Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
30642/16.6T8LSB.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
TRANSMISSÃO POR MORTE
CADUCIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1– A NRAU aplica-se aos contratos celebrados no âmbito da lei antiga, que subsistam à data da sua entrada em vigor, abrangendo os factos ocorridos na vigência da lei nova e não já da lei velha, sem prejuízo das normas transitórias.

2– No que à transmissão por morte concerne, aplica-se o disposto nos arts. 57 e 58 da NRAU, ainda que os contratos de arrendamento tenham sido celebrados antes da entrada em vigor do RAU, ex vi arts. 26, 27 e 28 do mesmo diploma, e não já o art. 1106 CC (redacção da Lei 6/2006 de 27/2 –NRAU-).

3– Tendo falecido a locatário, em 4/3/2016, não há lugar à transmissão do arrendamento para o seu filho, não obstante este residir com esta, há mais de um ano porquanto, o réu não alegou e, por maioria de razão, não logrou provar, ser portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, em consonância com o preceituado no art. 57/1 e) NRAU, operando-se a caducidade do contrato de arrendamento.

SUMÁRIO: (elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


LC intentou acção de despejo contra AS pedindo que fosse declarada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado, em 1/10/61 com AS e que, por sentença, de 22/7/92, foi transmitido a MS, relativo ao 3º andar esq. do prédio sito na Rua XX em Lisboa, com efeitos a partir de 4/3/16, data do óbito da inquilina e o réu condenado a restituir de imediato à autora o andar livre de pessoas e bens.

Alegou, em síntese, que é proprietária do andar descrito supra, propriedade adquirida por óbito de seus pais.

Em 1/10/61, os anteriores proprietários deram o andar de arrendamento a AS, tendo o direito ao arrendamento sido transmitido a sua mulher MS, por sentença de 22/7/92.

A inquilina faleceu, em 4/3/2016.

À data do falecimento residia no andar o seu filho, ora réu, que ali permanece recusando-se a entregar o andar.

Na contestação o réu, impugnou o alegado pela autora concluindo pela improcedência da acção e, consequentemente, declarar-se, por sentença a transmissão do direito ao arrendamento para o réu.

Alegou, em suma, que o contrato de arrendamento está submetido ao regime vinculístico, ou seja, por tempo indeterminado, não lhe sendo aplicáveis as normas do NRAU, mas sim as norams dos arts. 1099 e 1106.

O réu vive no locado desde que nasceu, habitava com sua mãe em economia comum, não possui outra habitação própria ou arrendada.

Dispensada a audiência prévia foi designado dia para julgamento.

Após julgamento foi prolatada sentença que julgando a acção procedente, decretou o despejo do imóvel, condenando o réu a entregá-lo à autora livre de pessoas e bens.
                             
Inconformado, apelou o réu, formulando as conclusões que se transcrevem:
1.– Impugna-se a decisão proferida, devendo os factos considerados como provados constantes da douta Sentença, serem considerados como prova suficiente de que o Réu, ao habitar com a primitiva arrendatária há mais de um ano, tal lhe confere o direito à transmissão do arrendamento.
2.– Isto porque estamos perante um contrato de duração indeterminada, ao qual lhe corresponde um regime diferente do que se encontra consagrado no art. 57 NRAU.
3.– Por força do regime ao caso directamente aplicável, a transmissão do arrendamento para o Réu, por óbito da primitiva arrendatária, deu-se automaticamente, por força das disposições vertidas nos art. 1099 e segs e 1106/1 alínea c) e nº 2 do CC.
4.– Consequentemente, não podiam ser aplicadas ao caso sub judice as disposições do art. 57 do NRAU, pois que tal seria desvirtuar a natureza vinculística do contrato de arrendamento em causa, natureza esta que prevalece sobre as disposições que com ela se encontrem em contradição, o que ocorre no caso vertente.
5.– O recorrente considera, assim, que o art. 57 do NRAU foi mal aplicado no caso vertente, estando por isso em causa uma situação de incorrecta aplicação do preceito legal devido.
6.– Assim, deve ser alterada a decisão proferida, por força da aplicação dos preceitos legais correctos e o réu absolvido do pedido.

Foram apresentadas contra-alegações pugnando o apelado/autor pela confirmação da decisão.

Foram apurados os seguintes factos pela 1ª instância:

1.– A autora é dona e legítima proprietária do prédio urbano em propriedade total sito na Rua XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº  0000 da freguesia dos Anjos e inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Penha de França sob o artigo 01 (anterior 07), propriedade que adquiriu por partilha por óbito de seus pais JC e MC.
2.– Em 01-10-1961, uns ante proprietários, JC, AC, JL e JA (AP 1 de 00 – doc. 1), na qualidade de Senhorios, deram de arrendamento a AS, ainda no estado de solteiro, para sua habitação, o terceiro andar esquerdo do supra identificado prédio.
3.– O direito ao arrendamento deste andar foi, posteriormente, transmitido à sua mulher, MS, por sentença de 22 de Julho de 1992, proferida nos Autos de Acção Especial de Divórcio por Mútuo por Consentimento, nº Y, do 2º Juízo do Tribunal de Família de Lisboa, ficando esta com todos os direitos e deveres do seu ex-marido e titular do contrato.
4.– A inquilina MS veio a falecer no dia 04 de Março de 2016, sendo a renda mensal a esta data de €109,00 (cento e nove euros).
5. À data da sua morte, encontrava-se a residir no locado o ora réu AS, seu filho, e do primitivo arrendatário, nascido em 12.10.1964, o qual ali permanece.
6. O réu tem procedido ao pagamento à autora do valor correspondente à renda do locado o que esta aceita, fazendo consignar nos recibos que a quantia é recebida pela “ocupação temporária” do locado.
7. À data da morte da sua mãe, o réu já vivia no locado há mais de um ano, não possuindo outra habitação própria ou arrendada.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Atentas as conclusões da apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 639 e 640 CPC – a questão  que cabe decidir é a de saber se há ou não lugar à transmissão do arrendamento para o réu.

Vejamos, então.

Transmissão do arrendamento para o réu

Dos factos apurados constata-se que entre o falecido ÂS e os anteriores senhorios, foi celebrado um contrato de arrendamento para habitação do 3º andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua X, em Lisboa, em 1961.

O direito ao arrendamento foi transmitido à sua mulher MS, por sentença de 22/7/92.

MS faleceu, em 4/3/2016.

À data da sua morte residia no locado o réu, que sempre com seus pais viveu (falecidos arrendatários eram pais do réu).

No entrementes, a posição do senhorio foi transmitida ao autor por óbito de seus pais.

Defende o apelante que apesar do contrato ter sido celebrado com o seu pai e não obstante ter ocorrido a transmissão do direito de arrendamento para sua mãe (acção de divórcio), houve lugar à transmissão, para si, do direito ao arrendamento, por decesso desta porquanto com ela vivia há mais de um ano, sendo-lhe aplicáveis as normas do arts. 1099 e 1106 CC e não já o art. 57 RAU.

O contrato de arrendamento foi celebrado, em 1961.

O novo regime do arrendamento urbano foi aprovado pela Lei 6/2006 de 27/2, cuja entrada em vigor ocorreu 120 dias após a sua publicação – art. 65 – ou seja, em 28/6/06.

A lei só dispõe para futuro…quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas quando dispuser directamente sobre o
conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo  dos  factos   que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já  constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor – art. 12 CC.

O princípio da aplicação prospectiva da lei assume, no aspecto prático duas faces distintas, mas complementares - a 1ª referida no  nº 1 do art. e a 2ª no nº 2.

A primeira é a que contempla os simples factos (factos juridicamente relevantes ou factos jurídicos). Nesse aspecto pode dizer-se que na falta de disposição em contrário, a lei só se aplica aos factos futuros, considerando como tais, os factos que se produzem após a entrada em vigor da nova norma.

A segunda face do princípio é a que respeita às relações jurídicas (especialmente relações jurídicas duradouras) que brotam daqueles factos.

Então, a lei nova aplica-se não só às relações jurídicas constituídas na sua vigência, mas também às relações jurídicas que, constituídas antes, protelem a sua vida para além do momento da entrada em vigor da nova regra – A. Varela, RLJ, 120 – 151.

O art. 60 NRAU revogou o RAU (DL 321-B/90 15/10) salvaguardando o disposto nas matérias dos arts. 26 e 28 (normas transitórias).

O art. 59 NRAU (Lei 6/2006 de 27/2) dispõe que: “O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto das normas transitórias.

Atentos os arts. citados, entende-se que a NRAU se aplica aos contratos celebrados no âmbito da lei antiga, que subsistam à data da sua entrada em vigor (lei nova), abrangendo os factos ocorridos na vigência da lei nova e não já da lei velha.

Assim, ao caso em apreço, aplica-se a lei NRAU, sem prejuízo das normas transitórias.

Em princípio, o contrato de locação caduca por morte do locatário – art. 1051 d) CC –, podendo, em determinadas situações, haver lugar à transmissão do direito ao arrendamento.
No que à transmissão por morte concerne, aplica-se o disposto nos arts. 57 e 58 da NRAU, ainda que os contratos de arrendamento tenham sido celebrados antes da entrada em vigor do RAU, ex vi arts. 26, 27 e 28 do mesmo diploma, e não já o art. 1106 CC (redacção da Lei 6/2006 de 27/2 - NRAU -), como pretende o apelante.

Estipula o art. 57/1 NRAU que: A transmissão por morte no arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: a) Cônjuge…; b) pessoa em união de facto …; c) ascendente …; d) Filho menor ou idade inferior a 26 anos …; e) Filho ou… maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

Quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles – nº 3. 

A transmissão a favor dos filhos…do primitivo arrendatário, nos termos dos números anteriores, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do nº 1 ou nos termos do número anterior – nº 4.

Este é um regime severo uma vez que afecta de forma violenta a expectativa jurídica de todos os que, no âmbito do RAU, constavam do elenco dos transmissários no caso do inquilino falecido não ser o originário.

Não obstante, este regime permite, em determinadas situações, a possibilidade do arrendamento se transmitir de novo, ou seja, permite a transmissão em mais de um grau do direito ao arrendamento por morte do primitivo arrendatário - cfr. art. 57 nºs 3 e 4 supra citado e transcrito.

Assim, quando ao primitivo arrendatário sobrevivam vários ascendentes, haverá transmissão por morte entre eles, do mais velho para o mais novo e deste para os filhos …do primitivo arrendatário.

A transmissão para os filhos … do primitivo arrendatário também terá lugar em caso de falecimento do cônjuge sobrevivo ou do unido de facto, beneficiários para quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.

Em ambas as situações necessário é que os beneficiários da transmissão em 2º grau continuem a residir no locado – cfr. art. 57 NRAU, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Editora Quid Juris, 2ª ed.

In casu, houve transmissão do direito ao arrendamento do primitivo arrendatário, pai do apelante, ÂS, para a sua ex-mulher, MS, mãe do réu, em 1992, na sequência de acção de divórcio, tendo esta, desde essa data até à sua morte, sido arrendatária do imóvel em questão.

No entanto, falecida que foi sua mãe, MS, o direito ao arrendamento não se transmitiu ao réu, não obstante este residir com esta, há mais de um ano,  porquanto o réu não alegou e, por maioria de razão, não logrou provar, ser portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, em consonância com o preceituado no art. 57/1 e) NRAU, operando-se a caducidade do contrato de arrendamento.
Destarte, falece a pretensão do apelante.

Concluindo:
1– A NRAU aplica-se aos contratos celebrados no âmbito da lei antiga, que subsistam à data da sua entrada em vigor, abrangendo os factos ocorridos na vigência da lei nova e não já da lei velha, sem prejuízo das normas transitórias.
2– No que à transmissão por morte concerne, aplica-se o disposto nos arts. 57 e 58 da NRAU, ainda que os contratos de arrendamento tenham sido celebrados antes da entrada em vigor do RAU, ex vi arts. 26, 27 e 28 do mesmo diploma, e não já o art. 1106 CC (redacção da Lei 6/2006 de 27/2 –NRAU-).
3– Tendo falecido a locatário, em 4/3/2016, não há lugar à transmissão do arrendamento para o seu filho, não obstante este residir com esta, há mais de um ano porquanto, o réu não alegou e, por maioria de razão, não logrou provar, ser portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, em consonância com o preceituado no art. 57/1 e) NRAU, operando-se a caducidade do contrato de arrendamento.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a sentença.
Custas pelo apelante.



Lisboa, 12-04-2018


(Carla Mendes)
(Octávia Viegas)
(Rui da Ponte Gomes)