Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8767/2006-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PASSIVO
EXONERAÇÃO
DEVER DE INFORMAR
DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O pedido de exoneração do passivo do requerente que se apresentou à insolvência (artigo 235.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas) deve ser liminarmente indeferido se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado, no decurso do processo de insolvência, os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do Código de Insolvência ( artigo 239.º/1,alínea g) do C.I.R.E.).
II- Se o devedor, em vez de juntar, com a petição, uma relação de todos os bens de que é titular conforme resulta do artigo 24.º/1, alínea e) do CIRE, se limita a informar que não é titular de quaisquer bens ou direitos, com excepção do quinhão hereditário resultante da herança aberta por óbito de seu pai, verificando-se, no entanto, que tem direitos sobre outros bens ou heranças onde se encontram imóveis de elevado valor, mostram-se violados os deveres supra referenciados.
III- E a tal entendimento não obsta a comprovação do repúdio de uma dessas outras heranças visto que, na petição, devia ser dada notícia desse repúdio considerando que o repúdio é resolúvel em beneficio da massa insolvente (artigo 121.º/1, alínea b) do C.I.R.E.
IV- Ocorrido o falecimento os devedor, mostra-se impossível a continuação do referido incidente de exoneração do passivo considerando que com ele se tem em vista a reabilitação económica do devedor singular insolvente, permitindo-lhe a reintegração plena na vida económica mediante a imposição de uma série de obrigações acessórias de natureza estritamente pessoal (artigos 17.º do C.I.R.E. e 276.º/3 do Código de Processo Civil).

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.

No 7º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, veio António […], em 2/2/06, apresentar-se à insolvência, invocando a insuficiência do activo para satisfazer as responsabilidades assumidas por avales e fianças às sociedades de que foi accionista e administrador, informando que pretende a exoneração do passivo restante, conforme previsto no art.235º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), uma vez que se encontram verificados todos os requisitos legais previstos naquele Código, e, ainda que não é titular de quaisquer bens ou direitos, com excepção do quinhão hereditário resultante da herança aberta por óbito do seu pai, o qual se encontra já penhorado.

Conclui, assim, que deve ser declarada a insolvência do requerente e que, por se encontrarem verificados os requisitos previstos nos arts.236º, 237º e 238º, do C.I.R.E., deve o mesmo ser exonerado do restante passivo.

Na assembleia de apreciação de relatório, a administradora da insolvência e os credores pronunciaram-se contra o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do art.238º, nº1, al.g), daquele Código.

Tal pedido foi liminarmente indeferido, por se ter entendido que se verificava a previsão contida neste último preceito legal.

Desse despacho interpuseram recurso de agravo M.[…] e A.[…], identificadas como únicas filhas de António […], entretanto, falecido em 9/2/06.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.
2.1. As recorrentes rematam as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) Nem o apresentante, nem os seus herdeiros, alguma vez violaram os deveres de informação e colaboração que para si resultam do C.I.R.E..

B) Entendendo em contrário, o despacho recorrido violou a supracitada disposição legal e os arts.83º e 237º, do C.I.R.E., pelo que, deve ser revogado e substituído por outro que conceda efectivamente tal exoneração.

2.2. A única questão que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se havia fundamento legal para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência, designadamente, o previsto na al.g), do nº1, do art.238º, do C.I.R.E. (serão deste Código os demais artigos citados sem menção de origem).

No despacho recorrido considerou-se que, no seu requerimento inicial, o insolvente não efectuou qualquer declaração a que alude o art.236º, nº3, e, ainda, que, dos elementos factuais reunidos nos autos, o insolvente manifestou propósito de não dar a conhecer todos os bens ou direitos que integram o seu património. Mais se considerou que, apesar de ter afirmado, naquele requerimento, que não é titular de quaisquer bens ou direitos, com excepção do aludido quinhão hereditário, o certo é que o falecido insolvente era titular de outros direitos sobre heranças, as quais são compostas por numerosos e valiosos bens, como ressalta dos autos de apreensão apresentados pela Sr.ª Administradora de Insolvência. Daí que se tenha concluído que este circunstancialismo constitui uma omissão culposa de direitos relevantes para a caracterização da situação económica e patrimonial do insolvente, o que integra a violação, também culposa e flagrante, dos seus deveres de informação e colaboração. Por isso que o pedido de exoneração foi liminarmente indeferido, por se verificar a previsão contida no art.238º, nº1, al.g).

Segundo as recorrentes, o apresentante, em 7/5/03, repudiou a herança de sua mãe, na qual se incluía o quinhão desta na herança dos avós maternos do apresentante, pelo que, não podia ele relacionar bens e direitos que repudiara e de que, portanto, não era titular. Logo, concluem, não se mostra verificada a previsão contida no citado art.238º, nº1, al.g).

Vejamos.

Conforme se refere no preâmbulo do DL nº53/2004, de 18/3, que aprovou o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, «O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste»
Acrescentando-se, mais à frente, no referido preâmbulo, «A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica».

O objectivo final é, pois, nas palavras de Catarina Serra, «O Novo Regime Jurídico da Insolvência» - Uma Introdução, 2ª ed., pág.73, a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica.

Por conseguinte, só o devedor que seja uma pessoa singular pode requerer a referida exoneração, que é tratada no Capítulo I, do Título XII, do C.I.R.E., e que se traduz na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, vol.II, pág.184).

Assim, do requerimento deve constar expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes (art.236º, nº3). Se o pedido de exoneração não for liminarmente indeferido, o juiz profere um despacho inicial, que determine que o devedor fica obrigado à cessão do seu rendimento disponível ao fiduciário durante o período de cessão, ou seja, durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo (art.239º, nºs 1 e 2). Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos previstos nas als.a) e b), do nº3, do art.239º. O nº4 deste mesmo artigo impõe ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, tendo em vista assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida. E como o trabalho é a fonte normal e mais significativa dos seus rendimentos, aquele nº4, para além de impor ao devedor a obrigação de exercer uma actividade remunerada, proibindo-lhe o seu abandono injustificado, determina que, ocorrendo uma mudança de empresa onde exerce a sua actividade, deve informar o tribunal e o fiduciário no prazo de dez dias (als.b) e d)). O fiduciário afecta os montantes recebidos no final de cada ano em que dure a cessão aos pagamentos, ao reembolso e à distribuição a que aludem as als.a), b), c) e d), do nº1, do art.241º. No fim do período da cessão, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração (art.244º, nº1). Se a exoneração for concedida, dá-se a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que é concedida, com excepção de alguns (art.245º,nºs 1 e 2).

É esta, portanto, a tramitação do incidente de exoneração do passivo restante, desde a apresentação do respectivo requerimento até à decisão final de concessão ou não de exoneração. No entanto, o despacho inicial referido no art.239º, nº1, só é proferido não havendo motivo para indeferimento liminar, sendo que, os motivos são os previstos no nº1, do art.238º.

No caso dos autos, foi invocado, no despacho recorrido, o fundamento previsto na al.g), daquele nº1, nos termos do qual, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido «Se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência». Ora, um dos deveres do devedor consiste em juntar, com a petição, uma relação de todos os bens de que seja titular, o que releva, sobretudo, para simplificar a apreensão para a massa (art.24º, nº1, al.e)). O requerente, porém, limitou-se a informar que não é titular de quaisquer bens ou direitos, com excepção do quinhão hereditário resultante da herança aberta por óbito do seu pai, o qual se encontra já penhorado à ordem de dois processos judiciais. Todavia, no relatório da Sr.ª Administradora de Insolvência, esta escreve que, ao contrário do que foi referido pelo insolvente, o mesmo tem direitos sobre outros bens e heranças (da sua mãe e dos seus avós maternos), onde se encontram imóveis de elevado valor, que identifica (cfr. fls.38 e 39 do presente agravo). Sendo que, conforme se refere no despacho recorrido, tais bens constam dos autos de apreensão apresentados pela Sr.ª Administradora de Insolvência.

É certo que as recorrentes alegam que o apresentante repudiou a herança de sua mãe, na qual se incluía o quinhão desta na herança doa avós maternos do apresentante. Repúdio esse que foi lavrado, no dia 7/5/03, mediante escritura pública (cfr. fls.18 do presente agravo). Contudo, é igualmente certo que consta dos presentes autos a informação, prestada no despacho recorrido, de que os bens que fazem parte das outras heranças, a que o devedor tinha direito, integram os autos de apreensão (cfr. os arts.36º, al.g), 149º e 150º). Por outro lado, tais bens são mencionados no referido relatório da Sr.ª Administradora, onde, aliás, também constam bens como fazendo parte da própria herança do falecido devedor.

Também nos parece, pois, que este circunstancialismo configura conduta adoptada pelo devedor que consubstancia a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo, nos termos do disposto na al.g), do nº1, do art.236º. Note-se que a Sr.ª Administradora de Insolvência e os credores pronunciaram-se contra o deferimento do pedido de exoneração, o que não deixa de ser significativo, não obstante tal parecer não ser vinculativo para o juiz. Refira-se, ainda, que, de todo o modo, segundo cremos, o dever de informação e de colaboração impunham ao devedor que, na petição, desse notícia do repúdio da herança e da existência da respectiva escritura pública. Na verdade, nos termos do art.121º, nº1, al.b), o repúdio da herança é resolúvel em benefício da massa insolvente, desde que esse acto tenha ocorrido nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. É certo que o devedor se apresentou à insolvência depois do decurso desses dois anos, o que, provavelmente, não aconteceu por acaso. Porém, sempre haveria que dar a possibilidade ao administrador de controlar se aquele prazo havia decorrido ou não. Acresce que, ao estabelecer-se a resolubilidade do repúdio da herança, se atribuiu um meio de tutela dos credores do repudiante além do já previsto no art.2067º, do C.Civil, sob a designação «Sub-rogação dos credores», a quem este preceito faculta a aceitação da herança em nome do repudiante, se o repúdio afectar os seus interesses. Direito este que se baseia na tutela da garantia patrimonial dos créditos de terceiro, funcionando no interesse simultâneo do devedor, que se libera do seu débito, e do credor, que assim cobra o seu crédito e vê satisfeito o seu direito (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.VI, pág.114).

Dir-se-á, por outro lado, que o devedor não declarou, de modo expresso, no requerimento de presentação à falência, que se obriga a observar todas as condições que a exoneração envolve e que estão estabelecidas nos arts.237º e segs., conforme exige o nº3, do art.236º. O que, aliás, também é referido no despacho recorrido. Circunstância esta que implica, igualmente, o indeferimento do pedido, por falta de requisitos essenciais, por via de aplicação analógica do disposto no art.27º, nº1, al.b), embora aqui esteja previsto que, previamente, se profira despacho de aperfeiçoamento e que o mesmo não seja cumprido (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob.cit., pág.186).

Mas ainda que não fosse caso de aplicação do disposto no art.236º, nº1, al.g), sempre haveria que ter em consideração que o devedor faleceu sete dias depois de se ter apresentado à insolvência. Razão pela qual, o processo passou a correr, a partir dessa altura, contra a herança jacente, por força do disposto no art.10º, al.a), tendo-lhe sido nomeado um curador (cfr. o art.2048º, do C.Civil). O que significa que não há lugar a incidente de habilitação, já que, a massa patrimonial que a herança indivisa constitui continua, ipso iure, a posição processual do de cujus. Todavia, apesar de o processo continuar com a herança jacente no lugar do falecido, o mesmo não se poderá dizer, a nosso ver, no que respeita ao incidente de exoneração do passivo restante. Na verdade, atento o que atrás se expôs acerca da razão de ser daquela exoneração, nomeadamente, a consideração de que tem em vista a reabilitação económica do devedor singular insolvente, permitindo-lhe a sua reintegração plena na vida económica, mediante a imposição de uma série de obrigações acessórias, de carácter estritamente pessoal, o falecimento do devedor torna impossível a continuação do referido incidente. O que sempre implicaria a extinção da instância incidental, nos termos do disposto no art.276º, nº3, do C.P.C., aplicável ex vi do art.17º, do C.I.R.E..

Haverá, assim, que concluir que havia fundamento legal para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, formulado pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência, qual seja, o previsto na al.g), do nº1, do art.238º, e que, de todo o modo, sempre haveria que declarar a extinção da instância incidental, devido ao falecimento do devedor.

Improcedem, pois, as conclusões da alegação das recorrentes.

3 – Decisão.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o despacho agravado.

Custas pelas agravantes.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2007

(Roque Nogueira)
(Pimentel Marcos)
(António Geraldes)