Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
985/09.1TVLSB.L1-7
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
FACTORING
CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O Regulamento CE 44/2001 consagra um critério geral – o do domicílio do réu – e vários critérios especiais, podendo o autor escolher, para instaurar a acção, indistintamente qualquer um dos tribunais cuja competência lhe é atribuída pela aplicação de cada um desses critérios.
2. Constando do contrato que o pagamento dos créditos se realizará por meio de transferência bancária para as contas que ambas as partes comuniquem, e tendo a autora indicado para o efeito uma conta bancária domiciliada em Lisboa, encontra-se preenchido o critério especial previsto na al. a), do nº1 do art. 5º do Regulamento, que remete para o tribunal do lugar onde foi ou devia ser cumprida a obrigação em questão.
(sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

I. RELATÓRIO

  C S.A., instaura a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra B,
pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 115.950,00, acrescida de juros, à taxa legal, até integral e efectivo pagamento, sendo os vencidos no montante de € 26.298,22.
Para tal, alega, em síntese:
a Autora celebrou com a ré, em 14/7/1995, um contrato de Factoring Internacional, de fls. 32 a 38, mediante o qual ambas as partes assumem o risco de cobrança de créditos, gestão de carteira de devedores e diligências de cobrança dos créditos que uma tenha no país da outra;
em 21/1/2005, a autora celebrou com a firma M, S.A. um contrato de factoring, mediante o qual essa sociedade cedeu à autora os créditos resultantes de fornecimento de bens decorrentes da sua actividade comercial, que engloba os créditos sobre a sociedade Mt, S.A., com sede Espanha, pelo valor peticionado;
tais créditos estão englobados naquele contrato de Factoring Internacional, pelo que a ré será devedora das quantias tituladas nas facturas que identifica, pelo montante peticionado.
Citada, a ré contestou, excepcionando a incompetência internacional dos tribunais portugueses.
O autor replicou, propugnando pela improcedência da excepção de incompetência internacional.
Foi proferido despacho saneador que julgando procedente a excepção de incompetência internacional, declarou o tribunal internacionalmente incompetente para apreciar a presente acção, absolvendo a Ré da instância.
Inconformado com tal decisão, a Autora interpôs recurso de apelação, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pela 2ª Secção da  Vara Cível de Lisboa que absolveu o réu da instância, ao julgar procedente a excepção da incompetência internacional.
2. Considerou em síntese que, embora aplicável o Regulamento 44/2001 ao caso para determinação da competência, como aliás defendeu o recorrente, os tribunais portugueses não são competentes para apreciar a questão por não ser aplicável o art. 5º do Regulamento.
3. E a descrição registral efectuada em 18.06.1982 pelos requeridos não pode ser acolhida pela referida decisão, por ausência de certidão no processo que a comprovasse.
4. Ora, a recorrente intentou a acção declarativa de condenação com processo ordinário contra a ora recorrida peticionando 142.248,22 €.
5. Fundamentou o seu pedido, em suma, num contrato de factoring internacional, nos termos do qual ambas as partes assumem o risco de cobrança de créditos, gestão de carteira de devedores e diligências de cobrança de créditos que uma tenha no país da outra.
6. Nos termos deste contrato, não liquidou a recorrida à recorrente a dívida resultante das facturas cedidas à recorrente sobre a empresa Mt, S.A., com sede em Espanha.
7. Está em causa apenas a incompetência internacional.
8. Considera a douta sentença, em síntese, que o art. 5º do Reg. 44/2001 não é aplicável ao caso visto que as partes “não escolheram como lugar de cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato de factoring internacional celebrado em Lisboa, Portugal”.
9. No entanto, salvo o devido respeito, não é este o alcance do artigo em apreço, mas antes precisamente o oposto, por isso se dizendo na alínea a) do seu nº1, “onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”.
10. A obrigação em questão é o pagamento, pela recorrida à recorrente, do crédito decorrente do contrato de factoring internacional. Esta é uma obrigação concreta, pelo que o que está em causa não é determinar qual o local para cumprimento de todas as obrigações resultantes do contrato.
11. O pagamento devia ser feito na conta da recorrente, domiciliada em Portugal.
12. O local de cumprimento foi assim estipulado entre as partes.
13. A própria indicação de que o pagamento se realizará por ST denuncia logo que as partes quiseram estipular que o mesmo terá lugar em cada um dos domicílios do respectivo credor, atento o facto de ser uma transferência internacional.
14. No momento em que a prestação é exigível o seu local de cumprimento já se encontra determinado.
15. E ainda que se entendesse que nada se encontra estipulado quanto ao cumprimento da obrigação, o Código Civil, no seu art. 774º manda que a mesma se realize no domicílio do credor, no que toca a obrigações pecuniárias.
16. O credor ora recorrente, tem domicílio em Lisboa, Portugal, pelo que sempre seriam competentes para julgar a causa as Varas Cíveis de Lisboa.
Conclui pela revogação da sentença, prosseguindo os autos os seus termos subsequentes até final.
A Ré/recorrida apresenta contra alegações, nos seguintes termos:
O contrato de factoring internacional celebrado entre as partes é um contrato bilateral do qual resultam obrigações recíprocas para ambas as partes, nomeadamente, a cobrança de créditos detidos sobre clientes domiciliados em cada um dos respectivos países (Portugal e Espanha);
numa análise ao contrato celebrado facilmente se constata que a recorrente e a recorrida não convencionaram, nem estipularam o que entendiam por lugar do cumprimento das obrigações;
em tal contrato, as partes apenas estipularam que a forma de pagamento dos montantes cobrados seria efectuada através de transferência bancária, conforme disposto na clausula 7ª, parte final: “El envio de fondos se realizará via SWIFT a las contas que ambas comuniquem;
o sistema SWIFT mais não é do que um sistema informático criado com a finalidade de padronizar, dar segurança, rapidez e economia às operações bancárias internacionais, nomeadamente, responsabilizando-se pela segurança das mensagens interbancárias, desde o momento da sua transmissão pelo computador do banco emitente até à sua entrega no computador do banco destinatário, tudo isto através de processos informáticos de autenticação e criptografia;
assim, não é possível aplicar ao contrato em causa as regras especiais de competência internacional previstas no art. 5º, nº1, al. a) do Reg. 44/2001, pelo que a competência internacional tem de ser encontrada pela regra geral do seu art. 2º, sendo os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 707º, do CPC, há que decidir.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, a questão a decidir  é uma única:
1. Competência internacional do tribunal por força da al. a), do nº1, do art. 5º, do Regulamento (CE) 44/2001.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
            Competência internacional do tribunal – aplicabilidade da al. a), do nº1 do art. 5º do Regulamento (CE) 44/2001.
            A decisão recorrida e as partes aceitam a aplicação ao caso em apreço do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22.12.2000 – relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial –, cujas normas prevalecem sobre as normas de direito interno que regulam a competência internacional (arts. 65º e 65º-A, do CPC).
            A divergência entre as partes respeita tão só à aplicação, ou não, ao caso em apreço, da alínea a), do nº1 do art. 5º do Regulamento, questão que passamos a analisar.
Da conjugação dos arts. 2º, nº1 e 3º, nº1, do Regulamento, resulta que, para determinar a competência internacional, o legislador comunitário estabeleceu um critério geral – o do domicílio do réu – e vários critérios especiais (previstos nas Secções 2ª a 7ª do capítulo II), podendo o autor escolher, para instaurar a sua acção, indistintamente qualquer um dos tribunais cuja competência lhe seja atribuída pela aplicação de cada um desses critérios (e desde que o litígio não envolva uma situação de competência exclusiva prevista no art. 22º)[1].
Uma das disposições especiais que permitem intentar a acção num outro Estado contratante que não o estado do domicílio do demandado, consta da al. a) do nº1, do art. 5º, segundo a qual, em matéria contratual, o requerido pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deva ser cumprida.
Haverá que determinar, assim, em que lugar a obrigação peticionada na presente acção deveria ser cumprida.
Pelo contrato em causa, A. e R., ambas sociedades de factoring domiciliadas, uma em Portugal e outra em Espanha, assumiram o risco de cobrança dos créditos cedidos à outra de devedores domiciliados no seu país.
Segundo o autor/apelante, as partes estipularam no contrato o lugar de cumprimento das obrigações – o crédito cujo pagamento aqui reclama da Ré deveria ser pago em Portugal: segundo a clausula 7ª do contrato, “El envio de fondos se realizará via SWIFT a las cuentas que as partes comuniquen”, sendo que a A. indicou à Ré, para recepção do montante das facturas a sua conta bancária, domiciliada em Lisboa, Portugal.
Segundo a Ré/apelada, em tal clausula não se convenciona o lugar do cumprimento das obrigações, mas apenas que a forma de pagamento dos montantes cobrados se faria através de transferência bancária.
Segundo a Ré, “as partes apenas acordaram em que a prestação característica do contrato de factoring internacional, designadamente o pagamento de créditos, seriam efectuados por transferência bancária utilizando o sistema SWIFT”.
E do teor dos art. 7º e 8º, do contrato celebrado entre as partes, resulta claramente que, quer os montantes das facturas cobradas quer o pagamento das facturas não pagas, será efectuado através de SWIFT para as contas que ambas as partes comuniquem.
Com a presente acção, a A. pretende que a Ré proceda ao pagamento à A. de determinadas facturas que foram cedidas à A. por um cliente espanhol, pagamento que, a ser devido, seria efectuado pela referida via.
E a Ré não impugna o alegado facto de que tal pagamento seria a efectuar na conta da recorrente, domiciliada em Lisboa, facto que temos de ter como assente, pelo que, será este o local de cumprimento da obrigação em causa na presente acção.
Ou seja, embora na clausula 7ª – “o envio de fundos realizar-se-á através de SWIFT para as contas que ambas as partes comuniquem” – não se estipule directamente o lugar onde a obrigação deveria ser cumprida, mas tão só o modo de pagamento, tendo a autora indicado para o efeito uma conta bancária domiciliada em Lisboa, determinado ficou o local de cumprimento da obrigação da ré aqui em causa.
E tal determinação é suficiente para efeitos da al. a), do nº1, do art. 5º do Regulamento, uma vez que esta não se reporta ao “lugar de cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato”, mas tão só ao lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deva ser cumprida.
E, note-se que, ainda que assim se não entendesse – ou seja, ainda que se considerasse inexistir qualquer acordo entre as partes quanto ao local de cumprimento da obrigação em questão – tal omissão não importaria, sem mais, a inaplicabilidade do foro previsto na al. a), do nº1 do art. 5.
Tal falta de acordo, apenas nos remeteria para os critérios legais supletivos respeitantes ao local de cumprimento, havendo que averiguar qual a lei substantiva aplicável ao contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida (determinação a efectuar por referência à Convenção de Roma, aplicável a todos os contratos celebrados até 17.12.2009).
Concluindo, podendo, em matéria contratual, uma pessoa com domicílio ou sede num Estado-Membro ser demandada noutro Estado-Membro perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão – art. 5º, nº1, al. a) do Regulamento), e devendo a obrigação em causa na presente acção ser efectuada mediante transferência bancária para uma conta da A. sedeada em Lisboa, Portugal, encontrava-se o autor legitimado a instaurar a presente acção junto das Varas Cíveis de Lisboa.
Será assim de proceder o recurso interposto pela autora, reconhecendo-se a competência internacional dos tribunais portugueses.


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e reconhecendo-se a competência internacional das Varas Cíveis de Lisboa para conhecer da presente acção.

Custas pela recorrida, com taxa de justiça nos termos da Tabela I-B Anexa ao RCP.

Lisboa, 14 de Dezembro de 2010

Maria João Areias)
Luís Lameiras)
Roque Nogueira)
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[1] Cfr., neste sentido, Acórdão do TRC de 28.09.2010, disponível in http://www.dgsi.pt.