Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27215/20.2T8LSB.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
COMPRADOR
EXERCÍCIO DE DIREITO
PRAZO DE CADUCIDADE
PREJUÍZOS INDIRECTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O prazo de caducidade previsto no art. 917º do Código Civil aplica-se a todas as acções conferidas ao comprador, englobando para além da anulação, a redução do preço, a reparação ou substituição e a indemnização, estando em causa o cumprimento defeituoso da obrigação emergente de contrato de compra e venda, ainda que por prejuízos indiretos sofridos por causa da coisa, mas ainda dela emergentes.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
A propôs a presente acção, em 17/12/2020, contra B, LDA., tendo formulado os seguintes pedidos:
Nestes termos e nos demais de Direito aplicável, deverá a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência:
a) - Ser reconhecido que a Ré vendeu à Autora um produto defeituoso;
b) - Ser reconhecido que a Autora denunciou, de forma tempestiva o defeito à Ré e esta nada fez para substituir os artigos defeituosos ou compensar a mesma de forma equilibrada, tendo sido o contrato legitimamente anulado;
c) - Condenar a Ré ao pagamento do valor de 70.668,48€ (setenta mil seiscentos sessenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais emergentes;
d) - Juros de mora vencidos à taxa comercial de 7%, no valor de 1.386,78€ (mil trezentos e oitenta e seis euros e setenta e oito cêntimos), acrescido dos vincendos até efetivo e integral pagamento;
e) - Condenar a Ré ao pagamento do valor de 90.250,00€ (noventa mil duzentos e cinquenta euros) a título de lucros cessantes, acrescidos de juros de mora desde a data de citação.
f) -Custas e demais encargos com o processo.
Para tal alegou os seguintes factos:
1.2
Autora é uma empresa que se dedica à compra e venda de produtos farmacêuticos, ortopédicos e afins, importação e exportação.
2. °
Em 08/05/2020 e no âmbito da sua atividade, a Autora comprou à Ré 10000 (dez mil) caixas de 50 máscaras de proteção descartáveis, com o valor de 200.000,00€ (duzentos mil euros) acrescido de IVA à taxa legal em vigor de 6%, conforme fatura FT01P2020/62 que se junta sob a forma de documento 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3. °
A compra e encomenda das máscaras de proteção individual foi antecedida pela visualização de amostra.
4. °
Tendo a Autora constatado que o produto se encontrava em perfeitas condições e que cumpria todos os requisitos da DGS.
Sucede que,
5. °
Este produto destinava-se na sua maioria a revenda na cadeia de parafarmácias Wells pertencentes ao grupo Sonae conforme fatura que se junta sob a forma documento 2 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
6. °
Por e-mail de 19 de Maio de 2020 a Sonae veio informar a Autora de que recebeu reclamações por parte das lojas Wells informando que as máscaras com a denominação "Protective Face Mask" do lote 2000420 tinham as pregas da frente ao contrário, ou seja, para cima. (cfr. Email que se junta sob a forma de documento 3 e respetivas fotografias ora juntas s com os números 4, 5, 6 e 7)
7. °
E informaram que iriam proceder à devolução do lote por intermédio da DHL. (Cfr. Doc.3 )
8. °
Por e-mail de 20 de Maio de 2020, a Autora veio responder à Sonae, informando que as máscaras indicadas não correspondiam às que foram fornecidas, solicitando que fossem suspensas as devoluções. (cfr. Doc. 8)
9. °
No mesmo dia 20 de Maio de 2020, a Sonae remete fotografias das máscaras em causa e solicitou à Autora indicação de como deveria proceder à devolução das caixas que foram devolvidas pelos consumidores. (cfr. Doc. 9)
10. °
No mesmo dia 20 de Maio de 2020, a Autora questionou a Sonae sobre o número de caixas que iriam ser devolvidas. (cfr. Doc. 10)
11. °
Em face desta situação, a Autora contatou representante da Ré, nomeadamente, JW…, por e-mail de 21/05/2020 para denunciar o defeito das máscaras de protecção enviando as fotos reencaminhadas pela Soane. (cfr. Doc. 11)
12. °
Por e-mail do dia 21/05/2020, a Ré vem informar a Autora de que as máscaras que constam das fotos não foram fornecidas por eles e que as suas não tinham qualquer defeito. (cfr. Doc. 12)
13. °
Por e-mail do mesmo dia 21/05/2020, a Autora informa a Ré de que o lote em causa é o que foi vendido por esta, mantendo a intenção de devolução do produto. (cfr. Doc. 13)
14. °
Em resposta ao e-mail da Autora, a Ré insistiu que a máscara constante das fotografias não tinha sido fornecida por ela. (cfr. Doc. 14)
15. °
Em resposta a Autora insistiu pelo defeito do produto. (cfr. Doc. 15).
16. °
Por e-mail de 04 de agosto de 2020, a Sonae vem informar a Autora das quantidades de máscaras que tinha devolvido anexando as respetivas notas (cfr. Doc. 16):
(…)
17. °
Em 10 de Setembro de 2020, a Autora remeteu à Ré e-mail com o seguinte teor:
"(...) Já recebemos e contamos a devolução da Sonae, temos assim 94.700 unidades equivalente a 1894 caixas com o valor de €37.880 - notas de devolução em anexo.
De forma a podermos resolver esta situação sem recurso a vias judiciais proponho que me devolvam a quantia de 20.920euros assumindo a Magicpharma o restante prejuízo." (cfr. Doc. 119)
18. °
Em 12 de Setembro de 2020 a Ré respondeu à Autora por e-mail com o seguinte teor:
"(-)
As máscaras são produtos importados na ocasião excepcional, em função das encomendas que nos são confirmadas. Por este motivo, não podemos aceitar a devolução do dinheiro.
Contudo, tendo em consideração a nossa boa relação, com vista a fazer face à devolução da Sonae podemos disponibilizar 10000 unidades de gel de 100 ml a custo zero." (cfr. Doc. 120)
19. °
A Autora não aceitou esta proposta tendo efetuado uma contraproposta pela qual aceitava trocar o valor de 37.880€ acrescido de 12.000€ referentes aos custos com a entrega, devolução e a margem de lucro perdida, por Luvas de Nitrilo a um preço de custo que não ultrapasse 9,50€ por caixa de 100 unidade.
20. °
Proposta que não foi aceite pela Ré, tendo a mesma apresentado contraproposta no dia 30 de Setembro de 2020 com o seguinte teor:
"(...) Para resolvermos a situação, proponho o seguinte: Ficares com as máscaras, e ofereço-te mais 10.000 gel (100 ml) e 2000 (100 ml) unidades de spray." (cfr. doc. 121)
21. °
Proposta que não foi aceite pela Autora.
22. °
Até à presente data, a Autora não foi reembolsada de qualquer valor.
Acresce que,
23. °
Por e-mail de 12 de outubro de 2020 a Autora foi informada pela empresa Farmácia Online de que tinham igualmente recebido máscaras com as pregas ao contrário. (cfr.doc.122)
24. °
As máscaras totalizavam 197 caixas de 50 unidades, num valor global de 3.940,00€. (cfr. Doc. 122)
25. °
Situação que foi igualmente reportada à Ré.
II - Dos Danos:
1- Dos danos emergentes
26. °
A Sonae devolveu à Autora o montante de 2299 caixas de 50 unidades com o valor de venda global de 66.728,48€ (sessenta e seis mil setecentos e vinte e oito euros e quarenta e oito cêntimos) correspondente a 29,025€ x 2299 caixas).
27. °
A Autora comprou à Ré as 2299 caixas a 20€ (vinte euros) cada unidade, perfazendo o valor de 45.980€ (quarenta e cinco mil novecentos e oitenta euros).
28. °
E vendeu cada caixa à Sonae a 29,025€, o que dava origem a um lucro de 20.748,47€ (vinte mil setecentos e quarenta e oito euros e quarenta e sete cêntimos).
29. °
Devido ao defeito de fabrico existente nas máscaras de proteção, a Autora ficou impossibilitada de as vender a outro comprador.
Nessa medida,
30. °
O prejuízo real da Autora é de 66.728,48€ (sessenta e seis mil setecentos e vinte e oito euros e quarenta e oito cêntimos).
31. °
Ao qual acrescem juros de mora à taxa comercial em vigor de 7%, desde a devolução das máscaras, totalizando à presente data, o valor de 1.343,71€ (mil trezentos e quarenta e três euros e setenta e um cêntimos).
32. °
Acresce o valor de 3.940,00€ (três mil novecentos e quarenta euros) referente à devolução de máscaras por parte da empresa Farmácia Online).
33. °
Ao qual acrescem juros de mora à taxa comercial em vigor de 7%, desde a devolução das máscaras, totalizando à presente data, o valor de 43,07€ (quarenta e três euros e sete cêntimos).
Acresce que,
2- Dos lucros cessantes
34. °
Após esta situação, a Sonae nunca mais comprou qualquer máscara facial 3 Ply à Autora.
Ora,
35. °
A Autora é uma empresa que se dedica à atividade de compra e venda de produtos farmacêuticos, ortopédicos e afins, desde 2008, sendo o seu nome reconhecido e respeitado no mercado.
36. °
Devido ao tipo de produtos que comercializa e à qualidade dos mesmos, a Autora tem vindo ao longo dos anos conquistando novos clientes com maior dimensão como é o caso da Sonae.
37. °
Através da rede de parafarmácias denominada "Wells", a Autora tem introduzido no mercado diversos produtos que têm sido bem aceites pelos consumidores.
38. °
Ao ter vendido à Sonae (Pharmacontinente. S.H.- S.A.) máscaras defeituosas, a Autora viu o seu bom nome e imagem ameaçados.
39. °
Correndo o risco de perder futuras encomendas e parcerias com a Sonae relativamente a outros produtos para além das máscaras de proteção.
40. °
E este dano é exclusivamente imputável à conduta dolosa da Ré, uma vez que vendeu à Autora um artigo defeituoso que não correspondia à amostra exibida aquando da contratação.
41. °
Trata-se de dano que devido à sua gravidade merece a tutela do Direito.
42. °
Uma vez que a encomenda efetuada à Ré de 10.000 (dez mil) caixa de 50 unidades destinava-se ao cliente Sonae (Pharmacontinente S.H.-S.A), e como a mesma já não adquiriu mais máscaras daquele tipo, é justo e adequado que Autora seja ressarcida pelo prejuízo correspondente ao lucro perdido neste negócio, nomeadamente, 9,025€ x 10.000 caixas, o que corresponde a 90.250,00€ (noventa mil duzentos e cinquenta euros).
Na sua contestação, a Ré excepcionou, além do mais, a caducidade da acção de anulação, nos seguintes termos:
I - POR EXCEPÇÃO: DA CADUCIDADE:
1. °
A Autora vem intentar uma acção contra a Ré, alegando que aquela comprou a esta 10.000 caixas de 50 máscaras de protecção individual.
2. °
E que posteriormente foram revendidas para a cadeia de parafarmácias Wells.
3. °
Sucede, porém, que cerca de 1894 caixas foram devolvidas pela Wells e outras 197 caixas pela Farmácia Online por alegadamente apresentarem um defeito.
4. °
Com efeito, a Autora assim que teve conhecimento da situação informou a Ré do sucedido.
 5. °
Essa comunicação foi efectuada por email a 21/05/2020, tempestivamente nos termos do artigo 916.° do Código Civil.
6. °
Porém, no que diz respeito à anulação do contrato por venda de coisa alegadamente defeituosa, nos termos do artigo 917.° do código Civil a acção de anulação por simples erro caduca decorridos seis meses após o comprador ter efectuado a denúncia.
7. °
Assim, a presente acção deveria ter dado entrada seis meses após a denúncia formalizada pelo comprador (aqui Autora), a qual ocorreu a 21/05/2020.
8. °
E atendendo a que o DUC relativo a esta acção só foi liquidado a 16-12-2020, pode concluir-se que a presente acção deu entrada no final do ano, ou seja, volvidos mais de seis meses após a denúncia dos defeitos.
9. °
Sendo assim, de acordo com o supra referido, o direito de peticionar a anulação do contrato caducou.
10. °
E, de acordo com a jurisprudência, caducou não só o direito de anulação do contrato, mas também os demais direitos legalmente conferidos ao adquirente de coisa defeituosa - vide acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa de 20-03-2014, relator TIBERIO SILVA.
11. °
Desde logo, o direito à indemnização do interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato, cumulável com a anulação do contrato ou redução ou minoração do preço (art.°s 908.°, 909.° e 911.°, ex vi do art.° 913.° do CC).
12. °
Também o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre esta questão, no acórdão de 06/10/2016, no processo 6637/13.0TBMAI-A.P1.S2: “Sendo a causa de_pedir
- o vício da coisa -, comum a todas as correspondentes acções (de anulação, indemnização pelo interesse contratual negativo,...), em homenagem ao princípio da unidade do sistema jurídico, deve aplicar-se, por interpretação extensiva, a esta acção de indemnização pelo interesse contratual positivo, decorrente de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda comercial, por vício da coisa vendida - (...)
- o prazo de caducidade de seis meses previsto no art. 917.° do CC e não o prazo geral de prescrição ordinária de 20 anos, previsto no art. 309.° do mesmo Código'’".
13. °
Por outro lado, também é possível ao comprador optar por exercer autonomamente a acção de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente de cumprimento defeituoso ou inexacto presumidamente imputável ao devedor (art.°s 798°, 799° e 801°, n.° 1, do CC), que parece que foi o caminho seguido pela Autora neste caso concreto, sem fazer valer outros remédios, ou seja, sem pedir a resolução do contrato, a redução do preço, ou a reparação ou substituição da coisa.
14. °
E quanto a esta situação em concreto, a jurisprudência também já se pronunciou, dizendo que - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-06-2012, processo 4752/08.1TBLRA.C1: “esta acção, em que prejuízos indemnizáveis tenham origem no vício da coisa, não pode deixar de obedecer aos prazos curtos previstos especialmente para a venda de coisas defeituosas
15. °
Pode ler-se no mesmo acórdão: “-Na verdade, a acção de anulação por simples erro caduca findo qualquer dos prazos fixados no artigo 916°, do CC, sem o comprador ter feito a denúncia ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.° 2, do art.° 287° (art.° 917o, do CC)".
16. °
Ainda: “Trata-se de um prazo de caducidade que impende sobre o comprador de coisa defeituosa, para o exercício dos direitos provenientes da venda da coisa com defeito, aplicável, por interpretação extensiva do referido normativo, às acções que visem obter a reparação ou a substituição da coisa (art.° 914°, do CC), justificando-se a relativa estreiteza dos prazos fixados para a denúncia do defeito e a caducidade da acção, quando a venda de coisas defeituosas se refira a coisas móveis, com o intuito/finalidade de encurtar a duração do estado de incerteza, que a anulabilidade lança sobre a compra (com inconvenientes de vária ordem até no comércio jurídico), e evitar também as dificuldades de prova que os longos prazos de caducidade acabariam por criar sobre os pontos que interessam à procedência da anulação.”
17. °
Quanto a este assunto, a doutrina portuguesa já se pronunciou, entre outros, J. Calvão da Silva1 e Pedro Romano Martinez2: “Apesar do art. 917° ser omisso, tendo em conta a unidade do sistema jurídico no que respeita ao contrato de compra e venda, por analogia com o disposto no art. 1224°, dever-se á entender que o prazo de seis meses é válido não só para interpor o pedido judicial de anulação do contrato, como também para intentar qualquer outra pretensão baseada no cumprimento defeituoso.”
18. °
Para estes autores - “De facto, não se compreenderia que o legislador só tivesse estabelecido um prazo para a anulação do contrato, deixando os outros pedidos sujeitos àprescrição geral de vinte anos (art. 309°); por outro lado, tendo a lei estatuído que, em caso de garantia de bom funcionamento, todas as acções derivadas do cumprimento defeituosos caducam em seis meses (art. 921°, n.° 4), não se entenderia muito bem porque é que, na falta de tal garantia, parte dessas acções prescreveriam no prazo de vinte anos; além disso, contando-se o prazo de seis meses a partir da denúncia, e sendo esta necessária em relação a todos os defeitos (art. 916°), não parece sustentável que se distingam os prazos para o pedido judicial; por último, se o art. 917° não fosse aplicável, por interpretação extensiva, a todos os pedidos derivados do defeito da prestação, estava criado um caminho para iludir os prazos curtos.“] “
19.       °
Em face do exposto, o direito de acção da Autora caducou, excepção peremptória que desde já se invoca, a qual deve ser julgada procedente e em consequência deve a Ré ser absolvida do pedido, nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 576.° do Código de Processo Civil.
Houve resposta da Autora, nos seguintes termos:
1- A Ré alega a exceção de caducidade nos termos do artigo 917.° do Código Civil. Para tal indica que uma vez que a denúncia do defeito foi realizada em 21/05/2020 e a ação judicial foi proposta em 17/12/2020, foi ultrapassado o prazo previsto no artigo 917.° do Código Civil;
2- No entanto e de forma contraditória em sede de impugnação alega que não se aplica o regime de compra e venda de bens defeituosos, alegando que o facto das pregas das máscaras estarem cozidas viradas para cima não afeta o fim a que as mesmas se destinavam;
3- A Ré acrescenta ainda que as máscaras em causa foram submetidas a análise do laboratório Equilibrium e mantinham uma capacidade de filtragem superior a 90%;
4- E a Ré alegou que "As máscaras em causa têm as pregas referidas para impedir que as bactérias que são filtradas pela máscara estejam em contato direto com a boca e com o nariz, independentemente de as pregas estarem para cima ou para baixo.", pelo que não apresentam os vícios invocados pela Autora;
5- E "Para considerar a coisa defeituosa, só é diretamente considerado o interesse do comprador/consumidor no préstimo ou qualidade da coisa, na sua aptidão ou idoneidade para o uso ou função a que é destinada.";
6- É certo que em termos processuais está vedada a pronúncia sobre a matéria alegada em sede de impugnação, devendo assim a sua invocação ser considerada apenas para contextualizar a nossa pronúncia sobre a exceção de caducidade;
7- É certo que a Autora enquadrou a ação e o pedido no âmbito da compra e venda de bens defeituosos, no entanto, o douto Tribunal não se encontra vinculado a esse enquadramento jurídico conforme previsto pelo artigo 5.°, n.° 3 do CPC;
8- Acresce que, a obrigação da Autor é trazer e provar factos que demonstrem que o incumprimento contratual é imputável à Ré e que o mesmo lhe causou prejuízos. Quanto ao enquadramento jurídico, o douto Tribunal é livre na apreciação e decisão sobre o que considera mais adequado em face dos factos julgados como provados, sendo que em última instância, terá sempre cabimento nos termos responsabilidade contratual conforme previsto nos artigos 798.° e 799.° do Código Civil, estando sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos conforme previsto no artigo 309.° do mesmo diploma legal, não podendo conduzir automaticamente à absolvição da Ré;
9- Nessa medida e existindo a situação de incumprimento contratual por parte da Ré, a exceção de caducidade invocada, nunca deverá merecer colhimento e procedência por parte do douto Tribunal;
10- Acresce que, no caso concreto, as máscaras cirúrgicas descartáveis não médicas estão classificadas como equipamento de proteção individual e são fiscalizadas pela ASAE;
11- Estas máscaras são produzidas como uma finalidade específica, nomeadamente, a proteção dos riscos de infeção pelo coronavírus- Covid-19. Se esta finalidade que atento o estado atual de pandemia não é observada, está em causa não apenas um interesse comercial do comprador, mas sim, o interesse público de preservação da saúde pública e da própria vida humana;
12- De acordo com as próprias orientações do CITEVE, a orientação das pregas deverá ser para baixo e isto para evitar que se acumulem detritos, poeiras, bactérias e vírus que após terminar o período médio de impermeabilidade de 4 horas venham ser inalados e provocar infeção;
13- Acresce que quando empresas como a Magicpharma compram este tipo de produtos é com o intuito de os revender a parafarmácias e farmácias que apenas os aceitam se reunirem todas as condições que permitam classificá-los como EPI;
14- Verificando-se esse erro de execução ainda que não possa afetar todo o lote, a verdade que é constitui vício que afeta de forma irreversível a finalidade de EPI e o interesse público subjacente;
15- Assim não estamos na presença de um EPI, mas sim de uma mera máscara que poderia ser comercializada em qualquer local que não assuma a natureza de farmácia pu parafarmácia;
16- Não se trata assim de defeito que possa ser corrigido dado tratar-se de produto descartável e esterilizado e que não conduz à mera redução do preço;
17- Nessa medida aceita-se que o enquadramento jurídico em compra e venda de bens defeituosos não seja o mais adequado, no entanto, constata-se que na relação contratual em causa existe uma violação dos deveres de pontualidade e de boa-fé, que conferem à Autora o direito de vir reclamar o ressarcimento dos danos e prejuízos causados nos termos do artigo 798.° do CC, aplicando-se o prazo ordinário de 20 anos (artigo 309.° do CC);
18- Atento os interesses públicos de proteção da saúde pública e da própria vida humana subjacentes à utilização deste tipo de equipamento e que durante o atual estado de pandemia se têm vindo a revelar como primordiais, os mesmos deverão sobrepor-se aos interesses comerciais, nomeadamente, aqueles que estão salvaguardados através do prazo de prescrição reduzido de 6 meses previsto na compra e venda de bens defeituosos. 
 Em suma e em face do supra exposto, deverá ser julgada improcedente, por não provada a exceção de caducidade invocada pela Ré, tendo em conta a natureza dos interesses públicos que se visam salvaguardar com a utilização dos equipamentos de proteção individual onde se enquadram as máscaras comercializadas, não sendo os mesmos compatíveis com o prazo previsto no artigo 917.° do CC e nem com o regime legal da compra e venda de bens defeituosos, devendo a relação material controvertida ser enquadrada no regime da responsabilidade contratual previsto nos artigos 798.° e 799.° do Código Civil e sujeita ao prazo ordinário dos 20 anos (cfr. artigo 309.° do CC), devendo a ação prosseguir os seus normais trâmites até final.
*
Com data de 11/2/2022, foi proferido despacho saneador com apreciação do mérito da causa, nos seguintes termos:
Pelo exposto e ao abrigo das disposições legais supra citadas, o Tribunal julga a presente acção totalmente improcedente, por procedência da excepção peremptória de caducidade, e, em consequência, decide absolver a Ré do pedido.
Custas pela Autora - artigo 527° do C.P.C..
Registe e notifique.
*
Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1- A aplicar-se o regime jurídico da compra de coisas defeituosas previsto no artigo 913.° e seguintes do Código Civil, o que não se concede, importa salientar que o prazo de caducidade não se encontra corretamente contabilizado, uma vez, que em 21/05/2020, os prazos de caducidade encontravam-se suspensos ao abrigo do artigo 7.°, n.° 3 da Lei n.° 1-A/2020, de 19/03, na redação conferida pela Lei n.° 4-A/2020, de 06/04, desde 09/03/2020;
2- A contagem dos prazos foi retomada a 03/06/2020, com a entrada em vigor da Lei n.° 16/2020, de 29/05, o que leva a que o prazo de caducidade apenas se tenha iniciado em 03/06/2020, terminando assim os seis meses a 03/12/2020 e não a 21/11/2020, como alega o douto Tribunal a quo;
3- Independentemente da questão da suspensão dos prazos decorrente da legislação aprovada e publicada durante a pandemia de Covid 19, a verdade é que a matéria de facto julgada como provada não se enquadra no regime da compra de coisas defeituosas;
4- O próprio Tribunal a quo referiu na sua fundamentação que a "Ré comunicou a existência de desconformidades (supostamente, defeitos)", o que demonstra que não existia a certeza cabal da realidade material em causa, mas, ainda assim optou pelo regime jurídico das coisas defeituosas, julgando procedente a exceção perentória de caducidade do prazo previsto no artigo 917.° do Código, não conhecendo assim dos danos alegados pela Autora, o que constitui uma decisão injusta e com prejuízos substanciais para esta;
5- Nos termos do artigo 913.°, n.° 1 do Código Civil, para que uma coisa seja considerada defeituosa, é necessário que sofra "(...) de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim.";
6- Relativamente à existência de uma desconformidade, a mesma corresponde a uma discrepância entre o ser e o dever ser, sendo que a mesma não tem necessariamente que afetar a finalidade física do objeto, mas sim, os fins juridicamente reconhecidos à coisa, consubstanciando uma violação do princípio da pontualidade previsto do artigo 762.°, n.° 1 do Código Civil;
7- Nos presentes autos verifica-se que os factos julgados como provados enquadram-se numa situação de cumprimento defeituoso atendendo ao fim a que se destinavam as máscaras cirúrgicas, o enquadramento destas no conceito legal de coisas e os pedidos formulados pela Recorrente;
8- Relativamente à desconformidade das máscaras que têm as pregas cozidas ao contrário, a mesma não se prende com a sua capacidade de filtragem, mas sim, com o facto das mesmas não possuírem todas as caraterísticas e requisitos legais para serem consideradas juridicamente como equipamentos de proteção individual (EPI);
9- Um equipamento de proteção individual (EPI) é concebido e fabricado para ser utilizado ou mantido por uma pessoa para a proteger contra um ou mais riscos à saúde ou segurança, sendo que as máscaras faciais protegem o utilizador contra os patógenos que podem espalhar-se pelo ar, onde se incluem os coronavírus responsáveis pela Covid 19;
10- A colocação ou disponibilização no mercado europeu de EPI's é regulada pelo regulamento (EU), n.° 2016/425 do Parlamento Europeu e do Conselho de 9 de março;
11- O não cumprimento de todos os critérios de execução das máscaras para serem comercializadas como equipamentos de proteção individual, não constitui uma mera falta de qualidade que possa conduzi-las a serem consideradas como uma coisa defeituosa, mas sim, um vício que afeta de irreversível a finalidade de EPI e o interesse público subjacente, nomeadamente, a preservação da saúde pública e da própria vida humana;
12- Juridicamente estamos a falar de um produto que não podendo ser considerado como EPI, não corresponde à prestação que era devida com o contrato, não satisfazendo o interesse do credor, ora Recorrente, que tendo em conta o seu objeto de atividade pretendia revender as máscaras a farmácias e parafarmácias;
13- Mesmo que se considerasse aplicável, o regime da compra de coisa defeituosas, atentos os interesses públicos de proteção da saúde pública e da própria vida humana subjacentes à utilização deste tipo de equipamento e que durante o atual estado de pandemia se têm vindo a revelar como primordiais, os mesmos deverão sobrepor-se aos interesses comerciais privados, nomeadamente, aqueles que estão salvaguardados através do prazo de prescrição reduzido de 6 meses previsto na compra e venda de bens defeituosos;
14- Da apreciação dos factos julgados como provados, verifica-se que estamos na presença de uma clara violação do princípio da pontualidade previsto no artigo 762.°, n.° 1 do Código Civil, dando origem a uma situação de cumprimento defeituoso imputável à Ré, a qual gera responsabilidade civil contratual, dando origem ao ressarcimento dos danos da Autora, nos termos dos artigos 798.° e 799.° do Código Civil;
15- Relativamente ao prazo prescricional aplicável, estando na presença de uma situação de responsabilidade civil contratual, aplica-se aos factos julgados como provados nos presentes autos o prazo de prescrição ordinário de 20 anos conforme previsto no artigo 309.° do Código Civil. Assim, a presente ação terá que ser considerada como tempestiva, não podendo conduzir automaticamente à absolvição da Ré;
16- Em termos processuais, a obrigação da Recorrente era trazer e provar factos que demonstrassem que o incumprimento contratual era imputável à Ré e que o mesmo lhe tinha causado prejuízos, não estando o douto Tribunal vinculado ao enquadramento jurídico efetuado pelas partes, conforme previsto no artigo 5.°, n.° 3 do Código de Processo Civil;
17- Quanto ao objecto do negócio verifica-se que o mesmo constituía uma universalidade produtos, uma coisa composta, teoricamente com caraterísticas idênticas, no montante de 10.000 (dez mil) caixas, que se destinavam a vários revendedores;
18- Em face dessa quantidade não se pode considerar que estamos na presença de uma coisa defeituosa suscetível de ser enquadrada no regime legal especial previsto no artigo 913.° e ss. do Código Civil, sem termos a evidência de que as 10.000 (dez mil) caixas, tinham o mesmo defeito, o que implicava a abertura e verificação unitária, o que era humanamente e fisicamente impossível, tendo em conta que a mercadoria já se encontrava na posse dos revendedores;
19- No que respeita aos danos alegados e aos respetivos montantes indemnizatórios peticionados, verifica-se que de acordo, com os artigos 915.° e 909.° do Código Civil, a mesma só é devida no caso de anulação por simples erro, mas só abrange os danos emergentes e não os lucros cessantes;
20- O regime especial da venda de coisa defeituosas não tem assim previsão legal para o ressarcimento dos lucros cessantes, não podendo o mesmo ser assim aplicado nos presentes autos;
21- Em suma e salvo melhor opinião, deveria ter o douto Tribunal a quo realizado um juízo ponderado que abarcasse todos os aspetos e caraterísticas da relação material controvertida, nomeadamente, a definição cabal e objetiva do tipo de vício que abrangia as máscaras devolvidas à Recorrente e através dos poderes que lhe são conferidos por lei e tendo como foco o princípio da justiça material deveria ter enquadrado aquela no regime da responsabilidade contratual previsto nos artigos 798.° e 799.° do Código Civil, estando assim sujeita ao prazo ordinário dos 20 anos (cfr. artigo 309.° do CC).
22- Mostram-se assim violadas as normas constantes do artigo 20.°, n.° 4, última parte da Constituição da República Portuguesa e artigos 5.°, n.° 3, 762.°, 798.° e 799.° do Código de Processo Civil e 309.° do Código Civil. 
 Nestes termos de nos mais de Direito Aplicável, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, ser anulada a sentença proferida pelo douto Tribunal à quo e substituída por outra que julgue improcedente a exceção perentória de caducidade, ordenando a descida dos autos para realização de audiência de discussão e julgamento com vista à produção de prova sobre os danos alegados pela Recorrentes, cujo conhecimento mostrou-se prejudicado pela procedência daquela exceção, como é de inteira Justiça!
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
*
II. Objecto e delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Aplicação do especial prazo de caducidade previsto no art. 917º do Código Civil à situação dos autos.
*
III. Os factos
Recebeu-se da 1ª instância a seguinte fundamentação de facto:
1. A Autora é uma empresa que se dedica à compra e venda de produtos farmacêuticos, ortopédicos e afins, importação e exportação.
2. Em 08.05.2020 e no âmbito da sua actividade, a Autora comprou à Ré 10000 caixas de 50 máscaras de protecção descartáveis, com o valor de 2oo.ooo,oo€, acrescido de IVA à taxa legal em vigor de 6%, conforme factura FT01P2020/62 cuja cópia se encontra junta aos autos.
3. A compra e encomenda das máscaras de protecção individual foi antecedida pela visualização de amostra, tendo a Autora constatado que o produto se encontrava em perfeitas condições e que cumpria todos os requisitos da DGS.
4. Este produto destinava-se na sua maioria a revenda na cadeia de parafarmácias “Wells”, pertencentes ao grupo Sonae, conforme factura junta aos autos em cópia sob a forma documento 2 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
5. Por e-mail de 19 de Maio de 2020, a Sonae veio informar a Autora de que recebeu reclamações por parte das lojas Wells informando que as máscaras com a denominação “Protective Face Mask” do lote 2000420 tinham as pregas da frente ao contrário, ou seja, para cima e informaram que iriam proceder à devolução do lote por intermédio da DHL.
6. Por e-mail de 20 de Maio de 2020, a Autora veio responder à Sonae, informando que as máscaras indicadas não correspondiam às que foram fornecidas, solicitando que fossem suspensas as devoluções.
7. No mesmo dia, a Sonae remeteu fotografias das máscaras em causa e solicitou à Autora indicação de como deveria proceder à devolução das caixas que foram devolvidas pelos consumidores. (cfr. Doc. 9)
8. Em face desta situação, a Autora contactou a representante da Ré, JW…, por e-mail de 21/05/2020, no qual declarou, além do mais, conforme cópia do documento 11 junto com a petição inicial, que ora se dá por reproduzido: «Deixo em baixo a reclamação da SONAE com o lote que me vendeste (...). Quando receber (cerca 3000 caixas) vamos proceder à devolução do lote na totalidade.»
9. Por e-mail do dia 21/05/2020, a Ré vem informou a Autora de que as máscaras que constam das fotos não foram fornecidas por eles e que as suas não tinham qualquer defeito.
10. Por e-mail do mesmo dia, a Autora informou a Ré de que o lote em causa é o que foi vendido por esta, mantendo a intenção de devolução do produto.
11. Em resposta, a Ré insistiu que a máscara constante das fotografias não tinha sido fornecida por ela, tendo a Autora, em resposta, insistido pelo defeito do produto.
12. Em 04.08.2020, a Sonae informou a Autora das quantidades de máscaras que tinha devolvido, anexando as respectivas notas (cfr. Doc. 16 junto com a p.i., cujo teor ora se dá por reproduzido).
13. Em 10.09.2020, a Autora remeteu à Ré uma comunicação com o seguinte teor: «(...) já recebemos e contamos a devolução da Sonae, temos assim 94700 unidades equivalentes a 1894 caixas com o valor de € 37.880 - notas de devolução em anexo. (...)» - cf. doc. 119 junto com a p.i.
14. Até à data da propositura da presente acção, a Autora não foi reembolsada de qualquer valor.
*
IV. O Direito
Fundou a Exma. Juíz a quo a sua decisão na seguinte fundamentação:
Entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda, o qual se rege, naturalmente, pelas respectivas cláusulas e, supletivamente, pelo regime legal próprio destes institutos, para além das regras gerais a que haja de se recorrer, nos termos do Código Civil.
Nos termos do artigo 916° do Código Civil, para que o comprador possa anular o negócio com base na existência de defeitos na coisa objecto da compra e venda, deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo. Dispõe o n.° 2 deste preceito que, para tal efeito, o comprador deve fazer a denúncia até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa. Trata-se de um prazo de caducidade que impende sobre o comprador de coisa defeituosa, para o exercício dos direitos provenientes da venda da coisa com defeito.
Em todo o caso, prescreve o artigo 917° do mesmo Código, a acção de anulação por simples erro - refere-se a lei, aqui, às situações do artigo 916°, em que não está em causa uma actuação com dolo, pois que, em tal caso, haveria lugar à acção de anulação nos termos do artigo 287°, n.° 1, no prazo de um ano e independentemente da denúncia1 - «caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.° 2 do artigo 287°». Conforme tem sido pacificamente entendido pela nossa doutrina e jurisprudência - veja-se CALVÃO DA SILVA in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 4- ed., pág. 46 e, a título exemplificativo, o Acórdão do S.T.J. de 06.11.2007 (in www.dgsi.pt) -, o prazo de caducidade de seis meses, previsto no artigo 917° do C.C., deve aplicar-se, por interpretação extensiva, para além da acção de anulação, também às acções que visem obter a reparação ou substituição da coisa, ou ainda a redução do preço e o pagamento de uma indemnização pela violação contratual.
Atentemos à factualidade apurada.
Provou-se que, celebrado o contrato, no início de Maio de 2020, a Autora comunicou à Ré a existência de desconformidades (supostamente, defeitos) em 21.05.2020, que no próprio dia tomou conhecimento desta comunicação (ponto 8. dos factos provados). A denúncia foi, pois, feita em tempo.
Questão diferente é a da caducidade da presente acção, à luz do disposto no artigo 917° do mesmo Código: o prazo de seis meses aí previsto completou-se no dia 21 de Novembro de 2020, considerando a regra de cômputo do termo constante do artigo 279°, c) do Código Civil.
Considerando a data em que a acção foi proposta - Dezembro de 2020 – torna-se clara a conclusão de que, mesmo que tendo a denúncia dos defeitos sido efectuada no limiar em prazo, a presente acção de anulação do negócio foi proposta depois de terminado o prazo de seis meses consagrado naquele normativo.
E esta circunstância é suficiente, s.m.o., para concluir pela caducidade do direito de a Autora accionar judicialmente a Ré com base na venda de coisa defeituosa/não apta para os fins a que se destina.
Recorde-se, ainda, que o negócio se realizou entre duas entidades comerciantes, não envolvendo, portanto, consumidores, designadamente, para efeitos de aplicação, ao caso sub judice, do regime consagrado na Lei n.° 84/2008, de 21.05, relativa à venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.
Saliente-se, finalmente, que não colhe a pretensão da Autora que, para contornar este apertado regime de caducidade, pugnou pela aplicabilidade do prazo ordinário de 20 anos, dado estar em causa uma obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade contratual. Na verdade, como já bem assinalou a Ré e também já se mencionou supra, este é um regime especial que, necessariamente, se sobrepõe ao regime geral, sendo certo que, se o artigo 917° não fosse aplicável a todos os pedidos fundados em defeito da prestação, estaria aberta uma via para facilmente se contornar este regime apertado. Conforme assinalam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. III, pág. 218), «a estreiteza dos prazos fixados para a denúncia do defeito e a caducidade da acção têm por fim, não só encurtar a duração do estado de incerteza, que a anulabilidade lança sobre a compra, com inconvenientes de vária ordem até no comércio jurídico, mas evitar também as dificuldades de prova que os longos prazos de caducidade acabariam por criar sobre os pontos que interessam à procedência da anulação».
Procede, portanto, a excepção peremptória de caducidade invocada pela Ré, sendo a acção improcedente.
*
Reponderada a questão, não vemos razão para nos afastarmos do entendimento do Tribunal recorrido; senão, vejamos:
Em primeiro lugar, não alcançamos a relevância da alegação da errada contagem do prazo de caducidade, exposta nas primeiras conclusões:
1- A aplicar-se o regime jurídico da compra de coisas defeituosas previsto no artigo 913.° e seguintes do Código Civil, o que não se concede, importa salientar que o prazo de caducidade não se encontra corretamente contabilizado, uma vez, que em 21/05/2020, os prazos de caducidade encontravam-se suspensos ao abrigo do artigo 7.°, n.° 3 da Lei n.° 1-A/2020, de 19/03, na redação conferida pela Lei n.° 4-A/2020, de 06/04, desde 09/03/2020;
2- A contagem dos prazos foi retomada a 03/06/2020, com a entrada em vigor da Lei n.° 16/2020, de 29/05, o que leva a que o prazo de caducidade apenas se tenha iniciado em 03/06/2020, terminando assim os seis meses a 03/12/2020 e não a 21/11/2020, como alega o douto Tribunal a quo;
Efectivamente, tendo a acção dado entrada em juízo em 17/12/2020, irrelevante se torna apurar se o prazo de caducidade de seis meses terminou em 21/11/2020 ou em 3/12/2020 – sempre teria decorrido na totalidade antes da interposição da presente demanda.
*
Em segundo lugar, é nosso entendimento que  o prazo de caducidade previsto no art. 917º do Código Civil aplica-se a todas as acções conferidas ao comprador, englobando para além da anulação, a redução do preço, a reparação ou substituição e a indemnização, estando em causa o cumprimento defeituoso da obrigação emergente de contrato de compra e venda, ainda que por prejuízos indiretos sofridos por causa da coisa, mas ainda ligados a ela.
Por todos, veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, pg. 218 e Mota Pinto e Calvão da Silva, «Responsabilidade civil do produtor», in O Direito, ano 121, II, p. 292.
Na jurisprudência, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/12/1979, de 26/6/1980, de 26/5/ 1981, de 19/1/ 1984 e de 19/11/1988, no Boletim do Ministério da Justiça, nºs 292, p. 357, 298, p. 300, 307, p. 257, 333, p. 433, e 381, p. 690.
Culminando este entendimento no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n° 2/97, de 04/12/96 - D.R. I - Série A, de 30/01197 – nos seguintes termos: A acção destinada a exigir a reparação de defeitos de coisa imóvel vendida, no regime anterior ao Decreto-Lei n.o 267/94, de 25 de Outubro, estava sujeita à caducidade nos termos previstos no artigo 917º do Código Civil.
Irrelevante se torna a argumentação de que o pedido de condenação nos lucros cessantes não goza de cobertura à luz do regime da compra e venda de coisa defeituosa.
Tal acepção – que não necessita de ser discutida nesta fase – trata-se de argumento que fundaria a improcedência da demanda e não a aplicação de um regime legal  mais favorável.
*
Em terceiro lugar e por fim, não nos suscitam dúvidas que este litígio há-de ser dirimido com aplicação do regime legal da compra e venda de bens defeituosos.
De acordo com o art. 913, n.º1 do Código Civil - diploma do qual serão as normas que adiante formos referindo sem outra identificação - há venda de coisa defeituosa quando a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou que impeça a realização do fim a que é destinada ou quando não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, remetendo a lei para o regime próprio da venda de bens onerados.
A sua autonomização como espécie jurídica envolve a criação de um regime especial face ao do cumprimento defeituoso, ao qual a lei apenas se refere, em termos gerais, no art. 799, n. 1 - onde o faz equivaler à falta de cumprimento para efeitos de presunção de culpa - e ao qual se faz corresponder, nos termos gerais da responsabilidade contratual, a obrigação de indemnizar os prejuízos dele decorrentes - cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pgs. 126-131.
De notar é que, nesta modalidade de não cumprimento, caberá ao credor o ónus de provar a desconformidade entre a prestação feita e aquilo a que o contrato obrigava o devedor - desconformidade que é o facto constitutivo do seu direito a ser indemnizado - funcionando a partir daí a já mencionada presunção de culpa.
Nos casos em que o cumprimento defeituoso se refira a um contrato de compra e venda, sendo-nos deparado um concurso entre um regime decorrente de normas e princípios gerais e outro consubstanciado em normas especiais, haverá que fazer aplicar o regime especial no âmbito que lhe é próprio, apenas sendo de recorrer ao regime geral fora daquele - cfr. Meneses Cordeiro, in Violação Positiva do Contrato, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 41, pgs. 145-147.
Interessa, por isso, considerar as especialidades mais importantes do regime da venda de coisa defeituosa.
A primeira consequência prevista para a existência de coisa defeituosa é o direito, por parte do comprador, a pedir a anulação do contrato por erro ou dolo, uma vez verificados os respectivos requisitos legais - cfr. art. 905º.
Procedendo esta anulação, o comprador tem ainda direito a ser indemnizado, mas com duas medidas diversas; em caso de dolo será indemnizável todo o dano que não teria sido sofrido se a compra e venda não houvesse sido celebrada; e em caso de erro a indemnização abrangerá apenas os danos emergentes do contrato, dela se excluindo os benefícios que o comprador tiver deixado de obter - cfr. arts. 908º e 909º, conjugado este com o art. 564º, nº 1.
Poderá haver lugar, em alternativa à anulação, à redução do preço, a par da indemnização que tiver lugar no caso - cfr. art. 911º.
E pode ainda - cfr. art. 914º - o comprador exigir do vendedor a reparação da coisa ou, sendo isso necessário e tendo ela natureza fungível, a sua substituição; mas qualquer destas faculdades está excluída se o vendedor ignorava sem culpa o vício ou a falta de qualidade que afectam a coisa vendida.
No entanto, há ainda casos de contratos de compra e venda de coisa defeituosa em que este conjunto de soluções não tem aplicação, valendo antes as regras relativas ao não cumprimento das obrigações, o que envolve o direito, por parte do comprador, a uma indemnização nos termos gerais; não haverá aí, designadamente, a restrição que ao seu âmbito é imposta em casos de erro pelo art. 909º.
Sucede isto nos casos em que, depois da venda e antes da sua entrega, a coisa vendida adquire vícios ou perde qualidades, bem como nos casos de venda de coisa futura e nos de venda de coisa indeterminada de certo género - cfr. art. 918º.
Em qualquer dos casos se poderá pôr, ainda, a hipótese da resolução do contrato, que - para além de ser o enquadramento teórico que parte da doutrina prefere dar à "anulação" a que se referem as disposições conjugadas dos arts. 913º e 905º, como se vê em Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) - Contratos, pgs. 117-120, e João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pgs. 68-70 - poderá ter lugar quando não é cumprida a obrigação de reparação ou de substituição da coisa, actuando pelas vias da perda de interesse ou da interpelação admonitória, abertas, em termos gerais, pelo art. 808º - cfr. último autor e obra citados, pgs. 67-68 e Manuel A. Carneiro da Frada, Perturbações Típicas do Contrato de Compra e Venda, in Direito das Obrigações, Vol. 3º - Contratos em especial, AAFDL, 1991, pgs. 85-86.
Contudo, a situação em causa nestes autos não se enquadra em qualquer das citadas especificidades que afastam a aplicação do regime especial do bem defeituoso.
Não se acompanham, pois, as conclusões:
11- O não cumprimento de todos os critérios de execução das máscaras para serem comercializadas como equipamentos de proteção individual, não constitui uma mera falta de qualidade que possa conduzi-las a serem consideradas como uma coisa defeituosa, mas sim, um vício que afeta de irreversível a finalidade de EPI e o interesse público subjacente, nomeadamente, a preservação da saúde pública e da própria vida humana;
12- Juridicamente estamos a falar de um produto que não podendo ser considerado como EPI, não corresponde à prestação que era devida com o contrato, não satisfazendo o interesse do credor, ora Recorrente, que tendo em conta o seu objeto de atividade pretendia revender as máscaras a farmácias e parafarmácias;
As máscaras fornecidas são máscaras. Padecem de um vício – na perspectiva da autora -, que as impede de serem comercializadas enquanto EPI (equipamento de protecção individual).
Mas existem, foram feitas e entregues, apresentando um defeito essencial que, diríamos, impede a sua comercialização e prejudica a sua reparação; mas não podemos afirmar que as máscaras em questão, objecto do contrato celebrado, não foram entregues.
De igual modo, não se acompanha a conclusão seguinte:
13-       Mesmo que se considerasse aplicável, o regime da compra de coisa defeituosas, atentos os interesses públicos de proteção da saúde pública e da própria vida humana subjacentes à utilização deste tipo de equipamento e que durante o atual estado de pandemia se têm vindo a revelar como primordiais, os mesmos deverão sobrepor-se aos interesses comerciais privados, nomeadamente, aqueles que estão salvaguardados através do prazo de prescrição reduzido de 6 meses previsto na compra e venda de bens defeituosos;
Os especiais interesses de saúde pública tutelados pela comercialização deste tipo de material, não mereceram do legislador a criação de um regime legal específico, derrogador do regime da compra e venda de coisa defeituosa, nomeadamente quanto à caducidade do direito à interposição da correspondente acção.
Não cumpre ao Tribunal criar tal regime ou revogar o regime especial existente, estando, efectivamente, em causa o exercício do direito do credor numa relação comercial, cujo mérito não cumpre agora apurar.
Por tudo isto, concordamos com o juízo da 1ª instância, entendendo como decorrido na íntegra o prazo de caducidade para exercício dos direitos do credor, ora autora e recorrente, o que consequencia a procedência da excepção e a natural improcedência da demanda.
Daí a improcedência da apelação.
*
V. A decisão                                           
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
*
Lisboa, 23 de Junho de 2022
Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas