Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1350/10.3TXEVR-K.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
MEIO DE PROVA
RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DE REINSERÇÃO SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Na fundamentação das decisões sobre liberdade condicional, quando os elementos de prova levados em conta tenham sido os relatórios dos serviços prisionais e dos serviços de reinserção (art.º 173º/1 do CEP) e as declarações do recluso, quando este não tenha requerido nem oferecido qualquer outra prova, o exame crítico e a discussão da credibilidade desses meios de prova torna-se desnecessário, uma vez que a sua relevância, consistência e credibilidade decorrem da mera leitura dos mesmos, salvo se o recluso puser em causa o seu conteúdo ( sumário elaborado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
No Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, por decisão de 25/09/2018, constante de fls. 8/11, foi ao Arg.[1] AA.., com os restantes sinais dos autos (cf. fls. 62 – Ficha Biográfica), negada a liberdade condicional, para além do mais, nos seguintes termos:
“… i) Da verificação dos pressupostos formais
O recluso foi condenado, por decisão transitada em julgado, no processo nº 5/17.2GABRR, do Juízo Local Criminal do Barreiro, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
De harmonia com a liquidação efectuada naquele processo, são relevantes para efeitos de liberdade condicional as seguintes datas:
- Início: 1 dia de detenção e ininterruptamente preso desde 02.02.2017;
- Meio da pena: 01.11.2018;
- Dois terços da pena: 01.06.2019;
- Termo da pena: 01.08.2020.
Mostram-se verificados os pressupostos formais para a apreciação da liberdade condicional já que o condenado atingiu o meio da pena e declarou aceitar a sua eventual libertação condicional.
ii) Dos pressupostos materiais
Atentos os elementos existentes nos autos, em especial as certidões das decisões condenatórias, o certificado do registo criminal, a ficha biográfica, o auto de audição, o relatório integrado dos serviços de Reinserção Social e de Tratamento Penitenciário, e o teor do extracto do SIP (Sistema de Informações Prisionais) referente ao condenado, consideram-se demonstrados os seguintes factos:
a) O recluso apresenta uma postura de resistência na assunção do crime pelo qual foi condenado, bem como à interiorização da sua gravidade, remetendo para a vítima a culpa pela sua conduta;
b) O seu certificado do registo criminal averba três condenações: a primeira por homicídio qualificado, a segunda por ofensa à integridade física e a última – a que cumpre agora - por crime de violência doméstica;
c) O recluso nasceu a ….66, em S…, concelho do Montijo, pertencendo a uma fratria numerosa composta por dez elementos, todos dos mesmos pais; o agregado familiar debatia-se com grandes dificuldades económicas e o seu sustento dependia apenas dos parcos recursos obtidos pela actividade agrícola mantida pelo pai e pelo trabalho da mãe na área das limpezas domésticas; o pai seria alcoólico e violento no relacionamento com a família.
d) Em idade adequada frequentou a escola, não tendo obtido qualquer grau de ensino e tendo abandonado a mesma aos 11 anos de idade por desmotivação e comportamentos desajustados-.
e) O período da adolescência foi marcado pelo início da integração laboral precoce, como ajudante numa oficina de bate-chapas, actividade que manteve de forma descontinuada e precária ao longo da sua vida.
f) Neste período são também descritos episódios de violência no seio do seu agregado familiar, com alguns períodos de separação dos seus pais.
g) Na idade adulta manteve vários relacionamentos amorosos de curta duração, de onde resultaram os nascimentos dos seus três filhos, atualmente com idades compreendidas entre os 25 e os 20 anos. O recluso não tem qualquer relação de proximidade com os filhos;
h) A generalidade dos relacionamentos amorosos de AA… terão terminado de forma conflituosa, alguns dando origem a queixas junto das autoridades locais, tendo um destes conflitos culminado na morte da então companheira, após uma agressão infligida pelo condenado. Pela prática deste crime de homicídio qualificado AA… foi condenado numa pena única de 18 anos de prisão; beneficiou de liberdade condicional aos 2/3 da pena; o período de supervisão da liberdade condicional foi descrito pela equipa local de reinserção social como caracterizado por uma "resistência passiva às orientações que lhe foram sendo transmitidas";
i) Mais recentemente AA…. iniciou um relacionamento amoroso com a actual companheira, constituindo-se como o principal suporte na ajuda em pequenas tarefas domésticas e pessoais, que a mesma apresenta sérias dificuldades em realizar, em função de doença neuro-degenerativa de que padece; apesar do apoio prestado pela companheira, existem relatos, que a mesma não confirma, de que o recluso a agredia de forma física e verbal; o filho da sua companheira também sofre da mesma doença e, embora já seja adulto, precisa de ajuda de terceiros para se cuidar;
j) O seu comportamento em meio institucional tem-se caracterizado pelo cumprimento das regras; no entanto, em Junho de 2018, foi sancionado com quatro dias de permanência obrigatória no alojamento, após lhe ter sido apreendido um cartão memória;
k) Durante o período em que esteve em prisão preventiva investiu mais na valorização escolar; após ter sido condenado passou a revelar mais interesse na manutenção de hábitos de trabalho, tendo passado a exercer funções na JSL;
l) Frequentou e concluiu com aproveitamento o curso EFA B1, com equivalência ao 4º ano de escolaridade;
m) Não beneficiou de medidas de flexibilização da execução da pena;
n) Declarou pretender ir viver com a companheira e o filho dela, que necessitam do seu apoio face aos problemas de saúde de que padecem;
o) Perspectiva trabalhar em biscates como bate-chapas.
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Considerando os factos relevantes supra descritos e os pareceres desfavoráveis do Conselho Técnico e do Ministério Público, conclui-se que não se mostram verificados os pressupostos que fundamentam a concessão da liberdade condicional.
Desde logo as necessidades de prevenção especial são muito elevadas face aos antecedentes criminais do recluso, que já foi condenado por três vezes por crimes que envolvem a componente de agressão física contra terceiros, designadamente, companheiras, tendo sofrido uma condenação pela prática de crime de homicídio qualificado em 18 anos de prisão.
Continua a não apresentar uma reflexão crítica sobre o respectivo comportamento criminoso, relegando a responsabilidade pelos seus actos para a vítima, o que é um passo indispensável para levar à interiorização do desvalor da conduta e, assim, permitir que futuramente possa conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
Apesar de ter um percurso prisional adaptado às regras do E.P., verificou-se uma inflexão quando foi sancionado em Junho do presente ano.
Ainda não conseguiu evoluir para a próxima fase do tratamento penitenciário, de maior aproximação à vida em liberdade e de teste ao seu comportamento em meio livre. As medidas de flexibilização da pena permitirão avaliar de uma forma mais segura o seu processo de readaptação social e o actual grau de preparação para a vida em liberdade.
Acresce que não se pode ignorar que o sentimento actual da comunidade é o de muito dificilmente aceitar que alguém que cumpre pena pela prática de um crime tão grave como sucede com o recluso, seja libertado antecipadamente, sem que demonstre existirem fortes razões para isso.
Por isso, não pode ser concedida a liberdade condicional.
III – Decisão
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, não concedo a liberdade condicional a AA. …”.
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Inconformado, veio o Recluso interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 3/16, concluindo da seguinte forma:
“... 1. O presente Recurso tem como objecto a Nulidade da decisão recorrida e toda a matéria de facto e de direito versada na douta Sentença do Tribunal a quo relativamente à recusa da concessão da Liberdade Condicional.
2. A douta decisão ora recorrida enferma de nulidade;
3. O presente processo de Liberdade Condicional refere-se ao Recluso nº 111 a cumprir pena de prisão efectiva no Estabelecimento Prisional Regional do Montijo.
4. Na sequência da chegada a metade do cumprimento da pena de prisão foi apreciada a concessão ou não ao Recluso da Liberdade Condicional.
5. Para tal, foram os presentes autos instruídos com os relatórios previstos no artigo 173º do CEPMPL.
6. Conselho Técnico reuniu e foi desfavorável à concessão da Liberdade Condicional, com todos os pareceres nesse sentido.
7. Também o Ministério Público foi desfavorável a tal, emitindo igualmente seu parecer negativo.
8. Ficou provado na douta Sentença ora recorrida que o Recorrente Recluso iniciou o cumprimento desta pena de prisão em 02de Fevereiro de 2017, perfazendo metade da mesma em 01 de Novembro de 2018, prevendo-se os 2/3 para 01 de Junho de 2019 e o termo para 01 de Agosto de 2020.
9. Atendendo que, para a concessão da liberdade condicional é necessário que estejam preenchidos os pressupostos formais e materiais do artigo 61º do Código Penal, isto é, quanto aos primeiros, que haja o consentimento do condenado e que à data da decisão estejam cumpridos, no mínimo, seis meses da pena e não falte mais de um ano para ser atingida a metade, os 2/3 ou os 5/6 da pena.
10. Quanto aos segundos, que seja fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez colocado no regime em causa, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes e que, a colocação no regime de liberdade condicional se revele compatível com a defesa da ordem e da paz social
11. Considerou o Tribunal a quo que estariam preenchidos os pressupostos formais para a aplicação da Liberdade Condicional mas, contrariamente, não estariam preenchidos os pressupostos materiais para tal necessários.
12. Pois “Desde logo as necessidades de prevenção especial são muito elevadas face aos antecedentes criminais do recluso, que já foi condenado por três vezes por crimes que envolvem a componente de agressão física contra terceiros, designadamente, companheiras, tendo sofrido uma condenação pela prática de crime de homicídio qualificado em 18 anos de prisão.”
13. E “Continua a não apresentar uma reflexão crítica sobre o respectivo comportamento criminoso, relegando a responsabilidade pelos seus actos para a vítima, o que é um passo indispensável para levar à interiorização do desvalor da conduta e, assim, permitir que futuramente possa conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.”
14. “Ainda não conseguiu evoluir para a próxima fase do tratamento penitenciário, de maior aproximação à vida em liberdade e de teste ao seu comportamento em meio livre.”
15. “Acresce que não se pode ignorar que o sentimento actual da comunidade é o de muito dificilmente aceitar que alguém que cumpre pena pela prática de um crime tão grave como sucede com o recluso, seja libertado antecipadamente, sem que demonstre existirem fortes razões para isso.”
16. Salvo o devido respeito, não podemos concordar com tais Conclusões e consequente Decisão o que nos leva a lançar mão do presente Recurso a fim de revogar a douta Sentença proferida.
17. Pois, “Para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do juiz o exame crítico das provas, que é a sua descrição e o juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório, ou seja, a crítica porque umas merecem credibilidade e outras não, impondo que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada.” Vide Ac. do STJ de 27.05.2009, Proc. nº 1511/05.7PBFAR.S1.
18. E, como se salienta no Ac. do Tribunal Constitucional nº 573/98, a decisão, sobre a matéria de facto tem de «estar substancialmente fundamentada ou motivada – não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado»."
19. Conforme decidiu ainda o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 09.05.2007, “A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controle indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão.”
20. Atenta a fundamentação da Sentença ora recorrida não se compreende, nem se encontram devidamente fundamentadas as razões que levam à não verificação dos pressupostos materiais que permitam a concessão da Liberdade Condicional.
21. Pois, não se compreende nem se encontra devidamente fundamentada por que razão as necessidades de prevenção especial são muito elevadas neste caso concreto.
22. A base de tal fundamentação parece residir no facto de o Recluso ter já sido condenado pela prática de crime de homicídio qualificado em 18 anos de prisão que já cumpriu.
23. Se assim for então poderemos concluir que não será nunca aplicada nenhuma medida de flexibilização da pena ao Recluso atentos os seus antecedentes criminais.
24. O que não se concebe nem se consegue compreender.
25. Por outro lado, não se compreende também em que fundamentos se baseia a douta Sentença recorrida quando invoca que “não se pode ignorar que o sentimento actual da comunidade é o de muito dificilmente aceitar que alguém que cumpre pena pela prática de um crime tão grave como sucede com o recluso, seja libertado antecipadamente, sem que demonstre existirem fortes razões para isso.”.
26. Pois que, no Relatório do serviço da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais afirma-se que “Não há sinais de rejeição do arguido na comunidade.”
27. O Tribunal a quo baseou ainda a sua decisão nas conclusões e exposições constantes do Relatório dos serviços da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.
28. Sendo que, da leitura do mesmo e das conclusões dele resultante e espelhadas na Sentença do Tribunal a quo não se compreende, nem neles se explica o porquê de afirmarem, por exemplo que, o relacionamento do Recluso com a actual companheira “(…) será de caráter utilitário.”.
29. Assim como, se desconhece quais os elementos que lhes permitem afirmar que este desvaloriza a sua conduta.
30. Assim, é pois, salvo melhor opinião e com o devido respeito, nula a sentença sob recurso, nos termos do disposto nos artigos 379º nº 1 al. a) e 374º nº 2 do Código de Processo Penal, por violação do estatuído no artigo 374º, nº.2 do Código de Processo Penal.
31. O Recluso é um indivíduo com, actualmente,52 anos de idade.
32. Certo é que, conforme ficou provado na douta Sentença recorrida, o seu Certificado de Registo Criminal averba três condenações, mas, em todos os processos em que foi condenado, o Recluso cumpriu as obrigações a que ficou adstrito.
33. Sem se descurar o passado, não se pode infligir nestes autos a culpabilização do Recluso pelo cometimento dos crimes anteriores, dos quais já cumpriu a devida pena.
34. O que na verdade o Recluso sente é uma revolta interior muito grande consigo próprio.
35. E sobretudo porque se encontra a cumprir pena de prisão efectiva enquanto a sua actual
36. companheira cá fora sofre de inúmeras dificuldades dada a doença degenerativa de que tanto ela como seu filho padecem, e em que a ajuda do Recluso é desde sempre crucial.
37. Não se poderá ainda pôr de lado o percurso de desenvolvimento pessoal e profissional do Recluso que, em muito, condicionou as suas atitudes, pois todo o seu ambiente familiar foi marcado por alguma instabilidade, tendo de lidar desde criança com um Pai alcoólico e violento no relacionamento com a família.
38. Certo é que o Recluso tem, agora, perfeita noção das consequências dos seus actos, bem sabendo que a violência não é a forma de resolver situações de conflito, muito menos amorosas.
39. O Recluso já muito sofreu pelo desfecho das suas relações amorosas, sendo que em algumas delas as próprias companheiras da altura se aproveitavam do seu passado para lhe fazer chantagens e prejudicar o seu percurso, quer pessoal quer profissional.
40. Neste caso concreto parece-nos que não importa apenas o desfecho da conduta do Arguido mas sim também as condicionantes e as razões que conduziram a tais comportamentos.
41. Circunstâncias estas que, salvo melhor entendimento, deveriam ter sido tidas em conta na apreciação da concessão da Liberdade Condicional.
42. Por um lado, a situação grave e de grande dificuldade em que se encontra a viver a sua companheira  actual e o filho desta cá fora que necessitam urgentemente de auxilio e apoio que só vislumbram alcançar com a presença do Recluso, uma vez que não têm quaisquer outras ajudas ou apoios.
43. Por outro lado, todo o circunstancialismo que norteia o percurso de vida do Recluso, bem como as suas condições físicas e psicológicas.
44. O Recluso sempre procurou trabalho na área de “bate-chapas” e das vezes que não tinha trabalho efectivo ia fazendo biscates sem descurar nunca a sua necessidade de trabalhar.
45. Desde há algum tempo que o Recluso e a sua companheira tentam, a todo o custo, construir uma vida a dois dentro da regularidade, pois este é um relacionamento que já vem de antigamente, apesar dos seus altos e baixos.
46. Mais, o Recluso começou, a trabalhar no Estabelecimento Prisional, nomeadamente na montagem de componentes eléctricos.
47. Actividade laboral esta que o Recluso desempenha e desempenhou sempre com Assiduidade.
48. Investindo ainda no seu percurso escolar, tendo frequentado e concluído com aproveitamento o curso EFA B1 com equivalência ao 4º ano de escolaridade.
49. O Recluso teve apenas um incidente ao Junho de 2018 no qual cumpriu quatro dias de permanência obrigatória no alojamento em todo o seu percurso prisional neste EP.
50. Tendo, em regra, um comportamento regular e cumprindo rigorosamente as regras institucionais do Estabelecimento Prisional.
51. O Recluso nunca beneficiou de medidas de flexibilização da execução da pena.
52. Tem uma companheira e o filho desta à sua espera cá fora, com uma casa com condições suficientes e necessárias para o acolher.
53. Tal habitação é própria da sua companheira, apresentando todas as condições necessárias à vivência em comum.
54. O que tal traduz um verdadeiro esforço da parte da sua companheira para a ressocialização do Recluso e para a sua reintegração na sociedade longe da actividade criminosa.
55. Não devendo sobretudo a flexibilização da pena do Recluso ser condicionada pelos juízos que a comunidade poderá fazer face a este tipo de crimes.
56. Para além do mais, fundamentar esta decisão com argumentos tendo sobretudo por base o passado do Recluso, levará a concluir que, no extremo, este nunca poderá vir a beneficiar de medidas de flexibilização da pena, como sejam a liberdade condicional, saídas jurisdicionais, etc., por receio de que o mesmo, uma vez fora da reclusão, possa reincidir ou incumprir com os planos de reinserção social ou regras que lhe forem aplicados.
57. Pelo que, a Sentença de que ora se recorre revela subjectividade, fragilidade e inconsistência, assentando em circunstâncias que não encontram na realidade do Recluso qualquer apoio factual.
58. Assim, ao fundamentar a sua decisão em meras considerações de carácter subjectivo, sem qualquer apoio factual, o douto Tribunal a quo violou o princípio da livre apreciação da prova, consignado no artigo 127º do Código de Processo Penal.
59. Pois, no tocante ao princípio da livre apreciação da prova, o mesmo não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável –e portanto arbitrária–da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever–o dever de perseguir a chamada «verdade material»–, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo–Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 202-203.
60. Privando assim o Recluso de beneficiar da aplicação de um instituto que a lei lhe confere e para o qual tem todas as condições reunidas, colocando, verdadeiramente em causa a sua concreta ressocialização.
61. Em face do exposto, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve se revogada, substituindo-a por outra, pela qual se conceda ao recluso nº 111a aplicação do regime de Liberdade Condicional.
62. Violadas foram, pois, as regras contidas nos artigos 173ºess. do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e artigos 127º, 379º nº 1 al. a) e 374º nº 2 todos do Código de Processo Penal
63. Assim, deve ser dado provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser a douta Sentença recorrida ser substituída por outra que conceda ao recorrente a Liberdade Condicional, atenta a factualidade descrita.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECUSRSO E, EM CONSEQUÊNCIA SER A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE CONCEDA AO RECORRENTE A LIBERDADE CONDICIONAL, COM APLICAÇÃO DO REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO, DE ACORDO COM O PRECEITUADO NO ARTIGO 61º DO CÓDIGO PENAL,  ...”.
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A Exm.ª Magistrada do MP[2] respondeu ao recurso, nos termos de fls. 96/104, concluindo da seguinte forma:
“… 1.º O recluso encontra-se em cumprimento de uma pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica, sendo que o cumprimento da pena teve o seu início no dia 2.2.2017, o ½ da pena teve lugar no dia 1.11.2018, os 2/3 da pena ocorrem no dia 1.6.2019 e o termo em 1.8.2020.
2º Nos termos do artigo 61.º, n.º 2 do Código Penal, o tribunal coloca o condenado em prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se: a) for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e b) a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
3º No caso em apreço, a liberdade condicional foi apreciada por referência ao marco do meio da pena aplicada ao recorrente, pelo que estamos perante uma situação de liberdade condicional facultativa, havendo que avaliar se se verificam os referidos requisitos materiais, ou seja, teremos que avaliar as razões de prevenção especial e de prevenção geral no caso concreto.
4º O recorrente vem invocar que a decisão recorrida não está devidamente fundamentada quando conclui que as razões de prevenção especial são muito elevadas no caso concreto, parecendo tal fundamentação residir no facto de o recorrente já ter sido condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado na pena de 18 anos de prisão que já cumpriu o que não se compreende.
5º Alega ainda que apenas registou um incidente em junho de 2018 cumprindo 4 dias de permanência obrigatória no alojamento, que trabalha na montagem dos componente elétricos, que investiu no seu percurso escolar, tendo concluído o curso EFA B1, que tem apoio familiar exterior da companheira e do filho, os quais necessitam de si, que tem trabalho como bate chapas e, sobretudo, que tem agora perfeita noção das consequências dos seus atos e que sabe que não é através da violência que se resolvem situações de conflito, amorosas ou outras.
6º A conclusão do recorrente não pode proceder no caso, na medida em que, de facto, as razões de prevenção especial são muito elevadas ainda, tanto mais que regista no seu CRC uma condenação anterior pela prática de um crime de homicídio qualificado e uma condenação anterior pela prática de um crime de ofensas à integridade física, verificando-se um padrão de agressão a companheiras e demonstrando, consequentemente, uma personalidade violenta.
7º Basta ver que, e tal como resulta do acórdão condenatório, o arguido, em julgamento, não assumiu a sua conduta demonstrando total falta de interiorização do desvalor da mesma, a qual foi muito grave, tendo a vítima sido alvo de murro na cabeça, chapadas na face, pontapés, puxões de cabelo na via pública e ameaças de morte, sabendo a vítima que o recorrente já rinha sido condenado por homicídio qualificado.
8º Como tal, e como o exige a lei, a conduta anterior do agente e o modo de execução do crime são elementos que têm de ser ponderados na apreciação da liberdade condicional, pelo que os seus antecedentes criminais devem ser considerados e avaliados, tal como bem o fez a decisão recorrida.
9º Por outro lado, e tal como o impõe a lei, também a personalidade do recorrente e a sua evolução ao longo da execução da pena devem ser considerados.
10º Ora a este respeito, veja-se que muito pouca evolução se verificou desde a condenação do recorrente, tal como resulta dos relatórios da área de tratamento penitenciário e da DGRSP dos quais consta, respetivamente, que ao nível da atitude do recorrente face ao crime o condenado tem revelado uma postura de resistência face à assumpção do crime pelo qual se encontra condenado actualmente, bem como relativamente à interiorização da gravidade de crimes anteriormente cometidos, e que não reconhece o desvalor da sua conduta, vitimiza-se alegando que foi condenado injustamente (…) e apresenta alguns traços de personalidade que indicia ser portador de distúrbio de personalidade como comportamento manipulador, mentira, vitimização superficialidade afectiva e impulsividade que, associado a um reduzido sentido crítico do desvalor da sua conduta nos leva a considerar que a capacidade de mudança é muito limitada.
11º Ora, perante este quadro, só podemos concluir, tal como a decisão recorrida o fez, que não houve evolução positiva do recorrente ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta, de modo a poder-se concluir que o mesmo, futuramente, possa conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, fazendo prever a sua libertação antecipada um sério risco de reincidência criminal, tanto mais que a sua presença em meio livre ainda não foi testada mediante o gozo de licenças de saída.
12º Além do mais, apesar de o recorrente ter um percurso prisional adaptado, a verdade é que ocorreu um retrocesso no seu percurso prisional, tendo sido sancionado em junho de 2018 com 4 dias de permanência obrigatória no alojamento e, por outro lado, ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena, estando em regime comum.
13º In casu, entendeu-se, e bem, no despacho recorrido que, no presente momento da execução da pena, subsistem ainda exigências de prevenção especial, quer de ressocialização, quer de prevenção de reincidência que impedem, por enquanto, a formulação de um juízo de prognose positivo quanto ao comportamento futuro do recorrente.
14º Por outro lado, importa consolidar o seu percurso prisional, demonstrando que é capaz de evoluir para medidas de flexibilização da pena através de um comportamento responsável e conforme às normas institucionais.
15º Por todo o exposto, é forçoso concluir que continuam a subsistir ainda consideráveis exigências de prevenção especial, dada a reincidência no cometimento de crimes da mesma natureza e, bem assim, o facto de o recorrente não exprimir juízo auto crítico relativamente aos crimes por que foi condenado, bem como aos danos provocados na vítima, tendendo para a desculpabilização da sua responsabilidade.
16º Tais circunstâncias obstaculizam, pois, de modo acentuado o juízo de prognose favorável à concessão da liberdade condicional, uma vez que é de concluir que a personalidade do recorrente, não obstante o investimento na sua formação pessoal, ao nível da escolaridade e no trabalho, não evoluiu ainda o suficiente para que possa, quanto a este aspecto, considerar-se satisfeita a condicionante imposta pela alínea a) do n.º 2 do artigo 61.º do Código Penal, pelo que a sua libertação no momento em que o despacho recorrido foi proferido não seria compatível com a fundada esperança de, em liberdade, não cometer crimes.
17º Afigura-se-nos, assim, que a decisão recorrida, ao não conceder a liberdade condicional ao recorrente, efectuou uma prudente interpretação do disposto no artigo 61.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, não merecendo qualquer censura.
18º Alega, ainda, o recorrente que não se compreende em que fundamentos se baseia a decisão judicial recorrida quando refere que não se pode ignorara que o sentimento actual da comunidade é o de muito dificilmente aceitar que alguém que cumpre pena pela prática de um crime tão grave como sucede com o recluso, seja libertado antecipadamente, sem que se demonstrem existir fortes razões para isso, quando do relatório da DGRSP resulta que Não há sinais de rejeição do arguido na comunidade. O arguido já viveu na morada de BB…. e não ocorreram problemas significativos na comunidade.
19º A este respeito, importa referir que as necessidades de prevenção geral são, claramente muito elevadas, já que estamos perante um tipo de crime cometido com muita frequência por todo o território nacional, o qual tem conduzido à morte de dezenas das suas vítimas, que colide com os princípios fundamentais da vivência em sociedade, que demonstra menosprezo pela dignidade humana e pela pessoa com quem se criam laços afectivos, causando insegurança e alarme nos próprios e em toda a comunidade.
20º E não se pode afastar este alarme social só pelo facto de a comunidade particular e localizada no espaço que o agressor vai integrar não registar sinais de rejeição à sua presença no meio.
21º Com efeito, a prevenção geral não pode ser entendida como uma finalidade que se restringe a uma comunidade particular de pessoas, mas sim como alargada a uma comunidade mais geral, cujos bens e valores a lei defende quando consigna que as penas têm por finalidade, também a proteção de bens jurídicos sancionando os comportamentos que afetem ou violem tais bens ou valores.
22º Ora, se o Estado não acautela a defesa de bens jurídicos como a vida ou a integridade física, tendo em conta o crime de violência doméstica, a sua decisão é potenciadora na comunidade em geral de sentimentos de desconfiança e de descrédito na justiça, o que aconteceria, no caso dos autos se o arguido fosse libertado neste momento da execução da pena, considerando todos os demais elementos já referidos.
23º Ou seja, a sua libertação não se se revelaria compatível com a defesa da ordem e da paz social, pelo que também não se verifica o pressuposto legal previsto na al. b) do nº2 do artº61º do C.P.
24º Consequentemente, deverá manter-se a decisão que não concedeu a liberdade condicional ao recorrente, assim possibilitando ao recorrente melhor aprofundar a sua capacidade crítica relativamente aos aspectos acima enunciados, de maneira a que se possa concluir, de forma consolidada, que no futuro não mais os repetirá.
25º A decisão recorrida não padece de qualquer vício ou nulidade ou ilegalidade, não foi violada nenhuma norma legal, nem as indicadas pelo recorrente, pelo que o recurso interposto deve ser julgado improcedente. …”.
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Neste Tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 110, em suma, subscrevendo a resposta do MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.
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É pacífica a jurisprudência do STJ[3] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[4], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Por outro lado, o objecto dos recursos das decisões relativas à liberdade condicional está legalmente limitado nos termos do disposto no art.º 179º/1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade[5] (CEP), com o seguinte teor: “O recurso é limitado à questão da concessão ou recusa da liberdade condicional.”.
Assim, são as seguintes as questões a apreciar neste recurso:
I – Falta de fundamentação da decisão recorrida;
II - Verificação dos requisitos para a concessão, nesta fase, da liberdade condicional ao Recorrente.
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Cumpre decidir.
I – Entende o Recorrente que a decisão recorrida padece do vício de falta de fundamentação, porque “não se compreende nem se encontra devidamente fundamentada por que razão as necessidades de prevenção especial são muito elevadas neste caso concreto” (conc. 21.), “não se compreende também em que fundamentos se baseia a douta Sentença recorrida quando invoca que “não se pode ignorar que o sentimento actual da comunidade é o de muito dificilmente aceitar que alguém que cumpre pena pela prática de um crime tão grave como sucede com o recluso, seja libertado antecipadamente, sem que demonstre existirem fortes razões para isso.”” (conc. 25.), “Pois que, no Relatório do serviço da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais afirma-se que “Não há sinais de rejeição do arguido na comunidade.”” (conc. 26.), “O Tribunal a quo baseou ainda a sua decisão nas conclusões e exposições constantes do Relatório dos serviços da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.” (conc. 27.), “Sendo que, da leitura do mesmo e das conclusões dele resultante e espelhadas na Sentença do Tribunal a quo não se compreende, nem neles se explica o porquê de afirmarem, por exemplo que, o relacionamento do Recluso com a actual companheira “(…) será de caráter utilitário.”” (conc. 28.), “Assim como se desconhece quais os elementos que lhes permitem afirmar que este desvaloriza a sua conduta.” (conc. 29).
Estabelecendo o art.º 146º/1 do CEP que “Os actos decisórios do juiz de execução das penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”, entendemos que, relativamente às decisões sobre a liberdade condicional, para que haja um verdadeiro direito de recurso, estas devem obedecer aos requisitos previstos no art.º 374º/2 do CPP, conforme já entendíamos antes da entrada em vigor do actual CEP[6],[7].
A função da fundamentação é a de “…legitimar a decisão perante as partes e também coram populo, neutralizando as suspeitas de arbítrio; e, por outro lado, de emprestar à decisão os coeficientes indispensáveis de racionalidade e de objectividade, que a tornam objectivamente sindicável e controlável por terceiros, maxime pelos tribunais superiores. O consenso comunica-se também à compreensão normativa da fundamentação: ela deve assegurar a consistência lógico-racional capaz não só de tornar a decisão vinculativa no horizonte subjectivo de quem a proferiu, mas também de lhe emprestar a indispensável plausibilidade intersubjectiva em relação a terceiros. Face aos quais terá de despertar a mesma convicção, a mesma “certeza”.[8].
A fundamentação abrange, pois, a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado[9].
No caso das decisões sobre liberdade condicional, as provas a levar em conta são:
“... a) Relatório dos serviços prisionais contendo avaliação da evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido; b) Relatório dos serviços de reinserção social contendo avaliação das necessidades subsistentes de reinserção social, das perspectivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso e das condições a que deve estar sujeita a concessão de liberdade condicional, ponderando ainda, para este efeito, a necessidade de protecção da vítima; c) Oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do condenado, outros elementos que se afigurem relevantes para a decisão. ...”, podendo ainda o recluso oferecer as provas que julgar convenientes, aquando da sua audição pelo juiz (art.ºs 173º/1 e 176º/2 do CEP).
O tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto nos termos supra transcritos.
Naturalmente que, se os elementos de prova levados em conta foram, essencialmente, os referidos relatórios e as declarações do recluso, uma vez que este não requereu nem ofereceu qualquer outra prova, o exame crítico e a discussão da credibilidade desses meios de prova se torna desnecessário, uma vez que a sua relevância, consistência credibilidade decorre da mera leitura dos relatórios, salvo se o recluso puser em causa o seu conteúdo, o que não foi o caso.
Especificamente, a atitude do recluso de desvalorização da sua conduta e de falta de sentido crítico sobre a mesma decorre, para além do mais, do auto das suas declarações: “... Relativamente aos factos que levaram à sua reclusão, considera que foi a sr.ª que apresentou queixa que armou toda esta situação ...”.
Não padece, pois, a decisão recorrida da apontada falta de fundamentação.
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Nas decisões sobre a liberdade condicional, não há recurso da matéria de facto[10], conforme resulta do citado art.º 179º/1 do CEP, mas, naturalmente, podem suscitar-se e devem ser conhecidos os vícios referidos no art.º 410º/2 do CPP.
Não vislumbramos na decisão recorrida qualquer dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, que são de conhecimento oficioso[11] e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum[12].
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II - Nos termos do art. 40.º do CP, a execução da pena visa a “protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, tendo, portanto, uma função de paz jurídica, típica da prevenção geral, e uma função de reinserção que convoca a prevenção especial[13].
O artigo 61º do CP prevê, para a concessão da liberdade condicional, duas modalidades distintas: a obrigatória e a facultativa.
Com efeito, o regime legalmente definido para a concessão da liberdade condicional (art.º 61º/2/3/4 do CP) estabelece diferenciações ao nível dos pressupostos formais, em função do tempo de cumprimento da pena já verificado, prevendo-se a possibilidade de concessão da liberdade condicional (liberdade condicional facultativa) quando se atinge 1/2 e 2/3 da pena de prisão cumprida e a obrigatoriedade de concessão da liberdade condicional (liberdade condicional automática) aos 5/6 da pena de prisão superior a 6 anos.
Assim, na situação de reclusos que atingiram os 5/6 do cumprimento da pena, sendo obrigatório conceder a liberdade condicional (art.º 61º/4 do CP), a simples verificação dos referidos requisitos formais – cumprimento de cinco sextos da pena por recluso condenado em pena de prisão superior a seis anos, impõe a concessão da liberdade condicional, desde que, naturalmente, se tenha obtido o seu consentimento (art.º 61º/1 do CP).
Diferentemente, nas outras situações previstas na lei, contemplando-se apenas uma concessão facultativa da liberdade condicional, para além da verificação dos requisitos formais – cumprimento de metade ou dois terços da pena, no mínimo seis meses, impõe-se a verificação ainda de requisitos materiais.
Para além daquela diferenciação, importa ainda considerar as diferentes especificidades, ao nível material dos respectivos pressupostos, do regime previsto para o meio da pena e o estabelecido para a concessão da liberdade antecipada aos dois terços do seu cumprimento. Do confronto do n.º 2 com o n.º 3 do art.º 61º do CP resulta que no momento mais avançado do cumprimento da pena deixa de constituir pressuposto para a sua concessão a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social, pressuposto de prevenção geral exigível na libertação ao meio da pena, subsistindo apenas o pressuposto de prevenção especial estabelecido na alínea a) do n.º 2 do art.º 61º do CP (aplicável ao n.º 3, por remissão expressa): «for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes». Desse confronto, resulta ainda evidenciado serem essencialmente razões de prevenção especial as que devem ditar a decisão de concessão da liberdade condicional respeitante ao cumprimento de 2/3 da pena de prisão. E estas desdobram-se, como é sabido, numa componente negativa, expressa nas condições necessárias para o condenado não cometer novos crimes, e numa componente positiva, traduzida nas condições para a sua reinserção social.
Condição indispensável para a concessão da liberdade condicional será, pois, a realização de um prognóstico individualizado de reinserção social que traduza um conteúdo favorável, assente, essencialmente, na probabilidade séria de que o condenado em liberdade adopte um comportamento socialmente responsável, sob o ponto de vista criminal.
Por outras palavras, num juízo de prognose, deverá poder concluir-se que a restituição do arguido à liberdade o levará a adoptar uma conduta fiel ao direito, integrando-se na sociedade, de forma a não voltar a incorrer na prática de crimes.
Condição esta que se impõe verificar quer para a concessão da liberdade condicional quer ao meio da pena, quer aos 2/3, acrescendo, no primeiro momento ainda um juízo de prevenção geral, de compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social.
Ora, para tanto, importa verificar a sua “capacidade objectiva de readaptação”, na sugestiva expressão de Figueiredo Dias, de modo que as expectativas de reinserção sejam manifestamente superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da sua restituição à liberdade.
Ou seja, é em concreto que os índices de ressocialização revelados pelo condenado devem aferir-se, considerando a sua conduta anterior e posterior à condenação, bem como a evolução da sua personalidade ao longo do cumprimento da pena.
E um tal juízo de prognose há-de assentar, inevitavelmente, nos relatórios juntos aos autos e nos elementos de facto que o recluso queira apresentar, não se ignorando, naturalmente, os crimes por que foi condenado.
No presente caso, o Recorrente foi condenado numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica.
Pelos Serviços Prisionais e de Reinserção Social foram emitidos pareceres desfavoráveis. O Conselho Técnico foi desfavorável, por unanimidade. O MP também emitiu parecer desfavorável.
Dos mesmos, bem como da decisão recorrida, resulta que o recluso apresenta uma postura de resistência à assumpção da prática do crime (deste e dos anteriores) e revela pouca consciência crítica face ao desvalor das suas condutas.
Tem tem um percurso prisional regular, mas sofreu uma sanção disciplinar, por detenção de um cartão de memória.
A necessidade de aprofundamento e consolidação da interiorização da gravidade da sua conduta, levam à conclusão de que o prognóstico sobre a conduta futura não é ainda suficientemente positivo.
Assim, desde logo, por razões de prevenção especial, entendemos que o Recorrente não se encontra ainda em condições de beneficiar da liberdade condicional.
É, pois, improcedente o recurso.
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, decidimos julgar não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos a decisão recorrida.
Condenamos o Recorrente nas custas, com taxa de justiça que fixamos em 3 (três) UC, sem prejuízo de se verificar o pressuposto previsto no art.º 4º/1-j) do RCP.
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Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP[14]).
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Lisboa, 07/ 03/2019

Abrunhosa de Carvalho
Maria Leonor Botelho

[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
[3] Supremo Tribunal de Justiça.
[4]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[5] Aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12/10, que entrou em vigor em 10/04/2010.
[6] Acórdão da RL de 23/10/2008, por nós relatado, no proc. 8105/2008-9, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “1. As decisões que denegam ou revogam a liberdade condicional, apesar de serem formalmente despachos, conforme art.ºs 485º/6 e 486º/4 do CPP, devem conter os requisitos das sentenças, por aplicação/integração analógica permitida em processo penal, nos termos do disposto no art.º 4º do CPP. 2. tal solução decorre, desde logo, da importância do que está em causa: a concessão ou não da liberdade, que implica uma ponderação aprofundada de cada caso, que não se compadece com uma qualquer fundamentação (exigida pelo disposto no art.º 97º/5 do CPP) que fique aquém do que exige o disposto no art.º 374º/2 do CPP, além do mais, porque só este tipo de fundamentação permite que a decisão seja verdadeiramente sindicável em sede de recurso. 3. Por outro lado, só um tal entendimento permite dar verdadeiros significado e sentido à possibilidade de recurso destes despachos, consagrada legalmente pela reforma operada pela Lei 48/2007, de 29/08, que, assim, veio corrigir a inconstitucionalidade apontada pelo acórdão do TC com o n.º 638/2006.”.
[7] No mesmo sentido decidiram os seguintes acórdãos:
- da RL de 19/05/2009, relatado por Margarida Blasco, no processo 6 928/07.0TXLSB-A.L1-5, in www.dgsi.pt;
- da RL de 24/02/2010, relatado por Maria José Costa Pinto, no processo 4301/08.1TXLSB-A.L1-2, in www.dgsi.pt;
- da RL de 15/12/2011, relatado por Neto de Moura, no processo 4 286/10.4TXLSB-F.L1-5, in www.dgsi.pt, este tirado já na vigência do actual CEP;
[7] Nesse sentido, cf. o já citado acórdão da RP de 14/01/2015, relatado por José Piedade, no proc. 1 855/10.6TXPRT-T.P1.
[8] Manuel Costa Andrade, em parecer datado de Março de 2009, junto ao, processo n.º 263/06.8JFLSB.L1, por nós relatado na Relação de Lisboa.
[9] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”.
Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..
Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”.
Ver, por último, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”.
[10] Nesse sentido, cf. o já citado acórdão da RP de 14/01/2015, relatado por José Piedade, no proc. 1.855/10.6TXPRT-T.P1.
[11] Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no citado art.º 410.º/2 CPP.
[12] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
[13] A fundamentação que segue, acompanha de muito perto a do acórdão proferido no processo 3.693/10.7TXLSB-F, relatado por Fátima Mata-Mouros e por nós subscrito.
[14] Código de Processo Penal.