Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO ABRUNHOSA | ||
Descritores: | ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE LEGITIMIDADE | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/30/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIMENTO | ||
Sumário: | A Ordem dos Enfermeiros tem legitimidade para intervir como assistente nos processos penais relacionados com a prestação de assistência terapêutica, alimentar e de higiene a doentes que sejam assistidos por enfermeiros. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
No Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, por despacho de 03/04/2017, constante de fls. 165/167, à “Ordem dos Enfermeiros”, com os restantes sinais dos autos (cf. procuração de fls. 80), foi recusada a intervenção como assistente, nos seguintes termos: “… A Ordem dos Enfermeiros veio, a fls. 70, requerer a sua constituição como assistente. A requerente alegou que estando-lhe confiada "a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos cuidados de enfermagem e a representação e defesas dos interesses da profissão" de Enfermeiro, nos termos do artigo 3°, n° 1, da Lei n° 156/2015, de 16.09., e porque se investigam nos autos factos suscetíveis de pôr em causa estes interesses, assume a qualidade de ofendida, nos termos e para os efeitos do artigo 68°, n° 1, do Código de Processo Penal'. O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do requerido com os fundamentos constantes da douta promoção de fls. 122, alegando que a matéria denunciada não é passível de integrar a prática de ilícito criminal, acrescentando que, caso se viesse a indiciar a não administração de medicamentos/de comida/de cuidados de higiene aos doentes, de molde a colocar a sua saúde em perigo, apontando-se, então, para a existência de um crime de ofensa à integridade física, o ofendido de tal crime seria sempre o doente e não a Ordem. Nos autos não ocorreu constituição de arguido. Cumpre apreciar e decidir. De acordo com o que resulta do are 68°/1 do Cód. Proc. Penal têm legitimidade para se constituírem assistentes no processo penal os ofendidos (considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente — de forma imediata e direta - quis proteger co incriminação), os seus sucessores, os seus representantes legais (quando o ofendido tenha idade inferior a 16 anos ou seja por outro motivo incapaz) e qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade bem como nos demais crimes elencados na alínea e) da mesma disposição legal. Para o que aqui nos interessa, e como se referiu, de acordo com o preceituado no artigo 68°/1/a) do Cód. Proc. Penal, o ofendido (com legitimidade para se constituir assistente) é o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato do crime. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, "... a nova lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas legitimadas para intervir como assistentes no processo penal..." (Direito Processual Penal, 1, págs. 512/513). Nos presentes autos foram denunciados pela requerente os factos vertidos a fls. 33 e 34, que a Ordem do Enfermeiros considerou suscetíveis de integrar a prática de ilícitos penais. Em resumo, os factos denunciados correspondiam a situação em que num determinado serviço do Centro Hospitalar Lisboa Central teria sido verificada uma situação de não administração de medicamentos/de comida/de cuidados de higiene aos doentes. Como bem entende o Ministério Público, a matéria denunciada poderia, eventualmente, integrar o cometimento de crime(s) de ofensa à integridade física dos doentes assistidos pelo referido serviço do Centro Hospitalar Lisboa Central que, por via dos factos, tivessem visto a sua saúde afetada pela privação de medicamentos, comida e cuidados. Sucede que o bem jurídico protegido pelos referidos crimes de ofensa à integridade física não é da titularidade da requerente Ordem dos Enfermeiros. O facto de o artigo 3°, n° 1, do respetivo Estatuto, aprovado pela Lei n° 156/2015, de 16.09., considerar como desígnio da Ordem a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos cuidados de enfermagem, não converte a requerente em titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato do crime – titular desse interesse será sempre e só o doente afetado. Sendo assim, por falta de legitimidade, indefere-se a pretensão da Ordem dos Enfermeiros a ser constituída como assistente. …”. * Não se conformando, a “Ordem dos Enfermeiros” interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 183/188, com as seguintes conclusões: “… 1.A decisão em crise ao decidir da forma que decidiu violou por ter interpretado de forma incorrecta o artigo 3.° n.°1 alínea a) da lei n.° 2/20013 de 10 de Janeiro, o artigo 3.° n.°1 primeira parte do EOE, aprovado pela lei 156/2015 de 16 de Setembro, bem como, os artigos 144.° alínea d) e 200.° do Código Penal. 2.Desde logo, os factos descritos na denúncia são susceptíveis, pela sua gravidade de preencher o tipo não só do tipo de ofensa à integridade física simples como de ofensa à integridade física grave e de omissão de auxílio que são crimes públicos. 3.De todo o modo, e em qualquer dos casos, porque a OE, na sua qualidade da Associação Pública Profissional, prossegue e tutela um interesse público de especial relevo que o Estado, ao criá-la, admitiu não conseguir assegurar directamente - a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem - não pode deixar de ter legitimidade para se constituir assistente nos presentes Autos. 4.Os factos denunciados ocorreram num Hospital Público, e em concreto por falta de enfermeiros, ainda que sem qualquer culpa destes puseram em risco os utentes/doentes que acorreram aqueles serviços e destinatários dos serviços de enfermagem. 5.Esse interesse, a saúde, senão mesmo a vida, dos utentes/doentes, sendo um interesse directo e imediato dos próprios é também nos termos dos preceitos legais acima referidos, um interesse directo e imediato da Recorrente. 6.Assim sendo, a Recorrente tem legitimidade para se constituir Assistente nos presentes Autos, contrariamente ao decidido no Despacho em crise. 7.Pelo que, a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que reconheça a legitimidade da Recorrente e defira a sua constituição como Assistente nos presentes Autos. Termos em que, revogando o Despacho recorrido, e admitindo a Recorrente como Assistente no Autos se respeitará o Direito, fazendo V. Exas. a habitual JUSTIÇA! …”. Respondeu a Exm.ª Magistrada do MP[1], a fls. 10/13, nos seguintes termos: “… Recorre a Ordem dos Enfermeiros da decisão judicial de fls.151, proferida pelo Mm Juiz de Instrução em processo no qual se investiga a prática de factos que a recorrente considera enquadráveis na prática de ilícitos penais crime e que se reconduzem à suspeita, por parte da Ordem, de que num determinado Serviço do Centro Hospitalar Lisboa Central, EPE, num determinado período, se verificou uma situação de não administração de medicamentos / comida/ cuidados de higiene necessários aos doentes aí internados, processo em cujo âmbito o MM Juiz não admitiu a Ordem dos Enfermeiros como assistente, estribando-se no disposto nos artºs 68º nº 1 do CPP. Em sumula, alicerçou-se o Mm Juiz na ideia que a matéria denunciada, poderá, eventualmente, integrar o cometimento de crime de ofensa à integridade física dos doentes assistidos pelo referido Serviço do Centro Hospitalar e que, por via dos factos, tivessem visto a sua saúde afectada pela privação de medicamentos, comida e cuidados, mas considerando que o bem protegido pelo referido crime de ofensa à integridade física não é da titularidade da Ordem, pois que o desígnio da Ordem dos Enfermeiros é a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos cuidados de enfermagem ( p. pelo artº 3º nº 1 do seu Estatuto) e tal não converte a recorrente em titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime, que será sempre e só o doente afetado, não aceitou a OE como assistente. - O Recurso interposto pela Ordem dos Enfermeiros assenta na ideia que: - Os factos descritos na denúncia são susceptiveis de preencher não só o tipo de ofensa à integridade física simples, mas de ofensa á integridade física grave e de omissão de auxílio, os quais são crimes públicos; - A OE, na qualidade de associação pública profissional, prossegue a tutela de interesse público de especial relevo, como é a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem, pelo que detém legitimidade para se constituir assistente; - O interesse à saúde dos utentes/doentes é também um interesse directo e imediato da Recorrente. - Aderimos integralmente ao despacho judicial recorrido, tal como aliás expressámos previamente na promoção por nós aduzida. “A OE tem como atribuição a defesa da qualidade dos cuidados de enfermagem prestados à população, bem como o desenvolvimento, a regulação e o controlo do exercício da profissão de enfermeiro assegurando a observância das regras de ética e deontologia profissional.” - artº 3 do Estatuto dos Enfermeiros - e na prossecução dos seus objectivos há acima de tudo o prosseguimento de interesses e direitos próprios e inerentes aos seus membros, como decorre do consignado nas várias alíneas do citado artigo. À OE compete contribuir, através da elaboração de estudos e formulação de propostas, para definição da política da saúde. Confundir tais prossecuções de interesses com a tutela de defesa da preservação do corpo e saúde de outrem, interesse protegido e visado com a incriminação do artº 143º do CP é extrapolar o definido pelo seu próprio Estatuto. A admissibilidade da constituição como assistente atribuída aos ofendidos, cinge-se e restringe-se aos titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e o interesse protegido na situação que ora nos ocupa é a integridade física, interesse que só mediatamente constituirá interesse visado pela Ordem. O mesmo se diga, aliás, para o crime de omissão de auxilio – artº 200º do CP, tipicidade que entendemos se não enquadrar na factualidade em análise - ( na denúncia não eram apontadas situações concretas e identificáveis e da investigação efectuada pela IGAS e pelo M. Público não se apuraram da existência de doentes específicos cuja saúde física ou mental ou mesmo a higienização pudesse ter estado em causa numa concreta situação, apurando-se apenas da existência de meros apontamentos pontuais de descordenação de serviços, designadamente de lavandaria/refeitório, não se apurando da morte de um utente ou de agravamento do seu estado de saúde, em função de tal) - pelo que, quanto a tal qualificação continuamos a constatar que os bens protegidos são idênticos, traduzindo-se na tutela da integridade física, liberdade, vida (que concretamente pudessem ser expostos a uma situação de perigo). Tal com considerado no Ac. Do TRC de 28.01.010, CJ de 2010, tomo I: “o conceito de ofendido para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o conceito consagrado no CP para aferir da legitimidade para apresentar queixa” e a OE não detém essa legitimidade. Em conclusão: - No crime p. no artº 143º do C. Penal o interesse especialmente (e não o particularmente) protegido é o interesse do ofendido, agente visado com a ofensa à integridade física. - O artº 68º do CPP- parte do conceito restrito de ofendido, não sendo ofendido qualquer pessoa que seja prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui o objeto jurídico imediato do crime. - Não constitui interesse directo e imediato da Ordem dos Enfermeiros o interesse referido que só num segundo plano constitui prossecução da Ordem. Nestes termos concorda-se com a decisão judicial proferida devendo manter-se o despacho recorrido. …”. * Neste tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o paracer de fls. 208, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância. * Da leitura dessas conclusões, tendo em conta as de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que a única questão fundamental a apreciar no presente recurso é de saber se a Ordem dos Enfermeiros tem legitimidade para intervir nestes autos como assistente. * Cumpre decidir. Nos termos do art.º 68º/1 do CPP[4], podem constituir-se assistentes, além doutras, as “… pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito …”. O art.º 49º da Lei n.º 2/2013, de 10/01, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais dispõe que “As associações públicas profissionais podem constituir-se assistentes nos processos penais relacionados com o exercício da profissão que representam ou com o desempenho de cargos nos seus órgãos, salvo quando se trate de factos que envolvam responsabilidade disciplinar.”. O art.º 9º/4-e) do DL 161/96, de 04/09, que aprova o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros, estabelece que “4- Para efeitos dos números anteriores e em conformidade com o diagnóstico de enfermagem, os enfermeiros, de acordo com as suas qualificações profissionais: … e) Procedem à administração da terapêutica prescrita, detectando os seus efeitos e actuando em conformidade, devendo, em situação de emergência, agir de acordo com a qualificação e os conhecimentos que detêm, tendo como finalidade a manutenção ou recuperação das funções vitais;” e, nos termos do art.º 12º, que “Os enfermeiros estão obrigados a: … 9) Comunicar os factos de que tenham conhecimento e possam comprometer a dignidade da profissão ou a saúde do utente ou sejam susceptíveis de violar as normas legais do exercício da profissão;”. Por sua vez, o DL 247/2009, de 22/09[5], estabelece que “Os trabalhadores integrados na carreira de enfermagem estão adstritos, no respeito pela leges artis, ao cumprimento dos deveres éticos e princípios deontológicos a que estão obrigados pelo respectivo título profissional, exercendo a sua profissão com autonomia técnica e científica e respeitando o direito à protecção da saúde dos utentes e da comunidade, e estão sujeitos, para além da observância do dever de sigilo profissional, ao cumprimento dos seguintes deveres funcionais: a) O dever de contribuir para a defesa dos interesses do utente no âmbito da organização das unidades e serviços, incluindo a necessária actuação interdisciplinar, tendo em vista a continuidade e garantia da qualidade da prestação de cuidados;” (art.º 8º/a)) e que “1 - O conteúdo funcional da categoria de enfermeiro é inerente às respectivas qualificações e competências em enfermagem, compreendendo plena autonomia técnico-científica, nomeadamente, quanto a: … c) Prestar cuidados de enfermagem aos doentes, utentes ou grupos populacionais sob a sua responsabilidade;” (art.º 9º/1-c)). Assim, o exercício da profissão de enfermeiro compreende a administração da terapêutica e a defesa dos interesses do utente, tendo em vista a continuidade e garantia da qualidade da prestação de cuidados de saúde, onde se incluem, certamente, a alimentação e os cuidados de higiene. Por se tratar de um processo penal relacionado com o exercício da profissão de enfermeiro, nos termos do art.º 49º da Lei n.º 2/2013, de 10/01, a Recorrente pode constituir-se assistente, pelo que o recurso não pode deixar de proceder. ***** Notifique. D.N.. ***** Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP). ***** Lisboa, 28/11/2017 João Abrunhosa Maria do Carmo Ferreira _______________________________________________________ |