Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5766/20.9T8ALM-A.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PENHORA
EXECUÇÃO FISCAL
SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO CÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1– Se na execução cível for penhorado imóvel que constitua casa de morada de família do executado e se sobre esse imóvel incidia já registo de penhora anteriormente efectuada em execução fiscal – execução esta que se encontra suspensa face ao artº 244º nº 2 do CPPT (redacção da Lei 13/2016) - não há lugar à sustação da execução cível, nos termos do artº 794º nº 1 CPC, visto que o imóvel não pode ser vendido naquela execução fiscal, devendo ser vendido na execução cível mediante prévia convocação de credores incluindo a Fazenda Nacional.


(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:



IRELATÓRIO


1–Promontoria…, enquanto cessionária de crédito cedido por Caixa…, instaurou execução para pagamento de quantia certa, com forma sumária, contra CFCS e, IFAS, visando a cobrança coerciva da quantia de 242 434€ derivada de incumprimento de contrato de mútuo, com garantia hipotecária sobre fracção autónoma, que identifica.

2–Realizada a penhora da fracção autónoma – Ap. 2195 de 2020/11/02 - verificou-se estarem registadas três penhoras anteriores a favor da Autoridade Tributária, cada uma no respectivo processo de execução fiscal, respectivamente, Ap. 3706, de 2015/02/20, pela quantia de 64 023,77€; Ap. 4392, de 2015/02/07 pela quantia de 40 926,08€; e Ap. 2881, de 2018/11/30 pela quantia de 40 378,88€.

3–Em 13/11/2020 foi solicitada informação aos processos de execução fiscal sobre o estado das três execuções fiscais.

4–Em 25/11/2020, a exequente apresentou requerimento ao Agente de Execução solicitando que fosse ordenado o levantamento da sustação da execução e citada a Fazenda Nacional/Autoridade Tributária para reclamar os seus créditos nesta execução, por estar impedida legalmente de proceder a venda da fracção autónoma penhorada por constituir casa de morada de família dos executados.

5–O Agente de Execução, em 26/11/2020, solicitou ao tribunal autorização para levantar a sustação da execução e prosseguir os autos com citação dos credores, incluindo a Fazenda Nacional para reclamarem os seus créditos.

6–Sobre esse requerimento do Agente de Execução recaiu despacho, a 13/01/2021, com o seguinte teor:
Requerimento do Agente de Execução (Data: 26-11-2020 Documento: KqOxdM1szzY Referência interna do processo: PE/169/2020):
Preceitua o artº 794º, nº 1 do NCPC que “Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga”.
Verifica-se assim que, encontrando-se registada penhora anterior, o prosseguimento dos presentes autos quanto ao imóvel referido viola frontalmente o disposto em lei expressa (artº 794º, nº 1 do NCPC).
Caso o Exequente pretenda prosseguir com a venda do imóvel dos autos deverá reclamar créditos na execução fiscal e aí promover a venda do prédio sub judice para ver satisfeito o seu crédito (cfr. o Acórdão da Relação de Coimbra de 24.10.2017, disponível em www.dgsi.pt).
Sendo o Exequente credor reclamante na execução fiscal nada obsta a que ali requeira o prosseguimento da execução para ressarcimento do seu crédito, uma vez que o impedimento que a Lei 13/2016 de 23.05 faz referência diz respeito unicamente à Autoridade Tributária.
Reitera-se que a venda do imóvel nos presentes autos viola frontalmente o disposto no artº 794º, nº 1 do NCPC.
Pelo exposto, não admito o levantamento da sustação da execução relativamente ao referido imóvel, devendo o Agente de Execução abster-se de efectuar quaisquer diligências de venda do mesmo sob pena de incorrer em multa, procedimento disciplinar e anulação dos actos praticados.
Só será admitido o prosseguimento da execução quanto ao referido imóvel no caso de a Fazenda Nacional determinar o levantamento da penhora que incide sobre o mesmo, devendo, nesse caso, ser junta aos autos a respectiva certidão predial comprovativa.
Notifique e informe o Agente de Execução.”

7–Inconformada, a exequente interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
a)- O presente recurso interposto pela ora Apelante tem por objeto o despacho proferido pelo Tribunal a quo no passado dia 13/01/2021, do qual resulta o indeferimento do levantamento da sustação da execução e consequente prosseguimento dos autos, com vista à venda do imóvel penhorado.
b)- No entanto, é do entendimento da ora Apelante que o referido despacho não procede a uma correta aplicação e interpretação dos artigos 6º, 547º e 794º do Código de Processo Civil (CPC), bem como consente numa inconstitucional interpretação do artigo 244º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT).
c)- Pois, vejamos, no âmbito da presente ação executiva, foi penhorado o imóvel onerado com hipoteca registada a favor da Caixa…, conforme previsto no disposto pelo artigo 752.º do CPC.
d)- O referido imóvel corresponde ao prédio descrito na Conservatória de Registo Predial do… sob o n.º …, freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º …, o qual constitui habitação própria e permanente dos executados.
e)- Sucede que o imóvel se mostra onerado com penhoras anteriores a favor da Autoridade Tributária – registadas no âmbito dos processos de execução fiscal nº 3697201001104969; nº 3697201001104969; e nº 3697201301194720, todos a decorrer no Serviço de Finanças de…, pelo que a presente execução foi declarada sustada em relação ao mesmo.
f)- Não obstante, apesar das referidas penhoras anteriores se encontrarem registadas há vários anos, a venda do imóvel penhorado encontra-se suspensa ao abrigo da Lei n.º 13/2006, de 23 de maio, de acordo com informação prestada pelo Serviço de Finanças…, junta aos autos no dia 21/11/2020, com a referência Citius 27784439.
g)- Por essa razão, a aqui Apelante vê-se impedida de ser ressarcida pelo crédito exequendo, atento o constrangimento do Serviço de Finanças que, gozando da primeira penhora sobre o imóvel, mantém os autos suspensos em virtude de se encontrar impedido de promover a sua venda.
h)- Face ao exposto, é do entendimento da ora Apelante que, independentemente da existência de penhora anterior promovida pela Fazenda Nacional, os presentes autos poderão seguir os seus ulteriores termos, com a consequente citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos, os quais seriam então graduados no lugar que lhes competisse.
i)- Não obstante, o Tribunal a quo indeferiu o levantamento da sustação da execução relativamente ao imóvel, referindo que, encontrando-se registada penhora anterior, o prosseguimento dos presentes autos quanto ao referido imóvel violaria frontalmente o disposto em lei expressa (artigo 794º, nº 1 do CPC).
j)- No entanto, não pode a Apelante conformar-se com tal decisão.
k)- Isto, pois, é referido no douto despacho que, uma vez que a venda do imóvel nos presentes autos viola frontalmente o disposto no artigo 794º, nº 1 do CPC, a Exequente deveria reclamar créditos na execução fiscal e aí promover a venda para ver satisfeito o seu crédito.
l)- Assim, é do seu entendimento que ao credor reclamante na execução fiscal nada obsta a que ali requeira o prosseguimento da execução para ressarcimento do seu crédito, uma vez que o impedimento que a Lei 13/2016 de 23.05 faz referência diz respeito unicamente à Autoridade Tributária, fazendo uma interpretação restritiva do disposto no artigo 244º, n.º 2 do CPPT.
m)- Não obstante, a verdade é que, apesar da aqui Apelante ter reclamado o seu crédito na execução fiscal, encontrando-se esta suspensa durante vários anos o Estado mantém a sua garantia sem que o credor possa, de modo algum, impulsionar o andamento daquela mesma execução fiscal.
n)- Isto, pois, no âmbito do processo de execução fiscal, o apenso de verificação e graduação de créditos só poderá prosseguir se houver venda dos bens penhorados - veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 087/15, de 03/02/2016, disponível em wwwdgsi.pt.
o)- Assim, contrariamente ao que se verifica no âmbito do processo civil, em matéria de execução fiscal não existe qualquer mecanismo que permita impulsionar os autos, pelo que a aqui Apelante se vê inteiramente impedida de impulsionar a venda do imóvel sobre o qual detém hipoteca no âmbito de execução fiscal.
p)- Mais, a alteração legislativa verificada visou a proteção da casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, não resultando que a sua aplicação apenas produza efeitos em execuções fiscais para pagamentos exclusivos de créditos fiscais, tal como sustentado pelo tribunal recorrido, uma vez que a limitação em causa se mantém independentemente de na execução fiscal terem sido reclamados outros créditos por outros credores não públicos.
q)- Posto isto, é possível concluir que a manutenção da sustação da execução civil, com vista à venda do imóvel que constitui habitação própria e permanente dos Executados na execução fiscal será não só irrealista como impraticável, inexistindo qualquer margem que sustente a interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 244.º do CPPT porquanto contraria a expressa finalidade da Lei n.º 13/2016.
r)- Assim, e considerando que o sistema jurídico não pode remeter os titulares de direitos para potenciais becos sem saída no que à sua proteção efetiva diz respeito, qual será a solução para ultrapassar este impasse?
s)- Ora, na verdade, os Tribunais encontram-se dotados de poderes que lhes permitem adequar a tramitação dos autos de forma a obter celeridade processual, podendo ultrapassar a situação de impasse que a proibição de venda no processo de execução fiscal causa.
t)-Neste âmbito, deverá considerar-se não só os deveres decorrentes do princípio da cooperação, mas também o dever de gestão processual, consagrado no artigo 6º do CPC, e o princípio da adequação formal, previsto no artigo 547º do CPC, na medida em que, por força destes dois últimos, o juiz deve adequar a tramitação do processo à sua mais célere e justa resolução, assegurando um processo equitativo.
u)-Assim, se por um lado, o Tribunal pode oficiar o Serviço de Finanças – caso entenda existirem dúvidas quanto à suspensão das diligências de venda na execução – por outro, poderá, desde logo, ordenar o levantamento da sustação, e o consequente prosseguimento dos autos para a venda do imóvel penhorado, com a citação da Fazenda
Nacional para reclamar os seus créditos, de modo a que também os direitos desta sejam cabalmente acautelados.
v)-Isto, pois, cumpre ter em atenção que a ratio legis do artigo 794º, n.º 1 do CPC tem subjacente razões de certeza jurídica e de proteção das partes, sendo óbvia a inconveniência de um regime que permitisse a tramitação em paralelo de mais do que uma execução sobre os mesmos bens, já que dificultaria o atendimento ponderado e simultâneo dos direitos dos diversos credores.
w)-Nesse sentido, trata-se de uma norma que ao pretender evitar a sobreposição de direitos sobre os mesmos bens e criar uma prioridade para venda executiva, só terá utilidade se a primeira execução estiver, senão em movimento, pelo menos, em fase processual de onde a sua prossecução seja possível, à luz da tramitação processual prevista, pelo que a sua aplicabilidade se restringe aos casos em que duas execuções em simultâneo se encontrem a correr termos, pois só assim é que o exequente/reclamante pode atingir os fins através do pagamento dos seus créditos pela via executiva.
x)-Por outras palavras, trata-se de uma norma que postula a existência de, pelo menos, duas execuções sobre o bem que se encontrem numa situação de dinâmica processual, isto é, suscetíveis de se encontram em fase de venda quanto ao mesmo bem em simultâneo.
y)-Nestes termos, atendendo a que a venda na execução à ordem da qual foi registada a primeira penhora se encontra suspensa, deve o processo onde se encontra registada a segunda penhora prosseguir, sendo esta a única forma de evitar o bloqueio de ambas as execuções: a primeira em virtude da suspensão da venda e a segunda em virtude do despacho de sustação, que frustraria o próprio espírito do artigo 794º a que supra se faz referência.
z)-Isto, pois, não podendo a execução fiscal prosseguir os seus termos quanto ao prédio também penhorado na presente execução por efeito do disposto no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT, cessa a razão de ser da sustação desta última nos termos do n.º 1 do artigo 794.º do CPC.
aa)-Por outro lado, sempre se dirá que o prosseguimento da execução não comportará nenhum prejuízo para a administração fiscal, dado que o passo imediatamente seguinte é o de citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos, os quais serão então graduados no lugar que lhes compete, não advindo, por isso, qualquer prejuízo para o Estado, prosseguindo-se os fins da execução cível e também o da execução fiscal.
bb)-A não ser assim, seriam postos em crise os princípios constitucionais da proporcionalidade e da garantia do direito à propriedade privada, previstos nos artigos 18º, n.º 2 e 62º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), uma vez que a ora Apelante ficaria sujeita a uma intolerável compressão do exercício dos seus direitos, nomeadamente do seu direito à satisfação do seu crédito através da venda judicial do imóvel garantido, indelevelmente ligado ao direito à propriedade privada, em execução por si movida, o que limitaria inaceitavelmente o seu direito de acesso à justiça, constitucionalmente consagrado, ao abrigo do artigo 20º.
cc)-Por essa razão, é do entendimento da ora Apelante que o tribunal a quo, ao agir da forma acima indicada, fez uma errada interpretação do direito, numa estrita e literal visão da norma do artigo 794º do CPC, desconsiderando o caso concreto e permitindo uma inconstitucional interpretação do art.º 244º do CPPT, uma vez que consente que a Apelante fique indefinida e infinitamente à espera de ver o seu crédito ressarcido.
dd)-Nestes termos, requer-se que o despacho proferido seja revogado e substituído por outro que ordene o levantamento da sustação quanto ao imóvel penhorado, onerado com anterior penhora da Fazenda Nacional, e a consequente venda do imóvel, sem que se olvide a citação da Fazenda Nacional para, querendo, reclamar os seus créditos protegidos pela sua penhora.
Termos em que se requer que seja dado provimento ao presente Recurso, devendo o despacho recorrido ser revogado e ser substituído por outro que ordene o levantamento da sustação quanto ao imóvel penhorado, onerado com anterior penhora da Fazenda Nacional, e a consequente venda do imóvel, sem que se olvide a citação da Fazenda Nacional para, querendo, reclamar os seus créditos protegidos pela sua penhora.

***

IIFUNDAMENTAÇÃO

1-Objecto do Recurso.

É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, é a seguinte a questão que importa analisar e decidir:
- Se há fundamento para ordenar o levantamento da sustação da execução e determinar, nesta execução, a convocação de credores, incluindo a Fazenda Nacional.

Vejamos

***

2Factualidade Relevante.

Com relevância para a análise e decisão da questão em causa no recurso, importa tomar em consideração as circunstâncias factuais referidas no Relatório acima, sem necessidade de voltarem a reproduzir-se.

***

3A questão Enunciada.

A questão que se coloca nos autos pode sintetizar-se do seguinte modo: tendo sido penhorado, em execução civil, um imóvel que serve de casa de morada de família e, verificando-se que esse mesmo imóvel havia sido previamente penhorado em três distintos processos de execução fiscal, que se encontram suspensos por virtude da impossibilidade de venda desse imóvel nos termos do artº 244º nº 2 do CPPT (redacção da Lei 13/2016), como pode o credor hipotecário desse imóvel, exequente na execução civil, obter a venda do imóvel para satisfação do seu crédito, se na execução(ões) fiscal se na execução civil.

A resposta à questão não é pacífica.
Desenham-se duas teses sobre a questão.
Uma, a que chamaremos de primeira, minoritária na jurisprudência, baseando-se na posição doutrinária de Delgado de Carvalho (As alterações Introduzidas pela Lei 13/2016 no CPPT e na LGT e sua repercussão no concurso de credores, blog do IPPC) com a concordância posterior de Teixeira de Sousa (blog do IPPC, Jurisprudência 2020 (91), defende que a impossibilidade de venda em execução fiscal de imóvel que constitua casa de morada de família, estabelecida no artº 244º nº 2 do CPPT, na redacção dada pela Lei 13/2016, apenas se dirige à Autoridade Tributária (AT) não se estendendo aos demais credores que por isso podem promover a venda na execução fiscal. Baseia-se, assim, esta primeira tese, numa interpretação restritiva do artº 244º nº 2 do CPPT em termos de essa restrição à venda do imóvel que seja casa de morada de família apenas se aplica quando na execução fiscal não existem outros credores.
Alinhando por esta tese, pode ver-se o acórdão da Rel. Coimbra, de 24/10/2017 (Sílvia Pires) – no qual se estribou o despacho ora sob recurso que defendeu:
VII–A solução para a questão há-de encontrar-se na interpretação que se faça do citado art.º 244º, n.º 2 que tem de ser no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover, nessa situação – penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar –, a venda desse bem, mas não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda dado que se encontra em situação similar à prevista no art.º 850º, n.º 2, do C. P. Civil, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias.
VIII– Tal interpretação reduz, pois, o âmbito de aplicação daquele preceito – 244º, n.º 2, do CPPT – aos casos em que a Administração Fiscal seja o único credor interveniente no processo.”
Também a decisão sumária da Rel. Coimbra, de 08/04/2019 (Falcão de Magalhães) alinha no mesmo sentido.

Igualmente o acórdão da Rel. Coimbra, de 13/11/2019 (Pires Robalo) defende que:
VI- A resposta há-de encontrar-se na interpretação que se faça do citado art.º 244º, n.º 2, que tem de ser no sentido de que a Administração Fiscal não pode promover, nessa situação, a venda da penhora de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, mas não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda, dado que se encontra em situação similar à prevista no art.º 850º, n.º 2, do C. P. Civil, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias.”

Identicamente, o acórdão da Rel. Porto, de 08/03/2019 (Anabela Dias da Silva) entendeu que:
III - Não contendo o CPPT uma norma idêntica à prevista no n.º2 do art.º 850.º do C.P.Civil, tratando-se de uma lacuna da lei, ela terá de ser suprida por interpretação analógica, e assim será permitir que o credor que tenha reclamado o seu crédito na execução fiscal, mesmo que a venda para efeitos fiscais se não possa realizar (art.º 244.º nº2 do CPPT), promova a venda, tudo numa situação análoga e com as necessárias adaptações.

O Prof. Teixeira de Sousa (Blog do IPPC, Jurisprudência 2020(91)), após alertar que “…Em termos práticos, a oposição entre as duas orientações em confronto não é grande, porque tudo se resume a saber em que execução -- se na fiscal, se na cível -- se vai realizar a venda do imóvel penhorado…”, opina que:
“…O que o regime legal impede é que a Autoridade Tributária promova a venda do imóvel para pagamento de um crédito próprio; mas nada obsta a que, uma vez reclamado um crédito na execução fiscal e nela vendido o imóvel, o crédito da Autoridade Tributária seja pago. O regime legal visa proteger o devedor perante a Autoridade Tributária, e não a favorecer um credor desse mesmo devedor através da renúncia à satisfação do crédito fiscal por essa Autoridade…” 

a segunda tese, largamente maioritária na jurisprudência, tem entendimento diverso, em termos de defender que se na execução cível for penhorado imóvel que constitua casa de morada de família do executado e se sobre esse imóvel incidir registo de penhora anterior efectuada em execução fiscal, não há lugar à sustação da execução cível, nos termos do artº 794º nº 1 CPC, visto que o imóvel não pode ser vendido na execução fiscal dada a restrição de venda estabelecida pelo artº 244º nº 2 do CPC, na redacção da Lei 13/2016, devendo ser vendido na execução cível mediante prévia convocação de credores incluindo a Fazenda Nacional.

Neste sentido, sem ser exaustivo, podem ver-se:
-Acórdão da Rel. Porto, de 22/10/2019 (Márcia Portela), que defende:
Quando em execução cível for penhorado imóvel que constitua a casa de morada de família do executado e sobre ele incida penhora com registo anterior realizada em execução fiscal, não podendo o imóvel ser vendido na execução fiscal em virtude do estabelecido na Lei n.º 13/2016, não há lugar à suspensão da execução cível nos termos do artigo 794.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
II- Nessa situação, a AT deverá ser admitida, após a citação prevista no artigo 786.º, n.º 1, alín. b), do Código de Processo Civil, a reclamar o seu crédito na execução comum para aí ser graduado no lugar que lhe competir para ser pago pelo produto da venda do imóvel nesta execução.”

-Acórdão da Rel. Lisboa, de 22/10/2020 (Jorge Leal), com o seguinte sumário:
I.-Por força do disposto no n.º 2 do art.º 244.º do CPPT, se o imóvel penhorado pelas Finanças, no âmbito de execução fiscal, se destinar exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, e estiver efetivamente afetado a esse fim, não haverá lugar (no processo de execução fiscal) à realização da sua venda (posto que não se verifique nenhuma das exceções previstas nos n.ºs 3 e 6 do art.º 244.º).
II.- Nesse caso, se o mesmo imóvel tiver sido objeto de penhora mais recente em execução comum, esta não deve ser suspensa ao abrigo do n.º 1 do art.º 794.º do CPC, mas deve prosseguir, sendo a Fazenda Pública citada para aí reclamar os seus créditos.”

-Acórdão da Rel. Lisboa, de 05/11/2020 (Manuel Rodrigues), com o seguinte sumário:
I- A existência de penhora sobre imóvel efectuada em execução fiscal e registada a favor da Autoridade Tributária, com registo anterior à efectuada numa execução comum, não obsta ao prosseguimento desta execução com a venda desse bem, quando na execução fiscal tal venda não pode ocorrer, por força do disposto no n.º 2 do art.º 244.º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), por o imóvel constituir habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.
II- Este regime apenas proíbe a venda do imóvel afecto à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar no âmbito da execução fiscal.
III- Na situação referida no ponto I, não obsta ao prosseguimento da execução comum o disposto no n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil já que o mesmo pressupõe que o processo onde ocorreu a primeira penhora se encontre a correr os seus termos e pretende evitar a execução simultânea do mesmo bem, o que não ocorre no caso em análise.
IV- Estando vedada a venda do imóvel na execução fiscal suspensa e não tendo aplicação ao caso o disposto no n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil, deve a mesma ter lugar na execução comum.
V- Impondo-se, neste caso, que seja promovida a citação da Autoridade Tributária para reclamar o seu crédito (art.º 786.º, n.º 1, alínea b), do CPC) o que a suceder determinará que seja oportunamente graduado no lugar que lhe competir (art.º 791.º do CPC”.

No mesmo sentido, acórdão da Rel. Lisboa, de 21/05/2020 (Carla Mendes) “-Sustada a execução comum por existência de penhora registada anteriormente em sede de execução fiscal e encontrando-se esta última suspensa (art. 244/2 CPPT), nada impede o prosseguimento daquela (execução comum), com vista à venda do bem imóvel, podendo a Fazenda Nacional reclamar nesta (execução comum) o seu crédito, que será objecto de verificação e graduação de créditos, com vista ao ressarcimento do crédito do credor (s) exequente, afastando-se a aplicação do art. 794/1 CPC.”

E ainda o acórdão da Rel. Lisboa, de 04/06/2020 (Nelson Borges Carneiro).

Na Relação de Coimbra, podem ver-se no mesmo sentido, por exemplo, acórdão de 18/12/2019 (Manuel Capelo); acórdão de 01/06/2021 (Fernando Monteiro).

Na Relação de Évora, entre outros, o acórdão de 05/11/2020 (Conceição Ferreira) com o seguinte sumário:
A operacionalidade do regime previsto no artigo 794.º do CPC tem como pressuposto que o exequente possa reclamar o seu crédito na execução em que a penhora do bem ocorreu em primeiro lugar e que a venda desse bem não esteja proibida, de modo a obter a satisfação do seu crédito pelo produto da venda.”
E ainda o acórdão de 12/07/2018 (Maria João Faro), bem como o acórdão da mesma Relação, de 30/05/2019 (Tomé Ramião).

Na Relação de Guimarães, entre outros, o acórdão 17/01/2019 (Alexandra Rolim Mendes), acórdão de 12/09/2019 (Alcides Rodrigues) com o seguinte sumário:
I- Verifica-se uma desarmonia entre o regime consagrado no n.º 2 do art. 244º do CPPT – nos termos do qual proíbe, em sede de execução fiscal, a venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim – e o previsto no n.º 1 do art. 794º do CPC – que, em caso de dupla penhora sobre os mesmos bens, determina a sustação, quanto a estes, da execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.
II- Considerando que:
- o CPTT não prevê o impulso da execução fiscal por parte dos credores reclamantes;
- para haver lugar à intervenção na execução onde o bem foi primeiro penhorado é necessário ainda que essa execução esteja numa situação dinâmica, a correr os seus termos processuais normais;
- a Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, impede efetivamente que em tais processos de execução fiscal, instaurados por iniciativa da Autoridade Tributária e Aduaneira, haja lugar à venda de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado fora dos casos aí previstos.
III- Carecendo, por isso, os credores reclamantes de tutela judiciária através da reclamação dos créditos no processo de execução fiscal, na medida em que se sobrepõe o impedimento da realização da venda, a única alternativa lógica e viável que se revela é o levantamento da sustação da execução comum respetiva.
IV- Não havendo norma expressa que o preveja, nem regra para caso análogo, impõe-se que o julgador recorra ao processo de integração da lacuna através da analogia iuris (cfr. art. 10º, n.º 3 do Código Civil), tal como:
- No caso de na execução prioritária ser legalmente sobrestada a venda do bem penhorado, deve ser declarada a cessação da sustação da execução cuja penhora tenha sido realizada posteriormente, segundo a ordem de antiguidade, com as consequências legais.
V- Assim, a execução comum na qual está penhorado um imóvel que constitui a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar poderá prosseguir a sua marcha não obstante incidir penhora, com registo anterior, sobre o mesmo bem em execução fiscal, no âmbito da qual está proibido proceder à realização da venda do imóvel por força do disposto no n.º 2 do art. 244º do CPPT, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2016, de 23/05.

Também o STJ, chamado a pronunciar-se sobre a questão, tomou posição no acórdão de 23/01/2020 (Rosa Tching) com o seguinte sumário:
I.- Da conjugação do disposto no artigo 671.º, n.º 2, alínea a), com o preceituado no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), ambos do Código de Processo Civil, resulta que pode ser objeto de revista o acórdão da Relação que aprecie decisão interlocutória sobre questão de natureza adjetiva quando o mesmo «esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme». II. A ratio legis da norma do artigo 794º, nº1 do Código de Processo Civil, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de proteção tanto do devedor executado como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa relação de dinâmica processual ou, pelo menos, a possibilidade do dinamismo da execução em que primeiramente ocorreu a penhora sobre o mesmo bem e em que o credor deve fazer a reclamação do seu crédito. III. Não está nessa situação de dinamismo processual a execução fiscal em que a Autoridade Tributária está impedida, nos termos do disposto no artigo 244º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, de promover a venda do imóvel penhorado por este constituir a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar. IV. Tendo sido suspensa, nos termos do disposto no artigo 794º, nº1 do Código de Processo Civil, a execução comum em que foi penhorado imóvel do executado destinado exclusivamente a sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar e sobre o qual incide penhora com registo anterior realizada em execução fiscal e encontrando-se esta execução parada por a Autoridade Tributária não poder promover a venda deste imóvel, em virtude do impedimento legal constante do artigo 244º, nº 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, impõe-se determinar o levantamento da sustação da execução comum, que deve prosseguir os seus termos, com citação da Fazenda Nacional para reclamar os seus créditos na execução comum.”

Vistas as duas teses, cumpre tomar posição.

Desde já se adiante que alinhamos nesta segunda tese.

Vejamos porquê.

A Lei 13/2016, de 23/05, veio alterar o Código de Procedimento e de Processo Tributário e visou “… proteger a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal.” (preâmbulo da Lei).
Logo no artº 1º dessa Lei, o legislador fez questão de realçar o respectivo objectivo: “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado.”
E no artº 2º dessa mesma lei, procederam-se a alterações a diversos artigos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), concretamente o artº 219º nº 5 daquele CPPT, passando a constar que “A penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria permanente está sujeita às condições previstas no artº 244º”.

Por sua vez, o artº 244º do CPPT passou a ter a seguinte redacção:
1-(…)
2- Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim
3- O disposto no número anterior não é aplicável aos imóveis cujo valor tributável se enquadre, no momento da penhora, na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis
4- Nos casos previstos no número anterior, a venda só pode ocorrer um ano após o termo do prazo de pagamento voluntário da dívida mais antiga.
5- A penhora do bem imóvel referido no n.º 2 não releva para efeitos do disposto no artigo 217.º, enquanto se mantiver o impedimento à realização da venda previsto no número anterior, e não impede a prossecução da penhora e venda dos demais bens do executado.
6- O impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente previsto no n.º 2 pode cessar a qualquer momento, a requerimento do executado."

Ora, o problema surge essencialmente em face do que passou a estar estabelecido no artº 244º nº 2 do CPPT: deixou de ser possível a venda no processo de execução fiscal de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar.
E a questão que se coloca, como de resto sintetiza o Prof. Teixeira de Sousa, é saber “…em que execução -- se na fiscal, se na cível -- se vai realizar a venda do imóvel penhorado…”.
Pois bem, se olharmos para a letra do preceito e para a ratio legis da alteração legislativa, parece-nos que o legislador pretendeu impedir a venda de imóvel que constitua casa de morada de família do executado “…no âmbito de processos de execução fiscal”, como decorre do preâmbulo da lei e resulta expressamente do artº 1º que esclareceu o objectivo dessa mesma lei: impedir a venda de imóvel que constitua casa de morada de família “…no âmbito de processos de execução fiscal…”.
Entendemos, assim, que o impedimento da venda não é meramente subjectivo, porque não é estabelecido em função do exequente, a Autoridade Tributária, mas, antes, um impedimento objectivo processual, estabelecido em função do processo: não pode ter lugar a venda de imóvel que seja casa de morada de família no âmbito de processo de execução fiscal, salvo no caso de o próprio executado/penhorado requerer a cessação do impedimento da venda na execução fiscal (artº 244º nº 6 do CPPT) ou se o valor tributável do imóvel se enquadrar na “taxa máxima prevista para aquisição de prédio urbano ou fracção de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria permanente em sede de imposto sobre transmissões onerosas de imóveis.” (artº 244º nº 3 do CPPT).

E, assim sendo, como nos parece, o credor cível que tenha ido reclamar créditos no âmbito da execução fiscal, não pode, também, requerer nessa execução fiscal, a venda do imóvel penhorado que seja casa de morada de família. Até porque, em rigor, não existe no Processo de Execução Fiscal norma semelhante ao artº 850º nº 2 do CPC – de resto, o acórdão do STA, de 03/02/2016 (Ana Paula Lobo) decidiu que não tendo ocorrido a venda dos bens penhorados o credor reclamante não pode requerer o prosseguimento da execução fiscal ao abrigo do artº 920º nº 2 do CPC (actualmente artº 850º nº 2 do CPC).

Note-se, que a Autoridade Tributária que tenha reclamado créditos na execução cível não está impedida de, nos termos gerais do artº 850º nº 2 do CPC, poder requerer o prosseguimento da execução promovendo a venda de imóvel penhorado ainda que constitua casa de morada de família do executado, o que vem confirmar, rectius, reforçar o entendimento de que o impedimento à venda estabelecido no artº 244º nº 2 do CPPT não é estabelecido subjectivamente, em função do credor, mas objectivamenteem função do processo (de execução fiscal).

A esta vista, sendo este o nosso entendimento, respondendo à questão colocada pelo Prof. Teixeira de Sousa – “…saber em que execução, se na fiscal, se na cível, se vai realizar a venda do imóvel penhorado…” – dizemos que a venda terá lugar (só pode ter lugar) na execução cível.

Claro está que para o efeito e no caso dos autos, terá de ser levantada a suspensão da execução e ordenado o respectivo prosseguimento com a fase de reclamação de créditos incluindo para o efeito a citação da Autoridade Tributária para reclamar os seus três créditos sobre o executado.

Neste quadro, somos a concluir que o recurso procede.

***

IIIDECISÃO

Em face do exposto, acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam seja ordenada a cessação da suspensão da execução devendo os autos prosseguir com a fase de convocação de credores, incluindo a citação da Autoridade Tributária, para reclamar, querendo, os seus três créditos que detém sobre os executados.

Custas: sem custas


Lisboa, 09/09/2021


(Adeodato Brotas)
(Vera Antunes)
(Aguiar Pereira)