Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
168/18.0PEPDL-A.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: PROVA PERICIAL
INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - O exame pericial que o MP pretende realizar no presente processo, de comparação do ADN do arguido com o do nado-morto decorrente da gravidez da ofendida, mostra-se imprescindível para determinar se o mencionado crime é da autoria do arguido P. , razão pela qual foi solicitada a autorização do JIC para a recolha, mediante zaragatoa bucal, dos seus vestígios biológicos, perante a recusa do mesmo em prestar voluntariamente a sua colaboração.
- É certo que, a investigação não tem de estar concluída, nem de ser formulado o requerimento em causa com todos os factos que devem constar da própria acusação, ao dirigir o pedido de exame ao juiz de instrução. Todavia, visando tal exame demonstrar a autoria do crime que se investiga, naquele requerimento terão obrigatoriamente de ser alegados e demonstrados como fortemente indiciados os elementos objectivos típicos essenciais desse mesmo crime, de molde a permitir que este seja imputado ao arguido. 
- Atenta a natureza do exame a realizar e a ausência de consentimento do arguido para tal - impondo-se a sua realização contra a vontade do próprio -, não há quaisquer dúvidas em como aquele só deve ter lugar se estiver suficientemente indiciada a prática do crime em causa, pelo que, no requerimento a solicitar autorização para que o arguido seja submetido à recolha dos vestígios biológicos, terão de constar os já referidos elementos objectivos típicos essenciais, de molde a concluir-se que, face ao que é alegado, estamos efectivamente perante a prática de um crime e que há uma forte probabilidade de o mesmo ser imputado ao visado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
1. Nos presentes autos de inquérito em que é arguido P. , investiga-se um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, p. p. pelos artigos 165.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 5, do Código Penal.
O Ministério Público, invocando que é essencial para a investigação dos respectivos factos, solicitou ao juiz de instrução criminal que fosse ordenada a recolha de vestígios biológicos do arguido mediante zaragatoa bucal, após detenção e condução do mesmo ao IML, para tal fim, uma vez que, notificado pessoalmente pela PSP para comparecer no Gabinete Médico-legal, não compareceu nem apresentou justificação.
Tal pretensão foi indeferida por despacho de 10/07/2019, do Juiz de Instrução Criminal de Ponta Delgada, Comarca dos Açores.
2. Não se conformando com essa decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso, que motivou, formulando as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto do despacho judicial datado de 10.07.2019, que indeferiu a promoção, nos termos dos arts. 165.°, n°s. 1 e 2, e 177.°, n.° 5, ambos do C.P., e, ainda, 154.°, n.° 3, 156, n.°s 6 e 7, e 269.°, n.° 1, alínea b) e 172.°, n.° 1, todos do C.P.P., de que fosse ordenada a recolha de vestígios biológicos do arguido mediante zaragatoa bucal do arguido P. para exame pericial comparativo do ADN do mesmo com aquele do nado-morto decorrente da gravidez da ofendida, LP que padece de limitações cognitivas; mais requerendo fosse ordenada a sua condução ao Gabinete Médico-Legal para tal efeito.
II. Tal despacho fundamentou-se, em síntese, na ausência de indicação, pelo Ministério Público de factos que integrem a prática de ilícito criminal e que, inexistindo crime, não é de realizar tal diligência, interpretando o dever de fundamentação, por parte do Ministério Público em fase de inquérito, de forma densificada e extensiva no sentido de apenas só a narração de todos os factos integrantes da conduta típica possibilitaria o deferimento das aludidas condução e realização de exame nos termos das normas supra elencadas.
III. Já o Ministério Público considera, por um lado, que a promoção para a aquisição da prova não depende de ser possível cabalmente identificar o lugar e data da prática dos factos e demais elementos do tipo pois, pela sua própria natureza, o que se pretende é reunir prova dos mesmos, o que decorre dos arts. 165.°, n°s. 1 e 2, e 177.°, n.° 5, ambos do C.P., e, ainda, 154.°, n ° 3, 156, n °s 6 c 7, c 269.°, n ° 1, alínea b) e 172.°, n.° 1; e, por outro, que a invocação da qualificação jurídica como crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, a menção à incapacidade da ofendida, ao relatório do GML de onde decorre que a mesma não é capaz de se autodeterminar sexualmente, do facto de ter a mesma declarado que apenas manteve relações sexuais com o arguido decorre que são efectivamente indicados, sucintamente, todos os elementos típicos do crime o que afasta o argumento invocado pelo Tribunal a quo.
IV. Com efeito, tal interpretação do Tribunal recorrido onera excessivamente o Ministério Público, legitimo e único titular da acção penal em fase de inquérito, impondo-lhe, na prática, a narração de factos como se de uma acusação se tratasse quando, pela própria natureza do inquérito, ainda não se mostra consolidada a investigação e inexiste norma que a tal obrigue.
V. A realização de exames, previstos nos arts. 171.° e seguintes do C.P.P., insere-se no Capitulo I do Titulo III, designada meios de obtenção de prova, precisamente porque, em fase de inquérito, a investigação dirige-se, frequentemente, para o apuramento da verdade que se esconde por trás de denúncias, suspeitas e indícios, pelo que o patamar da validade epistémica da prova recolhida para as diligências essenciais à prossecução penal são, naturalmente, diferentes daqueles que devem resultar no final do inquérito para que se deduza acusação.
VI. Esta diferenciação do grau de certeza que deve observar o conhecimento carreado para o processo é, também, reconhecido e consagrado pelo legislador, que os elenca para os actos processuais correspondentes sendo reduzida face à obrigação legal de não apenas ter os elementos típicos por suficientemente indiciados como narrá-los, de forma completa, na acusação.
VII. E inexigível, porque tal não decorre da lei, que seja formulada narração circunstanciada dos factos já indiciados numa promoção em inquérito - aliás, fosse tal possível, deveria o Ministério Público encerrar o inquérito e proferir acusação uma vez que só deverá proceder a diligências probatórias que se reputem como úteis e necessárias.
VIII. Mais, deve, ainda, entender-se que o Ministério Público indicou a tipicidade em investigação de forma suficiente ao conhecimento do requerido, pois referiu que se investigava a prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, previsto e punido pelos art. 165.°, n.°s 1 e 2, e 177.°, n.° 5, ambos do C.P., tendo como ofendida LP e arguido P.  e que este se recusara a permitir a recolha dc amostra de ADN através de Zaragatoa bucal.
IX. Na sua promoção, além de indicar os elementos de prova de onde decorrem os indícios já recolhidos, o Ministério Público indicou que a ofendida sofria de incapacidade que limitava significativamente as suas capacidades cognitivas ao ponto de ter dificuldades em expressar o que lhe havia acontecido, que a mesma foi internada na sequência de uma gravidez que até ao momento em que sofreu consequências na sua saúde era desconhecida e que, em toda a sua vida, apenas mantivera relações sexuais com o arguido.
X. Em síntese, o Ministério Público invocou o tipo de ilícito em investigação, os indícios já recolhidos que sustentam a respectiva conduta típica e, ainda, narrou sucintamente, sendo que o Tribunal a quo fez tábua rasa de tais fundamentos, e, adoptando uma leitura rígida e pouco conforme à própria letra da promoção, indeferiu a pretensão da investigação referindo que o Ministério Público não indicou em que data teriam ocorrido tais contactos sexuais ou que a ofendida sofria de incapacidade que a impossibilitasse de se autodeterminar sexualmente.
XI. Discorda-se de tal acepção, pois pela mera identificação do crime em investigação, a referência às limitações extensas nas capacidades cognitivas da ofendida (e a menção ao relatório do GML de onde consta o seu efeito na autodeterminação sexual da mesma) e a menção de que a mesma teve até dificuldades em expressar com quem havia mantido relações sexuais, está ínsita a sua incapacidade para consentir em contactos de natureza sexual.
XII. Mais, da referência a que a ofendida foi internada a 03.11.2018, por força de complicações com a gravidez, da qual resultou o nascimento de um nado-morto, resulta que os contactos sexuais ocorreram durante o período anterior de concepção e que apenas tiveram lugar com o arguido, o que decorre do seu depoimento.
XIII. Assim, da promoção do Ministério Público constam todos os elementos necessários a considerar típica a conduta do arguido e sustentar a necessidade do exame.
XIV. Assim, deve entender-se, como não poderia deixar de ser, que o Ministério Público fundamentou a sua pretensão descrevendo factos susceptíveis de integrar ilícito criminal que delimitou, indicou os elementos de prova que os sustentam e que a diligência requerida era necessária, útil e, como referido na mesma promoção, a limitação aos direitos do arguido é proporcional aos desideratos da investigação e à gravidade do crime em investigação.
XV. Deverá, ainda, entender-se que, em fase de inquérito e em promoção para realização de diligência com vista à obtenção de prova, basta a indicação, sucinta, dos factos em investigação e não a narração dos factos como se de acusação se tratasse.
XVI. Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene a condução do arguido ao GML e recolha de zaragatoa bucal para realização de exame pericial.
XVII. Nestes termos, deverá dar-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro que defira a promoção do Ministério Público para que, nos termos dos arts. 165.°, n°s. 1 e 2, e 177.°, n.° 5, ambos do C.P., e, ainda, 154.°, n.° 3, 156, n°s 6 e 7, e 269.°, n.° 1, alínea b) e 172.°, n.° 1, todos do C.P.P., seja ordenada a recolha de vestígios biológicos do arguido mediante zaragatoa bucal do arguido P. , com a sua condução ao Gabinete Médico-Legal para tal efeito.
3. Admitido o recurso, não houve qualquer resposta.
4. Foi lavrado despacho de sustentação da decisão recorrida, após o que, subiram os autos, tendo a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, nesta Relação, emitido douto parecer, «no sentido da procedência do recurso».
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais foi alegado.
6. Após exame preliminar foram colhidos os vistos a que se refere o artigo 418.º, n.º 1, do CPP e teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***
II – FUNDAMENTAÇÃO:
1. Comecemos por conferir a douta promoção do MP:
«Os presentes autos têm por objecto a investigação de factos passíveis de consubstanciar a prática do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, previsto e punido pelos artigos 165.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 5, ambos do Código Penal, sendo ofendida LP e arguido P. .
Resulta indiciado da prova já coligida, maxime declarações da vítima a fls. 17 e ss, da irmã da mesma, Paula Cristina Gomes Pacheco a fls. 7 e ss., relatório do GML a fls. 94 e ss., e dos elementos clínicos a fls.22 e 62 e ss., que LP sofre de incapacidade mental, que esteve grávida até ao termo, o que não foi detectado atendendo à compleição física da mesma e as limitações decorrentes da incapacidade, tendo o feto morrido antes do parto e sendo admitida no HDES a 03-11-2018 em virtude de complicações decorrentes de tal situação. Não eram até à data conhecidos parceiros íntimos da vítima pela família, tendo a mesma verbalizado, no limite das suas capacidades, que o arguido, que é seu vizinho, foi a única pessoa com quem alguma vez manteve relações sexuais, num anexo do arguido sito no Caminho da Abelheira de Cima, na Fajã de Baixo, as quais terão ocorrido, pelo menos, durante o período legal de concepção do referido nado-morto.
Mostra-se necessário para a investigação dos factos que são objecto dos autos se proceda à recolha de zaragatoa bucal para aferição do perfil de ADN do arguido, para posterior comparação com os perfis de ADN do feto do qual a ofendida esteve grávida e da própria ofendida, com vista à aferição da paternidade do mesmo.
Constata-se que o arguido, notificado pessoalmente, pela Polícia de Segurança Pública, pela 09h00 do dia 29-05-2019, para se apresentar no Gabinete Médico-Legal a 05-06-2019, às 10h00, para tal fim, não compareceu nem nada veio comunicar aos autos, cf. fls. 100, 108, 111-112, 113-114, 115-118 e 127.
O referido exame — recolha de vestígios biológicos do arguido mediante zaragatoa bucal — é susceptível de contender, designadamente, com o direito à integridade pessoal, nomeadamente na sua vertente física, e/ou com o direito à não auto-incriminação daquele.
Não obstante, tal recolha é essencial para a descoberta da verdade material, sendo que uma eventual lesão de tais bens jurídicos titulados pelo arguido se afigura diminuta e, consequentemente, a ponderação dos interesses em causa, seguindo a jurisprudência e doutrina actualmente pacificadas, dita seja tal recolha efectuada independentemente do consentimento do arguido.
Pelo exposto, promove-se seja ordenada tal recolha, com a condução do arguido ao Gabinete Médico-Legal para tal fim, ao abrigo do disposto nos artigos 171.º, n.º 1, e 172.º, e, ainda, 154.º, n.º 3, 156.º n.ºs 6 e 7, e 269.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.»
2. Sobre ela se pronunciou o despacho recorrido, cuja redacção é a seguinte:
«Limita-se o requerimento a afirmar que P.  manteve "relações sexuais" com LP (LP ) durante o período legal da concepção, que esta sofre de “incapacidade mental" e que aquelas relações ocorreram num anexo no Caminho da Abelheira, Fajã de Cima. Não se refere, nem ao de leve, quando o arguido manteve relações com LP , que tipo de interação teve com ela com vista a ter essas relações, qual a "incapacidade mental" de que ela padece, se a mesma afeta e em que medida o seu juízo para actos sexuais (é evidente que o sexo não está de plano, sem mais, proscrito a pessoas que sofram de incapacidades) e, enfim, descrevendo na medida do possível aquela interação, não possibilita qualquer conclusão, provisória que seja, sobre o aproveitamento da incapacidade que é condição da verificação do crime previsto no art. 165.° CP. Tudo isto pode ser feito de modo sucinto e, mais ainda, deve ser feito. Na verdade, e mais uma vez, como antes já referi, é ao MP quem, de acordo com a estrutura acusatória do processo, cabe, de modo autossuficiente, consignar todos os elementos necessários à procedência da pretensão que formula, possibilitando do mesmo passo ao JI um juízo consciencioso sobre essa pretensão, quer dizer uma actividade jurisdicional e não notarial, para mais diante de uma diligência que, a proceder, implica uma das mais relevantes intervenções na esfera jusfundamental e da autonomia das pessoas. Não cabe, naturalmente, nesta fase, para requerer diligência probatória, formular uma acusação: mas impõe-se, sem formalidades ainda, um requerimento que seja fundamentado do ponto de vista fáctico, pois só assim é possível um juízo sobre ele. Neste particular, dou por reproduzido o que já disse a fls. 131, sendo evidente que só a autossuficiência do requerimento do MP é compatível com a partilha de tarefas entre MP e JI postulada pela estrutura acusatória do processo. Isso mesmo enfatiza, se necessário fosse, PAULO DÁ MESQUITA, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, 2003. p. 181 ss.. esp. p. 185: "[e]m resumo, do princípio do pedido decorre que a promoção para ser válida tem de conter todos os elementos necessários para a decisão judicial." Ora, tem de admitir-se, que para proceder uma pretensão de extracção coactiva de ADN de uma pessoa suspeita de um crime, convém antes explicitar quais os concretos factos que, de acordo com o estado do processo, materializam esse crime - não sendo suficiente a alegação de que a ofendida sofre de uma "incapacidade mental" e que o arguido manteve "relações sexuais" com ela num anexo. Isto, a bem dizer, só por si, é inócuo - e sendo inócuo não pode fundamentar uma medida altamente invasiva e que, no limite, pode implicar o emprego de força física. Quer dizer, uma vez mais, terei de indeferir a pretensão por não estar minimamente concretizada no que importa à apreciação judicial dela (o acima indicado).»
3. Em sede de despacho de sustentação, foi aditada a seguinte argumentação em abono do decidido:
«Para sustentação do despacho recorrido alinharei primeiro, sinteticamente, umas premissas e, depois, como é de lógica, a conclusão.
I
1 - Quanto às premissas, a primeira que me ocorre sublinhar é a de que o processo penal português tem uma estrutura acusatória (arts. 32.°/5 CRP), estrutura que integra um princípio de acordo com o qual as tarefas de promover e acusar, por um lado, e judicar, por outro, estão nitidamente separadas, não só no plano normativo, mas mesmo no plano físico (as pessoas que encarnam uma e outra das funções não se confundem).
2 - Premissa outra, que por vezes é olvidada, é a de que aquela separação de águas (leia-se: de competências), postulada na estrutura acusatória, não se dá apenas entre fases processuais, arquetipicamente entre o inquérito, dirigido pelo MP (art. 219.°/1 CRP), e o julgamento, que só pode caber a um juiz: aquela separação ocorre mesmo dentro das distintas fases processuais e muito especialmente (e para o que aqui importa) dentro do inquérito, o que se deduz:
a) Da regulação de certos e específicos “incidentes” processuais, com relevo para o procedimento para aplicação de medida de coacção, nomeadamente ficando claro que o juiz não pode aplicar medida de coacção com base em provas e factos que não tenham sido comunicados ao arguido, sendo que os comunicados são os constantes do requerimento do MP (cf. conjugação dos n.°s 2, 3 e 7 do art. 194.° CPP);
b) De uma sã (por ser a única compatível com aquela estrutura acusatória) leitura da norma que regula em termos gerais as decisões do JI sobre requerimentos do MP, concretamente os arts. 268.°/3/4 e 269.°/2 CPP. Com efeito: b1) o dispensarem estas normas “formalidades” não equivale (seria erro garrafal) a dispensarem fundamentação, probatória e de facto, e autossuficiente; b2) a possibilidade de o JI (no caso raríssimo de o requerimento lhe ser feito autonomamente) solicitar que lhe sejam presentes os autos de inquérito serve, certamente, para comprovar ou infirmar o mérito do que lhe é requerido - mas não serve, também certamente, para selecionar provas e factos não selecionados pelo MP na sua promoção! Só uma tal leitura é côngrua com a estrutura acusatória do processo (art. 32.°/5 CRP) e com a autonomia (a outra face da responsabilidade) do MP (art. 219.°/2 CRP).
3 - Dessas duas anteriores premissas, resulta já evidente, que: a) cabe ao MP, e apenas ao MP, selecionar os factos que leva a um requerimento que dirige ao JI, nomeadamente peticionando que seja levada a efeito diligência altamente invasiva da autonomia, privacidade e, mesmo (porventura), da integridade física alheia (a hipótese de ser oposta resistência pelo visado); b) para proceder a pretensão do MP, o respectivo requerimento tem de ser autossuficiente quanto aos factos alegados e às provas que o sustentam (cf. a doutrina citada no despacho recorrido, se necessária fosse qualquer citação); c) inversamente, não cabe ao JI selecionar provas ou factos que não constem do requerimento do MP e sejam essenciais à procedência da pretensão dele.
4 - Outra premissa, essa de teor substantivo, mas com clara projecção processual - não fosse o processo penal o meio, o único meio, de actualizar o programa penal substantivo -, é a de que a) não está vedada a prática do sexo a doentes mentais por serem doentes mentais (art. 13.°/1 CRP); b) a penalização da prática de actos sexuais com pessoa “incapaz (...) de opor resistência” está contingente de o suspeito agir “aproveitando-se d[a] incapacidade” (art. 165.° CP); c) da relação de a) com b) resulta evidente que só é legítima medida probatória com o carácter invasivo como a requerida onde sejam trazidos factos, indiciados que sejam, que recortem um concreto “pedaço de vida” nos termos do qual se possa concluir, preenchendo os conceitos normativos referidos (ofendido “incapaz (. ) de opor resistência” e agente do crime “aproveitando-se do (. ) estado ou incapacidade”), que o aqui visado seja suspeito de um crime (e não de manter relações de sexo).
5 - Não vale dizer que o requerimento a formular nos termos do art. 268.°/3/4 e 269.°/2 CPP não é uma acusação, pois não se insinuou isso em ponto algum. O não ser acusação, como não é, não dispensa o MP de descrever factos (com o grau de indiciação possível) que integrem um crime nos seus essenciais elementos, pois de contrário a pergunta impõe-se: qual a legitimidade de uma medida de cariz altamente invasivo se não for promovida e ordenada no processo penal por referência a factos que integrem um crime?
6 - Ora, no seu requerimento - o requerimento que baliza a cognição do JI, repiso (cf. supra 1-4), o MP limita-se a alegar que a ofendida a) “sofre de incapacidade mental”, b) que está grávida e que o c) arguido “seu vizinho, foi a única pessoa com quem alguma vez manteve relações sexuais, num anexo”! É com base nisto que pretende a digna procuradora-adjunta que o JI, o tal juiz das liberdades, determine uma diligência do jaez da extração de ADN, contra a vontade do visado! Mas, seja qual o esforço que façamos, não há como concluir que tais factos, despidos de quaisquer alegações outras referentes à natureza e alcance da “incapacidade mental” da ofendida e ao concreto interagir do arguido com ela sejam suficientes para sustentar a medida pretendida, sobretudo se se tiver em conta que não é (sequer) alegado que ela não tenha capacidade para consentir em relações de sexo e, sendo incapaz a esse nível, o arguido se tenha aproveitado dela. Tosando o verbo: o JI determinaria o manietar do arguido para extracção de ADN porque: a) houve relação de sexo entre a ofendida e o arguido; b) aquela engravidou; c) aquela “sofre de incapacidade mental”.
7 - Não creio que isso seja suficiente - e, francamente, cuidando que nos autos há elementos mais do que suficientes substanciar os pontos omissos ou não suficientemente substanciados, estranha é a razão pela qual não se traduzem na promoção, ou noutra promoção devidamente fundamentada - com o que certamente se ganharia na eficiência. A opção foi, porém, a do recurso e, diante disto, a minha conclusão é a que se segue.
II
Mantenho na íntegra o despacho recorrido.
…»
***
Cabe apreciar a pretensão formulada pelo recorrente, ou seja, saber se o despacho recorrido deve ser revogado e ordenada a sua substituição por outro que defira a promoção do Ministério Público no sentido de, ao abrigo dos arts. 165.°, n°s. 1 e 2, e 177.°, n.° 5, ambos do C.P., e, ainda, 154.°, n.° 3, 156, n°s 6 e 7, e 269.°, n.° 1, alínea b) e 172.°, n.° 1, todos do C.P.P., ser ordenada a recolha de vestígios biológicos, mediante zaragatoa bucal, do arguido P. , após prévia condução do mesmo ao Gabinete Médico-Legal, para esse efeito.
***
O respectivo processo encontra-se em fase de inquérito, nele se investigando a prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz, do qual será autor, segundo o MP, o arguido P. . 
A direcção daquela fase processual cabe ao MP, devendo nela serem realizadas as diligências que visam demonstrar a existência de um crime e determinar os seus agentes e a responsabilidade destes, descobrindo e recolhendo as provas com vista à decisão sobre a acusação.
Há, porém, determinados actos que têm de ser praticados em inquérito mas que são da competência exclusiva do juiz de instrução (artigo 268.º, do CPP), ou que dependem de autorização do mesmo juiz (artigo 269.º, do mesmo Código), entre estes se encontrando a efectivação de exames (cfr. alínea b) do n.º 1 deste último normativo, em conjugação com o disposto nos artigo 172.º, n.º 2, 154.º, n.º 3 e 156.º, n.º 6, todos do referido Código).
Assim, o exame pericial que o MP pretende realizar no presente processo – comparação do ADN do arguido com o do nado-morto decorrente da gravidez da ofendida -, mostra-se imprescindível para determinar se o mencionado crime é da autoria do arguido P. , razão pela qual foi solicitada a autorização do JIC para a recolha, mediante zaragatoa bucal, dos seus vestígios biológicos, perante a recusa do mesmo em prestar voluntariamente a sua colaboração.
Porém, aquele magistrado judicial indeferiu tal pretensão, com o fundamento de que, perante o teor do requerimento formulado não se sabe que tipo de interacção teve o arguido com a ofendida com vista a terem relacionamento sexual, qual o grau de “incapacidade mental” de que a mesma padece, se tal incapacidade «afecta e em que medida o seu juízo para actos sexuais», não possibilitando tal requerimento «qualquer conclusão, provisória que seja, sobre o aproveitamento da incapacidade que é condição da verificação do crime previsto no art. 165.º, do CP».
É certo que, a investigação não tem de estar concluída, nem de ser formulado o requerimento em causa com todos os factos que devem constar da própria acusação, ao dirigir o pedido de exame ao juiz de instrução, conforme referido pelo requerente.
Todavia, visando tal exame demonstrar a autoria do crime que se investiga, naquele requerimento terão obrigatoriamente de ser alegados e demonstrados como fortemente indiciados os elementos objectivos típicos essenciais desse mesmo crime, de molde a permitir que este seja imputado ao arguido. 
Atenta a natureza do exame a realizar e a ausência de consentimento do arguido para tal - impondo-se a sua realização contra a vontade do próprio -, não há quaisquer dúvidas em como aquele só deve ter lugar se estiver suficientemente indiciada a prática do crime em causa.
Por isso, no requerimento a solicitar autorização para que o arguido seja submetido à recolha dos vestígios biológicos, terão de constar os já referidos elementos objectivos típicos essenciais, de molde a concluir-se que, face ao que é alegado, estamos efectivamente perante a prática de um crime e que há uma forte probabilidade de o mesmo ser imputado ao visado.
Dúvidas inexistem de que foi praticado acto sexual de relevo (cópula) com a ofendida, do qual resultou uma gravidez, e que aquela padece de limitações cognitivas, tendo declarado que o arguido, seu vizinho, foi a única pessoa com quem manteve relações sexuais.
Todavia, para além da demonstração da incapacidade da vítima para formar e/ou exprimir a sua vontade, ou seja, de se autodeterminar sexualmente (face ao relatório do GML a que o MP faz referência e que estará nos autos), é ainda elemento do tipo objectivo de ilícito que o agente se aproveite da aludida incapacidade, ou seja, tem de se alegar e demonstrar que foi tal incapacidade que tornou possível ao agente o abuso sexual ou que, pelo menos o facilitou significativamente.
Isto porque, não faz qualquer sentido impedir a pessoa que sofre de uma anomalia psíquica de toda e qualquer actividade sexual com outra pessoa, razão pela qual, sempre que aquela consiga exprimir a sua anuência ao acto ou até tomar a iniciativa dele, não haverá aproveitamento, para efeitos da norma em causa (cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora 1999, página 479).
Porém, para além da aludida incapacidade para se determinar sexualmente, que foi devidamente alegada pelo requerente, refere-se no requerimento indeferido que «não eram até à data conhecidos parceiros íntimos da vítima pela família» e que, a própria ofendida terá verbalizado que só manteve relações sexuais com o arguido, num anexo deste, relações que terão corrido durante o período legal de concepção do nado-morto.
Se não havia - pelo menos, não era conhecida da família -, qualquer intimidade entre a ofendida e o arguido e se as relações sexuais tiveram lugar num anexo deste, não vislumbramos como possa ser equacionada a possibilidade de se vir a demonstrar que, apesar da reconhecida incapacidade da ofendida, esta teve capacidade, naquele momento, para anuir ao acto, ou que este pudesse ter sido da sua iniciativa.
Tendo sido alegado e estando suficientemente demonstrado nos autos que a ofendida sofre de incapacidade psíquica, nos termos do relatório do GML de fls. 94 e ss. e que tem «limitações decorrentes da incapacidade» e que só «no limite das suas capacidades» conseguiu verbalizar que o arguido é seu vizinho e só com ele manteve relações sexuais, no anexo, é de concluir que estas relações só tiveram lugar porque o arguido se aproveitou, para o efeito, da incapacidade da ofendida. A incapacidade de esta opor resistência à conduta do arguido decorre naturalmente da incapacidade de aquela formar e exprimir a sua vontade, nesta matéria. Embora não seja dito com esta clareza no requerimento do MP, trata-se de uma ideia que decorre do que é alegado e que está subjacente ao pedido formulado.
Não se duvida, também, da essencialidade do exame para o qual é pedida autorização, porquanto, só por essa via poderá demonstrar-se, de modo inequívoco, que a gravidez da ofendida resultou do relacionamento sexual que manteve com o arguido.
Conclui-se, pois, pela procedência do recurso, implicando a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que defira a pretensão formulada.
III – DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso do MP, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que defira a pretensão formulada.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 28-01-2020
José Adriano
Vieira Lamim