Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26602/17.8T8LSB.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA
GARANTIA AUTÓNOMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A garantia autónoma é, no essencial, um contrato outorgado entre o mandante da garantia e o garante, a favor de um terceiro, o beneficiário, só podendo o garante opor a este as excepções que constem do próprio texto da garantia, mas já não as derivadas da relação contratual que está na base daquela.
2. A garantia autónoma é uma figura triangular, supondo três ordens de relações jurídicas: (i) relação entre o garantido (dador da ordem) e o beneficiário (credor principal); (ii) relação entre o garantido (dador da ordem) e o garante (banco); (iii) relação entre o garante (banco) e o beneficiário (credor principal).
3. Entre as situações de garantia autónoma, figura a garantia on first demand, que se pode traduzir por uma promessa de pagamento à primeira interpelação ou primeira solicitação, não podendo ser discutido o cumprimento ou incumprimento do contrato, bastando a interpelação do beneficiário da garantia.
4. A automaticidade da garantia on first demand não é, porém, absoluta, não podendo ter-se como ilimitada a possibilidade da sua exigência pelo beneficiário, já que se tem de estabelecer alguns limites à exigência da garantia, sempre que o imponham as regras da boa fé (artigo762º, nº 2, do Código Civil) ou o procedimento abusivo do beneficiário (artigo 334º do mesmo diploma legal).
5. É admissível o recurso a medidas cautelares destinadas a impedir o beneficiário de receber a quantia objecto da garantia, impendendo sobre o respectivo requerente o ónus de alegar e provar, não só o risco de prejuízos graves que sofrerá na ausência de tal medida cautelar, mas também apresentar prova pronta (pré-constituída, i.e, documental, sem recurso a produção de prova suplementar) e líquida, ou seja, prova inequívoca, permitindo a percepção imediata e segura da invocada fraude ou aproveitamento abusivo por parte do beneficiário.
6. A não apresentação com a petição inicial de tal prova, pronta e líquida, implica o indeferimento liminar do pretendido procedimento cautelar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I.   RELATÓRIO
                       
   P. S., LDA., com sede no …. intentou, em 07.12.2017, procedimento cautelar não especificado contra P. UNIPESSOAL, LDA, com sede …..  e contra BANCO P., S.A., com sede na Rua …, requerendo que a 2ª requerida seja inibida de pagar à 1 ª requerida o valor objecto da garantia bancária identificada nos autos, e que a 1ª requerida seja inibida de proceder ao accionamento dessa garantia bancária.
         Fundamentou a requerente a sua pretensão, invocando, em síntese:
1. Em 23 de Agosto de 2013 a Requerente e a Solar (Switzerland) AG, celebraram um contrato que designaram por “Business Unit Lease Agreement” através do qual a Requerente cedeu àquela sociedade suíça a exploração da fábrica de que é proprietária juntamente com os seus ativos de produção, e trabalhadores (daqui em diante referido como Contrato), tendo tal contrato entrado em vigor em 5 de Maio de 2014. (Doc. 4 ).
2. Em 26 de Maio de 2014 a posição contratual da Solar (Switzerland) AG foi cedida para a ora Requerida (Doc. 5).
3. Já em 29 de Dezembro de 2015 foi acordada entre a Requerente a Requerida uma alteração ao contrato de 23 de Agosto de 2013 (Doc. 6).
4. Decorre do aludido contrato e das sucessivas alterações que:
(i) A Requerente cede à Requerida até 31 de Dezembro de 2018 a exploração da fábrica, enquanto unidade de negócio, recebendo, como contrapartida dessa cessão uma renda anual fixa de 2.100.000 euros (dois milhões e cem mil euros), sendo que após o referido aditamento deixou de ser devida;
(ii) A Requerente compromete-se a comprar à Requerida determinadas quantidades de módulos fotovoltaicos desde que asseguradas as devidas condições concorrenciais de mercado e desde que garantido o respeito pelo cumprimento das especificações técnicas e prazos de entrega de cada encomenda, tudo conforme melhor determinado na secção 11.6 do contrato;
(iii) A Requerida reconhece que a permanência em funcionamento da fábrica de módulos fotovoltaicos em … é absolutamente fundamental para a Requerente, para o Grupo A. e para o Estado Português atentas as condições de licenciamento e os compromissos assumidos – designadamente em matéria de tarifário – entre a CENTRAL SOLAR, SA. e a Direção Geral de Geologia e A.Energia, SA.
(iv) Para garantia das obrigações das partes contratantes foram constituídas, para além, de duas parent company guarantees, uma garantia bancária emitida pelo B.S.T a favor da Requerente, e uma garantia bancária emitida pelo Banco B.P. a favor da Requerida, respeitando os presentes autos a esta última.
5. Em linha com o acordado no contrato entre a Requerente e a Requerida, e para garantir as obrigações de compra de módulos fotovoltaicos da primeira à segunda, em 28 de Janeiro de 2016, a pedido da A. Energia, SA foi emitida pelo B.P. a Garantia Bancária n.º GRC/16395005, no valor máximo de € 2.812.000,00 (Doc. 7);
6. A requerente receia que a Requerida esteja empenhada em criar um cenário de falsas violações contratuais por parte da Requerente tendo em vista (i) acionar ilicitamente a referida garantia bancária, locupletando-se injustificadamente, e (ii) encerrar a fábrica cuja exploração lhe foi cedida e a que se obrigou contratualmente a manter em funcionamento.
7. Receio justificado e fundado na medida em que, ainda no passado dia 12 de Novembro de 2017, a Requerente recebeu um e-mail em que a Requerida, em frontal violação das suas obrigações contratuais, ameaçou fechar a fábrica já a partir de 1 de Janeiro de 2018 bem sabendo do impacto para a Requerente e para o grupo em que a mesma se insere (Doc. 8).
8. No dia 23 de Novembro de 2017, em violação consciente das regras contratuais a que está vinculada, a Requerida remeteu à Requerente carta em que exigiu uma indemnização no valor de Euros 1.965.170,00, alegadamente devida pelo suposto incumprimento da obrigação de compra de módulos fotovoltaicos. (Doc. 9).
9. Tal carta, recebida pela Requerente a 28 de Novembro de 2017 nos seus escritórios de …, e recebida em 27 de Novembro pela A. Energia, SA nos seus escritórios de Madrid, fazia expressa referência ao contrato de 23 de Agosto de 2013, à cessão de posição contratual de 26 de Maio de 2014, à alteração contratual de 29 de Dezembro de 2015 e ainda à P. Company Guarantee de 28 de Agosto de 2013 da A. Energia, S.A. e à garantia bancária (Performance Guarantee) de 28 de Janeiro de 2016. Comunicava o seguinte:
10. De acordo com o estipulado na Secção 11 do Contrato de 23 de Agosto de 2013, e com o disposto na secção 2.6 do aditamento ao mesmo datado de 29 de dezembro de 2015, a Requerente obrigou-se a comprar à Requerida um mínimo de 180MWp1 de módulos fotovoltaicos ao longo da vigência do Contrato nos termos seguintes:
§ Nunca menos de 20MWp no período compreendido entre o início da vigência do contrato - e até que passasse um ano desde essa data;
§ Nunca menos de 50MWp no período compreendido entre a data do primeiro aniversário do início da vigência e a data do segundo aniversário;
§ Nunca menos de 65MWp no período compreendido entre a data do segundo aniversário do início da vigência e a data do terceiro aniversário;
§ Nunca menos de 35MWp no período compreendido entre a data do terceiro aniversário do início da vigência e a data do quarto aniversário; e
§ Nunca menos de 10MWp no período compreendido entre a data do quarto aniversário do início da vigência e o termo do contrato.
11. Comunicava ainda a carta da Requerida que, de acordo com a secção 11.4 do Contrato, no caso de a Requerente incumprir a obrigação de aquisição dos mínimos referidos, teria que indemnizar a Requerida por um montante a apurar multiplicando 19.000 euros/MWp pela soma dos MWp anuais não adquiridos em violação do Contrato.
12. Neste pressuposto, a Requerida referiu na sua carta que até ao terceiro aniversário contado desde a data de início da vigência do Contrato (4 de Maio de 2017) a Requerente teria que ter comprado, pelo menos, 135MWp de módulos fotovoltaicos sendo que, até 23 de Novembro de 2017, apenas  módulos num total de 31,57MWp sendo por isso devedora de uma indemnização no já referido montante de 1.965.170,00 euros.
13. Termina a Requerida a sua carta exigindo que tal pagamento seja efetuado no prazo máximo de dez dias contados desde a recepção da carta sob pena de execução das garantias bancárias juntando para o efeito uma fatura proforma com dados para pagamento.
14. Ainda que a Requerida não o refira na sua carta, presume a Requerente que o montante indemnizatório reclamado tenha sido apurado pela multiplicação de 103.43 MWp (resultado da dedução de 31.57 MWp a 135MWp supostamente devido nos termos do Contrato ao cabo de três anos após o inicio da sua vigência) por 19,000 €/MWp.
15. Como é próprio de quem tem um plano fraudulento que pretende pôr em prática, não cuidou a Requerida de explicar, nem o que está previsto efetivamente no Contrato, nem o que se passou durante a execução do mesmo, pelo que passa a Requerente a demonstrar que não ocorreu no caso em apreço qualquer incumprimento contratual pela sua parte.
16. A Requerida é uma subsidiária de uma empresa Chinesa sedeada em Hong Kong e que não tem qualquer património conhecido em Portugal para além do que resulte do normal giro comercial.
17. Pretende apenas forjar um pretexto para embolsar ilegitimamente o montante da garantia, expor dessa forma a Requerente face ao Banco P., e sair de Portugal encerrando a fábrica, bem sabendo que muito dificilmente a Requerente logrará ressarcir-se junto da Requerida do seu prejuízo mesmo que venha mais tarde a obter a seu favor uma sentença que condene esta a pagar-lhe uma indemnização pelos prejuízos causados pela sua conduta ilícita.
18. Mais pretende a Requerida levar a Requerente a aceitar nesta altura a sua ilegítima exigência pois sabe que a continuidade da laboração da fábrica, pelo menos até Agosto de 2018, é essencial ao Grupo A.
19. Assim que foi recebida a carta da Requerida, a Requerente respondeu, refutando o incumprimento do contrato em moldes semelhantes aos expressos na presente peça, manifestou a sua disponibilidade para quaisquer esclarecimentos e disponibilizou-se para reunir com urgência, tendo obtido indicação por parte de elementos da Requerida de que a menos que se procedesse ao pagamento pretendido, apresentariam a garantia ao Bano P. para pagamento.
20. Na seção 11.1, 11.2 e 11.4 do Contrato estabelecem-se obrigações de compra por parte da Requerente (ou suas participadas ou terceiros por si referenciados), de quantidades mínimas de módulos fotovoltaicos, de acordo com determinada calendarização e sob pena de indemnização na medida do incumprimento.
21. Na secção 11.1 as partes obrigam-se a negociar tais aquisições de boa-fé de modo a que as compras sejam satisfatórias para ambas as partes.
22. Nos termos da secção 11.6 do Contrato, a indemnização a que se refere a secção 11.4 – e aqui abusivamente exigida - não é devida quando verificadas as condições aí definidas.
23. Refere-se na aludida disposição contratual: “11.6 A Indemnização prevista na seção 11.4 não é devida pela Locadora (aqui Requerente) na parte proporcional correspondente a uma específica encomenda, se em qualquer momento durante a vigência deste Contrato, (i) o apresentar à Locatária ou às suas participadas um pedido de cotação de preços ou uma proposta de compra de painéis fotovoltaicos e estas rejeitarem tais pedidos, ou (ii) a Locatária ou as suas participadas, após negociações de boa-fé entre as Partes, (a) não conseguirem chegar a acordo em moldes consistentes com os normais padrões de mercado e com os requisitos da Locadora para um projeto específico e (b) não logrem acordar num preço que, em termos de pagamento equivalentes, seja igual ao preço médio de mercado oferecido formalmente à Locadora por 3 fornecedores de Tier 1 e / ou fabricantes de painéis fotovoltaicos após solicitação da compradora para comprar painéis fotovoltaicos, desde que essas cotações de 3 fornecedores Tier 1 sejam consistentes com os padrões do mercado e com os requisitos da Locadora para um projeto específico. (...)
24. A Requerida não tem direito a qualquer indemnização ou, muito menos, a exigir a execução das garantias uma vez que a Requerente – por si ou através de outras entidades conforme admitido contratualmente, e daí que adiante nos refiramos no que às encomendas de painéis concerne a uma noção ampla de Requerente abrangendo a própria em sentido estrito ou outras entidades elegíveis para efeitos de contrato, submeteu à Requerida, ao longo da vigência do Contrato, várias encomendas e pedidos de cotação de preços que não vieram a concretizar-se por se terem enquadrado nos pressupostos da referida secção 11.6 do Contrato, o que sucedeu com as seguintes encomendas (cuja situação a requerente densificou):
§ no Ano de 2015 - Encomendas de 243 MWp no âmbito do Projeto Romero (Chile);
§ no Ano de 2016 - Encomendas de 28,7 MWp no âmbito do Projeto Romero (Chile)
§ no Ano de 2017 - Encomendas de 340 MWp no âmbito do Projeto Puerto Libertad (México):
§ Encomendas de 186 MWp no âmbito do Projeto em Bemban (Egito)
25. A Requerente atuou em conformidade com o disposto na secção 11.6 do Contrato de 23 de Agosto de 2013 – cláusula que a Requerida omite na sua versão dos acontecimentos – o que exclui qualquer possibilidade de esta poder legitimamente reclamar qualquer indemnização ao abrigo do disposto na secção 11.4 do mesmo Contrato.
26. Apesar de inúmeros pedidos de encomendas, de cotações, das recomendações a terceiros a Requerida, ou negou fornecer produto por falta de capacidade, ou apresentou propostas que não iam ao encontro dos requisitos técnicos ou condições de pagamento específicos de cada projeto, ou, simplesmente, não eram comprovadamente competitivas em termos de preço.
27. Apesar de tudo o quanto se passou, a Requerente sempre continuou a insistir em procurar envolver a Requerida em todos os seus projetos.
28. A Requerente cumpriu a suas obrigações contratuais com respeito às obrigações de aquisição, tendo solicitado da Requerida propostas em quantidade muito superior à quantidade a que estava obrigada nos termos do Contrato.
29. Qualquer tentativa de exigir a execução da garantia bancária acima aludida é manifestamente ilícita e constitui em si mesmo uma violação dos termos do contrato de 23 de Agosto de 2013 e sucessivas alterações.
30. A interpelação para o acionamento das garantias bancárias viola a relação jurídica principal que se visa garantir, existindo fraude, abuso de direito e má-fé da Requerida.
31. Existe um evidente justo e fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do Requerente, uma vez que ao permitir-se o pagamento da referida garantia bancária a Requerente ficará sem possibilidade de ver devolvida por parte da Requerida essa quantia, atenta a ausência de património conhecido desta última.
32. O acionamento da garantia bancária por parte da Requerida comporta assim o correspondente perigo de diminuição do património da Requerente, na medida em que faz nascer na esfera desta última uma obrigação de pagamento perante o Requerido Banco Banco P.
33. Apenas não se verificaria este perigo de diminuição do património se o acionamento das garantias visasse a efetiva cobertura de quaisquer valores de que a Requerida fosse efetivamente credora perante a Requerente, o que não sucede manifestamente no caso em apreço.
34. Destinando-se a garantia bancária a assegurar o bom cumprimento da seção 11 do contrato de 23 de Agosto de 2013, é pressuposto do respetivo acionamento que exista um incumprimento da mesma, ou seja que seja injustificada a não aquisição dos mínimos de compras acordados contratualmente.
                Termina a requerente, pedindo que o procedimento cautelar não especificado seja julgado procedente, por provado, decretando-se, sem audição prévia dos requeridos, a providência cautelar não especificada de inibição do requerido banco Banco P. de proceder ao pagamento do valor garantido pela garantia bancária e da requerida de proceder ao accionamento da mesma garantia.
                Em 05.01.2018, foi proferido Decisão, constando do seu Dispositivo, o seguinte:
Deste modo, e afastado um dos requisitos de que depende o decretamento do procedimento cautelar, não especificado, é manifesta a improcedência do mesmo pelo que se indefere o presente procedimento cautelar (artigos 226º , nº 4 , b) , 362º e 590º, nº 1, do C.P.C.).
Custas pela Requerente, fixando-se o valor da causa em 1 995 170,00 euros.
Registe e notifique.
                    Inconformada com o assim decidido, a requerente interpôs recurso de apelação, em 23.01.2018, relativamente ao aludido despacho de indeferimento liminar.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:
i. Por não se conformar com a Sentença a fls. dos presentes autos que indeferiu liminarmente a medida cautelar requerida pela Recorrente, a mesma recorre da mesma por entender, diversamente do que aí é sustentado, que foi carreada para os autos prova documental bastante sobre a inexistência de incumprimento contratual da sua parte – cfr. docs. 10 a 19 da p.i. – e ainda por entender que a prova pode e deve, se for o caso, ser complementada através de depoimentos testemunhais, o que foi negado pelo tribunal.
ii. Fá-lo através de apelação, com efeito imediato, com subida nos próprios autos e feito suspensivo, nos termos dos Arts. 637.º, n.º 2, 644.º, n.º 1 al. a), 645.º, n.º 1 al. d) e 647.º, n.º 3, al. d), todos do Código de Processo Civil.
iii. A Garantia Bancária sub judice previa que o Requerido Banco P., assumia a obrigação de proceder ao pagamento do valor até € 2.812.000,00 (dois milhões e oitocentos e doze euros), destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações contratuais das partes.
iv. Da factualidade descrita no Requerimento Inicial a fls. dos presentes autos, resulta claro que a Recorrente procedeu ao cumprimento integral das obrigações contratuais que sobre si impendiam, inexistindo, pois, fundamento legítimo para a responsabilizar pelo pagamento de uma indemnização por incumprimento de compra de quantidades mínimas de painéis fotovoltaicos contratualmente previstas e, consequentemente, para permitir o acionamento da Garantia Bancárias em discussão, o qual se afigura abusivo e de má-fé.
v. Na sentença recorrida, entendeu o Mmo. Juiz do Tribunal a quo que não foi de modo algum demonstrado pela documentação junta que não ocorreu o invocado incumprimento e que, por conseguinte, é ilícito e abusivo o pretendido acionamento da garantia bancaria, mais sustentando que, não havendo prova documental, persiste incerteza quanto à prova que não pode ser colmatada “por elementos de prova ténues e inseguros como são os depoimentos de testemunhas”.
vi. Ora, a Recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal uma vez que (i) não apenas entende que foi carreada para os autos prova documental bastante sobre a inexistência de incumprimento contratual por banda da Requerente/ Recorrente – cfr. docs. 10 a 19 da p.i. - como (ii) entende que tal prova pode e deve, se for o caso, ser complementada através de depoimentos testemunhais.
vii. Não é legalmente exigível qualquer regime probatório específico para que possa ser decretada uma providência cautelar de inibição de acionamento de garantia bancária, nomeadamente a absoluta necessidade, neste tipo de procedimentos, de produção de prova documental.
viii. A entender-se de outro modo, os artigos 362.º e segs. do Código do Processo Civil, aliás na interpretação sufragada por este Tribunal, no sentido de obstar ao decretamento de uma providência cautelar destinada a impedir que os Recorridos acionem Garantia Bancária autónoma com fundamento em abuso de direito e fraude manifesta no seu acionamento por (i) inexistir nos autos prova documental bastante que ateste o cumprimento das obrigações assumidas pela Recorrente e (ii) o referido cumprimento só ser passível de ser comprovado através de prova adicional, cuja produção ultrapassa o âmbito da tutela cautelar e não pode, por esse motivo, ser admitida pelo Juiz, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, do acesso ao direito, do direito a um processo justo e equitativo e da tutela das expectativas legítimas e da confiança, consagrados nos artigos 1.º, 13.º e 20.º, n.º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa – questão que desde já se suscita (Art. 204.º da Constituição).
ix. Por outro lado, não poderão restar dúvidas quanto ao facto de a documentação junta aos autos – designadamente os documentos 10 a 19 - ser idónea à prova bastante da probabilidade séria da existência do direito, i.e., do direito à inviolabilidade do seu património por comportamentos ilícitos.
x. Aliás, da análise da referida documentação pode concluir-se pela inexistência do direito da Requerida Projinko a reclamar da Requerente uma indemnização por violação das obrigações de aquisição de quantidades mínimas de painéis fotovoltaicos, o que impõe, desde logo, a total exclusão da responsabilidade da Requerente.
xi. Assim, a Requerida Projinko, ao pretender acionar a garantia bancária em apreço está a atuar em manifesto abuso de direito e fraude visando locupletar-se à custa da Recorrente e criar uma pressão adicional relacionada com a ameaça de encerramento da fábrica.
xii. Face a todo o exposto, forçoso será concluir que a Requerida visa, com o acionamento da garantia bancária, obter o pagamento de um valor correspondente a uma indemnização devida por um incumprimento contratual que não existiu, motivo pelo qual não restam dúvidas quanto à existência de uma causa legítima que permita ao Requerido Banco P. não proceder ao pagamento dos montantes titulados pela aludida garantia.
               Pede, por isso, a apelante, que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos para julgamento a fim de serem decretadas as medidas cautelares requeridas, nos termos e com os fundamentos enunciados, e com as legais consequências.
              Citadas as requeridas, veio a 1ª requerida apresentar contra-alegações, em 14.02.2018, propugnado pela confirmação da decisão recorrida e formulou as seguintes CONCLUSÕES:
i. Vem o presente recurso interposto pela Recorrente contra a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, em 5 de Janeiro de 2018, que concluiu pelo indeferimento liminar do procedimento cautelar inominado, ao considerar – e bem – não estarem «demonstrados de forma “pronta, clara e líquida” invocada pela Requerente os factos que invocaram para sustentar o comportamento abusivo da 1.ª Requerida» (cfr. Sentença recorrida, com realce nosso).
ii. Argumenta a Recorrente que (i) foi carreada para os autos prova documental bastante sobre a inexistência de incumprimento contratual da Requerente/Recorrente (cfr. documentos n.ºs 10 a 19 da providência cautelar) e (ii) tal prova pode e deve, se for o caso, ser complementada através de depoimentos testemunhais.
Porém, nenhum destes fundamentos merece acolhimento, pelo seguinte:
iii. Conforme reconheceu a própria Recorrente, a Garantia Bancária em crise nos presentes autos é uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação.
iv. Pelo que a referida garantia envolve uma obrigação directa e independente do Banco P. para com a Recorrida, não podendo aquele opor a esta quaisquer meios de defesa de que, eventualmente, a Recorrente se pudesse prevalecer.
v. Com efeito, para accionar a Garantia Bancária a Recorrida apenas teria que efectuar uma solicitação por escrito, referindo as informações constantes dos pontos 1) a 3) do texto da própria garantia, tendo o Banco P. que proceder, sem mais, ao pagamento da quantia em causa.
vi. Havendo, pois, uma inversão do ónus da prova, uma vez que será a Recorrente a ter de fazer prova de que a eventual solicitação do beneficiário não é legítima.
vii. É certo que, não obstante a automaticidade da Garantia Bancária, não fica vedada, segundo a doutrina e jurisprudência, a possibilidade de ser recusado o accionamento da garantia, mas apenas excepcionalmente, em caso de «fraude», «abuso de direito» ou «má-fé».
viii. Exigindo-se, ainda, que a fraude ou os abusos invocados sejam inequivocamente demonstrados.
ix. Ou seja, a possibilidade de recusa depende da apresentação de prova «pronta, líquida e inequívoca» da fraude ou do abuso do beneficiário.
x. Sendo a prova líquida ou inequívoca quando permite a percepção imediata e segura da fraude ou do abuso, quando os torna óbvios,
xi. E pronta ou preexistente quando não se mostra necessário requerer a produção de provas suplementares, proceder a medidas de instrução, ou ouvir terceiros para estabelecer a fraude ou o abuso do beneficiário.
xii. Requer-se, pois, prova documental, de segura e imediata interpretação.
xiii. Se da prova resultar a mínima dúvida, qualquer incerteza ou espaço para divergência sobre o efectivo carácter fraudulento/abusivo da actuação da Recorrida tanto basta para determinar a improcedência do pedido inibitório.
xiv. Por conseguinte, no âmbito das providências cautelares destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, a procedência do pedido depende da apresentação de prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário.
xv. Não sendo, pois, de aceitar, nessa sede cautelar, um simples fumus bónus iuris, porquanto estamos perante o cumprimento de um contrato de garantia cuja característica preponderante é a autonomia, que não se coaduna com o deferimento de providências senão em situações excepcionais e que, seria excessivamente relativizada, caso nos bastássemos com uma prova meramente sumária, com base na qual o juiz pudesse fazer um simples juízo de probabilidade.
Ora, no caso concreto,
xvi. Como notou o Tribunal a quo, «os documentos juntos aos autos apenas demonstram a emissão de garantia bancária nos termos atrás descritos, a celebração do contrato nos termos invocados pela Requerente, o envio à 1ª Requerida no dia 23 de Novembro de 2017 de carta reclamando da Requerente uma indemnização no valor de Euros 1.965.170,00 euros alegando o incumprimento da obrigação de compra de módulos fotovoltaicos e da resposta da Requerente refutando o invocado incumprimento» (cfr. Sentença recorrida).
xvii. É facto assente que a Recorrente não efectuou aquisições de painéis fotovoltaicos à Recorrida nos volumes estabelecidos no Contrato.
xviii. A Recorrente assume-o e alega apenas que agiu em conformidade com o previsto na Cláusula 11.6 para justificar o sucedido e argumentar que a não realização do nível de aquisições previsto não se pode configurar como incumprimento.
xix.Porém, da documentação junta aos autos, não resulta provada a verificação dos requisitos da Cláusula 11.6, nem que é ilícito e abusivo o pretendido accionamento da garantia bancária.
xx. Como notou o Tribunal a quo, a documentação junta aos autos não demonstra «de modo inequívoco a existência dos factos e das afirmações conclusivas e argumentativas em que a Requerente estribou o abuso de direito invocado» (cfr. Sentença recorrida),
xxi.Revelando até, pelo contrário, que a Recorrente incumpriu efectivamente as suas obrigações contratuais, como sustenta a Recorrida
xxii. Pelo que não é de todo legítimo concluir, como pretende a Recorrente, pela «inexistência do direito da Requerida Projinko a reclamar da Requerente uma indemnização por das obrigações de aquisição de quantidades mínimas de painéis fotovoltaicos» (cfr. conclusão J das alegações de recurso da Recorrente);
xxiii. Nem, tão-pouco, que estão reunidas as condições para o decretamento da medida cautelar inibitória.
xxiv. A Recorrente, aquando da propositura do procedimento cautelar, tinha o ónus de alegar e provar – de forma pronta, líquida e inequívoca – os factos constitutivos do seu direito – o que não fez.
xxv. Por isso, bem andou o Tribunal a quo ao notar na fundamentação da sua decisão «o grau de incerteza que persiste e o facto dessa incerteza não ser susceptível de ser ultrapassada por elementos de prova ténue e inseguras como são as testemunhas» (cfr. Sentença recorrida).
xxvi. E ao determinar que «soçobra a probabilidade de existência do direito à paralisação da execução da garantia bancária» e, por conseguinte, «afastado um dos requisitos de que depende o decretamento do procedimento cautelar, não especificado, é manifesta a improcedência do mesmo pelo que se indefere o presente procedimento cautelar».
xxvii. É forçoso concluir que, atenta a falta de prova pronta e líquida da inexistência de incumprimento e da má-fé ou abuso de direito por parte da Recorrida, é manifesta a improcedência do pedido da Recorrente.
xxviii. Basta que a inexistência de incumprimento e o abuso não resultem manifestos da prova apresentada, como in casu não resultam, para que o accionamento da garantia não possa ser inibido e qualquer eventual divergência entre as partes tenha que ser dirimida a posteriori.
xxix. Por tudo isto bem concluiu o Tribunal a quo pelo indeferimento liminar do presente procedimento cautelar, não merecendo a decisão recorrida qualquer censura e devendo assim, ser integralmente mantida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

            Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do CPC, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal
ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

             Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

i. DA NATUREZA JURÍDICA DA GARANTIA BANCÁRIA PRESTADA PELA REQUERENTE.
ii. DO VIABILIDADE DE RECURSO A UMA MEDIDA CAUTELAR PARA IMPEDIR O ACCIONAMENTO DA GARANTIA BANCÁRIA E DE O SEU BENEFICIÁRIO VIR A RECEBÊ-LA E RESPECTIVOS PRESSSUPOSTOS.


III . FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

                 Com relevância para a decisão a proferir, importa ter em consideração a alegação factual referida no relatório deste acórdão, cujo teor aqui se dá por reproduzido

           

B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i. DA NATUREZA JURÍDICA DA GARANTIA BANCÁRIA PRESTADA PELA REQUERENTE

        Insurge-se a requerente/recorrente contra a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a sua pretensão que visava, em suma, a intimação da 1ª requerida a não proceder ao accionamento da garantia bancária e à inibição da 2ª requerida de proceder ao pagamento do valor objecto pela garantia bancária.
           
                Da prova documental apresentada é manifesto que está demonstrado que entre a requerente e a 1ª requerida foi celebrado um contrato, nos termos do qual, e em termos sintéticos, a primeira se obrigou a adquirir à segunda, determinadas quantidades de módulos fotovoltaicos e que, no âmbito deste contrato, foi emitida, pela 2ª requerida/Banco P., uma garantia bancária.
                Como define, JOSÉ MARIA PIRES, Direito Bancário, 2º volume, Lisboa, 284, o contrato de garantia bancária é "o contrato pelo qual um banco, por mandato do seu cliente, se obriga a pagar certa importância à outra parte (beneficiário), ficando esta com o direito potestativo de exigir a execução dessa garantia, sem que lhe possam ser opostos quaisquer meios de defesa baseados nas relações entre o banco e o ordenador ou entre este e o beneficiário".
                Para INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Garantias de Cumprimento, Almedina 1994, 283, a garantia autónoma é o contrato pelo qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato–base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato – Cfr. no mesmo sentido e do mesmo autor, Garantia Bancária Autónoma, O Direito, Ano 120 (1988), III-IV, 275 e segts.
                Tal significa que no contrato de garantia bancária o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia, mas a assegurar ao beneficiário determinado resultado, traduzido no recebimento de certa quantia em dinheiro.

               A garantia bancária, como modalidade do contrato de garantia, caracteriza-se pela sua autonomia relativamente à obrigação garantida, sendo independente (abstracta) desta, não podendo o garante prevalecer-se das excepções admitidas ao garantido.
                O objecto da garantia autónoma é distinto do objecto da obrigação decorrente do contrato-base, pelo que o garante, assegurando ao beneficiário determinado resultado, cumpre uma obrigação própria.

               Por outro lado, a autonomia da garantia bancária pode compreender graus distintos.

                   Entre os diversos tipos de garantias bancárias, há que distinguir as garantias autónomas simples e as garantias autónomas automáticas.

                   No caso da garantia bancária autónoma simples, que tem por objecto a cobertura de certo risco (incumprimento contratual), verificado o incumprimento da obrigação contratual, o garante está vinculado ao pagamento do respectivo valor.

                   Já a garantia autónoma automática, também chamada de garantia (bancária) pura, incondicional, abstracta, independente, à primeira solicitação, à primeira interpelação (on first demand), ou de pagamento imediato, traduz-se, no essencial, num contrato outorgado entre o mandante da garantia e o garante, a favor de um terceiro, o beneficiário,  só podendo o  garante opor a este as excepções que constem do próprio texto da garantia, mas já não as derivadas da relação contratual que está na base daquela.

                  Assim e sintetizando, enquanto na primeira (garantia bancária simples) o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor ou a verificação do circunstancialismo que constitui pressuposto do nascimento do seu crédito face ao garante, já tal prova não lhe é exigível na segunda (garantia bancária autónoma à primeira interpelação), devendo nesta o garante entregar imediatamente ao beneficiário, ao primeiro pedido deste, a quantia pecuniária fixada – cfr. neste sentido Ac. STJ de 13.01.2009 (Pº 08A3725), disponível em www.dgsi.pt.

                    Compreende-se a finalidade prática da garantia autónoma quando, por hipótese, o interessado deseja uma garantia tão forte como o depósito de dinheiro ou de valores.

                    A garantia bancária autónoma é comummente considerada como um negócio legalmente atípico, mas socialmente típico, aceite no nosso ordenamento jurídico em consequência do princípio da liberdade contratual  consagrado  no artigo 405º do C. Civil, segundo o qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato  (o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse contrato.

                   No caso de garantia autónoma, o garante não se obriga, como acima ficou dito, a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado, o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa entrar a apreciar o bem ou mal fundado desta alegação.

                    Na verdade, o banco, correndo um risco maior, mas também recebendo do seu cliente uma comissão mais elevada, procura acautelar o eventual exercício do direito de regresso contra ele, e foge a imiscuir-se nos litígios entre garantido e o beneficiário, e terá de reembolsar o beneficiário, sem necessidade de o banco tomar posição a favor de um ou de outro.

                    O garante paga ao credor sem discutir, tendo depois o devedor de reembolsar o garante, também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá a controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele, portanto, não fosse, afinal, o verdadeiro devedor.

                   Com efeito, a garantia bancária à primeira solicitação, forma mais reforçada das garantias dessa natureza, abdica de qualquer possível discussão por parte do garante das relações subjacentes à emissão da garantia e de qualquer comprovação do incumprimento.

                 Feita a solicitação de pagamento o garante deve pagar sob pena de incumprir os deveres que assumiu.
                 Importa, todavia, salientar que autonomia não se confunde com automaticidade, apenas esta reforça aquela. É que, ainda que a garantia não tenha incluída a cláusula on first demand, a mesma continua a ser independente da obrigação garantida.

                Tão pouco é susceptível de alterar a natureza da garantia, sempre que, como normalmente sucede, a garantia exija que o garante, antes de efectuar qualquer pagamento, proceda à breve análise de determinados documentos: facturas, ordens de fornecimento, boletins de transporte ou de embarque, não se confundido esse exame com um juízo de cumprimento ou de incumprimento da relação principal.

                 Quanto ao seu processo de formação, uma garantia bancária, seja ela simples ou autónoma, assenta numa relação comercial tripartida:
a) relação entre o devedor mandante da garantia (dador da ordem) e o beneficiário (credor principal), que é o contrato base, também chamado principal, celebrado entre o credor garantido e o devedor (ordenante ou ordenador), do qual decorrem as obrigações garantidas;
b) relação entre o mesmo mandante e o Banco garante, pelo qual aquele mandata (mandato sem representação) este para emitir a garantia a favor do beneficiário, vinculando-se o garante, mediante uma retribuição (a comissão), a prestar uma garantia ao credor (o beneficiário);
c) relação entre o Banco garante e o beneficiário e que é consubstanciada no contrato de garantia propriamente dito, pela qual  aquele  se  obriga  a  pagar  a  este  a  quantia  garantida  caso o mandante da garantia não cumpra as suas obrigações, o que sucede, uma vez comprovado o incumprimento do contrato principal ou base (no caso de garantia autónoma simples) ou de imediato, quando este simplesmente o interpele a realizar essa prestação (no caso de garantia automática à primeira solicitação).

                     As relações enumeradas em a) e c) são de natureza externa, no sentido de que nelas participa o beneficiário; a enumerada em b) é de índole interna, no sentido de que nelas não participa o beneficiário, travando-se entre os outros sujeitos.

                    Tal significa, portanto, que no processo de formação e emissão de uma garantia bancária autónoma existe três negócios jurídicos. Em primeiro lugar, um contrato-base entre o mandante da garantia e o beneficiário. Segue-se um contrato, qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário. E, por último, o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o Banco se obriga a pagar a soma convencionada, logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida   se   venceu    e não foi paga e solicite o pagamento, sem possibilidade de invocar a prévia excussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída - cfr. neste sentido, Acs. STJ de 29.04.2008 (Pº 380/08) e de 22.05.2014 (Pº 724/12.0YYPRT-A.P1.S1).

                  A característica essencial da garantia bancária autónoma assenta, pois, na independência relativamente a qualquer relação causal. E, essa autonomia confere à garantia bancária uma especificidade própria traduzida sobretudo como fonte contratual de uma obrigação autónoma da obrigação garantida e diferente da simples fiança. Ela assenta no contrato autónomo de garantia que cria uma obrigação autónoma para o Banco a qual não é, nem pode ser, afectada pelas vicissitudes da obrigação principal.

                   Conforme se diz no acórdão do STJ, datado de 21.4.2010, (Pº 458/09.2YFLSB), “tratando-se de uma contra-garantia (…), a autonomia revela-se ainda na impossibilidade de invocar excepções fundadas na relação subjacente à constituição da própria contra-garantia.”

                    Nesta modalidade de garantia bancária, o garante não pode invocar em sua defesa quaisquer meios relacionados com o contrato garantido, ou seja, a garantia não é acessória da obrigação que garante, é autónoma face à dívida, independente da discussão acerca do cumprimento ou do incumprimento do contrato.
                   Ao accionamento da garantia basta, por conseguinte, a interpelação à instituição de crédito, por parte do beneficiário da garantia, tudo se passando como se o Banco, no momento em que se obrigou perante o beneficiário, tivesse depositado à ordem deste o montante estipulado na garantia – cfr. ALMEIDA E COSTA E PINTO MONTEIRO, Parecer, CJ, ano 1986, tomo V, 18 e 19.
                    O regime jurídico da garantia bancária autónoma, é determinado pelas cláusulas acordadas e pelos princípios gerais dos negócios jurídicos (artigos 217.º e ss do C. Civil) e dos contratos (artigos 405.º e ss do C. Civil).

                   E, a qualificação jurídica de um contrato depende da interpretação do alcance e sentido que as partes quiseram dar às suas declarações negociais.

                  Para tanto, necessário se torna proceder à sua interpretação, que consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com tais declarações, sujeita às regras estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do Código Civil.

                  Aí se afirma o primado da vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário: do disposto no n.º 2 do artigo 236º resulta que, conhecendo o declaratário o sentido que o declarante pretendeu exprimir através da declaração, é de acordo com a vontade comum das partes que o negócio vale, quer a declaração seja ambígua, quer o seu sentido (objectivo) seja inequivocamente contrário ao sentido que as partes lhe atribuíram.

                 Nos casos em que o declaratário não conhece a vontade real do declarante, o artigo 236º consagra uma teoria objectivista da interpretação,  mitigada  por  restrições de índole subjectivista: o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n.ºs 1 e 2) ou prevalecer um sentido que não tenha aquele mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, se esse sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade.

                É, pois, consabido que a interpretação das declarações negociais deve fazer-se de acordo com as normas constantes dos artigos 236º e 238º do Código Civil, nos termos anteriormente aduzidos.
         Consagra-se na nossa lei civil a chamada teoria da impressão do destinatário.
                O Código Civil não se pronuncia, porém, sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação.
                Como elucida MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 450, também aqui se deve operar com a hipótese de um declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição de declaratário efectivo, teria tomado em conta.
                Para HEINRICH EWALD HORSTER, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, 510, a normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade de entender o texto ou o conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.
                  Tratando-se de um contrato formal, as regras de interpretação aplicáveis constam do artigo 238º do Código Civil:
1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.”

           O declaratário normal deve ser uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.

                     Para saber se estamos perante uma garantia bancária simples ou uma garantia bancária à primeira solicitação, há que analisar o texto da garantia em causa, através da interpretação das declarações negociais, atento o que se dispõe nas supra referidas normas constantes dos artigos 236º e 238º do Código Civil.

                    Ora, o caso vertente, embora se faça referência à prestação de uma “garantia de execução”, não consta do texto da mesma a expressão “on first demand” ou “à primeira solicitação”, o que não significa que esteja excluída a possibilidade de se considerar, à luz da doutrina da impressão do destinatário, que a garantia bancária prestada é uma garantia bancária á primeira solicitação.

                    Com efeito, analisando o contrato de garantia bancária aqui em apreciação, constante de fls. 91 dos autos, colhe-se que nele se encontra a seguinte referência (tradução a fls. 365/366):
 “A requerimento do beneficiário, que deverá ser recebido por nós no nosso endereço supra referenciado, comprometemo-nos irrevogavelmente a pagar ao Beneficiário um montante que não excede um total de 2.812.000,00€ (…) depois de recebida, por nós, o seu primeiro requerimento, por escrito definindo:
1) o número e data da nossa garantia sob a qual a sua reivindicação é feita
2) o montante por vós reivindicado
3) que o Mandante violou as suas obrigações nos termos da secção 11 do contrato, cujo pagamento correspondente é devido no prazo de 3 (três) dias úteis após a data do pedido.”

                   A falta da qualquer dessas expressões não altera a sua natureza. Basta que do seu texto constem outros elementos que permitam com segurança concluir que se trata de uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação, como sucede com as expressões que resultam do texto da garantia bancária aqui em causa.

                   Fez-se consignar no texto da garantia que: A entidade bancária, 2ª requerida, compromete-se irrevogavelmente a pagar à 1ª requerida, beneficiária da garantia, o valor nela inscrito, ao seu primeiro requerimento. Tanto basta, por conseguinte, para se considerar que estamos perante uma garantia autónoma à primeira solicitação.

                   Importa, então, apurar se é admissível à requerente lançar mão de um procedimento cautelar para impedir o beneficiário de receber a quantia objecto da garantia e, em caso afirmativo, quais os respectivos pressupostos, cuja análise se fará subsequentemente.

ii. DA VIABILIDADE DE RECURSO A UMA MEDIDA CAUTELAR PARA IMPEDIR O ACCIONAMENTO DA GARANTIA BANCÁRIA E DE O SEU BENEFICIÁRIO VIR A RECEBÊ-LA E RESPECTIVOS PRESSSUPOSTOS.

                  A declaração de vontade do beneficiário da garantia bancária autónoma à 1ª solicitação, é, não só, unilateral, como é também potestativa, porque se impõe eficazmente, independentemente da vontade do  mandante da  garantia  ou do  garante,  o que significa que o pagamento deverá ser feito após potestativa interpelação do beneficiário e sendo certo que o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal.
                       
                  É certo que o contrato autónomo de garantia cria uma obrigação autónoma para o Banco garante, a qual   não   é -  nem pode ser - afectada pelas vicissitudes da obrigação principal.

                   Exigida a garantia, o garante só poderá opor ao beneficiário as excepções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal.

                  Mas, se na garantia bancária autónoma à primeira interpelação, o garante tem de pagar ao credor sem discutir, também se tem por incontroverso que a autonomia da garantia se não sobrepõe à eventualidade de má fé ou abuso de direito, por parte do beneficiário da garantia.

  Como esclarece LUÍS DE MENEZES LEITÃO, Garantias das Obrigações, 153, acerca desta modalidade da garantia autónoma, à primeira solicitação: Em qualquer caso, verificados os pressupostos da garantia, o garante terá que satisfazer imediatamente a correspondente obrigação, sendo extremamente  limitadas  as  excepções  que  pode  invocar,  que  praticamente  se reconduzem à extinção da garantia por cumprimento, resolução ou caducidade, e ainda à existência de fraude manifesta e abuso de direito por parte do credor.

                  São, na verdade, muito restritos os casos em que o garante pode recusar o pagamento.

                 A jurisprudência e a doutrina têm procurado indicar algumas das excepções que se confinam, em regra, à violação das regras da boa-fé, abuso do direito ou necessidade de evitar benefícios decorrentes de factos ilícitos, envolvendo fraudes ou falsificação de documentos,  sendo generalizado o entendimento de que os factos pertinentes devem resultar de prova sólida e irrefutável, não bastando a formulação de meros juízos de verosimilhança sobre a ocorrência dos respectivos requisitos substanciais – v. a título meramente exemplificativo, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA E ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Garantias Bancárias, CJ, Ano XI-1986, Tomo V, 15 a 34, JORGE DUARTE PINHEIRO, Garantia bancária autónoma, ROA, 52º, 456 a 462, e MÓNICA JARDIM, A Garantia Autónoma, 327 e segs e, a título meramente exemplificativo, Acs. STJ de 04.05.2010 (Pº 5943/07.8YYPRT-A.P1.S1), de 27.05.2010 (Pº 25878/07.3YYLSB-A.L1.S1), de 13.04.2011 (Pº 41342/04.0YYLB-A.L1.S1), de 20.03.2012 (Pº 7279/08.8TBMAI.P1.S1), de 05.07.2012 (Pº 219/06.06TVPRT.P1.S1), de 13.11.2014 (Pº 4103/12.0TBSXL-A.L1.S1), de 25.11.2014 (Pº 526/12.3TBPVZA.P1.S1), e de 23.06.2016 (Pº414/14.9TVLSB.L1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

                   Como bem se evidencia no citado Ac. STJ de 20.03.2012 (Pº 7279/08.8TBMAI.P1.S1), “Não é excessivo sublinhar este ponto: para que o banco/garante deixe de pagar é necessário que seja colocada à sua disposição prova “líquida e inequívoca” da “má-fé patente”, da “fraude evidente” ao ponto de “entrar pelos olhos dentro”.

                   Igualmente refere PEDRO ROMANO MARTINEZ, Garantias Bancárias, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. II, 2, 280: “A recusa de cumprimento será, contudo, lícita sempre que o garante possa opor ao credor beneficiário, que reclama o pagamento da garantia, excepções ao cumprimento. O garante poderá opor ao beneficiário as excepções que resultem directamente do contrato de garantia. Tais como a sua invalidade (nomeadamente, por indeterminabilidade do objecto), a caducidade (verbi gratia, interpelação feita após o prazo de vigência) ou divergências relativamente ao clausulado (por exemplo, a reclamação feita por entidade diversa da beneficiária ou por montante distinto do devido, designadamente, por não ter sido tomado em conta algum pagamento parcial já realizado).”

                    Salientou-se no já citado  Ac. STJ de 21.4.2010, (Pº 458/09.2YFLSB), acessível em www.dgsi.pt, que: (…) a doutrina e a jurisprudência aceitam como limite à autonomia das garantias autónomas, mesmo das que devem ser satisfeitas à primeira solicitação, a fraude ostensiva, clamorosa e evidente do beneficiário, querendo assim significar que, em tal eventualidade, é legítimo ao garante que  dela  tiver  prova  líquida  recusar  o  pagamento  que lhe é exigido.  É claro que esta fraude  –  que,  em  direito  positivo português,  se reconduz à figura do abuso de direito, previsto e sancionado no artigo 334º do Código Civil –, aceite como meio de defesa do garante, é a que “resulta da ausência de direito do beneficiário tendo em conta o contrato base” (…), seja, por exemplo, porque este foi declarado inválido por sentença com trânsito em julgado, seja porque o garante dispõe de prova líquida de que o incumprimento alegado não se verificou”.

                   Não deixa, todavia, de se evidenciar no dito aresto que a suposta fraude “tem de ser evidente, clamorosa e manifesta (citado artigo 334º), de tal forma que ignorá-la, em nome da autonomia da garantia, ofenderia princípios fundamentais da ordem jurídica.

                     Tem sido unanimemente aceite, quer pela doutrina, que pela jurisprudência que o devedor, mandante da garantia bancária autónoma, recorra a uma medida cautelar para impedir o beneficiário de receber a quantia objecto da garantia, obstando a um aproveitamento abusivo e fraudulento da  posição  desse  beneficiário,  desde que estejam  verificados os requisitos gerais do procedimento cautelar em causa, como também o requisito adicional: ser efectuada prova pronta e líquida da fraude ou do evidente abuso – v. a título meramente exemplificativo, MÓNICA JARDIM, ob. cit, 327-337, JORGE DUARTE PINHEIRO, Garantia Bancária Autónoma, ROA, ano 52º, Vol. II (Jul1992), 459 e ss, Ac. TRP de 28-04-2011 (Pº 171/11.0TVPRT.P1) e Ac. TRL de 16.06.2011 (Pº 2304/10.5TVLSB-A.L1-2), relatado pela ora relatora.

                     Todavia, se é certo que, quer a doutrina, quer a jurisprudência admitem, como exigência indispensável, que o requerente do procedimento cautelar efectue prova pronta e líquida da fraude ou abuso evidente do beneficiário da garantia, não é, contudo, unívoca a questão de saber o que se pode entender por “meios de prova líquidos”.

                    Alguns defendem ser admissível qualquer meio legal de prova, mormente a prova pericial, prova testemunhal e da possibilidade de valoração dos depoimentos das partes.

                   Outros, entendem que líquida é exclusivamente a prova documental, de segura e imediata interpretação, i.e., provas pré–constituídas – cfr. sobre os diversos entendimentos acerca do sentido a atribuir à expressão prova ponta e líquida, MÓNICA JARDIM, ob. cit, 292-294.

                   A primeira das identificadas correntes foi seguida, nomeadamente, pelos Ac. TRP de 12.12.2000 (Pº 9920386), Ac. TRL de 13.10.2009 (Pº  3508/08.6TVLSB.L1-7) e Ac. TRP de 23.02.2012 (Pº 598/11.8TVPRT.P1).
 
                   Consignou-se neste último Ac. TRP de 23.02.2012 que, prova líquida, pronta e inequívoca pode extrair-se de qualquer meio de prova permitido em direito e não apenas da prova documental, sendo por isso possível o recurso a prova testemunhal, em sede de procedimento cautelar, com o objectivo de demonstrar a falta de fundamento material da solicitação de pagamento, feita pelo beneficiário, da garantia autónoma à 1ª solicitação.
                       
                  Mais se refere no aludido aresto, citando MIGUEL BRITO DE BASTOS, Recusa licita da prestação pelo garante na garantia autónoma “on first demand”, Estudos em homenagem ao Prof Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, p.547 e 557, que: “Como opõem Koziol e Bydliski, a restrição dos meios de prova disponíveis ao garante àqueles que sejam “líquidos”, excluiria a possibilidade de invocação do abuso de direito exactamente naquelas situações em que esse abuso é mais gritante, o que aponta no sentido oposto ao da restrição praeter legem: “quanto mais premeditado e refinado o comportamento fraudulento do beneficiário fosse, tanto menos possível provar de um modo líquido  esse  abuso. A posição inversa pode levar   a resultados  facilmente consideráveis como absurdos, nomeadamente, à condenação do garante em indemnização por incumprimento da obrigação decorrente de cláusula de pagamento à primeira solicitação quando, sendo a falta de fundamento material da solicitação do garante evidente para qualquer pessoa com um conhecimento superficial da execução da operação de base, o garante não esteja, por não dispor de “provas liquidas”, em condições de provar essa falta de cabimento material no momento em que recusa a prestação, mas o consiga demonstrar posteriormente, quando se discute o incumprimento definitivo das suas obrigações”. Afirmando ainda que: “a cláusula de pagamento automático não restringe os meios de prova disponíveis ao garante nem altera a medida exigida para a prova da falta de fundamento material da solicitação feita pelo beneficiário”.

Para a segunda das apontadas correntes, maioritariamente defendida na doutrinária e na jurisprudência, a fraude manifesta e o abuso evidente só podem ser invocados quando o carácter abusivo ou fraudulento da solicitação seja inequívoco, o que exige, prova pronta e líquida, não havendo abuso ou fraude manifestos se houver necessidade, para estabelecer a má fé do beneficiário, de proceder a medidas de instrução.

                Daí se entender insuficiente a consideração do simples fumus boni iuris, típico das providências cautelares, sob pena de violação da essência da garantia autónoma à  primeira  solicitação, pois tal significaria atribuir ao garantido/devedor a possibilidade de obter, por via cautelar, aquilo que o garante não pode obter por via da contestação ao pedido efectuado pelo beneficiário, atenta a especial natureza (autónoma) desta garantia - v. neste sentido, a nível jurisprudencial, nomeadamente, Acs. do TRL de 19.01.2010 (Pº 2720/09.5TVLSB.L1-7), de 21.02.2013 (Pº 863/12.7TVLSB-A.L1-2), de 08.09.2015 (Pº 74/14.7T8LSB.L1-7), de, e de 10.11.2015 (Pº 9515/14.2T8VLSB.L1-7).

                  Ao nível doutrinário, refere, designadamente, MÓNICA JARDIM, ob. cit., 336 e 337: “no âmbito da garantia autónoma, sempre que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, deve ser exigida prova pronta e líquida. Pois, defender o contrário, seria negar a especificidade que a prática, a doutrina e a jurisprudência têm tentado identificar na garantia autónoma. Consideramos que a prova pronta e líquida da fraude ou abuso evidente do beneficiário deve ser tida como indispensável, uma vez que está em causa o cumprimento de um contrato de garantia cuja característica dominante é a autonomia”.

                 Refere também JORGE DUARTE PINHEIRO, ob. cit, 460, a propósito do recurso a procedimentos cautelares para evitar a execução de garantias bancárias autónomas que, “o princípio da autonomia da garantia não se coaduna com o deferimento de providências senão em situações excepcionais, decalcadas dos casos de recusa legítima de pagamento” de tal modo que “o depoimento do dador e a prova testemunhal são insuficientes. A chamada «prova líquida» é indispensável” – cfr. também, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA E ANTÓNIO PINTO MONTEIRO,  ob. cit., loc. cit., GALVÃO TELLES, ob. cit., loc. cit., NUNO MARTINS BATISTA, Execução e Tutela Cautelar na Garantia Autónoma,  42-47, http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/7668/3/Execu%C3%A7%C3%A3o%20e%20Tutela%20Cautelar%20na%20Garantia%20Aut%C3%B3noma.pdf.

                Seguiu a decisão recorrida este segundo entendimento, o qual se corrobora.

                Com efeito, entende-se que no âmbito de uma garantia bancária autónoma, sempre que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a uma solicitação abusiva ou fraudulenta, por parte do beneficiário, deve ser exigida, ao requerente/devedor, para além da demonstração do risco de prejuízo grave que este sofrerá na ausência de tal providência, a apresentação de elementos de prova sérios da alegada fraude ou abuso, que estejam imediatamente disponíveis, ou seja, prova pronta e líquida, sendo que prova pronta é a prova pré-constituída, i.e., documental, sem recurso a produção de provas suplementares e é líquida, sempre que é inequívoca, permitindo a percepção imediata e segura, por conseguinte, óbvia, dessa invocada fraude ou do aproveitamento abusivo, por parte do beneficiário.

               Assim, e porquanto se entende que impende sobre o requerente cautelar, que pretenda obstar ao accionamento de garantia bancária autónoma à primeira solicitação, o ónus de alegar e provar, através de prova pronta e líquida, ou seja, através de prova documental inequívoca, que o beneficiário da garantia, ao pretender o seu accionamente, esteja a actuar de forma fraudulenta ou abusiva, o que não se vislumbra estar demonstrado nos autos, maxime, o não incumprimento contratual por banda da requerente por esta invocado, como bem se salientou na sentença recorrida - o que até a própria requerente/apelante admite, já que defende o prosseguimento dos autos, nomeadamente, para audição das testemunhas arroladas – forçoso é concluir pela improcedência da apelação, confirmando-se, nos seus precisos termos, a decisão recorrida de indeferimento liminar da pretensão da requerente/recorrente.
 
          Improcede, portanto, a apelação, mantendo-se o despacho recorrido.


          Vencida, é a recorrente responsável pelas custas respectivas - artigo 527º, nºs 1 e 2 do CPC.


IV. DECISÃO

              Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida e em condenar a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 19 de Abril de 2018

Ondina Carmo Alves - Relatora
Pedro Martins
Arlindo Crua