Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
781/12.9TVPRT.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sendo impugnado o julgamento de facto feito pelo Tribunal a quo, o cumprimento do disposto no art. 640º, nº1, alínea a) do novo C.P.C. (art. 685º-B, nº1, alínea a) na anterior redacção) não se não se compadece com a mera descrição de raciocínios valorativos e genéricos, que até podem deixar antever os pontos de discordância relativamente ao Meritíssimo Juiz, mas não permitem, com suficiente precisão, alcançar em que termos o recorrente pretende que seja alterada a decisão sobre a matéria de facto por parte desta Relação, nos vários sentidos possíveis (eliminação, aditamento e modificação de texto).

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa  

1. RELATÓRIO:

A A intentou a presente acção declarativa de condenação contra a R pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 1742,67€ a título de indemnização por danos emergentes e 72.000,00€ por lucros cessantes, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento em razão dos prejuízos que a autora alega ter tido em virtude da ocorrência verificada no voo (...) que com partida de Londres prevista para as 7H40m do dia 14.8.2010 e chegada a Lisboa prevista para as 10h15m , que terá determinado que os  seus clientes não conseguissem embarcar no voo da (...) de Lisboa com destino ao Porto com partida prevista para as 13h45m que a Autora já tinha contratado e cujos custos já havia suportado. Mais alegou ter suportado as despesas e reembolsado aos seus clientes pelas quantias que descrimina e que a imagem da autora ficou afectada perante a sua cliente Associação Cultural e Recreativa (...) da qual os passageiros em causa faziam parte , acarretando-lhe tal facto as perdas de ganho que invoca.
A ré contestou impugnando essencialmente os prejuízos alegados.
Realizou-se audiência final e proferiu-se decisão que concluiu nos seguintes termos:
“Por todo o exposto julga-se a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e em consequência se condena a Ré a pagar à Autora a quantia de € 750,00 ( setecentos e cinquenta euros) no mais a absolvendo do peticionado.
Custas por Autora e Ré na proporção do decaimento”.
Não se conformando a autora apelou formulando conclusões, tendo a ré apresentado contra alegações, conforme fls. 162 a 175 e 184, respectivamente [ [1] ].
Proferido o despacho que antecede [ [2] ], veio a apelante apresentar o requerimento de fls. 203-206.
Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO:

A primeira instância deu por provada a seguinte factualidade:
A) A autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a actividade de agência de viagens e turismo, nomeadamente promoção e venda de viagens no país e no estrangeiro, realização de serviços de excursões em autocarro próprios e alugueres, do que faz prática normal e habitual, com intuito do lucro.
B) Por sua vez, a ré é uma empresa de transporte aéreo de passageiros e mercadorias, do que faz, também, prática habitual e regular com intuito do lucro;
C) No exercício da sua referida actividade comercial, a autora programou e promoveu uma viagem organizada – vulgo pacote turístico - à Austrália , com visita às cidades de Sidney, Darwin e Auckland, com partida no dia 24.07.2010 do Porto, aeroporto Francisco Sá Carneiro, e regresso no dia 14.08.2010 ao mesmo aeroporto.
D) Esta viagem organizada, promovida pela autora, foi contratada por um grupo de 30 pessoas.
E) Para a realização da viagem que programou e promoveu, a autora contratou com a ré as viagens aéreas incluídas no pacote acima referido , para o seu grupo de clientes.
F) Nesse sentido, a ré foi contratada para assegurar o voo de Portugal para o destino e respectivo regresso, com escalas predefinidas, em horários disponibilizados pela ré.
G) Foi com os horários disponibilizados pela ré que a autora programou e contratou os restantes serviços previstos no programa, nomeadamente transferes, voos internos, etc.
H) As viagens aéreas (em Portugal) deste grupo de clientes do Porto para Lisboa e, no regresso, de Lisboa para o Porto foram contratadas com a (...).
I) De acordo com o contratado com a ré, tal viagem iniciou – se em 24 de Julho de 2010, com partida de Lisboa, ( aeroporto da Portela) e terminus em 14 de Agosto do mesmo ano, no mesmo aeroporto.
J) A autora contratou a aquisição do pacote completo de voos à ré, tendo os voos intercontinentais sido operados pela R, entre Lisboa – Londres – Bangkok - Sidney, com as referências, respectivamente, (...) e (...), com os horários seguintes:
- 24/JUL – BA507 – LISLHR – 1345 1615
- 24/JUL – BA009 – LHRBKK – 2200 1515#1
K) No regresso, os voos entre Sidney – Londres ( com escala em Bangkok) e Londres – Lisboa, com as referências, respectivamente, BA010 e (...) com os horários seguintes:
- 13/AUG – BA010 – SYDLHR – 1640 0625#1
- 14/AUG – BA500 – LHRLIS – 0740 1015
L) Por sua vez, os voos internos na Austrália foram operados pela Quantas (Sidney- Melbourne – Alice Springs e Ayers Rock – Cairns - Darwin – Auckland-Sidney) com referências e horários seguintes:
- 26/JUL – BA009 – BKKSYD – 1810 0605#1
- 30/JUL – QF419 – SYDMEL – 0900 1035
- 01/AUG – QF796 – MELASP – 0840 1105
- 03/AUG – QF1854 - AYQCNS – 1530 1830
- 06/AUG – QF1874 – CNSDRW – 1910 2115
- 09/AUG – QF829 – DRWSYD – 0145 0625
- 09/AUG – QF055 – SYDAKL – 0925 1430
- 13/AUG – QF114 – AKLSYD – 1230 1400
M) No mencionado dia 14.08.2010, de acordo com o convencionado, encontrava – se programado o voo de Londres para Lisboa, com a mencionada referência (...), com partida prevista para as 07h40 e chegada prevista para as 10h15;
N) O voo proveniente de Sidney (escala em Bangkok), referência BA010, chegou a Londres com atraso em relação à hora prevista , pelas 6h46m;
O) Os clientes da autora, chegados a Londres no referido dia 14.08.2010, provenientes de Sidney ( escala em Bangkok) , com o referido atraso, dirigiram–se ao balcão de transferências a fim de obterem cartão de embarque, onde foram informados de que o voo já estava em “overbooking”, (venda de mais lugares do que os disponíveis), não havendo, em consequência, lugares para os clientes da autora no voo programado e contratado e previamente pago.
P) Devido ao atraso ocorrido e ao alegado “overbooking”, os seus clientes, em Londres, não puderam regressar no voo contratado e previamente pago, tendo sido divididos por vários voos da seguinte forma:
- 5 Clientes foram reencaminhados para o voo Londres – Lisboa, referência BA 506
- 2 Clientes foram reencaminhados para o voo Londres – Lisboa, referência TP 355
- 5 Clientes foram reencaminhados para o voo Londres – Lisboa, referência TP 359
- 8 Clientes foram reencaminhados para o voo Londres – Lisboa, referência TP 502
-10 Clientes foram reencaminhados para o voo Londres – Amesterdão – Lisboa referência BA440, com o horário de partida às 15h55 de Londres e chegada a Lisboa às 22h40
Q) A autora, antecipadamente, na organização e programação da viagem referida, havia contratado a ligação aérea de Lisboa para o Porto no voo da (...), referência TP 1960, com partida prevista para as 13h45 e chegada para as 14h40.
R) Também devido ao vertido em P) nenhum dos passageiros conseguiu embarcar no voo inicialmente previsto e contratado, de Lisboa para o Porto, no referido dia 14.08.2010, pelas 13h45, razão que levou a Autora a procurar alternativas para que os seus passageiros regressassem ao Porto;
S) Tendo feito deslocar um seu autocarro do Porto a Lisboa para recolher passageiros e levá-los ao Porto.
T) Os clientes da autora, aderentes à acima mencionada viagem, integram – se num grupo denominado Associação Cultural e Recreativa (...), que, para além de outras actividades, tem como escopo a organização de viagens entre os seus elementos, serviços estes que eram entregues na sua totalidade à autora, face ao prestigio que angariou junto a tal Associação.


III. FUNDAMENTOS DE DIREITO:

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do novo C.P.C., diploma a que aludiremos sempre que não se fizer menção de origem [ [3] ] – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3. No caso, impõe-se apreciar da impugnação do julgamento de facto feita pela apelante, o que nos reconduz a uma questão prévia, que é a de saber se a apelante deu cumprimento aos ónus a que alude o art. 640º.

2. Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – art. 640º, nº 1, que tem correspondência com o que anteriormente dispunha o art. 685º-B, nº1 da lei processual civil. 
Entendemos, como a recorrida, que a autora/apelante não deu cumprimento ao disposto no referido preceito porquanto não cuidou de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o sentido da decisão pretendida, indicando, com precisão, quais os factos que o tribunal devia ter dado como provados e erradamente omitiu, com vista ao seu aditamento e consequente ampliação da factualidade assente.
O que passa pela concreta individualização/descrição desses factos com reporte para a numeração sob a qual são identificados na sentença ou no despacho prévio à mesma, que fixou a factualidade assente e respectiva fundamentação, tendo por base os artigos da petição inicial e da contestação, nas hipóteses em que é dispensada a elaboração da base instrutória.
Essa concretização não se compadece com a mera descrição de raciocínios valorativos e genéricos, que até podem deixar antever os pontos de discordância relativamente ao Meritíssimo Juiz, mas não permitem, com suficiente precisão, alcançar em que termos o recorrente pretende que seja alterada a decisão sobre a matéria de facto por parte desta Relação, nos vários sentidos possíveis (eliminação, aditamento e modificação de texto).
No caso, a apelante espraia-se na discordância relativamente ao juízo valorativo feito pela Meritíssima Juiz, aludindo à prova testemunhal e documental, indicando que o tribunal a quo “não valorou como devia a prova testemunhal produzida na audiência de discussão e julgamento”, ao ignorar parte do depoimento de algumas testemunhas, usando de “dualidade de critérios”, mas nunca diz, especificamente, quais os factos que o tribunal, com base nos elementos de prova que indica, devia ter dado como provados e não deu, ou seja, afinal, o sentido da decisão que pretende (fls. 150 do processo). Essa omissão é particularmente evidente ao longo das alegações, afirmando a apelante que diferente valoração e ponderação probatória “teria originado uma decisão diversa da que foi proferida”, sem nunca indicar o sentido dessa decisão (fls. 150).
Aliás, a apelante reporta-se sistematicamente ao pedido indemnizatório formulado, referindo que diferente valoração probatória conduziria à condenação da apelada no ressarcimento de prejuízos não considerados na sentença confundindo entre análise de facto e análise jurídica: impunha-se que indicasse concretamente, em primeira linha, quais os factos que a primeira instância devia ter dado como provado e não deu, deixando para momento posterior apreciar se esses novos (aditados) factos fundamentam (ou não) o pedido formulado.
Como se referiu no Ac. STJ de 13/07/2006, “com as normas atinentes à interposição de recurso e apresentação de alegações, pretendeu o legislador criar um conjunto de regras de natureza prática, a observar pelos recorrentes, que permitam ao Tribunal “ad quem” apreender, de forma clara, as razões fácticas e jurídicas que corporizam a dissidência relativamente ao julgado, de modo a que o Tribunal as aprecie com rigor: nem mais nem menos, do que é pedido, com ressalva das matérias oficiosamente cognoscíveis.
A exigência da apresentação de “conclusões” insere-se neste mesmo propósito mas desta feita, tendo especificamente em vista a apresentação de um quadro sintético – em resumo – das questões que se pretende ver apreciadas, de modo a que o Tribunal percepcione, rápida e facilmente, o fundamento do recurso, assim se assegurando, em última instância, “... a defesa dos direitos e a objectividade da sua realização” (cfr. Ac. T.C. nº 715/96 in D.R. II Série, de 18/3/97)” [ [4] ].
Assim sendo, porque o apelante omitiu por completo essa referência quer no corpo das alegações quer nas conclusões [ [5]  ], impõe-se a rejeição da impugnação feita quanto ao julgamento de facto.
Acrescente-se que, notificada para se pronunciar quanto à questão suscitada pela apelada – que, diga-se, é de conhecimento oficioso –, veio então a apelante indicar especificamente a factualidade cujo aditamento pretende ver introduzido, fazendo-o, no entanto, manifestamente, de forma inoportuna.
Efectivamente, o despacho que antecede não configura um convite ao aperfeiçoamento, limitando – se este tribunal a dar estrito cumprimento ao disposto no art. 655º do C.P.C., ouvindo a parte afectada sobre questão – alusiva à rejeição do recurso – suscitada pela apelada em articulado que não admitia resposta. Acrescente-se que o recurso da decisão da matéria de facto não consente a prolação de despacho de aperfeiçoamento, como decorre do confronto entre o art. 639º e 640º (mormente o disposto no nº 3 do art. 639º), tendo o legislador da reforma processual civil afastado claramente essa hipótese, exclusiva, agora, do recurso quanto à matéria de direito. O requerimento apresentado mais não configura senão um aperfeiçoamento das alegações de recurso, corrigindo agora a apelante o vício apresentado, o que nos parece evidente.
Em consequência, impõe-se a rejeição do recurso na parte atinente à impugnação da decisão da matéria de facto por parte da apelante.

3. Em face do exposto e porque a apelante não suscita qualquer outra questão, propugnando pela revogação da sentença recorrida em ordem a que se julgue totalmente procedente a pretensão indemnizatória formulada – que a primeira instância só parcialmente acolheu – no pressuposto da alteração da factualidade dada por provada o que, como decorre do exposto, não procede, mais não resta senão confirmar a sentença recorrida.
                                                          *
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Notifique.

                           
Lisboa, 17-03-2015

(Isabel Fonseca)
(Maria Adelaide Domingos)
(Eurico José Marques dos Reis)


[1] Os ficheiros PDF, pelas limitações de manipulação que acarretam, são imprestáveis como apoio para o texto a elaborar, como é sobejamente conhecido, motivo pelo qual nos limitamos a remeter para o suporte papel que consta do processo, procedimento que se adopta sempre que o Sr. Advogado e os Srs. Funcionários Judiciais não cuidam de remeter ficheiro adequado ao processamento de texto, como aconteceu no caso
[2] Com o seguinte teor: “Verifico que a ré apelada suscitou questão alusiva à rejeição do recurso por falta de cumprimento do “ónus indicado no artigo 640º do CPC, nomeadamente no seu nº1, alínea c)”, pelo que tem o apelante 10 dias para, querendo se pronunciar.
Notifique as partes”.

[3] Aprovado pela Lei 41/2013 de 26/06, em vigor desde 1 de Setembro de 2013.

[4] Proferido no processo 06S698 (Relator: Sousa Brandão), acessível in www.dgsi.pt

[5] Refira-se que as conclusões apresentadas são praticamente uma cópia do que se havia escrito no corpo das alegações.