Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3753/19.9T8ENT-B.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
INJUNÇÃO
CONVENÇÃO DE DOMICÍLIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A convenção de domicílio deve constar de contrato reduzido a escrito.
II. Existindo convenção de domicílio, o requerido será notificado da instauração de procedimento de injunção através do depósito de carta simples, na caixa de correio do domicílio convencionado.
III. Na falta de domicílio convencionado, a notificação de requerimento de injunção far-se-á por carta registada com aviso de receção ou, se tal tiver sido pedido pelo requerente, por agente de execução ou mandatário judicial.
IV. No caso de se frustrar qualquer uma das formas de notificação referidas em III, a secretaria obterá informação sobre residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a administração do notificando, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Direção-Geral dos Impostos e da Direção Geral de Viação.
V. Seguidamente, a secretaria procederá à notificação do requerido mediante o envio de carta simples para o endereço ou cada um dos endereços constantes das referidas bases de dados, devendo o distribuidor do serviço postal certificar o depósito na respetiva caixa de correio.
VI. Litiga com má-fé a requerente de injunção que alega falsamente a existência de convenção de domicílio, assim levando a que a secretaria notifique imediatamente a requerida mediante o envio de carta simples e, obtida a aposição de fórmula executória no requerimento de injunção, deduz ação de execução para pagamento de quantia certa, logrando a penhora de património da requerida, previamente à citação para os efeitos da execução.
VII. A conduta processual referida em VI preenche a previsão das alíneas b), c) e d) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC, porquanto:
a) Consiste na alegação de um facto falso (existência de convenção de domicílio) para, através do indevido acesso à via-rápida da notificação por carta postal simples, lograr imediata obtenção de título executivo no procedimento de injunção;
b) Constitui violação do dever de boa-fé processual e, por inerência, do dever de cooperação, que é exigida às partes tendo em vista a obtenção não só de uma solução do litígio célere mas, também, justa, ou seja, conforme ao princípio do processo equitativo, que pressupõe o estrito cumprimento do contraditório;
c) Constitui utilização indevida e reprovável dos instrumentos processuais proporcionados pela comunidade para a efetivação dos direitos substantivos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 14.01.2020 Maria deduziu oposição, por embargos de executado, contra a ação de execução para pagamento de quantia certa que contra si havia sido instaurada por J, Lda.
A embargante alegou, em síntese, que o título executivo em que se baseia a execução é um requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória em 25.10.2019, na medida em que a ora embargante, aí requerida, não havia apresentado oposição ao requerimento de injunção. Sucede que no requerimento de injunção a requerente indicou que existia convenção de domicílio. Por esse motivo a notificação da requerida para o procedimento de injunção foi efetuada por depósito de carta simples na caixa do correio da morada indicada pela requerente. Ora, não existia tal convenção de domicílio, assim como não existiu, sequer, qualquer contrato entre a requerente e a requerida. Aquando da instauração do procedimento de injunção a requerida já não residia na morada para onde foi enviada a dita notificação. De tudo isto bem sabia a requerente que, assim, logrou obter um título executivo, tendo instaurado uma execução que desembocou na penhora da conta bancária da requerida e de um seu imóvel, sem que a requerida tivesse tido oportunidade de exercer o contraditório. A alegada notificação é nula e, por conseguinte, todo o processado posterior, inexistindo título executivo. Acresce que, como a requerente/exequente/embargada bem sabia, entre a requerida e a requerente não se estabeleceu qualquer vínculo contratual, tudo se tendo limitado a um contacto levado a cabo pela requerida para obter uns esclarecimentos, tendo em vista eventuais alterações a um projeto de arquitetura já existente, respeitante a um imóvel pertencente à requerida/embargante/executada. A embargada agiu dolosamente, com má-fé, pelo que deve ser condenada em multa e indemnização, em conformidade.
A embargante terminou pugnando pela procedência dos embargos, com a consequente absolvição da executada dos pedidos contra si deduzidos e o levantamento das penhoras efetuadas e, bem assim, pedindo que a exequente fosse condenada como litigante de má-fé, em multa e indemnização.
A embargada contestou, alegando a existência do contrato e do crédito a que respeitava o requerimento de injunção, e afirmando que no requerimento de injunção fizera constar que o endereço, que indicara, da requerida, era domicílio convencionado, na medida em que figurava como sendo a residência da requerida, em diversa documentação que a requerida/embargante lhe entregara no âmbito da relação contratual que entre ambos se estabelecera. Mais afirmou que a requerida/executada/embargante nunca lhe comunicou a alteração da sua residência.
A embargada concluiu pela improcedência dos embargos, com as legais consequências.
A embargante respondeu à contestação.
Em 30.5.2020 foi proferido saneador-sentença, em que se emitiu o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo procedente a presente oposição à execução mediante embargos de executado, bem como o incidente da litigância de má-fé e em consequência, atendendo aos pedidos, a este título, formulados pela executada/opoente, condeno a exequente:
- Na multa de 20 UC, a título de litigância de má-fé;
- No pagamento dos juros vencidos (à taxa legal para os juros civis) entre a data da concretização da penhora do saldo (04.12.2019) e a respetiva devolução, contados sobre o valor do saldo penhorado;
- No pagamento dos juros vencidos (à taxa legal para os juros civis) entre a data da prestação da caução (23.12.2019) e a respetiva devolução, contados sobre o valor da caução;
- No reembolso das despesas a que a má-fé tenha obrigado a executada/opoente, incluindo os honorários do respectivo Ilustre mandatário (cfr. artigo 543.º, nº1, alínea a), do C.P.C.), em valor a fixar nos termos do n.º3 do artigo 543.º do C.P.C.
*
Custas a cargo da exequente.
* Registe, notifique e comunique ao A.E.
*
Considerando tudo o que atrás se deixou dito, concluindo-se, ainda, que litiga de má fé, com responsabilidade directa do seu Advogado, a parte que apresenta requerimento de injunção (subscrito pelo respetivo Ilustre mandatário) no qual indica a existência de domicílio convencionado, sabendo que tal não corresponde à verdade e com isso contribui ativamente para a formação de um título executivo inválido, com base no qual intenta a subsequente execução (pelo mesmo Ilustre mandatário), na qual, em contestação à oposição mediante embargos (subscrita pelo mesmo Ilustre mandatário), insiste na tese de que – apesar não haver contrato reduzido a escrito nem convenção (escrita) de domicílio, mas tão-só documentos/correspondência de onde consta a morada da executada – inexiste nulidade da notificação e consequente falta de título, determino se comunique a presente sentença à Ordem dos Advogados, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 545.º do CPC.”
A embargada/exequente apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1º) A responsabilidade processual, sancionada através das normas que integram o instituto da condenação por litigância de má fé, tem como requisito essencial a concreta verificação, no caso concreto, dos chamados pressupostos da responsabilidade, nos termos gerais de Direito, entre os quais, além do facto, da ilicitude e do nexo de imputação, também o dano e, necessariamente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
2º) De sorte que, segundo o conceito de causa adequada comummente aceite no nosso sistema jurídico, o resultado da conduta processual caracterizadora da litigância de má fé há-de surgir como efeito típico, normal, previsível dessa conduta;
3º) A base da condenação por invocada litigância de má fé, nos presentes autos, consistiu, tal como foi afirmado na douta sentença apelada, no facto de a ora Recorrente ter errado no preenchimento do requerimento de injunção, indicando que no caso havia domicílio convencionado, quando não havia;
4º) A douta sentença recorrida interpretou esse lapso como se tivesse sido um acto maquiavélico, conspirativamente visando a ora Recorrente obter um falso comprovativo da notificação da Requerida, no procedimento injuntivo, sem que efectivamente fosse recebida a carta de notificação, em ordem a obter, indevidamente, por tortuosos meios, um título executivo, que subsequente accionou, dando origem à penhora de bens da aqui Recorrida;
5º) Semelhante raciocínio não se mostra, porém, ressalvado sempre o devido respeito, minimamente aceitável, à luz do princípio da causalidade adequada,
6º) Posto que se estriba numa falsa ideia, que da própria análise da lei aplicável resulta completamente prejudicada, visto ser de todo inadmissível;
7º) Porquanto, na verdade, não pode considerar-se como efeito normal, típico, previsível da notificação por carta simples com prova de depósito que o notificando não receba a carta,
8º) Conforme é, aliás, reconhecido pela própria lei, que manda recorrer a esse meio de notificação, por carta simples com prova de depósito, quando todos os outros falham;
9º) Ao mandar empregar esse meio de notificação, quando se frustra a notificação por carta registada com aviso de recepção, e até mesmo quando, sendo aplicável, não se consegue realizar a notificação por solicitador de execução ou por mandatário judicial;
10º) Consoante tudo se encontra previsto e regulado nos nos. 4, 5 e 9 do art. 12º do Regime dos Procedimentos Injuntivos, anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro;
11º) Assim sendo, o facto de a Recorrida, notificanda no processo de injunção, não ter, alegadamente, recebido a carta de notificação, que foi comprovadamente depositada pelo distribuidor postal na caixa do correio que serve a morada que indicou à ora Apelante como sendo sua, não pode ser imputado a esta última, por se tratar de um efeito anómalo, atípico, não previsível do emprego daquele meio de notificação, embora não sendo aquele que ao caso cabia;
12º) Sendo certo que, se se tivesse empregado, como cumpria, a notificação por carta registada com aviso de recepção, e se esta não fosse recebida, sempre acabaria por se aplicar a notificação por via postal simples, nos termos previstos pelo citado art. 12º do Regime dos Procedimentos de Injunção;
13º) Insubsiste, por conseguinte, o invocado fundamento da condenação por litigância de má-fé, sendo de assinalar que nenhum dos dois doutos acórdãos acima citados, que decidiram casos perfeitamente análogos àquele que aqui está em equação, não proferiram qualquer condenação por litigância de má-fé, apesar de num dos casos ter sido requerida, tratando-se, de resto, de matéria de conhecimento oficioso;
14º) A douta sentença recorrida violou o disposto nos arts. 542º, 543º e 545º do Cod. Proc. Civil, que indevidamente aplicou.
A apelante terminou o recurso pela seguinte forma:
Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso, consequentemente se revogando a douta decisão recorrida, que deverá ser substituída por não menos douto acórdão, que declare sem efeito a condenação da ora Recorrente como litigante de má fé, acórdão esse que, uma vez proferido, desde já se requer seja notificado à Ordem dos Advogados, visto que, apesar de não ter transitado em julgado, a douta sentença recorrida já entretanto o foi - mantendo-se, quando ao mais, o que foi decidido, isto é, a declaração de nulidade do título executivo, que assim terá de haver-se como transitada em julgado, em ordem a habilitar a ora Recorrente a reclamar da Recorrida o pagamento da importância que esta lhe deve, para assim se fazer JUSTIÇA!
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
Neste recurso há que apreciar, e é esse o seu objeto, se estão reunidos os requisitos para a condenação da apelante como litigante de má-fé.
Pelo tribunal a quo foi dada como provada a seguinte
Matéria de facto
1. O exequente intentou a execução de que dependem estes autos com base no requerimento de injunção n.º86548/19.2YIPRT, ao qual foi aposta força executiva por secretário de justiça.
2. A exequente deu entrada, no dia 18.09.2019, no Balcão Nacional de Injunções, do referido requerimento de injunção contra a executada, aí requerida, Maria (…), indicando existir domicílio convencionado.
3. O Balcão Nacional de Injunções remeteu, em 23.09.2019, a carta de notificação à requerida (ora executada) por via postal simples com prova de depósito, tendo sido a mesma depositada no dia 27.09.2019.
4. Em 25.10.2019 foi aposta força executiva, por Secretário de Justiça, no requerimento de injunção descrito em 1, o que foi notificado à exequente por carta remetida em 28.10.2019.
5. A exequente e a executada não reduziram a escrito qualquer contrato de arrendamento [redação constante na sentença] celebrado entre si e consequentemente não celebraram, entre si, qualquer convenção de domicílio.
6. Em 04.12.2019, o Sr. A.E. penhorou o “Saldo bancário existente junto da Caixa Económica Montepio Geral, identificação (…), tipo de conta – DO”.
7. Em 19.12.2019, o Sr. A.E. penhorou o “Prédio urbano sito em Rua das Palmeiras, inscrito na matriz da União das freguesias de Abrantes (São Vicente e São João) e Alferrarede sob o artigo (…), afeto a habitação e compõe-se de casa de R/C com logradouro, com a área coberta de 53m2 e a área descoberta de 800m2, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Abrantes sob a ficha (…).
8. A executada/opoente prestou uma caução de €4.148,38, por depósito autónomo, em dezembro de 2019.
O Direito
Na decisão recorrida considerou-se que a exequente adotou uma conduta processual qualificável de litigância de má-fé, tendo-se, consequentemente, condenado a exequente em multa e em indemnização à parte contrária.
A apreciação da correção ou incorreção dessa decisão pressupõe o exame do quadro jurídico-processual em que tudo se desenrolou.
Tendo em vista proporcionar ao credor uma forma célere e simplificada de obtenção de um título executivo, o Dec.-Lei nº 404/93, de 10.12, instituiu a injunção, providência destinada a conferir força executiva ao requerimento de efectivação do cumprimento de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do tribunal da 1ª instância. A forma do requerimento e a subsequente tramitação, no caso de oposição, eram decalcadas do regime do processo sumaríssimo.
O Dec.-Lei nº 269/98, de 01.9, revogou o Dec.-Lei nº 404/93 e alargou o regime da injunção às obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal da 1ª instância.
No âmbito da luta contra os atrasos de pagamento em transações comerciais, e transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29.6, o Dec.-Lei nº 32/2003, de 17.02, alargou a aplicação do regime da injunção às situações de atraso de pagamento em transações comerciais, para o efeito definidas como transações entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, que deem origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração. Tal faculdade é admitida independentemente do valor da dívida. A aplicação do regime da injunção às transações comerciais foi mantida pelo Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10.5, que revogou o Dec.-Lei n.º 32/2003.
O Dec.-Lei n.º 107/2005, de 01.7, alargou a aplicabilidade do regime da injunção às obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação.
Finalmente, o Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.8, reduziu para € 15 000,00 o valor até ao qual é admissível a aplicabilidade do regime de injunção às obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
Nos termos do regime anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98, com as alterações legais publicitadas, o devedor tem 15 dias para efetuar o pagamento do reclamado ou deduzir oposição à injunção, após ser notificado do respetivo requerimento (art.º 12.º, n.º 1 do anexo).
Se, depois de notificado, o requerido não deduzir oposição, o secretário aporá no requerimento de injunção a seguinte fórmula: “Este documento tem força executiva” (n.º 1 do art.º 14.º).
E o credor passará a dispor de um título executivo, que acionará na forma sumária da execução para pagamento de quantia certa (artigos 703.º n.º 1 al. d), 550.º n.º 2 al. b) do CPC).
A notificação do requerido para os termos da injunção efetuar-se-á por carta registada com aviso de receção (n.º 1 do art.º 12.º do anexo).
Se não se lograr notificar o requerido por carta registada com aviso de receção, a secretaria obterá informação sobre residência, local de trabalho ou, tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade, sobre a sede ou local onde funciona normalmente a administração do notificando, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Direção-Geral dos Impostos e da Direção Geral de Viação (n.º 3 do art.º 12.º do anexo citado).
Se o endereço para onde se enviara a carta registada com aviso de receção coincidir com o endereço constante em todas as entidades oficiais supra referidas, proceder-se-á à notificação do requerido por via postal simples, dirigida ao notificando e endereçada a esse local, devendo o distribuidor do serviço postal proceder ao depósito da referida carta na caixa de correio correspondente e disso certificar (art.º 12.º n.º 4 e art.º 12.º-A n.º 3).
Se o endereço para onde se enviara a carta registada com aviso de receção não coincidir com o local obtido nas referidas bases de dados, ou se nestas constarem várias moradas, procede-se à notificação por via postal para cada um desses locais (n.º 5 do art.º 12.º).
Isto é, a notificação do requerido por via postal simples só se realizará no caso de frustração da citação por carta registada com aviso de receção e será antecedida de prévia e alargada averiguação acerca do local onde o requerido poderá ser encontrado, sendo então contactado, por via postal simples, para todos os endereços que sejam referenciados.
Apresentado o requerimento de injunção, só se procederá de imediato à notificação do requerido por via postal simples em caso de convenção de domicílio. Com efeito, nos termos do n.º 1 do art.º 12.º-A do regime anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98, sob a epígrafe “Convenção de domicílio”, estipula-se, no n.º 1, que “Nos casos de domicílio convencionado, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º do diploma preambular, a notificação do requerimento é efectuada mediante o envio de carta simples, dirigida ao notificando e endereçada para o domicílio ou sede convencionado.
Por sua vez, no art.º 2.º do diploma preambular, sob a epígrafe “Fixação de domicílio das partes”, estipula-se, no n.º 1, que “Nos contratos reduzidos a escrito que sejam susceptíveis de desencadear os procedimentos a que se refere o artigo anterior podem as partes convencionar o local onde se consideram domiciliadas, para efeito de realização da citação ou da notificação, em caso de litígio”.
A alteração do domicílio convencionado, para ser oponível à contraparte, está sujeita a formal e atempada comunicação, conforme disposto, atualmente, no art.º 229.º n.º 2 do CPC, que corresponde ao n.º 2 do art.º 237.º-A do anterior Código de Processo Civil para o qual ainda remete o n.º 2 do art.º 2.º do diploma preambular.
Nestas situações, a notificação/citação por via postal simples assenta no acordo das partes, nos termos do qual o demandante se compromete a citar a parte contrária no endereço por esta indicado, pondo esta ao abrigo do risco de decisões judiciais emitidas à sua revelia, com base em citação/notificação presumida mas não real e, por sua vez, o demandante logra a citação da contraparte de forma rápida e segura.
Para tal, como se disse, é necessário que o dito acordo conste de contrato escrito, dele fazendo, pois, parte integrante.
O formulário de requerimento de injunção, à data dos factos previsto pela Portaria n.º 808/2005, de 09.9, previa um campo, respeitante a “Domicílio convencionado”, onde o requerente devia escolher entre a indicação de “Sim”, ou “Não”.
A requerente, ora apelante, apôs a indicação de “Sim” (n.º 2 da matéria de facto).
E fê-lo apesar de, como não podia deixar de saber, entre ela e a requerida não havia sido celebrado um contrato escrito nem havia sido acordado um domicílio onde a requerida, em caso de litígio entre ambas, deveria ser citada/notificada (n.º 5 da matéria de facto).
Em virtude da falsa indicação constante no requerimento de injunção (sendo certo que a lei não exige que o requerente apresente comprovativo da aludida convenção de domicílio), o secretário judicial formalizou a notificação da requerida mediante o envio de carta postal simples, tendo o funcionário dos correios depositado o expediente na caixa do correio do endereço indicado pela requerente e lavrado a respetiva certidão.
A requerida não deduziu oposição e daí adveio a aposição da fórmula executória no requerimento de injunção (n.º 4 dos factos provados).
A requerente, assim munida de um título executivo, instaurou execução para pagamento de quantia certa contra a requerida. Trata-se de execução que segue a forma sumária, pelo que, em regra, procede-se às diligências de penhora antes da citação do executado para os termos da execução (artigos 550.º n.º 2, al. b) e 855.º n.º 3 do CPC).
Foi assim que, em dezembro de 2019, foram penhorados o saldo de uma conta bancária da requerida e um imóvel a si pertencente (n.ºs 6 e 7 da matéria de facto).
Tendo a executada, para obter a suspensão da execução por força dos embargos que entretanto deduziu, tido de prestar uma caução de € 4.148,38 (n.º 8 da matéria de facto).
Na oposição por embargos a embargante, além de questionar o crédito da exequente, invocou a falta de título executivo, por nulidade da notificação que havia sido efetuada no âmbito do procedimento de injunção.
A oposição foi julgada procedente, com base na questão prévia, que era a da invalidade da notificação que antecedera a formação do título executivo.
Com efeito, na sentença que julgou a oposição exarou-se o seguinte:
E porque é que dizemos que a notificação da opoente, na injunção, é nula?
Por ter sido efetuada – como resulta dos elementos extraídos do procedimento de injunção – “apenas e só” por via postal simples (carta registada) com prova de depósito; sem mais e qualquer adicional formalidade.
Não por lapso do Balcão Nacional de Injunções, mas, antes, pelo facto de a exequente ter dado, no preenchimento do requerimento de injunção, uma informação incorreta.
Disse que havia “domicílio convencionado”, o que não é verdade.
Informação incorreta que gerou, logicamente, a nulidade de citação.
Colocado perante tal informação, o Balcão Nacional de Injunções tinha que notificar a requerida por via postal simples, considerando-se a notificação realizada com a certificação, pelo distribuidor do serviço postal, do depósito da carta na caixa de correio do notificando.
Foi isto que Balcão Nacional de Injunções fez, tendo enviado carta registada com prova de depósito.
Porém – é o ponto – não havendo, como é o caso, “domicílio convencionado”, a notificação da, aí, requerida tinha que ser feita por carta registada com aviso de receção.
Significa isto – é onde se pretende chegar – que a notificação efetuada (na injunção) à aqui opoente não observou, como devia, as formalidades acabadas de referir e também prescritas na lei, o que, acarreta a sua nulidade, uma vez que não é possível afirmar que a ausência de tais cuidados e advertências não prejudicaram a sua defesa.
A lei processual, no âmbito das citações e notificações, ao mencionar determinados cuidados e advertências, não está a estabelecer procedimentos mais ou menos facultativos e indicativos, mas sim a estabelecer prescrições que, em face das consequências e significado de tais atos processuais, devem ser escrupulosamente cumpridos.
Se o credor (aqui exequente) diz “falsamente” existir convenção de domicílio – para o que basta assinalar o campo respetivo sem necessidade de o comprovar – o devedor (aqui opoente) que não tenha explicitamente declarado e aceite por escrito, para a hipótese de litígio, que certo lugar de domicílio, certa residência, vale para o efeito de receber a notificação, ficará potencialmente desprotegido, quando e se foi usada a notificação exclusivamente prevista para situação que, no caso, não se verifica; mais, se tal notificação puder ser, sem mais, considerada “boa”, não se está sequer a desincentivar/censurar a produção de declarações inexatas nos processos.
Nos casos em que o requerido não deduza oposição à injunção nem seja demonstrado que tenha recebido a notificação nos termos legalmente aplicáveis, deve presumir-se que a falta cometida prejudicou a sua defesa, declarando-se nula a notificação - ver Ac. RL, de 17.09.2009, relatado por Teresa Soares (in www.dsgi.pt).
Enfim, o erro na notificação, provocado pela exequente, era potencialmente prejudicial ao exercício dos direitos de defesa da opoente, viciando assim o procedimento injuntivo e a constituição do próprio título executivo, ou seja, em face da nulidade da notificação da opoente na injunção, não pode a opoente ser aqui executada (na ação executiva a que estes autos estão apensos) e, por consequência, não lhe podem ser penhorados quaisquer bens.
Nestes termos, concluindo-se pela nulidade da notificação realizada no procedimento de injunção, anulo a “força executiva” que foi aposta no requerimento de injunção.
Considerando o decidido, julgo prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
A referida declaração judicial de nulidade da notificação da requerida no procedimento de injunção e consequente extinção da execução transitou em julgado.
Assente está, pois, que a notificação realizada era nula, por não terem sido adotados os formalismos que a lei impunha e que garantiriam que à requerida era concedido o direito de defesa, elemento integrante do direito de acesso aos tribunais constitucionalmente garantido (art.º 20.º n.º 1 da CRP).
A única questão que permanece controvertida nestes autos é se a requerente/exequente litigou de má-fé.
Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A atual redação do preceito, introduzida no anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 (onde era o art.º 456.º), visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
Como bem se recorda no acórdão do STJ de 16.5.2019 (processo n.º 6646/04.0TBCSC.L1.S2 – consultável, bem como os restantes indicados, em www.dgsi.pt)), a litigância de má fé é um instituto que visa sancionar e, portanto, combater a “má conduta processual”. A conduta sancionada consubstancia-se na dedução de pretensão ou oposição cuja falta ou fundamento não podia ser ignorada, na alteração ou omissão da verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, na omissão grave do dever de cooperação ou no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Os fins aí perseguidos são a boa administração da justiça, o respeito pelo tribunal, a credibilidade da atividade jurisdicional (cfr. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, pp. 452-454).
Pese embora o alargamento do tipo subjetivo da conduta sancionável, que, além do dolo, abarca atualmente comportamentos gravemente negligentes, o comportamento em causa deve, obviamente, acarretar, face aos objetivos do processo, seriedade relevante. Quanto à alínea a) do n.º 2 do art.º 542.º, exige-se a dedução de pretensão ou a apresentação de oposição sem fundamento, tout court, isto é, ao fim e ao cabo, pretensão ou defesa que sejam, em concreto, absolutamente infundadas (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 393 a 398). Daí, também, que a falta de verdade (al. b) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC) deva recair sobre “factos relevantes para a decisão da causa”, ou seja, factos essenciais ou principais, suscetíveis de influenciar a decisão por determinação da matéria de facto (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 354, 355, 399). Por outro lado, a violação do dever de cooperação pressupõe uma omissão grave (al. c) do n.º 2 do art.º 542.º). Haverá que analisar o art.º 7.º n.º 1 do CPC: “Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.” A cooperação está ordenada à breve e justa composição do litígio (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 408 a 410), pelo que a omissão de cooperação, do lado da parte, deverá ser suscetível de afetar esse desiderato. Por fim, as modalidades de má-fé instrumental previstas na al. d) do n.º 2 do art.º 542.º reportam-se à utilização disfuncional dos meios processuais, que seja manifestamente reprovável, tendo em vista conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça, protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Aqui exige-se um elemento subjetivo específico, uma intencionalidade, na atuação do agente processual, dirigida ou orientada para aqueles efeitos (Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 411-420).
No CPC de 1939 (art.º 465.º), e bem assim na versão inicial do CPC de 1961 (art.º 456.º), apenas se sancionava a litigância dolosa ou maliciosa, excluindo-se a litigância temerária. A razão dessa restrição consta no relatório do Ministro da Justiça, apresentado à Comissão Revisora do projeto que deu origem ao CPC de 1939:
A simples proposição de acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito, e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir” (citado por Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume II, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 263).
O dolo poderia ser substancial, isto é, reportar-se ao conhecimento da inexistência do direito invocado (quanto ao autor) ou na falta de razão na sua contestação (quanto ao réu), bem assim na alteração consciente da verdade dos factos; ou instrumental, isto é, consistir na utilização consciente e reprovável do processo ou dos meios processuais (cfr., v.g., António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito e Culpa “In Agendo”, 3.ª edição aumentada e atualizada, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2014, p. 58).
Fazia-se sentir, no CPC de 1939 e no CPC de 1961, a visão liberal do processo como campo de ação das partes, em que estas litigavam naturalmente norteadas pelos seus próprios interesses, sendo compreensível e aceitável que o fizessem mesmo temerariamente, isto é, ainda que desprovidas de razão - desde que, mal ou bem, disso não estivessem convencidas.
Considerava-se que a realidade do processo era diferente da extrajudicial, tolerando-se comportamentos grosseiramente negligentes que, à luz dos princípios do direito substantivo, levariam à responsabilização do seu autor.
A reforma de 1995/1996 do CPC, depois transcrita no CPC de 2013, alargou a responsabilização por litigância de má-fé aos comportamentos gravemente negligentes, e adicionou, à tipificação dos comportamentos como tal ilícitos, a referência à “omissão grave do dever de cooperação”.
Nas suas lições de 1978-79, Direito Processual Civil, I volume, o Prof. Castro Mendes reputava “não realista a ideia do processo como instituição, colaboração de esforços para o fim a todos comum”, pp. 102 e 103, nota 1.
Atualmente, a cooperação entre as partes e o tribunal é apresentada como princípio fundamental do processo civil, como tal introduzido no CPC de 1961 pela reforma de 1995/1996 (art.º 266.º) e evidenciado no CPC de 2013 (artigos 7.º e 8.º). De tal modo que a violação grave do dever da cooperação (entendido como a cooperação entre os magistrados, os mandatários judiciais e as partes, em ordem a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” – art.º 7.º n.º 1 do CPC – fim esse que deve pautar a conduta processual das partes, à luz do dever de boa-fé processual – art.º 8.º do CPC) pode acarretar a punição da parte não cooperante como litigante de má-fé (art.º 542.º n.º 2 al. c) do CPC).
Desde 1939 assistiu-se, pois, ao aumento do nível ético do padrão de comportamento processual exigido e aceite quanto às partes, que se traduz nas apontadas alterações ao regime de litigância de má-fé (Paula Costa e Silva, obra citada, v.g., p. 693).
A apelante, para se subtrair à responsabilização que lhe foi imposta pelo tribunal a quo, alegou que faltava, no caso, o requisito da causalidade adequada. Segundo a apelante, não pode considerar-se como efeito normal, típico, previsível da notificação por carta simples com prova de depósito que o notificando não receba a carta. Isso é tanto assim, diz a apelante, que a própria lei admite que, se falhar a notificação por carta registada com aviso de receção, se proceda à notificação por carta simples, com depósito na respetiva caixa do correio.
Vejamos.
A aplicação de multa por litigância de má-fé visa punir um comportamento que se tem por contrário ao direito, por ser contrário aos fins do processo e da Justiça. Conforme nota Alberto dos Reis (obra citada, p. 269) a aplicação da respetiva sanção visa, como é próprio de toda a pena, punir o delito cometido (função repressiva) e evitar que o mesmo ou outros o pratiquem no futuro (função preventiva).
A censurabilidade da conduta processual consubstanciadora da litigância de má-fé não pressupõe ou exige que esse comportamento cause um dano (vide, v.g., Paula Costa e Silva, obra citada, pp. 375, 452, 691). O facto de o autor mentiroso ter sido desmascarado e, consequentemente, ter perdido a ação, não o exime da responsabilização como litigante de má-fé.
Também o facto eventual de a requerida, indevidamente notificada por depósito de carta simples, ainda assim apresentar oposição, não isenta da qualificação como litigante de má-fé o requerente que tenha culposamente estado na origem dessa forma (para o caso) ilegal de notificação.
A perspetiva do nexo de causalidade releva, porém, na atribuição de indemnização à contraparte. A indemnização prevista no art.º 542.º do CPC tem natureza civil, ressarcitória (Paula Costa e Silva, obra citada, v.g. p. 524 e 692), e exige, tal como a que decorre do art.º 483.º do Código Civil, um nexo de causalidade entre a conduta imputada ao agente e o dano sofrido pela parte lesada.
Nos termos do disposto no art.º 563.º do Código Civil, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Quis consagrar-se aqui a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (sine qua non) do dano; é necessário ainda que, em abstrato e em geral, o facto seja uma causa adequada do dano (Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, Almedina, 8ª edição, páginas 905 e 915). Na formulação que se reputa mais criteriosa (formulação negativa, de Enneccerus-Lehmann) quando a lesão proceda de facto ilícito, o facto não deve considerar-se causa (adequada) apenas daqueles danos que constituem uma consequência normal, típica, provável, dele. Deve considerar-se causa adequada mesmo daqueles danos para cuja ocorrência também concorreu caso fortuito ou conduta de terceiro. Só não será assim quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excecionais, que tanto poderiam sobrevir ao facto ilícito como a um outro facto lícito (A. Varela, obra citada, páginas 909 e 910, 917; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, 2013, Almedina, pág. 764; José Alberto González, Direito da Responsabilidade Civil, Quid Juris, 2017, pp. 214-221; STJ, 20.10.2005, processo n.º 05B2286, consultável em www.dgsi.pt; STJ, 08.10.2014, processo 4028/10.4TTLSB.L1.S1, consultável em Coletânea de Jurisprudência on line, referência 5506/2014, e também CJ STJ, n.º 259, tomo III, 2014).
Isto exposto, é evidente que a utilização da notificação/citação por carta postal simples fora das situações que a lei prevê cria, em termos normais e previsíveis, o risco de o seu destinatário não tomar conhecimento da carta, ou não tomar atempadamente. Daí a nulidade dessa notificação, nos termos acima expostos.
A apelante aponta o facto de haver situações em que o legislador admite, no procedimento de injunção, a notificação por mero depósito de carta simples, mesmo em casos em que não haja domicílio convencionado. Tal significaria que, mesmo para o legislador, o normal e adequado é que esse meio de notificação permita que a carta chegue ao conhecimento do seu destinatário.
Ora, o ponto é que, conforme decorre da análise que supra se fez do regime de notificação/citação do requerimento de injunção, essa modalidade simplificada de notificação pressupõe todo um procedimento prévio (envio de carta registada com aviso de receção ou, se o requerente o pedir, notificação por agente de execução ou mandatário judicial – n.ºs 8 e 9 do art.º 12.º -, a que se segue, no caso de frustração da notificação/citação, de averiguação nas bases de dados de diversas entidades públicas das moradas aí constantes referentes ao notificando/citando) que permite avançar-se, do ponto de vista do legislador, com suficiente segurança, para uma situação de presunção de notificação/citação do destinatário da carta através do depósito de carta simples em todas essas moradas. Tratar-se-á, ainda assim, de presunção ilidível, conforme decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade da lei (vide acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/2019, de 12.02.2019, publicado no D.R. n.º 52, I série, de 14.3.2019 e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 773/2019, de 17.12.2019, publicado no D.R. n.º 29, II série, de 11.02.2020).
In casu, não foram respeitados esses passos prévios, pelo que, do ponto de vista da lei, a tramitação de notificação efetuada não fundava a invocada presunção de notificação da requerida.
Dúvidas não há, assim, que no caso dos autos ocorreu nexo de causalidade entre a conduta da requerente/apelante e os danos consubstanciados nas penhoras, na necessidade de constituição de advogado, de dedução de oposição à execução, da prestação de caução.
O apelante invoca ainda dois acórdãos das Relações, incidentes sobre situações idênticas à destes autos, em que o requerente da injunção não foi condenado como litigante de má-fé, não se tendo sequer o tribunal pronunciado sobre tal, apesar de ser matéria de conhecimento oficioso.
Constata-se que a alegação, em procedimentos de injunção, da existência de falsas convenções de domicílio, é frequente, a aquilatar pelo significativo número de decisões jurisprudenciais publicadas que incidem sobre essa temática. Vejam-se, por exemplo, os acórdãos da Rel. de Lisboa, 13.3.2008, processo 2071/2008-6; Rel. de Lisboa, 17.9.2009, processo 1999/05.6TBCSC-B.L1-6; Rel. de Coimbra, 29.5.2012, processo 927/09.4TBCNT-A.L1; Rel. de Lisboa, 13.9.2012, processo 276/11.8TBPDL-A.L1-8; Rel. de Lisboa, 16.5.2013, processo 2537/10.4TBCSC-A-6; Rel. de Coimbra, de 10.5.2016, processo 580/14.3T8GRD-A.C1; Rel. de Guimarães, 11.5.2017, processo 1639/14.2TBVCT.G2; Rel. de Coimbra, 14.11.2017, processo 739/15.6TOLRA.C1; Rel. de Coimbra, 28.5.2019, processo 2592/17.6T8VIS-A.C1; Rel. de Lisboa, 27.6.2019, processo 3414/15.8T8OER-A.L1-2, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Na grande maioria desses acórdãos não foi suscitada, sequer, a questão da litigância de má-fé por parte do requerente que havia falsamente invocado a existência de convenção de domicílio, não tendo o tribunal, seja o de 1.ª instância, seja o da Relação, se pronunciado sobre essa matéria, apesar de ser de conhecimento oficioso.
Poderá tal decorrer da forma excessivamente tímida e prudente com que, segundo a avaliação de Menezes Cordeiro, os nossos tribunais normalmente abordam a atuação das partes no processo à luz dos parâmetros consignados no art.º 542.º do CPC (cfr. a citada obra Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito e Culpa “In Agendo”, v.g. pp. 23-28, 62, 71, 75 a 77).
Essa visão prudente perpassa, por exemplo, no acórdão do STJ, de 11.12.2003 (processo 03B3893 – www.dgsi.pt), onde se expendeu o seguinte: “O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do artº 456º, CPC [atual art.º 542.º], nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a e b, do nº2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico - sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual.”
Essa abordagem do referido instituto é reiterada igualmente, por exemplo, nos acórdãos do STJ de 28.5.2009 (09B0681), 21.5.2009 (09B0641), 26.2.2009 (09B0278).
Um ponto de vista quiçá mais exigente para com as partes é expressado, porém, no acórdão do STJ, de 02.6.2016 (1116/11.3TBVVD.G2.S1):
Entre nós, antes da reforma processual introduzida pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, era entendimento constante da jurisprudência e da doutrina que o art.º 456º do Cód. de Proc. apenas sancionava as condutas dolosas. Após a revisão processual de 1995, o quadro normativo em matéria de litigância de má fé passou a ser bem mais exigente, impondo a repressão e punição não só de condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes (anterior art.º 456º, n.º 2, e actual 542º, n.º 2, do CPC).
No entanto, deve continuar-se a ser cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé, o que só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com grave negligência, com o fito de impedir ou a entorpecer a acção da justiça.
Mas se tal é certo, não se pode olvidar uma outra, diferente, perspectiva ou vertente. É que as partes (e não só) têm o dever de cooperar e concorrer para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art.º 7º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil) e devem também, agir de boa fé (art.º 8º do Cód. de Proc. Civil), ou seja, não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias.
No caso, afigura-se-nos ser manifesta e evidente a postura desleal e nada proba do Recorrente BB ao avançar com o recurso de apelação, nele reiterando a invocação da prescrição, questão que já antes fora decidida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em anterior recurso tendo por objecto precisamente tal excepção peremptória (cfr. acórdão de fls. 215 a 222, 2º volume). E também se apresenta óbvia a responsabilidade pessoal e directa da sua Mandatária, subscritora de tal peça processual, na medida em que ao elaborá-la não podia ignorar que a anterior decisão do Tribunal da Relação de Guimarães havia transitado em julgado e era já imodificável.
Refuta-se, assim, e não se acolhe a retórica argumentativa tecida pelos Recorrentes tendente ao afastamento da sua responsabilidade pelo arrastamento do processo, repristinando questão já definitivamente decidida. É que também na lide processual as partes devem comportar-se como é de esperar de uma pessoa honrada, de uma pessoa de bem, o que não sucedeu com o Recorrente BB.
Na verdade, em vez de assumir a sua responsabilidade pelo reembolso das quantias suportadas pelo Fundo de Garantia Automóvel, por ter omitido a sua obrigação de transferir para qualquer Seguradora a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros, com a circulação do seu veículo, avançou com o processo para recurso, protelando, por um lado, a execução desse reembolso e, por outro, sobrecarregando desnecessariamente o aparelho judiciário com a reapreciação da questão da prescrição já antes debatida e decidida, com trânsito em julgado.
Essa sua atitude encerra óbvio comportamento desvalioso e entorpecedor da realização da justiça, merecendo ser sancionado como litigante de má fé, como ajuizou o Tribunal da Relação de Guimarães.
Revertendo ao caso destes autos, constata-se que a apelante violou o dever de boa-fé processual (art.º 8.º do CPC), afastando-se da cooperação que lhe era exigida tendo em vista obter-se não só uma solução do litígio célere mas, também, justa, ou seja, conforme ao princípio do processo equitativo, que pressupõe o estrito cumprimento do contraditório (artigos 7.º n.º 1 e 3.º n.º 1 do CPC, 20.º n.º 4 da CRP).
A apelante alegou um facto falso (convenção de domicílio), para assim obter indevido acesso à via-rápida da notificação por carta postal simples e, com isso, lograr imediata obtenção de título executivo, a que deu sequência com a instauração de ação de execução que se concretizou pela imediata penhora de património da requerida, requerida que só após a penhora teve conhecimento (como se presume) de que fora instaurado o procedimento de injunção. Essa falsa afirmação da celebração de convenção de domicílio proporcionou à ora apelante o sucesso do requerimento de injunção, com a obtenção de título executivo, o que preenche a previsão da alínea b) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC.
Por outro lado, a requerente utilizou de forma indevida e reprovável os instrumentos processuais proporcionados pela comunidade para a efetivação dos seus alegados direitos substantivos, incorrendo na previsão das alíneas c) e d) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC.
Justifica-se, assim, a sua condenação em multa, como litigante de má-fé, e a cumulativa condenação no ressarcimento dos prejuízos consequentemente causados à requerida (artigos 542.º n.º 1 e 543.º n.º 1 al. b) do CPC).
Assim como se justifica a comunicação à Ordem dos Advogados, nos termos do art.º 545.º do CPC.
Comportamento idêntico ao da apelante mereceu a confirmação, pela Relação de Lisboa, da condenação da exequente como litigante de má-fé, em multa e indemnização, proferida pela 1.ª instância, em acórdão proferido em 27.06.2019, processo 3414/15.8T8OER-A.L1-2, relatado pelo Exm.º ora 2.º adjunto (consultável em www.dgsi.pt).
A apelação é, pois, improcedente.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 05.11.2020
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins