Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
64/18.0YHLSB.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
EXTINÇÃO DA SOCIEDADE
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
SUPRIMENTO JUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - É insanável a falta de personalidade judiciária, excepção feita ao preceituado no art. 14 CPC.
2 - O dever de gestão processual não pressupõe que o juiz se substitua às partes no cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Em 19/2/18, A  […-Transitários, Lda., na sequência de providência cautelar contra si intentada por B [Transports P. … Sas e C [ P. … Portugal em que foi declarada a inversão do contencioso, intentou acção declarativa de simples apreciação contra as rés identificadas supra, pedindo que se declarasse:
- que a autora não violou nenhum pacto de concorrência com a D  [… Transitários e Transportes, Lda. ] , porque os seus sócios e gerentes nada assinaram e alheios a esta sociedade;
- que quando a autora se constituiu a sociedade D … Transitários e Transportes, Lda. já não existia, trabalhando esta na altura com a denominação social da 2ª ré C, razão porque não podia existir confundibilidade de um nome que já não estava no mercado e, consequentemente, concorrência desleal;
- e se decretasse a caducidade da providência, ex vi art. 371/3 CPC, e que correu termos sob o nº 302/14.9YHLSB, 1º Juízo deste Tribunal (Tribunal da Propriedade Intelectual).
Na contestação, as rés excepcionaram, entre outros, a falta de personalidade jurídica e judiciária da autora sustentando que, aquando da propositura da acção, a sociedade fora dissolvida e estava extinta, em 6/1/16, concluindo pela procedência da excepção dilatória e, consequentemente, pela absolvição da instância.
 Foi a autora notificada da contestação, bem como para juntar certidão (Registo Comercial) - fls. 346, II vol.
A autora não replicou tendo junto certidão – fls. 350/351, II vol.
Após, foi proferida decisão que, julgando procedente a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária – extinção da sociedade autora, em 21/12/15 -, absolveu as rés da instância – fls. 352 II vol.
Inconformada a autora apelou formulando as conclusões que se transcrevem:
A. Vem o presente recurso interposto do Saneador-Sentença, proferido pelo 2.º Juízo do Tribunal de propriedade Intelectual, em 15.10.2018, no âmbito do processo acima identificado, em que é Autora a aqui Recorrente, e no qual o Tribunal a quo julgo procedente a excepção de falta de personalidade judiciária da Autora, absolvendo as Rés da instância.
B. A Recorrente – apesar de confirmar a circunstância de, em 21.12.2015, ter sido declarada extinta – não se conforma com a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo no sentido de considerar verificada a excepção de falta de personalidade judiciária, sem permitir a habilitação, nos presentes autos, dos seus sócios. Vejamos,
C. Nos termos do artigo 11/1 CPC, a “personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte”. Reforçando a importância deste pressuposto processual, o artigo 278 CPC determina que: “1 - O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância: (…) c) quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária (…)”.
D. Sucede que o n.º 3 do sobredito artigo 278 CPC aligeira a rigidez do n.º 1 do mesmo normativo legal, prevendo que as excepções dilatórias (como a falta de personalidade judiciária) não determinam de per se a absolvição da instância porquanto: “As excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6 (…)”.
E. No que concerne ao leque de poderes e deveres do Tribunal à luz do artigo 6/2 CPC, a jurisprudência, em particular no Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA, de 08.11.2007, admite que o juiz tem: “(…) o poder de realizar ou ordenar oficiosamente o apuramento da verdade quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (…) (vide, ainda, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre).
F. A mens legislatoris do CPC é a do primado da justiça material sobre a forma, algo particularmente reforçado com a «reforma do processo civil de 2013, posto que, lembrando as palavras de LEBRE DE FREITAS, “(…) a finalidade do processo não é alcançada (…) quando, na acção declarativa, o tribunal não profere uma sentença de mérito (…) e o processo termina com uma sentença de absolvição da instância” (vide, ainda, Paulo Pimenta, Miguel Teixeira de Sousa e Paula Costa e Silva);
G. Aditando JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE que: “A norma (…) pode evitar a absolvição da instância, na perspectiva de prevalência da decisão de mérito sobre a decisão baseada em questões processuais”.
H. Conforme é referido no Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, de 27.02.2014: “A falta de personalidade judiciária não determina, automaticamente, a extinção da instância quanto à parte que carece de personalidade, desde que possa suprir-se, conforme resulta claramente do artigo 6/2 CPC (…) impondo ao juiz o dever de, oficiosamente, determinar a realização dos actos processuais necessários à regularização da instância.” (destaques nossos).
I. No mesmo sentido, o Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, de 12.11.2015: “(…) o art. 6/2 concede ao juiz o poder, que é vinculado, de providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância, devendo ainda convidar a parte a praticar os actos de que dependa a sanação, quando eles só por ela possam ser praticados. (…) a falta, em geral, dum pressuposto processual deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância, que só tem lugar quando a sanação for impossível ou quando, dependendo ela da vontade da parte, esta se mantiver inactiva” (destaques nossos).
J. Ao proferir a decisão recorrida – sem o convite prévio à sanação do mencionado pressuposto processual –, o Tribunal a quo proferiu uma decisão meramente formal, ao arrepio das boas práticas processuais actuais que propugnam a indagação de uma solução que coloque o fulcro no primado do fundo sobre a forma, violando os artigos 6/2 e 278/3 CPC.
K. Na verdade, a jurisprudência é unânime em concluir que a falta de personalidade judiciária de uma sociedade extinta pode ser sanada pela intervenção, no processo, dos seus últimos sócios. E isto é válido independentemente de a sociedade extinta ser Autora ou Ré numa acção judicial (vide Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, de 04.12.2008).
L. Subsequentemente, os já referenciados Acórdãos do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, de 27.02.2014, e do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, de 12.11.2015, vieram postular a tese de que, quando o apuramento da extinção da sociedade não se efectuar nas diligências para a citação, mas for obtido posteriormente, tal não inviabiliza que se deduza o competente incidente de habilitação de sucessores da sociedade extinta, nos termos do artigo 351 CPC.
M. Veja-se que naquele Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, de 12.11.2015, se concluiu que a sociedade autora já havia sido extinta aquando da instauração da respectiva acção, facto que – ainda assim – não obstou a que o Tribunal concluísse que, em todo o caso, se deveria admitir que a falta de personalidade jurídica e judiciária fosse considerada sanada pela intervenção, no processo, dos sócios da sociedade extinta. Raciocínio que tem inteira aplicação nos presentes autos.
N. Atenta a factualidade em apreço, ainda que a aqui Recorrente se tenha constituído como uma sociedade por quotas a 16.06.2014 e registado o respectivo encerramento e liquidação a 06.01.2016, a falta de personalidade judiciária não podia ser fundamento de absolvição da instância das Rés da instância;
O. Isto porque o Tribunal a quo, nos termos dos artigos 6/2 e 278/3 CPC – e valorizando o mérito em detrimento da forma –, deveria oficiosamente ter convidado a Recorrente a deduzir o incidente de habilitação de sucessores da sociedade extinta à luz do artigo 351 CPC (que é analogicamente aplicável às pessoas colectivas, como a jurisprudência assim tem concluído).
P. A decisão recorrida violou, como tal, os artigos 6/2, 278/3, 351 e 411 CPC, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que conclua que a falta de personalidade judiciária deve ser sanada, convidando a Recorrente a deduzir o competente incidente de habilitação.
Q. Assim, deve ser julgado procedente o presente Recurso de Apelação e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, sendo a mesma substituída por decisão que convide a Recorrente a deduzir o competente incidente de habilitação relativamente aos sócios da sociedade extinta, por forma a sanar a respectiva falta de personalidade judiciária;
Nas contra-alegações as apeladas pugnaram pela confirmação da decisão.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
Factos com interesse para a decisão constam do relatado supra.
Atentas as conclusões da apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 639 e 640 CPC – a questão a decidir consiste em saber se verificada a falta de personalidade jurídica há lugar à absolvição da instância ou, se pelo contrário, deve o juiz, oficiosamente, convidar a parte a saná-la.
Vejamos, então.
A presente acção é de simples apreciação.
Aquando da propositura da acção a sociedade autora não tinha personalidade jurídica e judiciária.
Na esteira do princípio do dispositivo cabe às partes o impulso processual – cfr. art. 5 e 6 CPC.
A personalidade judiciária, enquanto pressuposto processual, consiste na susceptibilidade de ser parte, sendo certo que quem tem personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária –    art. 11 CPC.
As sociedades gozam de personalidade a partir da data do registo definitivo do acto constitutivo … - art. 5 CSCom e art. 12/1 d) CPC.
A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos arts. 162 a 164, pelo registo do encerramento da liquidação – art. 160 CSCom.
Assim, em acções pendentes, em que a sociedade seja parte continuam após a sua extinção, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos arts. 163/2 a 5 e 164/2 e 5, sendo que neste caso a instância não se suspende, nem é necessária a habilitação – art. 162 CSCom.
Encerrada a liquidação e extinta a sociedade (passivo superveniente) os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada, sendo quem as acções necessárias para tal fim podem ser propostas contra a generalidade dos sócios, na pessoa dos liquidatários… - art. 163 CSCom.
Verificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados (passivo superveniente) compete aos liquidatários propor a partilha adicional..; as acções para cobrança de créditos da sociedade… podem ser propostas pelos liquidatários… - art. 164 CSCom.
O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária (excepção dilatória) - art. 278/1 c) CPC.
Todavia as excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada nos termos do       art. 6/2… - nº 2 e 3 art. cit.
No caso das pessoas colectivas, a falta de personalidade judiciária de sucursais, agências, filiais, delegações ou representações, pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a rectificação ou repetição do processado – art. 14 CPC.
A habilitação de sucessores constitui um incidente da instância e deve ser promovida pelas partes (impulso processual) – arts. 293 e 351 e sgs.
Cumpre ao juiz (dever de gestão processual), sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório, e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de  pressupostos processuais, susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo – art. 6/1 e 2 CPC.
Ora, tendo em atenção estes preceitos e o princípio do dispositivo, concluiu-se que não cabe ao juiz providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de personalidade jurídica/judiciária, ex vi art. 6/2 CPC, excepção feita aos casos previstos no art. 14, situação essa que, para evitar a absolvição da instância, pode e deve fazer.
Também aqui afastada está a hipótese de promover a habilitação, cabendo tal ónus à sociedade autora (habilitação processual dos seus antigos sócios), sendo certo que os antigos sócios só podem litigar em nome da sociedade extinta no caso previsto no art. 164 CSCom, mormente no caso de cobrança de dívidas, o que não é o caso da acção proposta.
Acresce que, tendo as rés excepcionado, na contestação, a falta de personalidade da sociedade autora esta não replicou, nem deduziu o incidente de habilitação dos seus sócios (antigos), limitando-se a juntar, face ao solicitado pelo tribunal, a certidão da sua dissolução e extinção.

Na verdade, o dever de gestão processual não pressupõe que o juiz se substitua às partes no cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo que sobre elas recai (impulso processual) - cfr. Ac. STJ de 8/3/18, relatora Conselheira Rosa Tching, in www.dgsi.pt e Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do CPC, II vol, fls. 67, Almedina, Coimbra, 1997.
Destarte, improcede a pretensão da apelante.
Concluindo:
1 - É insanável a falta de personalidade judiciária, excepção feita ao preceituado no art. 14 CPC.
2 - O dever de gestão processual não pressupõe que o juiz se substitua às partes no cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a decisão.

Lisboa, 28/2/2019

Carla Mendes
Octávia Viegas
Rui da Ponte Gomes