Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
205/19.0T9MTA.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: –Estando descritos na acusação pública, descritos os factos indiciariamente integradores da conduta enganosa das arguidas, por meio de declarações não correspondentes à realidade, para com a Administração da Segurança Social, mas não se relatando quaisquer factos que configurem uma atribuição patrimonial efectuada por essa Administração com o correspondente enriquecimento - crescimento tangível - do património das arguidas ou de terceiro, não poderia o tribunal a quo ter deixado de rejeitar a acusação, por manifestamente infundada (ainda que seja susceptível de controvérsia se em causa está a situação prevista na alínea b), do nº 3, do artigo 311º, ou a mencionada na sua alínea d), porquanto, na verdade, a acusação deduzida contém a descrição dos factos imputados às arguidas, mas estes não constituem crime, pois deles não constam os que integram um dos elementos objectivos do crime de burla tributária cujo cometimento se aponta.

–Dada a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal – leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido.

–Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem, como terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


IRELATÓRIO:


1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal do Barreiro – Juiz 2, Proc. nº 205/19.0T9MTA, foi proferido despacho, aos 02/07/2020, que rejeitou por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos “D.–UNIPESSOAL, LDA.” e NS, pela prática, na forma continuada, de um crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2002, de 05/06 e determinou o arquivamento dos autos.


2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

I-Da acusação proferida constam factos integradores das falsas declarações prestadas pelas arguidas, ao declararem como trabalhadores por conta da sociedade arguida indivíduos que nunca aí desenvolveram qualquer trabalho;
II-São igualmente elencados no libelo acusatório factos indiciadores do erro/engano em que a Segurança Social foi induzida, tendo introduzido tais trabalhadores em carreiras contributivas como trabalhadores por conta de outrem, pese embora tal situação não correspondesse à realidade;
III-A alusão a uma atribuição patrimonial por parte da Segurança Social não pode deixar de ser entendida como uma referência ao prejuízo que a conduta das arguidas tenha gerado aos cofres daquela entidade;
IV-Prejuízo esse materializável quer na atribuição de prestações pecuniárias directamente geradas pela actuação das arguidas, quer na mera inclusão dos trabalhadores no estatuto de trabalhadores por conta de outrem, passando assim a ter uma carreira contributiva geradora de benefícios patrimoniais;
V-Designadamente, e a título de exemplo, são benefícios concretos que resultam do simples facto de se encontrarem inscritos na segurança social a possibilidade de pagarem, a posteriori, os montantes contabilizados como dívida à Segurança Social ou o recebimento de prestações por morte independentes da situação de dívida de contribuições em que tais trabalhadores se encontram (cfr. art.ºs 186.º e 218.º, ambos do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social);
VI-Ainda que se entendesse que efectivamente a narração dos factos se encontra deficitária, por via disso, deveria a acusação proferida ser rejeitada, nunca deveria ser determinado o arquivamento imediato dos autos;
V- (numeração como no original) Nos termos do art.º 283.º, n.º 3. do Código de Processo Penal, a falta da narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. isto é. dos factos integradores do tipo legal de crime tem como consequência a nulidade da dedução da acusação;
VI-De acordo com o disposto no art.º 122.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a verificação da nulidade determina a invalidade do acto e dos que dele dependerem, mas não dos actos anteriores;
VII-Assim, o vício de que a acusação padece não se comunica ao inquérito, mas antes aos actos subsequentes e tão só a esses;
VIII-Em consequência, o despacho recorrido deveria ter declarado a nulidade da dedução da acusação e, de seguida, porque possível e necessário, ter ordenado a remessa do processo ao Ministério Público para repetição do acto sem o vício;
IX-Pelo exposto, fez o Tribunal a quo deficiente interpretação e aplicação dos supra indicados normativos.
Termos em que, concedendo-se procedência ao presente recurso, deverá ser revogada a decisão proferida, sendo a mesma substituída por outra que reconheça a suficiência da acusação ou, subsidiariamente, determine a devolução do processo ao Ministério Público para repetição do acto/dedução de nova acusação, pois que assim se fará, com o douto suprimento de Vossas Excelências, JUSTIÇA!

3.As arguidas não apresentaram resposta à motivação de recurso.

4.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu “visto”.

5.Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

IIFUNDAMENTAÇÃO

1.- Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Se, por ocasião do despacho a que se refere o artigo 311º, do CPP, poderia ter sido rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo Ministério Público.

Se, rejeitada a acusação, deveria ter sido ordenada a remessa dos autos ao Ministério Público para repetição do acto sem vício.

2.- Elementos relevantes para a apreciação deste recurso

2.1-Aos 27/01/2020, o Ministério Público proferiu libelo acusatório contra as arguidas “D.–UNIPESSOAL, LDA.” e NS, nos seguintes termos, na parte que releva (transcrição):

1.- A sociedade arguida D. Unipessoal, Lda., NIF …0, NISS 2… com sede social na Av. … em Vale A..., é uma sociedade comercial constituída em 16/02/2007, tendo como objecto social a construção civil e obras públicas.
2.- A arguida NS  é, desde a sua criação e até à data de hoje, a sócia única e única gerente, de facto e de direito, da sociedade D. Unipessoal, Lda..
3.- Nessa qualidade, era a arguida NS quem detinha os códigos de acesso, enquanto contribuinte, à plataforma informática da Segurança Social.
4.- A sociedade arguida laborou desde a data da sua constituição e até ao ano de 2011, data em que cessou a sua actividade.
5.- A partir dessa data a empresa encerrou e não teve qualquer actividade de facto.
6.- No entanto, a sua sócia única e aqui arguida NS não procedeu à respectiva dissolução.
7.- Acontece que, em momento posterior ao seu encerramento, a sociedade arguida procedeu, através da plataforma informática da Segurança Social, à comunicação da contratação de trabalhadores, apresentando as consequentes declarações de remunerações mensais.

8.-Assim foi relativamente, além do mais, aos seguintes trabalhadores, nos períodos indicados:
a.- FF, no período de Março a Outubro de 2014;
b.- FS, no período de Janeiro de 2014 a Janeiro de 2015;
c.- EI, no período de Janeiro de 2014 a Janeiro de 2015;
d.- AS, no período compreendido entre Outubro de 2009 e Maio de 2010;
e.- IL, no período compreendido entre Janeiro de 2014 e Janeiro de 2015;
f.- AM, no período compreendido entre Novembro de 2013 e Novembro de 2014.

9.-Acontece que os aludidos trabalhadores não desemprenharam qualquer actividade para a empresa arguida nos períodos considerados,
10.-Não disponibilizaram a sua força de trabalho a essa entidade,
11.-Nem receberam dela quaisquer ordens ou instruções.
12.-Tanto mais que, como supra se referiu, a empresa em questão encontra-se com a actividade encerrada desde 2011.
13.- Do mesmo modo, os trabalhadores não receberam qualquer salário nesse período.
14.-E a sociedade arguida, embora tenha procedido à apresentação de folhas de remunerações relativas àqueles trabalhadores nos períodos referidos, nunca entregou quaisquer montantes a título de contribuições ou cotizações à Segurança Social.
15.-Ao efectuar formalmente estas declarações que não correspondiam à realidade, os trabalhadores supra referidos obtiveram o benefício de inscrição na Segurança Social como trabalhadores por conta de outrem, sem que reunissem as condições para tal.
16.-O enquadramento como trabalhadores por conta de outrem tem como representa um benefício na medida em que cria uma carreira contributiva, com o consequente acesso aos benefícios sociais que dela dependem.
17.-A comunicação da contratação dos trabalhadores e submissão das declarações de rendimento foram realizadas em utilização dos códigos de acesso ao sistema informático Segurança Social Directa.
18.- Tais códigos estão na disponibilidade exclusiva do gerente da sociedade.
19.- As arguidas agiram de forma livre, deliberada e consciente, querendo e conseguindo prestar formalmente declarações relativas à contratação de trabalhadores e ao pagamento de salários que sabiam não corresponder à verdade, assim fazendo crer aos serviços da Segurança Social que os sobreditos indivíduos eram seus trabalhadores, logrando assim a obtenção para eles do benefício da sua inclusão no estatuto de trabalhador por conta de outrem e da criação de carreiras contributivas a que sabiam que eles não tinham direito.
20.- Sabiam, igualmente, as arguidas que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Pelo exposto, cometeram as arguidas D. Unipessoal, Lda. e NS, um crime de burla tributária, na forma continuada, p. e p. pelo art.º 87.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.

2.2Em 02/07/2020, foi proferida a decisão objecto do recurso (transcrição):

Da rejeição da acusação
O Digno Magistrado do Ministério Público deduz douto libelo acusatório, sob a forma de processo comum e com a intervenção de tribunal singular, contra as arguidas D. Unipessoal, Lda. e NS, pela prática, em autoria material, de um crime de burla fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 87.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias (cfr. fls. 117 e ss.).

Na acusação deduzida alega o Ministério Público, em suma, que:
- a sociedade arguida, embora tenha procedido à apresentação de folhas de remunerações relativas àqueles trabalhadores nos períodos referidos, nunca entregou quaisquer montantes a título de contribuições ou cotizações à Segurança Social;
-Ao efectuar formalmente estas declarações que não correspondiam à realidade, os trabalhadores supra referidos obtiveram o benefício de inscrição na Segurança Social como trabalhadores por conta de outrem, sem que reunissem as condições para tal;
-Que os aludidos trabalhadores não desempenharam qualquer actividade para a empresa arguida nos períodos considerados;
-Que o enquadramento como trabalhadores por conta de outrem representa um benefício na medida em que cria uma carreira contributiva, com o consequente acesso aos benefícios sociais que dela dependem; e,
-Por fim, que as arguidas ao prestarem formalmente declarações relativas à contratação de trabalhadores e ao pagamento de salários que sabiam não corresponder à verdade, assim fazendo crer aos serviços da Segurança Social que os sobreditos indivíduos eram seus trabalhadores, lograram assim a obtenção para eles do benefício da sua inclusão no estatuto de trabalhador por conta de outrem e da criação de carreiras contributivas a que sabiam que eles não tinham direito.
Estabelece o Artigo 87º, do R.G.I.T., relativo à Burla Tributária, que «1 - Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 - Se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é a de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.»
O crime de burla tributária tem uma dimensão essencialmente patrimonial, dirigindo-se de forma direta e específica à proteção do património fiscal do Estado[1].
«A consumação de um crime de burla tributária terá sempre de passar pelos seguintes momentos: 1. uma conduta fraudulenta do agente, que se dirige à Administração Tributária apresentando falsas declarações, documentos falsificados ou viciados, ou outros instrumentos enganosos; 2. que, fruto dessa conduta ludibriadora do agente, a Administração Tributária configure a situação tributária numa perspetiva desconforme com a realidade, incorrendo, portanto, em erro; 3. que, induzida por esse erro, a Administração Tributária atue com prejuízo para a esfera patrimonial fiscal do Estado, nomeada e necessariamente, mediante a realização de atribuições patrimoniais; e 4. que dessas atribuições resulte o enriquecimento do agente ou de terceiro»[2].
Atentos os elementos supra expostos, conclui-se que burla tributária não se basta com uma mera acção fraudulenta dirigida pelo agente contra a vítima, estando ainda dependente de uma disposição patrimonial realizada em virtude do erro inculcado por aquele engano.
Nesta ordem de ideias, do elemento típico "efetuar atribuições patrimoniais" deverão considerar-se excluídas as hipóteses em que o património tributário sai prejudicado na sequência de uma conduta fraudulenta de um contribuinte à qual, até ao momento em que o prejuízo patrimonial se consuma, não se segue qualquer reação da Administração Tributária.
«Os termos empregados pelo legislador para se expressar - "efetuar atribuições patrimoniais" - apontam logo para um positivo ato de entrega de um quid com valor patrimonial, o que, sendo esta uma matéria diretamente referida a impostos, sugere ainda tratar-se de algo com imediata expressão pecuniária. Ideia que sai reforçada quando o nº 1 do preceito é conexionado com os nºs 2 e 3 que se lhe seguem, os quais impõem uma agravação da moldura legal em função do valor, elevado ou consideravelmente elevado, dessas atribuições patrimoniais. É sintomático que, ao contrário da burla comum (cf. art. 218º, nºs 1 e 2, a), do CP), a qualificação da burla tributária se faça não por referência ao valor do prejuízo patrimonial, mas logo da própria disposição patrimonial tipicamente definida»[3].
Ora, da factualidade vertida na acusação resulta a descrição de uma conduta fraudulenta, que eventualmente induziu a Segurança Social em erro - a alegada existência de uma carreira contributiva -, no entanto não resulta que movida por esse erro a entidade em causa tenha realizado uma qualquer atribuição patrimonial em benefício das arguidas ou de terceiro.
Da leitura da acusação não logramos perceber qual o prejuízo patrimonial que decorre para o erário público da actuação das arguidas e o concreto enriquecimento das mesmas ou de terceiros.
Conforme acima expusemos, no crime de burla fiscal, não basta a conduta fraudulenta, porquanto é elemento do tipo objetivo a existência de uma atribuição patrimonial que terá necessariamente de ter uma expressão monetária.
Ora, as alegadas vantagens invocadas na acusação - criação de carreira contributiva e inclusão no estatuto de trabalhador por conta de outrem - não tem expressão monetária.
Por outro lado, genericamente fala-se em acesso aos benefícios sociais, no entanto não se referem quais em concreto foram atribuídos, a quem e em que valor.
Em face do exposto, não resulta da factualidade qualquer prejuízo patrimonial, que leve a concluir pela consumação do crime em apreço. Muito menos, é alegado um qualquer valor que leve a concluir pela agravação da conduta, prevista no n.º 2 do artigo 87.º do R.G.I.T..
Estipula o artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que «A acusação contém, sob pena de nulidade: (...) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (...)».
Perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação.
Por outro lado, os "factos" que constituem o "objecto do processo" têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea.
Estabelece o artigo 311.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, que o juiz despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
No n.º 3, als. b) e d), da mesma disposição legal, considera-se que é manifestamente infundada a acusação que não contenha a narração dos factos e se os factos não constituírem crime.
In casu, a acusação não contém a narrativa dos factos passíveis de integrar os elementos objectivos do ilícito típico do crime imputado às arguidas.
Consequentemente, é de rejeitar a acusação, porque nula e manifestamente infundada (art. 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. b), do CPP).
«A consequência da declaração de nulidade da acusação, por violação do disposto no artigo 283º, nº 3, do C. P. Penal, é, não a remessa dos autos ao Ministério Público, para os efeitos que tiver por convenientes (como decidiu o despacho recorrido), mas antes o arquivamento dos autos»; RC de 13-1-2016 (540/13.1GBPBL.C1 - Alberto Mira); e da RL de 30-01-2007 (10221/2006 - José Adriano).
Face ao exposto, nos termos do artigo 311.º, n.º 1, 2, al. a) e 3, al. b), do Código de Processo Penal, rejeito a acusação, porque nula e manifestamente infundada, e determino o arquivamento dos autos.
Sem custas.
Notifique.


Apreciemos.


Da rejeição da acusação deduzida pelo Ministério Público, por manifestamente infundada

Sustenta o recorrente que a acusação deduzida contém a narração dos factos integradores dos elementos objectivos (e subjectivos) do tipo criminal de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2002, de 05/06, imputado às arguidas, ao contrário do que se afirma no despacho recorrido.

Estabelece-se no artigo 311º nº 2, do CPP, que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a)- De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b)- De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente”.

A acusação considera-se manifestamente infundada, nos termos do nº 3, do mesmo artigo:

a)-Quando não contenha a identificação do arguido;
b)-Quando não contenha a narração dos factos;
c)-Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d)- Se os factos não constituírem crime”.

O tribunal a quo rejeitou a acusação pública, considerando-a manifestamente infundada, porquanto da factualidade vertida na acusação resulta a descrição de uma conduta fraudulenta, que eventualmente induziu a Segurança Social em erro - a alegada existência de uma carreira contributiva -, no entanto não resulta que movida por esse erro a entidade em causa tenha realizado uma qualquer atribuição patrimonial em benefício das arguidas ou de terceiro.

Da leitura da acusação não logramos perceber qual o prejuízo patrimonial que decorre para o erário público da actuação das arguidas e o concreto enriquecimento das mesmas ou de terceiros.

Conforme acima expusemos, no crime de burla fiscal, não basta a conduta fraudulenta, porquanto é elemento do tipo objetivo a existência de uma atribuição patrimonial que terá necessariamente de ter uma expressão monetária.

Ora, as alegadas vantagens invocadas na acusação - criação de carreira contributiva e inclusão no estatuto de trabalhador por conta de outrem - não tem expressão monetária.

Por outro lado, genericamente fala-se em acesso aos benefícios sociais, no entanto não se referem quais em concreto foram atribuídos, a quem e em que valor.

Em face do exposto, não resulta da factualidade qualquer prejuízo patrimonial, que leve a concluir pela consumação do crime em apreço. Muito menos, é alegado um qualquer valor que leve a concluir pela agravação da conduta, prevista no n.º 2 do artigo 87.º do R.G.I.T..


Pois bem.

Estabelece-se no artigo 87º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 15/06):
“1- Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2- Se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é a de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.”

O crime de burla tributária está estruturado, atento o bem jurídico protegido pela norma – o património fiscal ou o da Segurança Social - como um crime de dano e, no que concerne à conduta, de resultado, sendo, como se assinala no Ac. R. de Évora de 02/02/2016, Proc. nº 66/08.5IDSTR, consultável em www.dgsi.pt, seus elementos constitutivos do lado objectivo:

- O erro ou engano sobre factos por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos;
- A determinação da administração tributária ou da administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
Cumpre ainda que esteja presente um duplo nexo de causalidade, a saber:

O nexo de imputação objectiva entre o comportamento “enganoso” e o erro.

- O nexo entre o erro e o enriquecimento.

Este duplo nexo impõe que “o meio enganoso seja a causa real da situação de erro;que o erro seja a causa determinante do enriquecimento.”

Por outro lado, chamando à colação o revelado em O Crime de Burla Tributária, Estudos em Homenagem a Rui Machete, Jorge de Figueiredo Dias/Nuno Brandão, pág. 415, diz-se na decisão revidenda que “os termos empregados pelo legislador para se expressar – efectuar atribuições patrimoniais – apontam logo para um positivo ato de entrega de um quid com valor patrimonial, o que, sendo esta um matéria directamente referida a impostos, sugere ainda tratar-se de algo com imediata expressão pecuniária. Ideia que sai reforçada quando o nº 1 do preceito é conexionado com os nºs 2 e 3 que se lhe seguem, os quais impõem uma agravação da moldura legal em função do valor, elevado ou consideravelmente elevado dessas atribuições patrimoniais”

E, na aludida obra esclarece-se ainda, acrescentamos, que este acto de “efectuar atribuições patrimoniais” que compõe a conduta típica da vítima de burla tributária corresponde a um acto de deslocação de valores pecuniários integrados no erário tributário das mãos do Fisco para a esfera patrimonial do agente ou de um terceiro.

Ora, percorrida a acusação pública, descritos estão os factos indiciariamente integradores da conduta enganosa das arguidas, por meio de declarações não correspondentes à realidade, para com a Administração da Segurança Social.

Porém, não se relatam quaisquer factos que configurem uma atribuição patrimonial efectuada por essa Administração com o correspondente enriquecimento - crescimento tangível, nas palavras dos citados autores - do património das arguidas ou de terceiro.

De onde, tem o tribunal a quo a razão pelo seu lado, ao decidir rejeitar a acusação, por manifestamente infundada (ainda que seja susceptível de controvérsia se em causa está a situação prevista na alínea b), do nº 3, do artigo 311º, ou a mencionada na sua alínea d), porquanto, na verdade, a acusação deduzida contém a descrição dos factos imputados às arguidas. Só que, estes não constituem crime, pois deles não constam os que integram um dos elementos objectivos do crime de burla tributária cujo cometimento se aponta).

Improcede, pois, o recurso neste segmento.

Da remessa dos autos ao Ministério Público para repetição do acto sem vício ou seu arquivamento

Subsidiariamente sustenta o recorrente que, ainda que a acusação fosse rejeitada, não deveria ter sido determinado o arquivamento dos autos, antes “a nulidade da dedução da acusação e, de seguida (…) a remessa do processo ao Ministério Público para repetição do acto sem o vício”.

Ora, a propósito diz-se no Ac. R. de Lisboa de 30/01/2007, Proc. nº 10221/2006-5, consultável em www.dgsi.pt, que “perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal – leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido. Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem uma terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito.”

Entendimento subscrito pelo Ac. R. do Porto de 27/06/2012, Proc. nº 581/10.0GDSTS.P1, a ler no mesmo sítio, de acordo com o qual “se não tivesse sido requerida a instrução, a circunstância de os factos descritos na acusação não constituírem crime levaria à rejeição desta, nos termos do artigo 312º, nº 2, a), e 313º, nº 3, d), do mesmo Código (com o consequente arquivamento dos autos). E se, mesmo assim, a acusação não tivesse sido rejeitada e viesse a ser realizado julgamento, essa situação levaria à absolvição do arguido (com o consequente arquivamento dos autos).”

Aduzindo-se ainda que “em nenhuma destas situações se prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processo, em vez do seu arquivamento. Tal possibilidade de modo algum se harmonizaria com o espírito do sistema processual penal, assente nalguma forma de proteção das expetativas do arguido em face de uma acusação determinada e não sujeita a correções ou reformulações”.

Nessa esteira segue também, entre outros, o Ac. R. de Guimarães de 19/06/2017, Proc. nº 175/13.9TACBC.G1, disponível no sítio referenciado, que cabalmente elucida:

“Como decorre do regime processual penal vigente, a atividade processual obedece a uma organização predefinida, em que se encontram delimitadas e reguladas as várias fases da marcha do processo. Assim, no que concerne ao processo comum distingue a lei nitidamente a fase de inquérito Vd. Título II do Livro VI do Código Processo Penal. da fase do julgamento Vd. Livro VII do Código Processo Penal., para além de fases processuais eventuais, sendo estabelecida uma sequência lógica e cronológica dos atos processuais.

Face a tal ordenação sequencial de atos, encerrado o inquérito mediante acusação, nos termos do artigo 283.º do Código Processo Penal, e transitado o processo para a fase de julgamento, não comporta o regime processual penal vigente a possibilidade de o mesmo processo retroceder à fase de inquérito, portanto não tem apoio legal o despacho judicial, proferido nestes autos, que determinou a devolução dos autos ao Ministério Público, nos termos acima indicados, na sequência de rejeição da acusação por virtude de os factos não constituírem crime.

Por conseguinte, a atividade investigatória subsequente levada a cabo pelo Ministério Público, já depois de encerrado o inquérito e de proferido o despacho judicial que rejeitou a acusação, contraria frontalmente as regras básicas da marcha processual .
Aliás, a hipótese legalmente prevista de reabertura do inquérito existe apenas no caso de arquivamento do inquérito nos termos do artigo 277.º, n.º 1 e 2, do Código Processo Penal. Igualmente a prolação de nova acusação pelo Ministério Público, findas as novas diligências de inquérito, constitui ato processual absolutamente anómalo, não permitido e desinserido da tramitação prevista na lei (…)”.

Este é também o entendimento por nós prosseguido, pelo que não merece crítica o tribunal recorrido ao determinar o arquivamento dos autos.

Destarte, cumpre negar provimento ao recurso.

IIIDISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a decisão recorrida.

Sem tributação.


Lisboa, 2 de Fevereiro de 2021


(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)



                                  
(Artur Vargues)                                  
(Jorge Gonçalves) 

  

[1]In ESTUDOS EM HOMENAGEM A RUI MACHETE, «O crime de burla tributária», de Jorge Figueiredo Dias e Nuno Brandão, pág. 406.
[2]Idem.
[3]Idem, pág.415.