Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2604/08.4TMLSB-A.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: PARTILHA DOS BENS DO CASAL
CRÉDITO ENTRE CÔNJUGES
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
SUSPENSÃO DO INVENTÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1-O “crédito de compensação” do nº 2 do art 1676º CC (na redacção da L 61/2008 de 31/10), corresponde, apesar da sua designação de “compensação”, a um crédito entre os cônjuges, que tem de particular, por ser directamente um efeito do divórcio, só poder ser exigido no fim do casamento.
2-A exigência do crédito em referência terá lugar no processo de inventário, quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges.
3- Terá lugar por incidente, mas não propriamente pelo incidente a que se referem os arts 1349º e 1350º CPC, antes por um incidente autónomo.
4-Se (a não) complexidade da matéria desse incidente o permitir, será a existência e montante do crédito em causa decidido no inventário, pelo que se aplicará à subsequente partilha a regra do nº 3 do art 1689º CC.
5-Se, pelo contrário, a excessiva complexidade da matéria desse incidente não permitir uma decisão incidental segura, haverá que remeter os interessados para os meios comuns.
6-Mas sem que tal acção prejudique o andamento do inventário e a própria partilha, pois que, o mais que poderá acontecer, é que esta tenha lugar antes do trânsito em julgado daquela acção autónoma, caso em que o crédito que em tal acção venha a ser apurado, será pago – e ainda em observância do disposto no nº 3 do art 1689ºCC, na sua segunda parte – porque já não existam bens comuns, pelos bens próprios do cônjuge devedor.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

         I – “A”, intentou inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal que constituiu com “B”, fazendo-o por apenso aos autos de divórcio.
         Na qualidade de cabeça de casal relacionou como bens a partilhar uma fracção autónoma e a dívida do casal referente a empréstimo bancário para aquisição dessa fracção.
         Citada para o inventário veio a referida “B”, por incidente, deduzir pedido de compensação pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar”, nos termos do disposto no art 1676º/2 CC, e deduzir pedido de compensação pela utilização de bens próprios na aquisição de bem comum, nos termos do disposto no art 1689º/1 do CC, e, consequentemente, reclamar da relação de bens, terminando por requerer que as compensações pedidas sejam feitas prioritariamente pela meação do requerente, e sejam aditadas à relação de bens como créditos dela, requerida.
         O requerente, cabeça de casal, opôs-se, entre o mais, à existência de qualquer crédito de compensação pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar”.

         Foi proferido despacho no qual se sustentou que «a factualidade alegada como fundamento do direito à compensação pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar” é bastante complexa e de difícil indagação, não se coadunando com a prova sumária que nos é aqui permitido realizar», referindo-se de seguida, «que a questão suscitada não pode ser decidida em consciência neste inventário, por carecer de larga, aturada e complexa indagação, implicando a decisão nestes autos a redução das garantias das partes, pelo que nos abstemos de proferir decisão, relegando os interessados para os meios comuns a fim de aí definirem os direitos em conflito, nos termos do art 1336º/2 CPC». E entendendo ainda que, «a questão em causa poderá constituir causa prejudicial à definição dos direitos dos interessados directos na partilha se a requerida pretender recorrer aos meios comuns para que lhe seja reconhecido o alegado direito à compensação», convidou a mesma a explicitar «se pretende accionar os meios comuns vindo aos autos demonstrar ter dado entrada à acção correspondente em 30 dias para efeitos do art 1335º/1 CPC».
        A requerida comprovou nos autos ter interposto acção contra o requerente pedindo a condenação do mesmo no pagamento da referida compensação.

        Foi então proferido despacho referindo que a decisão de tal acção constituía «questão prejudicial à definição dos direitos dos interessados directos neste inventário», pelo que, ao abrigo do disposto no art 1335º/1 CPC, foi declarada a suspensão da instância neles, até que fosse proferida decisão definitiva nessa acção.

       II– É desta decisão que o requerente apela, tendo concluído as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
        1-São distintos os fundamentos e âmbito de aplicação dos arts. 1335º e 1350º CPC;
        2-Enquanto o art. 1335º regula as questões de que depende a própria admissibilidade do inventário e a legitimidade e definição dos direitos dos interessados, o art. 1350º dispõe sobre questões que têm a ver com a definição do acervo a partilhar;
         3-Como tal, a remissão para os meios comuns que ambos impõem, tem também consequências diversas;
        4- Quando, como nos casos do art. 1335º - em que há uma causa prejudicial em relação a outra, pois que a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda - a consequência é a suspensão do inventário até à resolução, nos meios comuns, das situações para aí remetidas;
       5- Já nos casos do art. 1350º, em que não existe essa prejudicialidade, a consequência é o prosseguimento do inventário, com exclusão, ou manutenção - temporária, até à decisão nos meios comuns -, dos bens cuja falta de relacionação se acusou, ou cuja exclusão foi requerida;
        6- Ora, no caso dos autos, não está em causa nenhuma questão ou causa prejudicial "essencial", de que dependa a admissibilidade do processo, nem a legitimidade ou definição dos direitos dos interessados;
       7- Como tal, iu casu, ao invés do decidido, deveria ter sido ordenado o prosseguimento do Inventário, ficando por relacionar e partilhar os - eventuais - direitos de compensação;
       8- Mais: no caso presente, dado que, a proceder a existência desses direitos de crédito, os mesmos se traduzirão - conforme o expresso pedido da acção intentada e documentada nos autos - numa obrigação de pagamento de determinada quantia, por um dos aqui interessados e ex-cônjuges, ao outro, nem sequer haverá, então, que retornar ao inventário, pois nada mais haverá a partilhar;
       9- Além de nada justificar a suspensão, o protelamento da partilha, por 5, 6 ou mais anos, com a interessada recorrida na posse da casa que é bem comum, constitui injusto locupletamento, que se não justifica jurídico-processualmente;
       10- Violou, assim, o douto despacho, por deficiente interpretação e/ou aplicação, os arts. 1335º e 1350º CPC;
       11- Deve, por isso, ser revogado o despacho da Mma. Juiz a quo que decidiu pela suspensão da instância nestes autos até à decisão nos meios comuns, sendo substituído por outro que mande prosseguir o Inventário, com marcação da conferência de interessados, seguindo-se os demais termos até à partilha.
        Não foram apresentadas contra-alegações.


       III - Colhidos os vistos, cumpre decidir, tendo presente o circunstancialismo fáctico processual que emerge do acima relatado.                                                                                                                           

          IV- A questão a apreciar no recurso, tal como emerge das conclusões das respectivas alegações, é a de saber se a invocação pelo cônjuge não cabeça de casal do crédito de compensação a que alude o nº 2 do art 1676º CC (na redacção da L 61/2008 de 31/10) feita em reclamação à relação de bens apresentada em inventário, sendo a questão em causa remetida para os meios comuns, implicará, como o pressupôs o despacho recorrido, a suspensão da instância no inventário nos termos do art 1335º/1 CPC, ou antes a exclusão dessa verba do acervo dos bens a partilhar e a prossecução desses autos, nos termos do art 1350º/2 CPC, como o defende o apelante.
          O mesmo é dizer, se a definição daquele crédito constitui, ou não, questão prejudicial no sentido de (dever) condicionar o andamento do inventário e a própria partilha, tal como foi pressuposto no despacho recorrido ao ter como aplicável a norma do art 1335º/1 CPC.
 
          A dicotomia a que o apelante procede no âmbito de aplicação dos arts 1335º e 1350º do CPC  não pode deixar de se subscrever  iluminada pelas palavras de Lopes do Rego [1] que o apelante transcreve, e que, pela sua especial clareza, aqui se renovam.
 
         Com efeito, refere o jurista em questão a respeito do art 1335º:
        «O disposto neste artigo procura resolver, em termos genéricos, a matéria das questões prejudiciais, relativamente à realização da partilha em inventário pendente, bem como a admissibilidade da suspensão da instância no inventário, quando estejam pendentes causas prejudiciais. Neste preceito, apenas se regula o regime das questões ou causas prejudiciais “essenciais", de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha, dispondo o art. 1350° sobre a decisão das questões que apenas condicionam a exacta definição do acervo dos bens a partilhar no inventário». E mais adiante: «Da conjugação dos nº 1 e 3 deste preceito, decorre a solução dos casos em que ocorram questões prejudiciais de que depende a admissibilidade do próprio inventário (abarcando as situações que eram perspectivadas no âmbito da "oposição ao inventário'', que era regulada no art. 1332º) ou a definição dos direitos dos interessados directos ria partilha (nomeadamente, as hipóteses de impugnação da legitimidade do interessado citado ou da invocação da existência de outros herdeiros, não indicados pelo cabeça-de-casal). Assim, inserindo-se alguma destas questões em inventário em curso, poderá o juiz: a) decidir a questão no âmbito do próprio inventário, como decorrência da regra segundo a qual o tribunal da causa é competente para dirimir todos os incidentes e meios de defesa nela suscitados; b) abster-se de tomar sobre ela decisão, remetendo os interessados para os meios comuns e suspendendo a instância, até que ocorra decisão definitiva - logo que os bens tenham sido relacionados - sempre que a natureza da questão impeça a sua decisão no próprio inventário (designadamente, porque ela só pode ser controvertida e decidida conto objecto de uma acção de estado ou de registo) ou a complexidade da matéria de facto a ela subjacente desaconselhe tal decisão como incidental, já que esta não asseguraria suficientemente as garantias das partes (v g, por se reportar à anulação de testamento ou a interpretações de cláusula testamentária de particular complexidade); c) autorizar – a requerimento das partes principais (os interessados directos na partilha ou o M. P., nos termos do  nº 1 do art. 1327º)- o prosseguimento do inventário com vista à realização de partilha provisória (sujeita a alteração em função do que vier a ser decidido acerca da questão prejudicial), em termos análogos aos que eram consentidos pelo nº 2 do art. 1384º, na anterior redacção; tal decisão será pertinente nas situações enunciadas no nº 3 deste art. 1335°: quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial, quando a viabilidade desta pareça (numa análise perfunctória) reduzida, quando os inconvenientes na suspensão do processo e no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como meramente provisória».
       Já em comentário ao art 1350º escreve: «Estabelece (o preceito em causa)  o regime aplicável no caso de insuficiência das provas para decidir das reclamações deduzidas quanto à relação de bens, aplicando nesta sede os princípios definidos pelo art. 13360. Assim, se a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas quanto ao relacionamento dos bens inviabilizar a prolação de decisão incidental, no âmbito do próprio inventário, pode o juiz: abster-se de decidir, remetendo os interessados para os meios comuns, não sendo incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecendo relacionados aqueles cuja exclusão se pretende; deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às acções competentes, ficando os bens relacionados, embora a título precário e provisório». Acrescentando, «Ao contrário de que ocorre com as questões prévias "essenciais” a que alude o art. 1335º a insuficiência de elementos para dirimir incidentalmente as reclamações deduzidas em sede de relacionamento dos bens nunca conduz à suspensão do processo, aplicando-se, no caso de remessa para os meios comuns, o disposto no n° 2 deste artigo».

         Antes de prosseguir, repare-se que o presente recurso apenas respeita ao crédito de compensação “pela contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar”, nos termos do disposto no art 1676º/2 CC, e não já ao pedido de compensação pela utilização de bens próprios na aquisição de bem comum, nos termos do disposto no art 1689º/1 do CC, cuja inclusão na relação de bens, a recorrida, aqui apelada, igualmente requereu na reclamação que deduziu à relação de bens apresentada pelo apelante. O despacho recorrido não abrange este invocado crédito, decerto, porque o Exmo Juiz a quo terá entendido que a questão ao mesmo atinente poderia ser resolvida em definitivo no próprio inventário.

       Mostra-se consensual nos autos que a averiguação da existência e montante do “crédito de compensação pela contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar”, nos termos do disposto no art 1676º/2 CC, reclamada nestes autos de inventário, haverá de fazer-se fora deles, consequentemente, nos meios comuns, aliás já accionados pela requerida que interpôs entretanto a competente acção declarativa.
      Onde o apelante diverge da solução acolhida no despacho reclamado, é, como resulta do atrás referido, nas consequências relativamente ao andamento do inventário e à realização da própria partilha, sendo que o entendimento que subjaz àquele despacho implicará que os ex-cônjuges mantenham o património do casal indiviso por anos significativos, com a consequente indefinição dos efeitos dissolutórios do casamento sobre o respectivo património, e os reflexos dessa indefinição sobre os aspectos pessoais sobrantes daquela dissolução.

       Parece ter sido propósito do legislador da L 61/2008 de 31/10 afastar o divórcio das consequências patrimoniais do mesmo, libertando um e outras, do conceito de culpa, pretendendo que os possíveis efeitos patrimoniais do divórcio não condicionem a sua obtenção, assim subtraindo a possibilidade do cônjuge que não o pretenda, ameaçar e chantagear aquele que, perante a simples ruptura do casamento, o deseja.
       Não obstante, desde que o andamento do inventário e a partilha tenham de ser suspensos para se saber se aquele crédito de compensação (pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar”, nos termos do disposto no art 1676º/2 CC), existe, ou não, e na afirmativa, em que medida, como foi entendido no despacho recorrido - suspensão que não se pode desconhecer que será por anos consecutivos - a verdade é que, não obstante já divorciados, bem poderão os agora ex-cônjuges continuarem a ameaçar-se e a chantagear-se - e tanto mais, quanto tenham filhos menores… - à conta da prolongada indefinição adveniente da indivisão do património comum … [2].
     
       Por assim ser, dir-se-á, à partida, que parece ser mais consentâneo com o espírito que terá presidido à Reforma do divórcio, e de todo o modo, mais conveniente, que aquela suspensão não tenha lugar.

        È evidente, por outro lado, que na matéria em análise não pode desconhecer-se o disposto no nº 3 do art 1676º CC (obviamente, na redacção dada pela L 61/2008 de 31/10), («O crédito referido no número anterior só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação»), norma cujo conteúdo se haverá de relacionar com o disposto no art 1689º do mesmo diploma.

       Diga-se de passagem que a referida norma do nº 3 do art 1676º se mostra criticável, tudo indicando que a respectiva formulação não terá sido inteiramente feliz.

       Mostra-se correcto que o crédito em referência seja apenas exigível no fim do casamento, mas a verdade é que nem isso se contém propriamente na norma em causa.

       A exigência desse crédito apenas após o fim do casamento justifica-se plenamente: por um lado, porque se pretende evitar litígios entre os cônjuges na vigência da sociedade conjugal [3]; por outro, e mais relevantemente, porque atento o conteúdo que haverá de se atribuir a tal crédito, «só nessa altura tem sentido existir tal crédito, uma vez que só com a dissolução do casamento o cônjuge ficará prejudicado e haverá que o compensar» (…) «Só com o divórcio e a dissolução do casamento surge a necessidade de compensar um dos cônjuges que poderá deparar-se com uma situação desfavorável do ponto de vista patrimonial. O prejuízo só surgirá nessa altura, e por isso, só nessa altura deverá ser admitido» [4].

      O que merece crítica nessa norma é que o crédito em questão parece exigível apenas nos regimes de comunhão, quando, indiscutivelmente, pode ter lugar em regime de separação de bens [5] [6].

        Além de que, esse crédito, enquanto efeito do divórcio que se pretende, «só deveria, e em qualquer regime de bens, ser exigido no fim do casamento e ser regulado no âmbito dos efeitos do divórcio e não no domínio dos deveres conjugais».
        Por outro lado, a redacção dessa norma «permite a sua exigibilidade (a do crédito em referência) mesmo sem existir divórcio. Repare-se: em primeiro lugar, a lei determina que o crédito compensatório só é exigível no momento da partilha. Ora, pode haver partilha sem divórcio (pense-se no caso da simples separação judicial de bens, ou a separação decorrente do pagamento de dívidas (arts 1696º/1 CC e 825º CPC), ou no caso de insolvência de um dos cônjuges). Nestes casos, e mantendo-se o casamento, a lei parece admitir a exigibilidade em qualquer regime de bens».
     E prossegue a autora que se vem citando, referenciando agora a origem da imprecisão da linguagem utilizada nesse preceito: «O problema foi que o nosso legislador limitou-se a transpor para esta matéria a solução encontrada para as compensações (p. ex no art 1697º). Esqueceu que o regime dos créditos e das compensações é necessariamente diferente, e se quer remeter a exigibilidade dos créditos para um momento ulterior, terá que o fixar expressamente e remete-los para o fim do casamento, como consequência do divórcio»[7]

     À matéria em causa no recurso importa, de sobremaneira, esta distinção entre “créditos” e “compensações”, a que a autora que se vem referindo procede com muita nitidez, referindo: «A compensação é o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica no decurso do regime de comunhão. A compensação aparecerá no momento de liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges, ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa da outra. Se assim é, a compensação apenas existirá se aquelas transferências se realizarem no decurso do regime matrimonial (e num dos regimes de comunhão). Por definição, uma compensação presume um movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges. Se, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre patrimónios próprios, haverá um crédito entre cônjuges, e não uma compensação. Tais créditos entre cônjuges obedecem a um regime jurídico distinto das compensações. Desde logo, salvo convenção em contrário, tais créditos são exigíveis desde o momento do seu surgimento, por estarem sujeitos ao regime geral do Direito das Obrigações, não se justificando o seu diferimento para o momento da partilha. O seu pagamento pode ser exigido durante o casamento, sem esperar pela sua dissolução e pela liquidação e partilha do regime matrimonial»[8].

       Ora, perante a clara contraposição entre “compensações” e “créditos entre os cônjuges” que resulta do acima transcrito – de que decorre só haver compensações (em sentido estrito), quando se verifique um relacionamento entre o património comum e o património próprio de cada um dos cônjuges,[9] sendo que se existirem apenas transferências de valores entre patrimónios próprios dos cônjuges se deverá falar de créditos entre os cônjuges, ou entre os seus patrimónios [10] - o dito “crédito de compensação” do nº 2 do art 1676º, é, estritamente, um crédito entre os cônjuges, que tem de particular, por ser directamente um efeito do divorcio, só poder ser exigido no fim do casamento.  

     Feitas estas considerações em função do disposto no nº 3 do art 1676º - de que importa reter essencialmente, que apesar da lei utilizar no nº 2 desse preceito a expressão “compensação”, a mesma constitui, em rigor, um crédito de um dos cônjuges sobre o outro e que o mesmo tem de específico a circunstância de apenas ser exigível após o divorcio – está-se em condições de se reverter à questão colocada no recurso, designadamente em função da contraposição entre as normas dos arts  1335º e 1350º CPC.

        Saber se existe o crédito pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar”, cuja relacionação no inventário a nele requerida reclama, e conhecer o seu exacto montante, não corresponde «a uma questão prejudicial de que dependa a admissibilidade do processo (de inventário) ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha», nas palavras utilizadas pelo nº 1 do art 1335º CPC, ao contrário do que foi considerado no despacho recorrido.

        Estará, efectivamente, em causa, uma questão referente a conhecer o exacto acervo de bens a partilhar, e por isso, sujeita, em princípio, à disciplina do art 1350º CPC. 
        Tratar-se-á de saber se se deverá integrar naquele acervo o crédito da requerida sobre o requerente referente à compensação a que se vem aludindo.

        Sucede que a aplicação, na íntegra, do disposto no art 1350º CPC implicaria a dupla consequência prevista no nº 2 desse dispositivo:
       Por um lado que, a partir do momento em que os interessados fossem remetidos para os meios comuns em função da complexidade da matéria de facto subjacente à questão implicada na invocação daquele crédito, como sucedeu nos autos, esse crédito, cuja falta na relação de bens o cônjuge não cabeça de casal acusara, não seria incluído no inventário, que prosseguiria sem ele.
        Mas, por outro, a de que, quando, ao contrário do que sucedeu nos autos, fosse o ex-cônjuge mais velho - e por isso o cabeça de casal, art 1404º/2 CPC – a pretender-se titular da compensação a que se refere o nº 2 do art 1676º e a relacionasse na relação de bens apresentada, opondo-se o ex-cônjuge a essa relacionação, sendo os interessados remetidos para os meios comuns, permanecesse o mesmo relacionado.
      O que, salvo melhor opinião, é solução que já não quadra  minimamente aos interesses que estão em causa, pois que iria ter lugar uma partilha, que ainda que precária e provisória, poderia vir a condicionar gravemente os interesses  patrimoniais do ex-casal, afinal em função de um crédito que até pode não existir.
       E decerto, se fosse a aqui apelada o cônjuge mais velho e tivesse  incluído na relação de bens o crédito em causa neste recurso, não  propugnaria o apelante a solução advinda do nº 2 do art 1350º, que implicaria que se procedesse – ainda que provisória e reversivelmente – a uma partilha com base num direito de crédito cuja existência e consistência estão inteiramente por apurar.

      E isto significará que, nem a solução que resulta da aplicação da norma do art 1335º, nem tão pouco a que resulta da estrita aplicação do art 1350º (pelo menos do seu nº 2), ambos do CPC, se ajustarão à situação que está em causa no recurso [11].

     Quer crer-se que a solução se deverá encontrar por recurso à conjugação da norma do nº 2 do art 1676º CC, com a do nº 3 do art 1689º, tendo presente estar em causa, não, em rigor, uma compensação, mas um crédito de um dos cônjuges sobre o outro.

     Assim:
      Do disposto no nº 3 do art 1676º CC, decorrerá que o crédito pela compensação referido no nº 2 desse preceito - que, como já se viu, só é exigível após o divórcio - será satisfeito no momento da partilha, quando, porque haja vigorado na sociedade conjugal um regime de comunhão, esta tenha lugar.
       Por assim ser, a afirmação do crédito em referência, terá lugar no processo de inventário quando aquela partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges.
       E terá lugar por incidente, mas não propriamente, ou pelo menos, necessariamente, pelo incidente a que se referem os arts 1349º e 1350º CPC, antes por um incidente autónomo.
      Que deverá, tanto quanto possível, conduzir a uma decisão definitiva no processo de inventário, de acordo com o princípio de que o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem – art 96º/1 CPC.
         Se assim suceder, isto é, se a (não excessiva) complexidade da matéria do incidente o permitir, será decidido no inventário a existência e montante do crédito em causa, pelo que se aplicará à subsequente partilha a (totalidade da) regra do nº 3 do art 1689º: «Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor».

        Se, pelo contrário, a excessiva complexidade da matéria do incidente não permitir uma decisão incidental segura, haverá que remeter os interessados para os meios comuns, como sucedeu nos presentes autos.
         Mas sem que tal acção prejudique o andamento do inventário e a própria partilha, pois que, o mais que poderá acontecer – como é normal que nessa situação venha a suceder – é que esta tenha lugar antes do trânsito em julgado daquela acção autónoma, caso em que o crédito que em tal acção venha a ser apurado, será pago – e ainda em observância do disposto no nº 3 do art 1689º, na sua segunda parte – pelos bens próprios do cônjuge devedor.

      Repare-se que na situação dos autos não estaria em causa que a partilha se processasse em função do disposto no nº 1 do art 1689º in fine, que só respeita às compensações stricto sensu, e por assim ser, determina que cada um dos cônjuges haverá de conferir o que dever ao património comum.
     Será assim que se deverá processar a partilha no caso da compensação, também invocada pela requerida, concernente à utilização de bens próprios na aquisição de bem comum, por estar aí em causa a consistência do património comum.
        Nessas circunstâncias, fará sentido que, sendo necessário apurar nos meios comuns a existência e montante dessa compensação, essa acção prejudique a partilha no inventário, pois que sem aquela definição não se conhece o montante do património comum.

        Na situação dos autos, onde, como já se referiu abundantemente, está em causa uma dívida de um cônjuge em relação ao outro, em nada interferindo no património comum, não há qualquer motivo para se prejudicar a partilha, e muito menos, diga-se de passagem, o próprio andamento do inventário até aquela.

       O legislador mostra, com a solução do nº 3 do art 1676º, que, tanto quanto possível, prefere que o crédito a que se refere no nº 2 dessa mesma norma seja averiguado nos autos de inventário, e tanto quanto possível, seja pago através da meação nos bens comuns do cônjuge seu devedor.

       Mas também mostra que nem sempre terá de ser assim.

        Desde logo, quando, como já acima se referiu, não haja lugar a partilha após o divórcio, porque o regime de bens do casamento, por adopção dos cônjuges, ou por imposição da lei, tenha sido o da  separação de bens.
        Quando assim seja, a compensação a que haja lugar, terá de ser reclamada em processo próprio após o divórcio.
       O mesmo sucederá na hipótese dos cônjuges, ainda que hajam sido casados num regime de comunhão, não terem quaisquer bens comuns a partilhar - porque não os tenham chegado a adquirir, ou porque todos foram penhorados e vendidos a terceiros. Como o refere Tome Ramião, referindo essas possibilidades [12],«é evidente que nestes casos, porque não está afastado o direito de compensação, verificados que sejam os seus pressupostos, terá que ser reclamado nos bens comuns».
       E como é igualmente evidente, porque nesses casos não há, ou já não há bens comuns, o valor desse crédito, não podendo ser pago pela meação do cônjuge devedor nos bens comuns, sê-lo-á pelos bens próprios deste.

        Ora na situação dos autos, em que a remessa dos interessados para os meios comuns no referente ao crédito de compensação pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar”, nos termos do nº 2 do art 1676º CC, exigido no inventário pelo cônjuge não cabeça de casal, não deverá prejudicar o andamento e a partilha a terem lugar no inventário, o mais que pode acontecer é que o valor de tal crédito, uma vez apurado, seja pago com bens próprios do ex-cônjuge aqui apelante.

      A solução que se defende é, como acima já se referiu, a mais consentânea com o espírito da Reforma resultante da L 61/2008, que implicará, para bem dos ex-cônjuges e seus filhos, que aqueles se  desembaracem o mais depressa possível das consequências necessárias do divórcio, para que obtenham, a maior pacificação possível, também no aspecto patrimonial.
      Por isso, só poderá haver vantagens na prossecução do inventário e na realização da partilha nos autos de inventário, sem que estes fiquem a aguardar o que venha definitivamente a ser decidido no referente ao crédito a que se vem aludindo.
 
      Note-se ainda, que o legislador previu no art 1792º CC – norma, e bem, inserta nos efeitos do divórcio - a possível existência de outros créditos de um cônjuge sobre o outro, também eles só exigíveis findo o casamento.
     Nessa norma, sob a epígrafe “Reparação dos danos”, admite-se no seu nº 1 que «o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns»; e admite-se no seu nº 2 que «o cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea b) do art 1781º (alteração das faculdades mentais do outro cônjuge) deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento», devendo este pedido ser deduzido na própria acção de divórcio.
     No caso do nº 1 a lei entende que o cônjuge terá sempre de se servir de uma acção autónoma [13].
       Ora o valor desse crédito, quando apurado, só poderá ser pago pelos bens próprios do cônjuge devedor, à semelhança do que se propugna para o crédito que está em questão nos autos.

      Assim, ainda que com fundamentos não inteiramente coincidentes com os invocados pelo apelante, há que julgar procedente a apelação.

      V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido, devendo o inventário prosseguir os seus normais termos independentemente da acção proposta pela apelada para ver reconhecido o crédito que invoca referente à compensação a que alude o nº 2 do art 1676º CC.
                                                                                                             
       Custas pela apelada.
                                                                                                               Lisboa, 14 de Abril de 2011

Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
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[1] - «Comentários ao Código de Processo Civil», 1999, p 702-703.
[2]- Como o faz notar Cristina Araújo Dias, «Uma Análise no Novo Regime Jurídico do Divórcio, L nº 61/2008 de 31/10», 2ª ed., p 24 «É (…) legítima a preocupação manifestada pelo Presidente da Republica, no seu comunicado sobre a promulgação do diploma que altera o regime jurídico do divórcio, ao referir que, em vez “de diminuir a litigiosidade, o novo diploma a fará aumentar, transferindo-a para uma fase ulterior, subsequente à dissolução do casamento, com consequências gravosas para as partes envolvidas, sobretudo a que se encontra numa posição mais fragilizada, incluindo os filhos menores” .
[3]- Sendo aqui aplicável o que, ainda que por referência a créditos por compensações (em sentido estrito), se refere no Ac R C 15/272005, acessível em www dgsi pt 
[4]-  Cristina Araújo Dias, obra referida, p 70
[5] - Que é onde fará maior sentido, como o põe em destaque Cristina Araújo Dias, obra referida , p 68. «A relevância desta compensação ao cônjuge que renunciou à sua vida profissional verificar-se-á sobretudo no caso dos cônjuges estarem casados no regime de separação de bens. De facto, nos regimes de comunhão, cuja ideia subjacente é a da participação de ambos os cônjuges no que foi adquirido com o esforço conjunto, o cônjuge que se dedicou ao lar e ao trabalho doméstico sempre pode participar nos bens que o outro cônjuge adquiriu ao longo do casamento. Tal não ocorre no regime de separação de bens, onde mais nitidamente o cônjuge que renunciou à sua vida profissional integral ou parcialmente não tem qualquer participação nos bens adquiridos pelo outro cônjuge e com o seu auxílio (ainda que não financeiro)»  
[6]- Ao contrário do que à primeira vista o referido nº 3 do art 1676º parece inculcar, quando o regime de bens for o da separação, nem por isso o referido crédito de compensação pode ser exigido a todo o tempo em função da circunstância de nesse regime de bens não haver por definição partilha, dada a inexistência de bens comuns. Diz Tomé Ramião, obra citada, p 118: «Mas assim não será, seguramente, não sendo legitima essa leitura e nem faria sentido que os cônjuges pudessem na vigência do casamento  exigir essa compensação, quando a lei faz depender esse direito do divórcio, ou seja, no caso de separação de bens porque inexiste partilha de bens comuns, o crédito de compensação tem de ser exigido através dos meios comuns, em acção própria, em vez do processo de partilha, mas sempre depois do divórcio. O divórcio é condição de exigibilidade do crédito de compensação, qualquer que seja o regime matrimonial adoptado». 
[7] - Obra citada , p 74
[8] - Obra citada, p 61 e ss, maxime, p 63
[9] - É o que sucede com as situações previstas nos arts 1682º/4, 1697º, 1722º/2 1726º/2 1727º 2ª parte e 1728º/1 in fine, normas em que se referem expressamente “compensações” devidas pelo património comum ao património próprio de um dos cônjuges, ou por este àquele.  
[10] - Cfr Tomé Ramião, obra citada, p 106
[11]  - Nem se diga, ser forçosa a aplicação directa das regras do processo de inventário de herança ao inventário em consequência de divórcio. «As necessárias adaptações»,  referidas  no art 71º/2 da L nº 29/2009 de 29/7, demonstra-o. Apesar do art 1404º/3 CPC não fazer referência a essas “adaptações”, o facto é que, como se lê no Ac desta Relação de 1/6/2010 (Abrantes Geraldes), «sendo diverso o circunstancialismo que rodeia a partilha da herança e a partilha dos activo e dos passivos patrimoniais dos cônjuges depois do seu divórcio, em lugar da aplicação directa das regras do processo de inventário, importa que sejam ponderadas as especificidades da relação conjugal, com os juízos e os ajustamentos procedimentais necessários (….) Trata-se da adequação formal a que se reporta o art 265º-A CPC. 
[12] - Obra referido p 118
[13] -  A respeito da acção prevista no nº 1 do art 1792º, diz Cristina Araújo Dias, obra referida, p 23: «O cônjuge que se sinta lesado e que pretenda requerer uma indemnização terá de provar o preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil (arts 483º ss) (…) Por outro lado, terá de o provar em acção autónoma, implicando uma duplicação de processos judiciais relativos às mesmas partes e com julgadores diferentes (não seria preferível ser o juiz do Tribunal de Família que decreta o divórcio e que analisou melhor os factos a decidir também essa questão no decurso da mesma acção de divórcio?)»