Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
174/11.5GDGDM-I.L1-5
Relator: SIMÕES DE CARVALHO
Descritores: DESTINO DOS BENS APREENDIDOS
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Após a prolação de uma sentença e, tratando-se de bens ou objectos apreendidos que tenham natureza e características lícitas, os mesmos devem ser restituídos às pessoas que tiverem direito a eles, não podendo ser declarados perdidos a favor do Estado, em despacho proferido após a sentença.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:
 
No Processo Comum Colectivo n.º 174/11.5GDGDM do Juízo Central Criminal de Cascais (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por despacho de 27-04-2017 (cfr. fls. 291 a 293), no que agora interessa, foi decidido

«Através do requerimento de fls. 16739, veio o arguido J. requerer a restituição do veículo de matrícula P..
Foi junta a informação de fls. 16740 e o documento de fls. 16808, indicando que o veículo está registado a favor do arguido.
0 D. Magistrado do Ministério Público, a fls. 16750 e 16860, promoveu a perda a favor do Estado.
São pressupostos da perda de instrumentos e produtos, regulada no art.º 109º do Código Penal que os objetos tenham sido, ou estivessem destinados a ser, utilizados numa atividade criminosa, ou que por estes tivessem sido produzidos, e que os mesmos, pela sua natureza ou circunstâncias do caso, ponham em causa a segurança das pessoas, a moral ou ordem pública ou ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2008 (proferido no processo 08P583, disponível em www.dgsi.pt), "a jurisprudência tem definido a necessidade de se verificarem determinados pressupostos para o decretamento da perda, desde a essencialidade da utilização do instrumento para o cometimento da infração, passando pelo estabelecimento de uma relação de causalidade entre o uso do instrumento do crime e a prática deste e a atenção devida nessa apreciação ao princípio da proporcionalidade".
Preceitua o art.º 111º, do Cód. Penal, sobre a perda de vantagens, que "toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado".
"São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido diretamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie" (n.e 2 do art.º 111º do Cód. Penal).
Nestes termos, devem ser declarados perdidos a favor do Estado todos os veículos e objetos utilizados na prática dos factos ilícitos e as coisas, direitos e vantagens obtidas através do cometimento dos crimes.
Compulsados os factos provados sob os números 132º a 134º, resulta evidenciado que o identificado veículo foi utilizado para recolher e transportar o cofre subtraído das instalações alvo de roubo, tendo sido essencial para transportar os bens obtidos com a prática de crime, pelo que deve ser declarado perdido a favor do Estado.
Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, declaro perdido a favor do Estado o veículo de matrícula 3314CCP.
Notifique o arguido e respetivo advogado.
Proceda como se promove relativamente ao ESPAP.
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Fls. 16740, 16750, 16752, 16825: Oficie à PJ solicitando o envio dos documentos do veículo Volkswagen Golf de R., com vista a ser dado destino ao mesmo.
Proceda como se promove relativamente ao ESPAP.
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Fls. 16817 e 16819: Diligencie como se promove.
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Fls. 16822: Tendo presente o acima referido sobre os pressupostos da perda de objetos perdidos em processo penal, cumpre apreciar e decidir.
Da factualidade provada no acórdão proferido nos presentes autos, transitado em julgado, em especial do teor dos artigos 20º a 27º, 41º, 46º a 48, e da forma como estavam acondicionados, resulta evidenciado que o dinheiro apreendido ao arguido AB e sua mulher DB, constituem vantagens ilegítimas, obtidas através da prática de crime, impondo-se declará-los perdidos a favor do Estado.
Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, declaro perdidos a favor do Estado os € 12.000,00 (doze mil euros), € 680, 00 (seiscentos e oitenta euros).
Determina-se a devolução do rádio emissor-recetor, identificado em 48º dos factos provados.
Notifique a requerente, o arguido ABe respetivo advogado.
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Fls. 16827 a 16841: A pena em que o arguido AB foi condenado nestes autos perdeu autonomia em virtude de ter sido englobada no cúmulo jurídico realizado no processo n.º 491/13.0JACBR.
Passe mandados de desligamento/ligamento do arguido, a fim de passar a cumprir a pena única.
Remeta boletim à DSIC.
Notifique.
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Proceda como se promove relativamente a custas.» 

Por não se conformar com o assim decidido, interpôs o arguido J. o presente recurso que, na sua motivação, traz formuladas as seguintes conclusões (cfr. fls. 300 a 305) que se transcrevem:
                                                                                      
«1- Por acórdão proferido a 27-06-2014, e no que se reporta ao item da perda dos objectos, não foi declarada perdida a favor do estado a viatura de marca Volkswagen Transporter, matrícula P.
2- O acórdão transitou em julgado a 31-03-2016.
3- O recorrente veio solicitar a restituição da mesma.
4- Foram pedidos os comprovativos da propriedade da referida viatura. Os mesmos encontravam-se no interior da mesma. Foram juntos os documentos.
5- Ainda assim, e esgotado o poder jurisdicional do Tribunal, veio o mesmo decretar a parda da referida viatura.
6- Entende o recorrente, que o poder jurisdicional estava esgotado, e nessa medida, não podia o tribunal determinar nesta fase processual a perda da viatura em causa.
7- A decisão ora recorrida violou o princípio da extinção do poder jurisdicional, pelo que deverá ser revogada, devendo em consequência ser ordenada a restituição da viatura supra identificada.
15 (?) - Violou-se o disposto nos arts 613 e 619 do C.P.C, aplicados por força do artigo 4 do C.P.P.
Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exa doutamente melhor suprirão, deve ser dado provimento ao recurso e, por via disso, ser revogada a, aliás, douta decido recorrida, substituindo-a por outra que determine a restituição da viatura ao recorrente
Decidindo deste modo, farão V. Exa, aliás com sempre, um acto de INTEIRA E SÃ JUSTIÇA».

Admitido o recurso (cfr. fls, 311) e, efectuadas as necessárias notificações, apresentou resposta o Mº Pº (cfr. fls. 307 a 308 v.º), em que concluiu:
 
«1. Se a sentença for omissa acerca do destino a dar aos bens apreendidos, contrariando o disposto no 374°, n° 3, alínea c) do CPP, tal constitui uma irregularidade processual, que não uma nulidade;
2. Não se encontrando prevista expressamente no regime das nulidades da sentença estabelecido no art0 379.° do CPP aquela omissão suje;ta-se ao regime do artigo 380c do CPP, devendo ser suprida por decisão de correcção;
3. A matéria respeitante ao destino a dar aos bens apreendidos não respeita ao mérito da causa, não faz parte do objecto do processo, pelo que uma decisão posterior que venha suprir uma omissão de sentença acerca de tal matéria não constitui modificação essencial da sentença pois que tal resultaria de uma interpretação extensiva de um regime de nulidade processual, que não é permitida;
4. Também por isso o poder jurisdicional não se extingue, podendo o juiz suprir omissões de sentença, nos termos do artigo 380° do CPP, sem que ocorra violação de caso julgado.
5. O despacho recorrido não merece censura, devendo ser confirmado.
Decidirão V. Exas como for de Justiça.»

Na sequência do que veio a ser mantida a decisão recorrida (cfr. fls. 310).

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (cfr. fls. 314 e 315) no sentido de que o recurso merece provimento.

Apesar de ter sido dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do Art.º 417º do C.P.Penal, o recorrente nada disse.

Exarado o despacho preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento em conferência, nos termos do Art.º 419º do C.P.Penal.
        
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
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Vejamos:

São as “conclusões” formuladas na motivação do recurso que definem e delimitam o respectivo objecto – Art.ºs 403º e 412º do C.P.Penal.
Como resulta das transcritas conclusões do mesmo, a questão que se nos coloca é a seguinte:
- Deve o despacho em causa ser revogado e substituído por outro que ordene a restituição do veículo automóvel, de matrícula P., ao recorrente?

Apreciando:

Torna-se forçoso, desde logo, salientar que os requisitos gerais de uma sentença se encontram estabelecidos no Art.º 374º do C.P.Penal, aí constando no respectivo n.º 3, alínea c) que “A sentença termina pelo dispositivo que contém: A indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime”.
Por sua vez, regula-se no Art.º 186º do mesmo Código, relativo à restituição dos objectos apreendidos, que “Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado” [n.º 2], mais se acrescentando que “Ressalva-se do disposto nos números anteriores o caso em que a apreensão de objectos pertencentes ao arguido ou responsável civil deva ser mantida a título de arresto preventivo, nos termos do artigo 228º” [n.º 5].
Tendo em atenção a disciplina processualmente traçada para apreciação dos pressupostos que podem conduzir à perda dos instrumentos do crime, devemos considerar que o momento adequado para o efeito é o da prolação da sentença.
E é compreensível que assim o seja, porquanto é nessa altura que, após a produção da prova, se assentam os factos e se procede ao seu enquadramento jurídico, aí decidindo-se a causa submetida a julgamento, entre estas, as consequências que daí possam advir.
Uma dessas possíveis sequelas é a perda dos instrumentos ou direitos relacionados com a prática de um crime.
Com a determinação dessa perda atinge-se o correspondente direito de propriedade ou qualquer outro direito que incida sobre esse instrumento, que aqui deve ceder perante as finalidades de política criminal atribuídas a este instituto – nuns casos acentua-se a natureza de sanção, típico de uma pena acessória, noutros a de prevenção geral, enquanto alguns conjugam estas duas, assumindo uma natureza mista.
Como é sabido, e segundo o Art.. 62º, n.º 1 da C.R.P., “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”, estipulando-se no subsequente n.º 2 que “A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”.
Tem-se, no entanto, entendido que a sua ratio é muito mais abrangente que as situações aí expressamente previstas de requisição e expropriação, de modo a abarcar quaisquer figuras afins que afectem a propriedade ou os direitos patrimoniais dos cidadãos (cfr., neste sentido, Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, Tomo IV relativo aos “Direitos Fundamentais”, 1998, Pág. 469).
Por outro lado, a decisão sobre a perda dos instrumentos e objectos relacionados com a prática de um crime deve ser fundamentada, por imposição dos Art.ºs 205º, n.º 1[“As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma previstas na lei”] da C.R.P. e 97º, n.º 5 [“Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”] do C.P.Penal.
Tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no Art.º 32.º, n.º 1, da sobredita Lei Fundamental.
Sendo certo que isso implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheça as razões que a sustentam, de modo a se aferir se a mesma está fundada na lei.
Por isso, essa exigência é, simultaneamente, um acto de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das garantias de defesa, ambas com assento constitucional, de forma a se aferir da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 17-05-2006, relatado pelo Exm.º Desembargador Joaquim Gomes, in www.dgsi.pt).
Assim, existem ponderosas razões adjectivas e substantivas que apontam para a sentença ser o momento processualmente adequado para se avaliar e decretar a perda dos instrumentos ou objectos relacionados com a prática de um crime, devendo tal juízo ser devidamente fundamentado.
Nesta conformidade, após ser proferida uma sentença impõe-se, em regra, que os objectos apreendidos sejam restituídos, como se diz no texto legal, “a quem de direito”, ou seja, à pessoa que tiver direito a eles – entendimento este que já remonta a Luís Osório, como se pode ver no seu “Comentário ao C.P.P. Português” (1934), Pág. 224.
Daí que, como já se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 30-06-2004, relatado pelo Exm.º Desembargador Fernando Monterroso e divulgado em www.dgsi.pt, “Os bens apreendidos no processo penal não podem ser declarados perdidos a favor do Estado, em despacho proferido após a sentença”, ressalvando-se que aqui não estavam em causa bens cuja detenção por particulares fosse proibida, conforme, aliás, acontece, também, na situação ora em causa.
Nesta conformidade, podemos assentar que, após a prolação de uma sentença e tratando-se de bens ou objectos apreendidos que tenham natureza e características lícitas, os mesmos devem ser restituídos às pessoas que tiverem direito a eles.
In casu, trata-se de um veículo automóvel que está registado a favor do recorrente e, como tal, devidamente legalizado, razão pela qual não podia, à partida, decretar-se o mesmo perdido a favor do Estado, tal como se fez na decisão recorrida.
*
Assim, do exposto, tudo visto e sem a necessidade de maiores considerações:
Acorda-se em conceder provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que ordene a restituição do veículo automóvel, de matrícula P., ao arguido J..

Sem tributação.

Simões de carvalho

Ana Sebastião