Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5925/2003-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: SOCIEDADE
TRANSFORMAÇÃO
SOCIEDADE IRREGULAR
COMERCIANTE
DÍVIDA DE CÔNJUGES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Sumário: A transformação de uma sociedade anónima numa sociedade por quotas não interfere na personalidade jurídica, mantendo-se a mesma sociedade, embora com outro estatuto jurídico.
Da falta de registo da transformação não decorre a natureza irregular da sociedade transformada.
Por isso, os actos praticados pelo seu representante apenas vinculam a própria sociedade e não o referido representante.
Aquele que age em representação de uma sociedade irregular que exerce o comércio não adquire por essa via a qualidade de comerciante.
Decisão Texto Integral: I – O BANCO A, S.A., a que sucedeu o BANCO B, S.A.,
demandou
C e D
em acção declarativa com processo ordinário,
pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de PTE 250.516.773$70, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos.
Para tanto alegou a outorga com a sociedade E, Ldª, de um contrato de consolidação de mútuos bancários, no montante de PTE 107.892.215$50 de capital e PTE 48.508.824$20 de juros, e de um contrato de crédito a curto prazo sob a forma de conta-corrente, até ao limite de PTE 29.540.000$00.
Em tal contrato interveio o R. C, intitulando-se sócio-gerente da referida sociedade. Porém, apesar de a mesma ter resultado da transformação da E, SARL, a escritura pública de transformação em sociedade por quotas não foi levada ao registo comercial, tratando-se, por isso, de uma sociedade irregular.
Deste modo, tendo o R. C agido como sócio-gerente da referida sociedade irregular, é responsável perante o A. pelo cumprimento das obrigações que em nome da sociedade foram assumidas.
A Ré também é responsável porque o referido R. utilizou a mencionada sociedade para daí extrair proventos de que vive exclusivamente o casal formado pelos RR., sendo a dívida comunicável.

Contestaram os RR. e alegaram, além do mais, que o R. C não extraiu rendimentos da referida sociedade, sendo as suas funções remuneradas pela sociedade F, com sede na Inglaterra.
Quanto à R. D, negaram que o R. C tivesse praticado actos de comércio que implicassem a comunicabilidade das dívidas assumidas enquanto gerente da referida sociedade, assim como impugnaram que os montantes creditados pelo A. tivessem servido para suportar a economia doméstica.

Saneado e condensado o processo, realizou-se o julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente relativamente ao R. C, que foi condenado no pagamento da quantia de PTE 250.516.773$70 e nos juros vencidos e vincendos, absolvendo-se a R. mulher do pedido.

Apelou a A. da sentença, na parte em que a R. D foi absolvida, concluindo que:

a) O R. C contraiu dívidas como legal representante de comercial irregular no exercício da actividade desta, as quais são de natureza comercial;
b) Por força do disposto no art. 10º do C. Com. o R. C é responsável pelo pagamento dessas dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio.
c) Tal não acontece se se provar que as dívidas não foram contraídas em proveito comum do casal ou se entre os cônjuges vigorar o regime da separação de bens;
d) A recorrida apenas provou que o seu casal não vivia dos rendimentos da sociedade irregular de que o marido era o legal representante, o que não ilide a presunção de que a dívida foi contraída em proveito comum do casal.
e) O proveito tanto pode ser económico como moral e até pode reconduzir-se a uma poupança. Pode até resultar da contracção de dívidas de que não tenha resultado qualquer rendimento, pois que ainda assim a dívida terá sido contraída em proveito comum que se afere pela intenção com que ela foi assumida.

Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Factos provados:

1. No dia 26-2-85 foi outorgada escritura pública de transformação da E, SARL, em sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada com a denominação E, Ldª, cuja cópia consta de fls. 55 a 63;
2. A E, SARL, encontrava-se registada na Conservatória do Registo Predial do Barreiro (fls. 285 e segs.);
3. Não foi registada a transformação referida em 1. (fls. 70 e segs.), embora a respectiva escritura tenha sido publicada no Diário da República em 15-3-85 (fls. 74);
4. Tal escritura foi rectificada por escritura de 11-4-86, nos termos que constam de fls. 123 a 126, declarando-se que a E, SARL, tinha a sua sede no Barreiro e não em Lisboa, como além ficara assinalado;
5. O Banco A, SA, celebrou, em 29-10-85, com E, Ldª, o acordo intitulado “consolidação de mútuos bancários” constante do doc. de fls. 7 a 10, assinado pelo R. C, em representação de E, Ldª;
6. O Banco A, SA, celebrou, em 1-1-87, com E, Ldª, o acordo intitulado “contrato de crédito curto prazo segundo a forma contabilística de conta-corrente” constante do doc. de fls. 11 a 14, também assinado pelo R., em representação de E, Ldª;
7. Para servir de suporte contabilístico aos contratos referidos em 5. e 6. o A. abriu na sua dependência do Marquês de Pombal, em Lisboa:
- A conta caucionada n° 294.1, com o valor inicial de PTE 107.892.215$00, a qual apresenta saldo devedor de PTE 102.892.215$00, porque foram feitas quatro entregas de PTE 1.250.000$00;
- A conta caucionada n° 296.8, com o valor inicial de PTE 48.508.824$00 relativo aos juros vencidos e indicados no ponto 14. da cláus. 1ª do documento referido em 5.;
- E a conta caucionada n° 400.6 com o valor inicial de PTE  29.540.000$00, de acordo com a cláus. 1ª do documento referido em 6.;
8. Nas datas acordadas para reembolso dos valores de capital e juros vencidos respeitantes aos acordos referidos em 5. e 6., E, Ldª, não pagou ao A. quaisquer importâncias dos valores em débito.
9. Por falta de pagamento o A. procedeu ao encerramento das contas correntes caucionadas, creditando-as pelos valores em débito.
10. A sociedade E, Ldª, não pagou ao A. qualquer das prestações de juros nem qualquer quantia referente aos contratos referidos em 5. e 6., para além das quantias referidas em 7.;
11. O R. marido obteve rendimentos através da sociedade E, Ldª, até 1985.
12. O A. instou diversas vezes o R. para pagar as quantias em dívida em virtude dos contratos referidos em 5. e 6.

III – Decidindo:
1. Da sentença proferida apenas recorreu a A., impugnando a absolvição da R. D do pedido, sob o pretexto de que os factos apurados determinariam a sua responsabilização pelo pagamento, em regime de solidariedade, das obrigações contraídas em nome de E, Ldª.
Da mesma sentença resulta que o R. marido foi condenado no pagamento de quantias emergentes de contratos em que interveio como representante da referida sociedade. Tal responsabilidade foi determinada pela interpretação dada ao art. 107º do Cód. Comercial (entretanto revogado) e  ao art. 40º, nº 1, do CSC, considerando-se que se tratava de uma sociedade irregular, qualificação emergente do facto de não ter sido levada ao registo comercial a operação de transformação da sociedade anónima em sociedade por quotas.
Na parte em que o R. C foi condenado não se verificam motivos para modificar a decisão ou sequer a fundamentação. Embora se discorde da qualificação da referida sociedade como “sociedade irregular” e que se rejeite a interpretação que na sentença apelada foi dada ao art. 107º do Cód. Comercial e ao art. 40º, nº 1, do CSC, o trânsito em julgado da parte da sentença, nessa parte, tornou definitiva a condenação.
Do que se trata agora é de averiguar se exclusivamente para efeitos da apelação interposta pelo A., se encontram ou não preenchidas as condições para a condenação da R. mulher ou se deve ser mantida a absolvição do pedido que quanto a essa Ré D foi declarada na sentença apelada.
Ora, relativamente a esta questão não está precludida a possibilidade de adoptar, relativamente à qualificação jurídica da sociedade E, Ldª, uma solução diversa da que foi assumida na sentença se tal se revelar necessário para apreciar a pretensão que se mantém ainda sujeita a discussão.
Efectivamente, a qualificação da referida sociedade como irregular esgotou o seu fim quando serviu para justificar a condenação do R. C, não podendo inviabilizar que, relativamente a outro Réu, este Tribunal adopte uma outra qualificação jurídica, tanto mais que o caso julgado entretanto formado apenas abarca o sujeito processual atingido pela condenação e que de modo algum a fundamentação aduzida para tal condenação pode ter a virtualidade de se estender ao comparte que na mesma sentença foi absolvido.

2. Neste contexto, a única questão suscitada gira em torno da comunicabilidade das dívidas em cujo pagamento o R. C foi condenado.
Para a sua resolução importa reter que:
- A firma E, Ldª, resultou da transformação em sociedade por quotas da E, S.A.R.L., transformação essa que não foi levada ao registo comercial;
- O R. C interveio em dois contratos celebrados com o Banco A, SA, na qualidade de representante de E, Ldª;
- O R. C obteve rendimentos através da referida sociedade até 1985.
Interessa ainda reter que não se provou que “desses rendimentos vive(sse) o casal da Ré”, e que foi dada resposta “não provado” ao quesito onde se perguntava se “não é conhecida ao R. qualquer outra actividade para além da exercida através da sociedade E, Ldª”.

3. A qualidade de devedor constitui o pressuposto básico da responsabilização de um dos cônjuges por dívidas contraídas pelo outro.
Ora, malgrado ter sido imputada ao R. C a responsabilidade por dívidas contraídas em representação da sociedade E, Ldª, ao abrigo do regime jurídico das sociedades irregulares, a verdade é que, para os estritos efeitos da co-responsabilização da R. D, não pode ser confirmado tal juízo.
Contra o assumido na sentença, nada permite considerar que tal entidade seja uma sociedade irregular, caindo, assim, por base o sustentáculo da imputação a terceiros (à Ré D) de dívidas que em nome da mesma foram assumidas pelo Réu marido.
Na verdade, aquela sociedade resultou da transformação de uma sociedade anónima em sociedade por quotas, operação jurídica que ocorreu ainda antes da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, realizada ao abrigo do art. 52º da Lei das Sociedades por Quotas. A matéria encontra-se agora regulada nos arts. 130º e segs. do CSC.
Em sede do primeiro regime, discutia-se a natureza e efeitos da transformação de sociedades, questionando-se se a mesma implicava a extinção da anterior sociedade e o surgimento de um novo ente colectivo (teoria da novação) ou se, ao invés, a transformação mantinha a mesma sociedade, sujeitando-a a um novo estatuto jurídico (teoria da identidade ou continuação).[1]
A solução actualmente prevista no art. 130º, nº 3, do CSC, não deixa margem para dúvidas, revelando uma opção do legislador pela tese que já antes era largamente maioritária tanto na doutrina como na jurisprudência no sentido de que transformação não implicava modificação da identidade da sociedade.[2]
Considerando que a E, SARL, se encontrava regularmente constituída e, contra o referido na petição inicial, o respectivo pacto estava registado na Conservatória do Registo Predial do Barreiro, tratava-se de uma entidade que detinha personalidade jurídica.
Deste modo, considerando os efeitos que na ocasião eram atribuídos à transformação, esta operação não afectou de modo algum a personalidade jurídica que detinha.
Malgrado as dúvidas que anteriormente se suscitavam quanto à qualificação de uma sociedade pelo simples facto de o pacto não ter sido registado, as quais se mostram agora resolvidas nos termos que constam dos arts. 36º e segs. do CSC, de modo algum poderia extrair-se da mera omissão do registo da transformação de uma sociedade regularmente constituída como sociedade anónima consequências tão graves como as consideradas na sentença apelada e que redundavam na qualificação da sociedade como sociedade irregular.
Efectivamente, para todos os efeitos, a transformação não encontra equivalência na constituição de sociedades, sendo que o regime de responsabilidade referente às sociedades irregulares não se aplica a sociedades que tenham sido objecto de transformação não sujeita a registo.
Ainda que se adoptasse, relativamente às situações anteriores, a tese de que a natureza irregular da sociedade advinha da omissão de actos de registo obrigatório do respectivo pacto social, tal não seria aplicável ao caso concreto pois que, como já se disse, o entendimento corrente ia no sentido de se considerar que a transformação não operava a extinção da anterior sociedade e o surgimento de uma outra, limitando-se a introduzir uma modificação no respectivo estatuto que não colidia com a persistência da mesma entidade dotada, como estava, de personalidade jurídica decorrente da regularidade do processo constitutivo e do registo do pacto social.
O mesmo entendimento se impõe se se considerar a entrada em vigor do CSC e a submissão das situações anteriores ao novo regime instituído que é imposta pelo art. 543º do CSC, o que torna ainda mais clara a referida solução face ao que a respeito da operação de transformação consta expressamente do art. 130º, nº 3.
A qualificação de uma sociedade como irregular apenas pode decorrer de incompleto percurso do respectivo processo formativo, que vai desde o estabelecimento do acordo societário à sua formalização mediante escritura pública, terminando com o registo do pacto e com as publicações. Jamais se pode aludir (ou se poderia aludir no âmbito do regime anterior) a uma sociedade irregular quando a irregularidade advém apenas da omissão do registo do acto de transformação de uma sociedade anónima validamente constituída e que se encontrava registada.
Contra o sustentado na sentença apelada, ainda que o acto de transformação em sociedade por quotas não tenha sido levado ao registo comercial, daí não decorria nem decorre a transformação de uma sociedade comercial numa sociedade irregular destituída de personalidade jurídica.
Por conseguinte, em cada um dos momentos em que foram celebrados os contratos de regularização financeira foi a sociedade E, Ldª, que autonomamente se vinculou, através do Réu C, seu representante legal, e não este pessoalmente quer se considere a legislação anterior quer o regime actual sobre sociedades irregulares.
Deste modo, relativamente à R. D, falta o elemento fundamental para se poder acabar para a apreciação da comunicabilidade de uma dívida que, naquilo que lhe diz respeito, não pode ser assacada ao R. marido que em representação de uma sociedade regular interveio nos contratos.

4. Mas a absolvição da R. D encontra ainda outra razão que contraria os argumentos coligidos pela A. nas suas alegações.
Mesmo que se considerasse a existência de razões para imputar ao R. C a responsabilidade por dívidas emergentes dos contratos celebrados com o A., nem assim se justificaria a condenação da R. D.
Pretende o A. que também deveria ter sido condenada a R. mulher, mediante a seguinte construção jurídica:
- A dívida que o R. C contraiu é de natureza comercial;
- Porque o R. C é responsável pela dívida, esta foi contraída no exercício do comércio;
- Presume-se, assim, o proveito comum do casal, presunção que não foi elidida;
- Pelo que a dívida se comunica ao seu cônjuge, a R. D.

A pretensão não procede.
Como já se disse, a condenação do R. C fundou-se numa determinada interpretação do regime jurídico das sociedades irregulares, mais concretamente do art. 107º do Cód. Comercial (relativamente ao contrato celebrado em 1985) e do art. 40º do CSC (relativamente ao contrato celebrado em 1987, depois da entrada em vigor do referido diploma).
A R. D não interveio nos contratos, não prestou para os mesmos o seu consentimento, nem se provou que tivessem sido outorgados pelo marido como intuito de alcançar proveito comum para o casal.
Nestes termos, a co-responsabilização da R. D, suposta a regular condenação do R. C, dependeria de se este ser considerado comerciante, o que faria presumir que os actos comerciais teriam tido como objectivo o proveito comum do casal.
Ora, independentemente da falha já assinalada quanto ao pressuposto fundamental, a matéria de facto provada e as normas jurídicas aplicáveis não consentiriam na condenação da R. D.
A defesa de solução oposta não consegue suportar o exame mais detalhado da natureza jurídica das sociedades irregulares e da delimitação dos conceitos de comerciante e de acto de comércio.

5. Para o efeito, os elementos normativos mais relevantes são os seguintes.
a) Nos termos do art. 13º do Cód. Comercial, são comerciantes as pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão e as sociedades comerciais.
b) De acordo com o art. 15º do mesmo diploma, as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio.
c) E nos termos do art. 1691º, nº 1, al. d), do CC, são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer deles no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em benefício comum do casal.

Nestes termos, admitindo que E, Ldª, constituía uma sociedade irregular, pelo facto de não ter sido observado o registo da transformação de sociedade anónima em sociedade por quotas, daqui não decorre para o R. C a qualidade de comerciante. O facto de alguém agir como representante de uma sociedade irregular, ainda que no exercício da actividade comercial que esta desenvolve, não lhe atribui a qualidade de comerciante.[3]
Como se decidiu no Ac. da Rel. do Porto, de 11-4-58, citado por Abílio Neto, Código Comercial, 14ª ed., pág. 39, “um indivíduo, pela circunstância de ser sócio de uma sociedade irregular, não é comerciante, pois não exerce o comércio em nome próprio, mas sim da sociedade”.
Incisivo é ainda Coutinho de Abreu quando refere que os sócios de sociedades irregulares não são comerciantes; quando exercem o comércio fazem-no em nome das respectivas sociedades, sendo estas e não os sócios que devem cumprir as obrigações.[4]
De facto, se os contratos foram inseridos no exercício da actividade comercial da sociedade (supostamente irregular) E, Ldª, nada justificaria que se qualificasse o seu representante em tais actos como comerciante.
Uma sociedade irregular, se bem que destituída de personalidade jurídica que a torne susceptível de ser titular de direitos e obrigações, não deixa de ter existência jurídica, como realidade que não deve ser ignorada pelo direito. Afora a situação a que se reporta o art. 36º, nº 1, do CSC, em que se nos deparam sociedades-fantasma, criando a falsa aparência de um ente social, nas demais situações em que a irregularidade advém da ausência de escritura pública ou do seu registo estamos perante uma realidade económico-social de tipo empresarial que justifica a sua consideração como centro autónomo e relevante de imputação de interesses que não deve confundir-se com o sócio ou sócios que promoveram a sua existência.[5]
Independentemente das consequências de ordem jurídica a que ficam sujeitos aqueles que agem em nome dessas entidades, as sociedades irregulares são realidades palpáveis que podem integrar um património autónomo susceptível de responder pelas obrigações que em seu nome sejam constituídas. Trata-se, como refere João Labareda, de um património autónomo de afectação especial que responde preferencialmente pelas dívidas sociais.[6]
Assim se explica que, malgrado a insusceptibilidade de serem titulares de direitos e obrigações, lhes seja conferida personalidade judiciária, instrumento jurídico-processual que desimpede a demanda judicial (art. 6º, al. d), do CPC), designadamente em sede de acção executiva destinada à execução dos bens dessa entidade, em benefício dos credores.
Se, apesar da omissão no registo da transformação operada, foi a sociedade E, Ldª, que formalmente surgiu na qualidade de outorgante e se, também em termos formais, a intervenção do R. C ocorreu como seu representante, jamais seria possível considerar ter sido este, que não a sociedade irregular, a agir na qualidade de comerciante.

6. A ausência da qualidade de comerciante do R. C advém ainda por outra via.
Exercer o comércio não se satisfaz com a mera prática de actos comerciais. Mais importante do que isso é a prova de factos de onde decorra o exercício habitual, como meio de vida, de actos substancialmente comerciais.[7]
A presunção prevista no art. 1691º, nº 1, al. d), do CC, apenas abarca as dívidas que o cônjuge contraiu no exercício do comércio, exigindo-se que detenha a qualidade de comerciante, ou seja, de alguém que faça do comércio a sua profissão.[8]
Ora, nada na matéria de facto induz a qualificar o R. C como comerciante, pois que, para além da sua intervenção nos contratos ajuizados, nada mais se apurou quanto ao seu modo de vida e, mais concretamente, não se apurou que tal intervenção se integrasse numa área mais vasta de prática de actos comerciais, como meio de vida.
Deste modo, não tendo o R. C a qualidade de comerciante, nem por via da sua alegada qualidade de sócio de sociedade irregular, nem sequer como pessoa singular que exercesse habitualmente o comércio, nenhum efeito pode extrair-se, contra a R. D, do facto de se ter provado que o R. C “obteve rendimentos através da sociedade E, Ldª”, até 1985, tanto mais que não se provou que “desses rendimentos vive(sse) o casal da Ré”.
Por conseguinte, face à impossibilidade de atribuir ao R. C aquela qualificação, destituída fica de fundamento a co-responsabilização da R. D, devendo manter-se a absolvição decretada na sentença.

IV – Conclusão:
Face ao exposto, com base na argumentação referida, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo do A.
Notifique.
Lisboa, 9-7-03
(António Santos Abrantes Geraldes)
(Manuel Tomé Soares Gomes)
(Maria  do Rosário C.  de Oliveira Morgado)

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[1] Sobre a matéria cfr., além do mais, Miguel Pupo Correia, Direito Comercial, 6ª ed., pág. 567, Raúl Ventura, Fusão, Cisão e Transformação de Sociedades, págs. 509 e segs., e Miguel Caeiro, Temas de Direito Comercial, pág. 233.
[2] Pupo Correia, loc. citado, António Caeiro, loc. cit., Raúl Ventura, ob. cit., Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, pág. 276 (com larga indicação doutrinária no mesmo sentido) e bem assim a jurisprudência citada por Abílio Neto, Cód. Comercial, 3ª ed., pág. 147, de onde se destaca o Ac. da Rel. do Porto, de 11-10-84, na CJ, tomo IV, pág. 223
[3] Não se vai ao ponto de qualificar a sociedade irregular como comerciante, embora essa tese seja defendida por Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, pág. 128 e 129, quando realça que o art. 13º se reporta genericamente a “sociedades comerciais”, sem qualquer outra qualificação. Por isso afirma o mesmo autor que, apesar de serem destituídas de personalidade jurídica, podem ser comerciantes, adquirindo essa qualidade com a prática de actos reveladores do propósito de se dedicarem ao exercício habitual de uma actividade mercantil.
Contudo, trata-se de uma tese que é contrariada por Brito Correia, Direito Comercial, vol. II, 1989, págs. 174, 182, 188 e 194 que insistentemente lhes nega a qualidade de comerciantes.
[4] Ob. cit., pág. 129.
A qualidade de sócio-gerente de uma sociedade por quotas não confere o título de comerciante, pelo que as dívidas contraídas no exercício dessa actividade, não se presumem realizadas no exercício da actividade comercial, e, consequentemente, também não se presumem contraídas em proveito comum do casal STJ, 19-11-87, BMJ 371º/473.
[5] João Labareda, Sociedades Irregulares, in Novas Perspectivas do Direito Comercial, pág. 190.
[6] Ob. cit., págs. 194 e 203.
[7] Brito Correia, Direito Comercial, Vol. I. 1981/82, pág. 267.
[8] Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. I, pág. 82.