Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8344/14.8YYLSB-A.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: EMBARGOS À EXECUÇÃO
NOVAÇÃO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Só é legítimo concluir pela extinção da primitiva obrigação cambiária, por novação, e constituição de uma nova, quando a vontade de novar se manifeste de forma expressa, ainda que não se exija formalidade específica para o efeito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa.

  
I.–RELATÓRIO:


Executado/apelante: Carla...
Exequente/apelado: Caixa...

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Causa de pedir.
A execução foi instaurada contra a embargante e contra Armando... para pagamento da quantia de €55.544,72, oferecendo como título executivo uma livrança.

A livrança dada à execução foi subscrita pela sociedade Jaime... Lda, entretanto declarada insolvente por decisão transitada em julgado; a livrança foi avalizada pela embargante e pelo Armando... para garantia de um contrato de abertura de crédito em conta corrente mas já não da sua posterior alteração, ocorrida em 6 de abril de 2012, na qual a embargante não teve intervenção; a exequente reflete nesse título cambiário a cobrança da dívida do contrato assinado em 6 de abril de 2009 e não àquele relativamente ao qual a embargante deu o seu aval.

Por omissão da exequente, a embargante ficou impedida de exercer o seu direito de sub-rogação perante a subscritora da livrança que foi declarada insolvente pelo que nos termos do art. 653º do Cód. Civil, “a embargante ficou desonerada da fiança”.
Com o novo acordo de renovação do contrato ocorreu novação da obrigação, tornando nula a anterior e extinguindo-se o aval prestado.
A exequente preencheu a livrança abusivamente.

Contestação.
A exequente contestou, impugnando alguns dos factos invocados pela embargante; pugna pela improcedência dos embargos.

Julgamento.
Considerando-se que “o estado dos autos permite que se conheça, desde já, do mérito da causa, pois tal não depende de prova a produzir”, proferiu-se decisão, em 27-02-2017, que concluiu omo
segue:
“Pelo exposto, julgo a presente oposição à execução mediante embargos de executado improcedente e, consequentemente, determino o prosseguimento da execução apensa intentada por Caixa... contra Carla ...
De acordo com o disposto no artigo 306º do Código de Processo Civil, fixo à causa o valor indicado pelas partes de €55.544,72.
Custas pela embargante (cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Registe e notifique”.
 
Recurso.
Não se conformando a executada embargante apelou, formulando conclusões conforme fls. 113 -115 dos autos [ [1] ].

Foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar.

II.–FUNDAMENTOS DE FACTO.

Releva o seguinte circunstancialismo, que o tribunal de primeira instância deu por assente:
1.– O exequente intentou contra os executados, em 13.08.2014, a ação executiva a que os presentes embargos se encontram apensos para pagamento da quantia de €55.544,72, apresentando como título executivo um documento onde se inscreve a frase "no seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança à Caixa... ou à sua ordem, a quantia de cinquenta e cinco mil, quatrocentos e sessenta e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos", com local e data de emissão em “Lisboa, 2009.04.06” e vencimento a “2014.07.25” (cfr. fls. 13 da execução);
2.– A embargante apôs a sua assinatura no verso da livrança referida em 1 após a expressão “bom por aval ao subscritor” (fls. 13 da execução). 
3.– No âmbito da sua atividade, em 06.04.2009, a exequente celebrou com a sociedade Jaime... Lda e com a embargante contrato de abertura de crédito em conta corrente até ao limite de €50.000,00, pelo prazo de 6 meses, com inicio em 04.09.2009 e termo em 06.10.2009, renovável automaticamente por iguais períodos, nas condições estipuladas contratualmente, salvo denúncia das partes (cfr. fls. 25 a 32 deste apenso).
4.– As partes acordaram que o capital efetivamente utilizado vence juros, durante o primeiro semestre, à taxa anual de 4,8612%, sendo a taxa anual efetiva (TAE) de 5,2407%, e o spread de 3,00%, sendo que o spread base definido para operações de abertura de crédito em conta corrente/integrado flexível foi fixado, à data, em 7,0% (cfr. fls. 27 – cláusula 3ª).
5.– As partes acordaram que o saldo devedor apurado na conta corrente seria amortizado integralmente no termo do prazo contratual ou suas renovações (cfr. fls. 29 – cláusula 4ª).
6.– Para garantia das obrigações decorrentes do contrato e eventuais renovações, foi entregue à exequente a livrança dada à execução, subscrita pela sociedade Jaime... Lda e avalizada pela aqui embargante (cfr. fls. 30 e 31 – cláusula 7ª).
7.– Em 06.04.2012, a exequente e a sociedade Jaime... Lda acordaram na alteração das condições do contrato referido em 3, passando o capital efetivamente utilizado a vencer juros à taxa anual nominal (TAN) de 8,514%, sendo a taxa anual efetiva (TAE) de 11,7941%, e o spread de 7,35%, sendo que o spread base definido para operações do mesmo tipo foi fixado, à data, em 12,01% (cfr. fls. 36 a 38 deste apenso).
8.– Em 06.04.2012, o capital efetivamente utilizado pela sociedade Jaime... Lda era no valor de €43.000,00 (cfr. fls. 36 deste apenso).
 
III–FUNDAMENTOS DE DIREITO.
1.– Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do novo C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, ponderando as conclusões de recurso, impõe-se apreciar apenas se ocorreu a novação da obrigação, como sustenta a apelante.

2.– A apelante entende que em face da factualidade dada por assente sob o número 7 se impunha concluir que “estamos perante uma Novação da Obrigação Objectiva” invocando que “[e]m face das referidas alterações produzidas no dia 06/04/2012, (vide documento nº3), no referido acordo, objectivamente ocorreu uma alteração da causa da prestação a que se encontravam adstritos os avalistas. Antes, a Recorrente e o Sr. Armando..., como Avalistas eram responsáveis pelo pagamento nessa qualidade e solidariamente, e agora, passou a ser responsável, como único Avalista o Sr. Armando..., em virtude da responsabilidade que assumiu de novo” (Conclusões D) e E), devendo concluir-se que “dos Factos Provados Resulta, em termos interpretativos, a vontade negocial de Novar”, pelo que “a livrança dada à execução não reúne todos os requisitos de certeza, exigibilidade e liquidez” (conclusão H).

Lê-se na decisão recorrida:

Da Novação Obrigação
A embargante alega, igualmente, que o aval se extinguiu com a alteração contratual acordada entre a exequente e a sociedade Jaime... Lda, que corresponde a uma novação da obrigação. 
Nos termos do artigo 857º do Código Civil, “Dá-se a novação objectiva quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga”.
Desde logo, constata-se que este acordo de alteração das cláusulas contratuais foi celebrado apenas entre a exequente, a sociedade Jaime... Lda e o outro avalista Armando..., sem a intervenção da aqui embargante.
Cremos, porém, que não estão verificados os pressupostos da invocada novação.
Com efeito, a novação constitui uma modalidade de extinção das obrigações, a qual decorre da constituição de uma nova obrigação que vem ocupar o lugar da primeira. A vontade de contrair nova obrigação em substituição da antiga deve, todavia, ser expressamente manifestada, segundo o artigo 859º do Código Civil.
“I– A novação consiste na convenção pela qual as partes extinguem uma obrigação, mediante a criação de uma nova obrigação em lugar dela.
II– Essencial para haver novação, é que os interessados queiram realmente extinguir a obrigação primitiva por meio de contracção de uma nova obrigação.
III– A obrigação só é nova quando haja uma alteração substancial dos seus elementos constitutivos.
IV– Se a ideia das partes é a de manter a obrigação, alterando apenas algum ou alguns dos seus elementos acessórios, não há novação, mas simples modificação ou alteração da obrigação.
V– A vontade de contrair a nova obrigação deve ser expressamente manifestada” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-03-2009, processo n.º 08A3353).

São, assim, requisitos da novação: (i) a intenção de novar, expressamente declarada; (ii) que a obrigação primitiva seja válida e não se encontre extinta ao tempo em que a segunda foi contraída, e (iii) que a nova obrigação se constitua validamente.
No caso dos autos, temos um contrato de abertura de crédito em conta corrente que definiu os termos em que o capital utilizado venceria juros e quais as taxas destes juros e temos um acordo posterior que alterou as taxas dos juros devidos, acordo esse que foi celebrado apenas entre devedor e credor originários e um dos avalistas. 

Nesse acordo de alteração, todavia, não se fez qualquer menção à garantia pessoal prestada pela aqui embargante nem foi expressamente manifestada a intenção de substituir as obrigações previamente estabelecidas.

Com efeito, a alteração acordada diz respeito apenas às taxas de juros, não tendo causado qualquer alteração às restantes condições contratuais. Por exemplo, não alterou o montante máximo do crédito concedido, nem os prazos de pagamento, nem, bem assim, as garantias prestadas.

Assim, verifica-se que a dívida permanece a mesma, não tendo sido extinta por constituição de novas obrigações, não ocorrendo a novação invocada”.

Concordamos com esta avaliação, em face dos factos dados por assentes.

Nos termos do art. 859º do Cód. Civil – diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem – “a vontade de contrair uma nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada”, aferindo-se o conceito de declaração expressa de acordo com o disposto no art. 217º e por confronto com a “declaração tácita”: a declaração é expressa “quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade” e “tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”.

O animus novandi é, precisamente, um dos casos em que a lei exige que a vontade seja expressamente exteriorizada, não bastando, portanto, a verificação de factos indiciadores de comportamento concludente. Ou seja, admitindo-se, a partir do art. 217º, “a formação de negócios jurídicos na base de declarações tácitas” [ [2] ], a novação configura uma hipótese em que não é legítimo assim considerar.

Como também não basta que estejamos perante uma declaração clara e unívoca, partilhando-se, pois, a posição sustentada por Antunes Varela quando, criticando Vaz Serra, refere que “é expressa a declaração quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, nos termos do nº 1 do art. 217º” [ [3] ] [ [4] ].

No contexto assinalado, não pode aceitar-se a posição da apelante, que faz decorrer a intenção de novar não de qualquer declaração dos contraentes nesse sentido, mas apenas da circunstância da apelante não ter tido intervenção no acordo realizado de 6 de abril de 2012, sendo que a livrança foi subscrita no âmbito de acordo anterior, nada permitindo concluir que ocorreu a extinção da primitiva obrigação, tanto mais que, como obviamente decorre do processo, não foi entregue aos executados a livrança que estes subscreveram, que se manteve na posse da exequente e, como o tribunal de primeira instância referiu, a alteração ocorrida é pontual, reportando-se, basicamente, à taxa de juros contratualmente fixada.

Acrescente-se que as partes salvaguardaram, expressamente, na cláusula 14ª deste acordo “os efeitos já produzidos pelo referido contrato”, reportando-se àquele em que a embargante também teve intervenção e no âmbito do qual subscreveu a livrança apresentada como título executivo, inexistindo elementos que permitam considerar que o exequente, com a celebração do novo acordo, tenha prescindido ou renunciado ao exercício da ação cambiária com base nessa livrança, por via da invocada novação.
Assim sendo e não tendo sido suscitada qualquer outra questão pela apelante, em sede de recurso, conclui-se que não tem fundamento a pretensão recursiva.
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.



Lisboa, 27-02-2018


                                       
(Isabel Fonseca)
(Maria Adelaide Domingos)                                       
(Ana Isabel Pessoa)



[1]Os ficheiros PDF, pelas limitações de manipulação que acarretam, são imprestáveis como apoio para o texto a elaborar, como é sobejamente conhecido, motivo pelo qual nos limitamos a remeter para o suporte papel que consta do processo, procedimento que se adota sempre que o Sr. Advogado e os Srs. Funcionários Judiciais não cuidam de remeter ficheiro adequado ao processamento de texto, como aconteceu no caso.
[2]Meneses Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3ª edição, Almedina, 2007, Coimbra, p. 544.
[3]Escreve o autor (Código Civil Anotado, vol. II, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1981, p.131: “Era esta já esta a doutrina do Código de 1867 (cfr. art. 803º). E pareceu conveniente não a alterar, não obstante Vaz Serra, por inspiração dos Códigos Francês (art. 1273º) e italiano (art. 1230º), ter sugerido que se substituísse a declaração expressa por uma declaração claramente manifestada (est. cit., nota 74). Esta fórmula seria bastante mais imprecisa do que a do Código de 1867. Não se viu, por isso, qualquer vantagem na substituição, devendo considerar-se manifestamente contrária à determinação da lei a tese sustentada por Vaz Serra, ao arrepio do texto do art. 859º e dos trabalhos preparatórios, de que a vontade de novar não precisa de ser manifestada expressa ou directamente, bastando que seja clara ou inequívoca”.
Já para Paulo Mota Pinto (Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, 1995, Coimbra, p. 493) a questão fundamental diz respeito ao que pode/deve entender-se por declaração expressa, para os efeitos ora em apreço. Refere o autor: “analisando a aplicação que a jurisprudência faz de algumas disposições onde se exige uma declaração expressa, bem como algumas referências doutrinais correspondentes, verificamos que ela se revela muitas vezes bastante livre, e (mesmo quando se remete também para o critério geral do art. 217, nº1) o limite do “expresso” acaba por ser concretizado de modo adequado a cada norma, tendo em conta as finalidades da exigência legal e possuindo, portanto, um sentido nem sempre uniforme. Nomeadamente, exige-se por vezes apenas uma declaração clara, unívoca, sendo então este o sentido que toma o termo “expresso”. O mesmo autor, obra cit., p. 498 refere: “Vaz Serra, analisando o fundamento da exigência de uma manifestação “expressa” da vontade de substituir a antiga obrigação, que é feita pelo artigo 859º, defendeu que à palavra “expressamente” não deve ser atribuído aqui o mesmo sentido geram do artigo 217º. Em conformidade com a necessidade de certeza relativamente à existência da novação ter-se ia antes de tratar de uma declaração “clara”, unívoca (sendo isto, aliás, o que propunha o anteprojecto respectivo)”.       
Para Almeida Costa, a intenção de novar “não se presume”, não admitindo ainda uma  “manifestação tácita”, limitando-se depois o autor a remeter para o art. 217º, Direito das Obrigações, 11º edição Revista e actualizada, Almedina, 2008, p. 1113 e nota 1.
[4]Segue-se o que já escrevemos no ac do TRC de 23-06-2009, processo:46/07.8TBSPS-A.C1, acessível in www.dgsi.pt.