conhecendo.

O cerne da presente reclamação situa-se em saber se os documentos em causa nos autos não podem ser apreendidos por respeitarem, grosso modo, à atividade profissional de advogado do reclamante, encontrando-se resguardados pelo respetivo segredo profissional, por respeitarem à sua relação profissional com terceiros não arguidos nos autos e por aqueles que respeitam à sua relação profissional com a SAD em causa nos autos não integrarem a prática de qualquer crime, como pretende o reclamante, ou se existe derrogação do segredo profissional do advogado por se tratar de matéria criminal relativamente à qual o reclamante foi constituído arguido, por referência aos fatos vertidos na promoção que acompanhou os mandados de busca e apreensão, como pretende o MP.

Vejamos.

O segredo profissional do advogado é definido e delimitado pelo art.º 92.º do EOA, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro, situando-se o seu escopo, primordialmente, na defesa das condições de exercício das funções de advogado e da relação cidadão-advogado, constituindo um dever deste e não um direito.
Atenta a ratio legis da consagração legal de tal segredo profissional e a necessidade de harmonizar a sua prossecução com os valores inerentes ao exercício da ação penal, depois de criar o valor segredo, na vertente de proibição de apreensão de documentos, a lei processual penal estabelece duas exceções a essa proibição, sendo uma de natureza genérica, referente à relação advogado/cliente e a segunda relativa à conduta do advogado, em si mesma.

Pela primeira, consagrada no art.º 180.º, n.º 2, do C. P. Penal, é permitida a apreensão de documentos que “...constituírem objeto ou elemento de um crime” e pela segunda, consagrada no art.º 76.º, n.º 4 do EOA e art.º 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, é permitida a apreensão de correspondência comum e eletrónica quando a mesma “...respeitar a facto criminoso relativamente ao qual o advogado tenha sido constituído arguido”.
Esta segunda exceção apresenta um pressuposto específico, de natureza processual, qual seja, a constituição do advogado como arguido, sendo que o elemento comum às duas exceções é constituído, grosso modo, pela sua conexão a fato que constitua crime, imputável ao cliente ou ao advogado.

No caso sub judice o reclamante foi constituído arguido, pelo que o pressuposto processual da segunda exceção se encontra preenchido.

O que releva, pois, para apreciação da reclamação é a existência ou inexistência de conexão dos documentos apreendidos a fato que constitua crime, imputável ao advogado reclamante e/ou aos seus clientes.

Na apreciação dessa vexata questio, estando o processo em fase de inquérito criminal e portanto numa fase de fatos e meios de prova de natureza indiciária, não podemos deixar de considerar a dialética que resulta dos fatos a que se reporta o MP, como indiciadores de ilícito penal e consequentemente da apreensão de documentos, e a trilogia de ações a que o próprio reclamante reporta a sua constituição como arguido, a saber, a sua intervenção na constituição da SAD, a elaboração de aditamentos a contratos entre SAD treinadores e jogadores e a prestação de consulta sobre encerramento de contas ano fiscal 2015/2016, porventura relativa aos mesmos fatos a que se reporta o MP, O que não podemos confirmar uma vez que no auto de busca e apreensão consta apenas que “O buscado foi constituído arguido, prestou T. I. R. e foi-lhe facultada a possibilidade de contatar advogado...”.

Os fatos que podemos considerar para efeitos de averiguação da existência da conexão, supra referida, entre os documentos e os ilícitos criminais em causa nos autos são, pois, os referenciados pelo MP na sua resposta, ou seja, os descritos nos art.ºs 12.º, 19.º, 29.º, 32.º, 34.º, 38.º, 41.º, 42.º, 44.º e 51.º da promoção que antecedeu os mandados de busca e apreensão.

Ora, compulsados tais fatos, constatamos que os mesmos se apresentam demasiado vagos, de baixa densidade ao nível, quer da sua materialidade, por muito genéricos, quer da sua imputação subjetiva, colaboração do reclamante (art.º 38.º- “sistema que foi concertado”) que pode ser apenas conhecimento e que permite aceitar a sua alegação de consulta, de trabalho de advogado, por contraposição a participação na conceção e execução do crime.

A apreensão dos documentos, pela sua extensão e falta de identificação, contrasta com esta indefinição da conduta indiciariamente imputada ao reclamante, não permitindo também estabelecer uma conexão razoável entre eles e a conduta imputada aos restantes arguidos, apresentando-se, pois, como desproporção em relação aos valores em presença, pela sua falta de incisão, por ser tudo muito genérico e conclusivo.

A falta de identificação dos documentos por referência ao ilícito penal a que se reportam, aliada à pouca objetividade desse mesmo ilícito, é gerador de dúvida razoável sobre a verificação do pressuposto de funcionamento das exceções da inapreensibilidade, a que acima nos referimos, qual seja, a conexão dos documentos a fato que constitua crime, imputável ao cliente ou ao advogado.

Nesta situação de dúvida, a admissibilidade da apreensão dos documentos, pela derrogação do segredo profissional do advogado, mais se assemelha à sua eliminação pelo simples ato processual da constituição de arguido.

Aduz ainda o MP que a legalidade da apreensão será assegurada pelo funcionamento do disposto no art.º 186.º, n.º1, do C. P. Penal, com a restituição dos documentos que não se encontrem em situação de apreensibilidade.

Afigura-se-nos, todavia, que a restituição de objetos/documentos apreendidos, por desnecessários para a investigação, se não pode confundir com a sua suscetibilidade de apreensão, a qual deve ser estabelecida num momento anterior ou contemporâneo da apreensão.

Em relação aos documentos apreendidos, pelas razões acima expostas, relativas à identificação do ilícito penal e conexão dos documentos com esse mesmo ilícito, essa apreensibilidade não está suficientemente demonstrada, pelo que deve prevalecer o segredo profissional do advogado reclamante.

Pelo exposto se defere a reclamação, ordenando-se a entrega ao reclamante dos documentos originais e reproduções que deles tenham sido feitas, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 77.º do EOA.
Sem custas.
Notifique.



Lisboa, 4 de julho de 2016.


(Orlando Nascimento – Vice-presidente)