Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1731/18.4T8LSB.L2-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: CERTIFICADOS DE AFORRO
REEMBOLSO
HERDEIROS
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O prazo de prescrição estabelecido para o pedido de reembolso dos Certificados de Aforro de que era titular o de cujus só pode iniciar-se a partir do momento em que os herdeiros deste se encontrem efectivamente em condições de exercer o direito à respectiva reclamação, dependendo da altura em que o sucessível tiver consciência de que lhe compete agir na prossecução desse desiderato (o reembolso dos certificados de aforro) e não, em termos fixos, rígidos e invariáveis, desde a data de óbito do de cujus, conforme resulta linearmente do artigo 306º, nº 1, do Código Civil.
II - O Decreto-lei nº 172-B/86, de 30 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 122/2004, de 4 de Maio, e pelo Decreto-lei nº 47/2008, de 13 de Março – optou pela figura da prescrição como instituto regulador da extinção do direito ao reembolso dos Certificados de Aforro pelos herdeiros do titular falecido e não outra, como, e com características e fundamentos absolutamente diversos, a figura caducidade, de funcionamento automático, isto é, ipso jure.
III – Há, assim, que tomar em consideração e avocar todas as específicas particularidades legais que envolvem esta figura extintiva de direitos pelo seu não exercício no decurso do período temporal legalmente associado à inércia do interessado.
IV - Os certificados de aforro constituem, tão simplesmente, um instrumento financeiro e uma modalidade de aforro e investimento, criada a partir dos fundos monetários daquele que os subscreve, integrando-se, no momento da sua morte, no acervo hereditário do de cujus, em pé de igualdade com todos os outros bens que compõem o relictum, sem qualquer especialidade ou singularidade a reclamar regime diferenciado.
V - O seu destino normal e comum não deve ser, como se compreende, o da reversão dos montantes pecuniários entregues pelo particular em favor da entidade pública, assim financiada e sobre a qual impende a primordial obrigação de reembolso, beneficiando-a à custa dos herdeiros do investidor falecido, a não ser que, em termos excepcionais, estes deixem seguramente vincado o seu desinteresse em agir durante o tempo tido pela lei como curial, equilibrado e razoável, funcionando então (e só então), nestas excepcionais circunstâncias, o sistema comum e corrente da extinção do seu direito por prescrição devida a inacção prolongada e injustificada.
VI – Não tendo sido ainda criado, à data da morte do de cujus, o registo central de certificados de aforro, dificultando, desta forma, aos herdeiros do falecido, a possibilidade de conhecimento da existência no património hereditário do de cujus de quaisquer certificados de aforro (que podem sempre, em abstracto, existir ou não), e considerando que tal inovatório registo central, resultante de oportuna intervenção legislativa, veio finalmente introduzir elementos muito relevantes para a informação e divulgação públicas da existência de certificados de aforro no acervo hereditário do titular falecido, cuja anterior inexistência dificultava esse efectivo conhecimento, salvo prova em contrário quanto à verificação de outros factos reveladores da inércia no pedido de reembolso - antes da instalação desse registo - ou do efectivo acesso a elementos que possibilitaram ou possibilitariam aos sucessores o prévio conhecimento da existência dos Certificados de Aforro, deverão os herdeiros beneficiar, em princípio, da contagem do prazo prescricional de dez anos realizada com referência à data da entrada em vigor do diploma que o criou – o Decreto-lei nº 47/2008, de 13 de Março – e da sua efectiva instalação.
VII – Nos termos do artigo 2059º, nº 1, do Código Civil, a própria vocação sucessória opera temporalmente por referência ao momento do conhecimento pelo sucessível da sua qualidade sucessória, não tendo por base real e efectiva, o momento do falecimento do de cujus, irrelevante para este desígnio, constituindo a retroacção dos efeitos da aceitação ao momento da morte do de cujus, tal como previsto nos artigos 2031º e 2050º, nº 2, do Código Civil, um mecanismo de pura ficção jurídica, que nada tem a ver com a realidade factual dos acontecimentos da vida, domínio no qual é relevante, sim, a tempestividade do acto de aceitação da herança contado a parte do conhecimento da qualidade de sucessor, o que pode ocorrer, segundo o nosso ordenamento jurídico, mais de uma dezena anos após a morte do autor da herança.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção).

I – RELATÓRIO
 Instauraram A [ Luís ……], residente em 110, ... , 2192 Joanesburgo, República da África do Sul, e B [ Vanessa ….] , residente em 21 ... , Joanesburgo, República da África do Sul, a presente acção declarativa contra C [ Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, E.P.E. ] , com sede na Avenida da República, nº 57 - 6º, Lisboa.
Alegaram essencialmente que:
Os pais dos AA., ….. Pereira Alves e Elima …., faleceram em 14 de Maio de 2016 e 15 de Dezembro de 2007, respectivamente.
Os AA., ao tratar dos assuntos relacionados com a herança dos seus falecidos pais encontraram documentação emitida pelo IGCP que certificava a existência de certificados de aforro em nome do seu falecido avô Luís ….., que falecera em 23 de Setembro de 2002.
Desconhecendo se tais certificados teriam sido ou não resgatados, remeteram ao IGCP pedido de informação.
Em Fevereiro de 2017, o IGCP informou que o valor de tais certificados se encontrava prescrito.
Os AA. discordam da verificação da referida prescrição, na medida em que, no seu entender, o prazo respectivo só se inicia quando o direito estiver em condições de ser exercido, nos termos do artigo 306º, nº 1, do Código Civil, ou seja, neste caso, quando tiveram conhecimento da existência dos referidos certificados de aforro.
Pedem que seja declarada a nulidade da decisão da R. Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, E.P.E. – quanto à prescrição dos certificados de aforro subscritos em contrato de adesão celebrado pelo avô dos AA. -, declarando que este crédito da herança se deverá manter activo e não prescrito a favor da Ré; revertida a declaração em como os certificados não estão prescritos; condenada a Ré a pagar aos AA. o valor do reembolso dos certificados no montante de € 281.272,45, acrescido de juros de mora à taxa de 4%.
Notificada, a Ré contestou, sustentando a prescrição do direito a reclamar os referenciados Certificados de Aforro, situando como início da contagem do prazo prescricional de dez anos o do óbito do respectivo titular e não o do momento do alegado conhecimento dos Certificados pelos seus herdeiros, os ora AA. A e B .
Impugnou a Ré o alegado desconhecimento pelos AA. da existência dos certificados de aforro em causa, na medida em que, de acordo com os seus registos, os aforristas ….Pereira Alves (avô dos AA.), ….. Marques Pereira (pai dos AA.) e os próprios AA., todos foram (e os AA. ainda são) titulares de contas de aforro junto da Ré, recebendo na mesma morada indicada pelos próprios, os respectivos extractos, sendo certo que os respeitantes à conta aforro do aforista …..Pereira Alves (avô dos AA.) foram cancelados pela Ré em 2012; os respeitante ao aforista ….. Pereira Alves (pai dos AA.) foram cancelados pela Ré em 2017 e o início do envio dos extractos da conta aforro de B apenas ocorreu em 2007.
É assim inverosímil o alegado desconhecimento dos AA.
Procedeu-se ao saneamento dos autos, tendo o juiz a quo considerado que os elementos reunidos habilitavam o imediato e consciencioso conhecimento do mérito da causa, o que fez nos seguintes termos:
“Apesar de ser controvertido o momento em que os AA. tiveram conhecimento da existência dos certificados de aforro, não se justifica fazer prosseguir a acção pelas razões que passo a expor.
Nos termos do art. 7º nºs 1 e 2 do DL 172-B/86, de 30 de Junho, na redacção original, “por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado”, sendo que, “findo o prazo..., consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.”
No acórdão 541/2004 do Tribunal Constitucional, foi decidido julgar inconstitucional aquela norma na parte em que consagra um prazo de prescrição de 5 anos, por, tendo em conta o disposto no art. 2059º nº 1 do C.C., segundo o qual “o direito de aceitar a herança caduca ao fim de dez anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido a ela chamado”, não vislumbrar “qualquer fundamento claro e relevante no plano da constitucionalidade para o tratamento diferenciado da transmissão de certificados de aforro relativamente à dos demais bens que constituem a herança”.
Por força do DL 122/2002, de 4 de maio, o prazo previsto no nº 1 do art. 7º do DL 172-B/86, passou a ser de 10 anos.
A redacção actual do citado artigo, introduzida pelo DL 47/2008, de 13 de Março, é a seguinte: “por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:
a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou
b) O respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado.”
Tendo ….Pereira Alves falecido a 23 de Setembro de 2002, dúvidas não há que o prazo de prescrição aplicável é de 10 anos.
Segundo os AA., tal prazo conta-se a partir do conhecimento pelos mesmos da existência dos certificados de aforro.
O art. 7º do DL 172-B/86 não permite tal leitura.
Do nº 2 do citado artigo consta que, “findo o prazo..., consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.”
Da remissão para “as demais disposições em vigor relativas à prescrição” não significa que seja aplicável o art. 306º nº 1 do C.C.
O art. 7º do DL 122/2002, não aplicável, é certo, aos certificados de aforro da série B (cf. art. 11º do citado diploma) dispõe o seguinte: “aplicam-se aos certificados de aforro as disposições gerais relativas à prescrição dos juros e do capital de empréstimos da dívida pública, constantes da Lei nº 7/98, de 3 de Fevereiro”.
O art. 14º da L 7/98 dispõe o seguinte:
“1 - Os créditos correspondentes a juros e a rendas perpétuas prescrevem no prazo de cinco anos contados da data do respetivo vencimento.
2 - Os créditos correspondentes ao capital mutuado e a rendas vitalícias prescrevem, considerando-se abandonados a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública, no prazo de 10 anos contados da data do respectivo vencimento ou do primeiro vencimento de juros ou rendas posterior ao dos últimos juros cobrados ou rendas recebidas, consoante a data que primeiro ocorrer.
3 - Aos prazos previstos nos números anteriores são aplicáveis as regras quanto à suspensão ou interrupção da prescrição previstas na lei civil”.
Não será a remissão do art. 7º nº 2 do DL 172-B/86 também para as regras quanto à suspensão ou interrupção da prescrição previstas na lei civil?
Do art. 7º nº 2 do DL 172-B/86 resulta que o prazo para requerer a transmissão ou o respectivo reembolso é de 10 anos a contar da morte do aforrista e, portanto, que o prazo de prescrição começa a correr a partir da data da morte do aforrista.
Sendo aquele artigo uma norma especial, prevalece sobre o art. 306º nº 1 do C.C. Não importa, pois, saber se, de acordo com o art. 306º nº 1 do C.C., o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido, independentemente do conhecimento que disso tenha ou possa ter o respectivo credor, ou se o prazo começa a correr apenas quando o credor tiver conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito, sendo de salientar que, feita a pesquisa de jurisprudência, o último acórdão do STJ encontrado sobre a matéria considerou que o art. 306º nº 1 do C.C. dispensa qualquer conhecimento, por parte do credor, dos elementos essenciais referentes ao seu direito (www.dgsi.pt acórdão do STJ de 22 de Setembro de 2016, processo 125/06.9TBMMV-C.C1.S1).
Os AA. invocaram o acórdão do STJ proferido a 8 de Novembro de 2005, processo 05A3169, do qual consta que, “desde tempos bem recuados que a doutrina indica como fundamento específico da prescrição a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, a qual faz presumir ou a renúncia ao direito ou, pelo menos, torna aquele indigno de protecção jurídica (...), a inércia negligente”.
Nos termos do art. 26º nºs 1, 3 e 6 al. d) do Código do Imposto de Selo, na redacção dada pelo DL 287/2003, de 12 de Novembro, “o cabeça-de-casal e o beneficiário de qualquer transmissão gratuita sujeita a imposto são obrigados a participar ao serviço de finanças competente a doação, o falecimento do autor da sucessão, a declaração de morte presumida ou a justificação judicial do óbito, a justificação judicial ou notarial da aquisição por usucapião ou qualquer outro ato ou contrato que envolva transmissão de bens”, sendo que “a participação deve ser apresentada no serviço de finanças competente para promover a liquidação, até final do 3º mês seguinte ao do nascimento da obrigação tributária” e deve ser “instruída com certidão, passada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ou pelo Instituto de Gestão do Crédito Público, conforme os casos, da cotação das acções, títulos ou certificados de dívida pública e de outros valores mobiliários ou do valor determinado nos termos do artigo 15º”.
Já no art. 69º al. c) do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, na redacção dada pelo DL 155/82, de 6 de maio, estava prevista a obrigação de juntar certidão passada pela Junta do Crédito Público.
O DL 47/2008 aditou ao DL 122/2002 o art. 9º-A com a seguinte redacção:
“1 - É criado o registo central de certificados de aforro, com a natureza de registo electrónico, que tem por finalidade possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e sobre a identificação do respectivo titular.
4 - Sem prejuízo do direito de acesso pelo titular do certificado de aforro, o acesso por terceiro ao registo central só pode efectuar-se através de pedido devidamente fundamentado e documentado, em caso de morte ou de declaração de morte presumida do referido titular, comprovada mediante apresentação da correspondente certidão de óbito.
5 - A informação sobre o titular só pode ser dada ao próprio, aos respectivos herdeiros, de acordo com o disposto no número anterior, ou aos seus representantes legais tratando-se de menores ou de outras pessoas incapazes nos termos da lei.
6 - Os serviços e entidades que celebrem actos de partilha ou de adjudicação de bens adquiridos por sucessão devem aceder, por meios informáticos e nos termos que venham a ser regulamentados por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, ao registo central de certificados de aforro, devendo fazer menção do resultado da referida consulta no ato público celebrado.”
Destas normas se extrai que, se os herdeiros estiverem interessados em saber se existem certificados de aforro, têm forma de o saber e, se não sabem, é porque há inércia negligente.
Nos termos do art. 308º nº 1 do C.C., “depois de iniciada, a prescrição continua a correr, ainda que o direito passe para novo titular”.
Perante esta norma, a posição dos AA. no sentido de que o prazo de prescrição começou a correr a partir do momento em que tiveram conhecimento da existência dos certificados de aforro é insustentável, sendo de salientar que os AA. nada alegaram quanto ao conhecimento ou não pela avó paterna e pelo pai dos mesmos da existência dos certificados de aforro e que o pai dos AA. faleceu decorridos mais de 10 anos sobre a morte do aforrista.
Nos termos do art. 473º nº 1 do C.C., “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo que injustamente se locupletou”.
Da leitura desta norma pode-se extrair os requisitos do enriquecimento sem causa, a saber: o enriquecimento; a obtenção da vantagem patrimonial à custa do empobrecimento de quem requer a restituição; e a falta de causa justificativa desse enriquecimento.
Considerando o tribunal verificada a prescrição, não há falta de causa justificativa do enriquecimento.
Acresce dizer que enriquecido é o Fundo de Regularização da Dívida Pública e não o R.
Por todo o exposto, julgo improcedente a ação e, consequentemente, absolvo o R. dos pedidos” (cfr. fls. 94 a 97).
Apresentaram os Autores recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação (cfr. fls. 124).
Contra-alegou o Réu pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
Foi proferido acórdão do Tribunal da Relação, datado de 12 de Março de 2019, (cfr. fls. 132 a 161) que revogou a decisão recorrida (saneador-sentença) ordenando-se, não obstante, o prosseguimento dos autos, atenta a necessidade de produzir prova acerca dos factos controvertidos no processo (que têm a ver com a data do conhecimento concreto pelos herdeiros interessados da existência dos certificados de aforro titulados pelo autor da sucessão) e a inerente impossibilidade de imediato e consciencioso conhecimento da excepção de prescrição.
Procedeu-se então ao saneamento dos autos conforme despacho de fls. 174, tendo como tema de prova único: “a data do conhecimento pelos AA. da existência dos certificados de aforro”.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento.
Foi proferida sentença que a acção procedente e em consequência condenou a Ré a pagar aos AA. a quantia € 281.272,49, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados desde 30 de Janeiro de 2018 até à presente data, e à taxa legal que vigorar desde a presente data até efectivo e integral pagamento.
Impugnou a Ré esta decisão, através da interposição de recurso per saltum.
Por despacho singular proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29 de Junho de 2020 foi decidido não admitir o recurso de revista per saltum, por entender estar também em causa a impugnação de uma decisão interlocutória, nos termos do artigo 678º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, devendo os autos baixar ao Tribunal da Relação para o recurso ser processado como de apelação (cfr. decisão singular de fls. 297 a 305).
Do recurso apresentado pela Ré constam as seguintes conclusões:
i. independentemente do alegado desconhecimento dos herdeiros, o inicio do prazo de prescrição aplicável aos certificados de aforro da série B conta-se desde a morte do aforrista, conforme resulta do disposto no artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 172-B/ 86, de 30 de junho e só se suspende ou interrompe uma vez verificada alguma das causas taxativas previstas na lei civil;
ii. subsidiariamente ao artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 172-B/ 86, de 30 de junho, aplica-se o previsto no artigo 14.° da Lei n.° 7/98, de 3 de Fevereiro e, subsidiariamente a este preceito, os artigos relativos à suspensão e interrupção da prescrição previstos na lei civil - artigos 318.° a 327.° do CC;
iii. caso se entenda que de alguma forma o artigo 306.° da lei civil se aplica aos produtos de aforro, determinar que a expressão ".. quando o direito puder ser exercido ..."se refere objectivamente à morte do aforrista como factor determinante para o direito dos herdeiros poder ser exercido e para se dar início à contagem do prazo de prescrição;
iv. o registo de produtos aforro existe desde a sua criação em 1960, uma vez que os certificados de aforro têm natureza escritural e nominativa e a disponibilização da informação relativa à conta aforro dos aforristas falecidos constante desse registo de produtos de aforro sempre esteve disponível para os herdeiros, mesmo antes da publicação do Decreto-Lei n.° 47/2008, de 13 de Junho.
Em face de tudo o que acima se expôs, entende a Recorrente que a sentença de primeira instância que se seguiu ao acordão do Tribunal da Relação de Lisboa tem de ser forçosamente revogada, com fundamento em violação de lei substantiva, repristinando-se o despacho-saneador inicialmente proferido, assim se repondo a costumada justiça.
Das contra-alegações apresentadas pelos AA. constam as seguintes conclusões:
1 - O princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais sofre várias excepções entre elas, a chamada “dupla conforme” (art.° 671°, n.° 3 do Cód.Proc. Civil), instituída com o deliberado objectivo de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
2 - No caso vertente está-se perante a pronúncia em dois arestos (ainda que em primeiro lugar, tenha sido proferido o acórdão do TRL secundado pela sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância) - duas instâncias - com o mesmo sentido decisório em que o Acórdão do TRL, sem voto de vencido e com a mesma fundamentação, é secundado pelo Tribunal de Primeira Instância, pondo este termo ao processo.
3 - A regra "dupla conforme" verifica-se sempre que haja pronúncia com o mesmo sentido decisório das duas instâncias o que torna inadmissível o recurso ora interposto uma vez a decisão ora proferida na 1.a instância confirmou o acórdão da Relação de Lisboa, deliberado sem voto de vencido e ambas as decisões sem fundamentação essencialmente diferente.
4 - Igualmente, é nosso entendimento que o presente recurso não poderá proceder na modalidade "per saltum” por não se verificarem os requisitos de forma cumulativa prescritos no n° 1 do art° 678° do CPC: as alegações de recurso da Recorrente versam na integra sobre o acórdão interlocutório proferido pelo TRL (alínea d) do n°1 do art° 678° do CPC) quando o mesmo há muito transitou em julgado, não tendo a Recorrente deduzido recurso do mesmo quando o deveria ter feito e ainda não ter sido o mesmo requerido nas conclusões da motivação de recurso por parte da Recorrente.
3 - De igual modo, a presente alegação de recurso deveria ter sido interposta da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância nos termos referidos no n° 1 do art° 644° do CPCivil e não do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
4 - A acrescer a isto, nos recursos interpostos de decisões interlocutórias (e considerando que é admissível o recurso do acórdão interlocutório do TRL), o prazo para a interposição da alegação de recurso é de 15 dias (art° 677° do CPC),
5- A Recorrente deduziu e submeteu a sua alegação de recurso, no dia 12 de Março de 2020, devendo por conseguinte tê-lo feito até ao dia 6 de Março do corrente pelo que salvo melhor opinião este recurso é extemporâneo;
À cautela e sem prescindir;
6 - Não existe qualquer tipo de relação de especialidade entre o art° 7° do DL n° 172-B/86 de 30 de Junho e o artigo 306° do CCivil;
7 - A primeira limita-se a estabelecer um prazo de dez anos para o exercício de um direito (reclamar o reembolso dos certificados), sob pena de extinção do mesmo por prescrição enquanto a norma do art° 306° do CC regula os próprios termos referentes ao instituto da prescrição.
8 - A prescrição só se inicia quando o direito estiver em condições do titular poder exercitá-lo, ou seja quando tiver conhecimento, quando souber que aquele direito lhe assiste;
9 - O prazo de prescrição estabelecido para o pedido de reembolso dos Certificados de Aforro de que era titular o de cujus só pode iniciar-se a partir do momento em que os herdeiros deste se encontrem efectivamente em condições de exercer o direito a respectiva reclamação, dependendo da altura em que o sucessível tiver consciência de que lhe compete agir na prossecução desse desiderato (o reembolso dos certificados de aforro) e não desde a data do óbito, um dado fixo, conforme resulta linearmente do artigo 306°, n° 1 do Código Civil
10 - O artigo 7° do DL n° 172-B/86 de 30 de Julho não refere (e o legislador poderia tê-lo feito) que o prazo para o reembolso dos certificados de aforro se inicia a partir da data do óbito do titular falecido);
11 - O DL n° 172-B/86, de 30 de Julho, com as alterações introduzidas pelo DL n° 122/2004, de 4 de Maio, e pelo DL n° 47/2008, de 13 de Março - optou pela figura da prescrição como instituto regulador da extinção do direito ao reembolso dos Certificados de Aforro pelos herdeiros do titular falecido (Ponto II da Decisão do Ac TRL)
12 - Devendo o prazo de prescrição estabelecido para o reembolso dos Certificados de Aforro de que era titular o de cujus iniciar-se a partir do momento em que os herdeiros se encontrem efectivamente em condições de exercer o direito a respectiva reclamação (o sucessível conhece da existência dos certificados de aforro que integram o acervo hereditário do de cujus e tem consciência que impende sobre si o direito e dever de agir na prossecução do reembolso dos certificados de aforro), e não desde a data de óbito do de cujus conforme resulta do n° 1 do artigo 306° do C. Civil.
13 - Os certificados de aforro não merecem um tratamento diferenciado, não podem sequer reclamar um regime diferenciado dos outros bens que compõem o relictum encontrando-se todos em pé de igualdade com os restantes bens da herança.
14 - Por conseguinte e atento o acima exposto e decidido por ambas as instâncias, a reversão dos certificados de aforro do avô dos Recorridos para o Fundo não pode operar tratando-se de um instrumento financeiro e aforro do avô (poupança familiar) dos Recorridos, criados a partir de fundos monetários do avô dos Recorridos e como tal integrando, no momento da sua morte, o acervo hereditário daquele.
15 - De igual modo, a criação do registo central de certificados de aforro é um momento decisivo considerando-se inovatório para a informação e divulgação públicas da existência de certificados de aforro no acervo hereditário do titular falecido, cuja anterior inexistência dificultava aos sucessores o prévio conhecimento da existência dos Certificados de Aforro (Ponto VI do Acórdão do TRL) pelo que,
16 - No limite, deverão os Recorridos beneficiar da contagem do prazo prescricional de dez anos realizada com referência à data da entrada em vigor do diploma que o criou - Decreto Lei n° 47/2008, de 13 de Março e da sua efectiva instalação - plataforma inovadora que veio substituir o sistema ultrapassado e criado em 1960, exclusivamente regido pela Recorrente, a que obrigava a burocracia imposta aos herdeiros, na obtenção de informações, quando estes sabiam serem sucessíveis na herança na qual faziam parte do relictum certificados de aforro.
Atento todo o acima exposto, os Recorridos requerem aos Venerandos Conselheiros julgarem com Mui Douto Suprimento procedentes
i) Violação do princípio geral da “dupla conforme” nos termos e para os efeitos do n° 3 do art° 671° do CPC;
ii) pela inadmissibilidade da alegação de recurso per saltum por violação do n° 1 e alínea d) do art° 678° do CPC
iii) pela extemporaneidade da alegação de recurso da Recorrente nos termos do art° 677° do CPCivil.
II – FACTOS PROVADOS.
Foi dado como provado em 1ª instância:
…..Pereira Alves faleceu a 23 de Setembro de 2002 no estado de casado com Laurinda ……  .
A 13 de Junho de 2017 foi exarada, a fls. 129-130 do Livro de escrituras diversas do Consulado Geral de Portugal em Joanesburgo, África do Sul, uma Habilitação de Herdeiros na qual consta que compareceu …. Breugem Alves, natural da Âfrica do Sul, o qual declarou que lhe incumbe o cargo de cabeça de casal na herança aberta por óbito de seu avô …..Pereira Alves, que nessa qualidade declara que no dia 23 de Setembro de 2002 faleceu Luis …..Alves, no estado de casado com Laurinda ….. Alves, que o falecido não deixou testamento, tendo-lhe sucedido como seus únicos herdeiros o declarante e a sua irmã, B, que não há outras pessoas que com os indicados herdeiros possam concorrer na sucessão a mencionada herança.
Laurinda …. Alves faleceu a 7 de Junho de 2005, no estado de viúva.
A 31 de Outubro de 2017 foi exarada, a fls. 133-134 do Livro de escrituras diversas do Consulado Geral de Portugal em Joanesburgo, África do Sul, uma Habilitação de Herdeiros na qual consta que compareceu A, natural da África do Sul, o qual declarou que lhe incumbe o cargo de cabeça de casal na herança aberta por óbito de sua avô Laurinda …. Pereira Alves e nessa qualidade declara que no dia 7 de Junho de 2005 faleceu a referida Laurinda, no estado de viúva de Luis ….Alves, que a falecida não deixou testamento, tendo-lhe sucedido como seus únicos herdeiros o declarante e a sua irmã, B ,  que não há outras pessoas que com os indicados herdeiros possam concorrer na sucessão a mencionada herança.
Luis ….. Pereira Alves era filho de Luis …..Alves e Laurinda …… Alves.
Luis ….. Pereira Alves faleceu a 14 de Maio de 2016 no estado de viúvo de Elima …..        .
A 24 de Novembro de 2016 foi exarada, a fls. 112-113 do Livro de escrituras diversas do Consulado Geral de Portugal em Joanesburgo, África do Sul, uma Habilitação de Herdeiros na qual consta que compareceu A , natural da África do Sul, o qual declarou que lhe incumbe o cargo de cabeça de casal na herança aberta por óbito de seu pai, Luis …. Pereira Alves e nessa qualidade declara que no dia 14 de Maio de 2016 faleceu o referido Luiz Manoel, no estado de viúvo de Elima …., que o falecido não deixou testamento, tendo-lhe sucedido como seus únicos herdeiros o declarante A e a sua irmã, B, que não há outras pessoas que com os indicados herdeiros possam concorrer na sucessão a mencionada herança.
Luis ……Alves subscreveu 43 000 unidades de certificados de aforro da Série B, cujo valor total de resgate, a 01.06.2012., era de € 281.272,49.
A 18 de Janeiro de 2017 a Ilustre mandataria dos AA. endereçou ao IGCP o e-mail fotocopiado a fls. 56v-57, dando conta de que Luis …..Alves faleceu antes de 2005, era titular de Certificados de aforro Série B no valor de 281.272,45 e solicitando fossem informados quanto ao modo de proceder relativamente a tais certificados.
Com a data de 10 de Fevereiro de 2017, o IGCP endereçou à Ilustre mandataria a carta junta por cópia a fls. 24, informando que o direito dos herdeiros de requerer a transmissão dos certificados de aforro prescreve no prazo de 10 anos a contar do falecimento do aforrista e que o valor dos certificados de que o mesmo era titular estavam prescritos.
Os AA. tiveram conhecimento que o avô, Luis …..Alves, era titular de Certificados de Aforro da Série B em Agosto de 2016.
Acresce que não se deu como provado que:
“Os AA. tivessem conhecimento da subscrição dos certificados de aforro referidos em 1995, 1999, 2000 ou 2007.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar:
Pedido de reclamação dos Certificados de Aforro – série B - pelos herdeiros do titular falecido. Prazo de prescrição (10 anos). Início da sua contagem (óbito do titular ou momento do efectivo conhecimento da sua existência). Criação do Registo Central dos Certificados de Aforro no ano de 2008. Consequências.
Passemos à sua análise:
Invocaram os AA. na sua petição inicial:
Ao tratarem de assuntos respeitantes à herança de seus pais encontraram, entre papéis que lhes diziam respeito, um documento em nome do falecido Luís …..Alves, emitido pelo IGCP em que se identificavam os certificados de aforro agora em causa.  
Desconhecendo se tais certificados de aforro tinham sido ou não resgatados, os AA. solicitaram ao IGCP um pedido de informação acerca da sua existência, com vista ao pretendido reembolso.
Foi-lhes comunicado, em resposta, pelo IGCP, através de carta datada de Fevereiro de 2017, que o pedido de reembolso não poderia ser realizado face à extinção por prescrição desse direito.
Só nessa data – em Fevereiro de 2017 – tiveram os AA. conhecimento da existência dos ditos certificados de aforro, pelo que só nesse momento se encontravam em condições para exercer o seu direito de os reclamar.
Contrapõe a Ré I.G.C.P. que o prazo prescricional de dez anos se inicia sempre a partir da data do falecimento do titular dos certificados de aforro, quando a sua reclamação é apresentada pelos respectivos sucessores, pelo que tal prazo já se encontrava ultrapassado quando foi contactado pelos AA.
Discutida a causa, provou-se que
Os AA. tiveram conhecimento que o avô, Luis …..Alves, era titular de Certificados de Aforro da Série B em Agosto de 2016, não tendo conhecimento da subscrição dos certificados de aforro referidos em 1995, 1999, 2000 ou 2007.
Apreciando:
A questão jurídica essencial que cumpre apreciar e decidir prende-se com o momento temporal determinante para o início da contagem do prazo de prescrição de dez anos, destinado ao pedido de reembolso dos certificados de aforro pelos herdeiros do titular falecido, tal como previsto no artigo 7º, nº 1, do Decreto-lei nº 172-B/86, de 30 de Junho.
Confrontam-se, neste tocante, duas teses que perfilham critérios divergentes quanto ao factor determinante do início da contagem desse mesmo prazo.
Ou a data do óbito do titular dos certificados de aforro, independentemente de toda e qualquer outra circunstância (conforme entende o I.G.C.P.).
Ou a data – definida, se necessário, através da actividade probatória correspondente – do conhecimento da existência dos certificados de aforro por parte dos herdeiros, e a partir da qual, enquanto sucessores habilitados, poderiam efectivamente, no plano factual, exigir o seu reembolso junto das entidades oficiais competentes, em concreto o I.G.C.P. (conforme defendem os ora apelados).
In casu, tendo o de cujus falecido em 23 de Setembro de 2002, os AA. situam esse seu conhecimento em Fevereiro de 2017, quando o próprio Réu os informou que prescrevera o seu direito a pedir o reembolso dos Certificados de Aforro, sendo certo que se provou que esse mesmo conhecimento data de Agosto de 2016.
Vejamos:
Refere a norma em causa (artigo 7º, nº 1, do Decreto-lei nº 172-B/86, de 30 de Junho):
“Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de dez anos:
(...) b) o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado”.
Acrescenta o seu nº 2:
“Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores do reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição”.
Note-se, a este respeito, que o alargamento deste prazo, de cinco para dez anos, teve lugar por via da entrada em vigor do Decreto-lei nº 122/2002, de 4 de Maio, concretamente o seu artigo 12º.
A propósito da razão de ser deste alargamento do prazo, por forma a compatibilizá-lo com os ditames constitucionais, cumpre salientar a pronúncia do Tribunal Constitucional no sentido da declaração de inconstitucionalidade da norma em que se previa o prazo de cinco anos para a respectiva reclamação pelos herdeiros do titular falecido, versando concretamente o dito artigo 7º, nº 1, na redacção constante do Decreto-lei nº 172-B/86, de 30 de Junho, vide o importante acórdão do Tribunal Constitucional nº 541/2004, de 15 de Julho de 2004, proferido no processo nº 786/03 (relatora Maria Fernanda Palma), publicitado in www.jusnet.pt.
Considerou-se basicamente neste aresto do Tribunal Constitucional:
- Os certificados de aforro conferem direitos patrimoniais aos respectivos titulares, consubstanciando a aplicação de “poupança(s) das famílias” integrados no quadro de emissão e gestão da dívida pública, mas não evidenciam, por esse facto, qualquer especificidade relativamente aos demais bens que constituem o património dos sujeitos no que se refere à transmissão de bens por morte do respectivo titular.
- Não há razão, decorrente da natureza dos certificados de aforro, que legitime diferente tratamento relativamente ao prazo geral de caducidade de aceitar a herança.
- A norma do artigo 7º do Decreto-lei nº 172-B/86, de 30 de Junho, na parte em que consagra um prazo de prescrição do direito de requerer a transmissão dos certificados de aforro por morte do aforrista, viola o disposto no artigo 13º e 62º, articuladamente, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, constitui nosso entendimento, seguindo a corrente jurisprudencial entretanto firmada e de que se dará notícia infra, que o prazo de prescrição, legalmente estabelecido para o pedido de reembolso dos Certificados de Aforro de que era titular o decujus, só pode iniciar-se a partir do momento em que os seus sucessores se encontrem efectivamente em condições de exercerem o direito à respectiva reclamação junto do organismo oficial competente.
Ou seja, dependerá da altura em que os sucessíveis tiverem consciência de que lhes compete agir na prossecução desse desiderato (o reembolso dos Certificados de Aforro) e não, em termos fixos, rígidos e invariáveis, da data de óbito do decujus – que poderiam eventualmente desconhecer durante o período temporal imediatamente a seguir à abertura da sucessão (pense-se nos herdeiros residentes no estrangeiro, naqueles que sejam localizados muito mais tarde ou cuja vocação sucessória aconteça posteriormente, e nos instituídos testamentariamente em que o testamento venha a ser descoberto ou aberto passado largo tempo, por exemplo).
É, a nosso ver, o que resulta, linearmente, do preceituado no artigo 306º, nº 1, do Código Civil, onde o legislador avisadamente estabeleceu: “O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido (...)”.
Ou seja, o regime legal referente aos Certificados de Aforro – série A e B –, que constituem uma das formas de representação da dívida pública directa, em consonância com o disposto no artigo 11º, nº 1, alínea d) da Lei nº 7/98, de 3 de Fevereiro, não contempla em si qualquer particular especialidade, do ponto de vista substantivo, que interfira, prejudique ou colida com o funcionamento geral do instituto da prescrição, em toda a sua plenitude e com todas as sua legais consequências.
Mais concretamente, não existe nos diplomas legais em causa, referentes ao regime jurídico que contempla os Certificados de Aforro, qualquer afastamento, expresso ou implícito, da regra geral e basilar constante do citado artigo 306º do Código Civil.
De resto, só este entendimento se revela coerentemente conforme com os próprios princípios jurídicos que justificam, sustentam e caracterizam a figura e o instituto da prescrição.
Com efeito, o fundamento legal da prescrição extintiva reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado por lei, que faz presumir ter querido renunciar ao crédito, deixando por isso de ser merecedor da protecção jurídica.
Domientibus non sucurrit jus.
Por outro lado, a justificação, em termos axiológicos, para o instituto assenta nos seguintes vectores basilares:
1º - A defesa da certeza e segurança jurídica, que tende a beneficiar as situações de facto que se constituíram e prolongaram por determinado tempo, gerando, no interessado, a firme e fundada expectativa da sua consolidação;
2º - A necessidade de obviar às dificuldades de prova por parte dos devedores, surpreendidos com a reacção excessivamente tardia do credor;
3º - O propósito de incentivar os titulares dos direitos a serem lestos no respectivo exercício, não deixando, pela sua injustificada e excessiva demora, adensar a ideia de que abdicaram deles.
(Sobre esta matéria vide Manuel de Andrade in “Teoria Geral da Relação Jurídica “, Volume II, páginas 445 a 446).
Conforme se enfatiza no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 2016 (relator António Joaquim Piçarra), publicado in www.dgsi.pt:
“(...) o fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo tido como razoável pelo legislador e durante o qual seria legítimo esperar pelo seu exercício, se nisso estivesse interessado. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos, o torna (o titular) indigno de protecção jurídica”.
Nesse mesmo aresto, após se ter considerado que “Nesta matéria, o artigo 306º, nº 1, do Código Civil, adoptou o sistema objectivo que dispensa qualquer conhecimento por parte do credor dos elementos essenciais referentes ao seu direito”, acaba por concluir-se que: “A expressão constante daquela disposição (artigo 306º, nº 1, do Código Civil), “quando o direito puder ser exercido” deve ser interpretado no sentido de o prazo de prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular o poder actuar, portanto desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação (...)”.
Ora, prevendo o diploma legal em apreço – o Decreto-lei nº 172-B/86, de 30 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 122/2004, de 4 de Maio, e pelo Decreto-lei nº 47/2008, de 13 de Março – a figura da prescrição como instituto regulador da extinção do direito ao reembolso dos Certificados de Aforro pelos herdeiros do titular falecido – e não outra, como, e com características e fundamentos absolutamente diversos, a figura caducidade, de funcionamento automático, isto é, ipso jure -, há que tomar em consideração e avocar todas as específicas particularidades legais que envolvem esta figura extintiva de direitos pelo seu não exercício no decurso do período temporal legalmente associado à inércia do interessado.
Ou seja, a opção do legislador pelo instituto da prescrição em vez do instituto da caducidade terá que acarretar consequências jurídicas próprias, com relevantes incidências práticas.
Não vemos que se possa sustentar que, embora a lei aluda expressamente à figura da prescrição, se queira referir afinal ao instituto da caducidade.
Uma interpretação neste sentido não só não resiste ao preceituado no artigo 9º, nº 2, do Código Civil – “não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” -, como não encontra o menor apoio na lógica, contexto e fundamento do fenómeno sucessório que envolve em geral a transmissão de bens e direitos mortis causa.
(sobre este ponte vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Setembro de 2017 (relatora Maria Manuela Gomes), publicitado in www.jusnet.pt).
Assim, a extinção por prescrição do direito dos herdeiros do falecido titular dos Certificados de Aforro terá necessariamente que assentar numa situação reveladora de negligência ou injustificada inércia no exercício da faculdade de os reclamar junto do organismo público competente.
Nesta medida, é fundamental apurar as circunstâncias que rodearam o conhecimento, pelos sucessores, da integração desses certificados de aforro no acervo hereditário do seu falecido titular, ou, pelo menos, da objectiva possibilidade desse concreto conhecimento actuando aqueles com a diligência exigível, razoável e expectável.
Acresce que, na situação sub judice, aquando do decesso do de cujus Luís …….Alves – em 23 de Setembro de 2002 – não havia ainda sido criado o registo central de certificados de aforro, o que apenas veio a suceder através da entrada em vigor do Decreto-lei nº 47/2008, de 13 de Março (em 14 de Março de 2008) que, no seu artigo 9º-A, nº 1, dispõe: “É criado o registo central de certificados de aforro, com a natureza de registo electrónico, que tem por finalidade possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e sobre a identificação do respectivo titular”.
Consta ainda do nº 6 da mencionada disposição legal que: “Os serviços e entidades que celebram actos de partilha ou de adjudicação de bens adquiridos por sucessão devem aceder, por meios informáticos e nos termos que venham a ser regulamentados por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, ao registo central de certificados de aforro, devendo fazer menção do resultado da referida consulta no acto público celebrado”.
Tal significa que o desconhecimento da existência dos certificados de aforro na presente situação não poderia ter sido superado através do recurso a este meio especializado de informação e esclarecimento, criado com esse especial desígnio.
Assim, e perante a reconhecida necessidade de criação deste registo central, expressamente sentida e assumida pelo sistema e, em concreto, pelo legislador ordinário, é de aceitar, à partida, presumivelmente, que não seria exigível aos herdeiros do titular falecido o conhecimento da existência dos certificados de aforro antes da efectiva criação deste expediente institucionalizado e informativo, salvo naturalmente nos casos em que tais elementos informativos lhes sejam imediatamente disponibilizados, ou em que os herdeiros tenham tido - ou pudessem ter tido, fácil -, natural e incondicionado acesso aos mesmos.
Em suma, de tudo isto resulta o nosso entendimento de que o início do prazo de contagem do prazo prescricional de dez anos não coincide com a data do óbito do titular dos Certificados de Aforro, contrariamente ao defendido na decisão recorrida.
Em sentido oposto ao ora propugnado, pronunciou-se o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 20/2010-C (relator Adriano Gonçalves da Cunha), publicado in DR electrónico, o qual se inclinou, por maioria, no sentido de considerar que o início do dito prazo de prescrição (de dez anos) coincide com a data do óbito do titular dos certificados de aforro, independentemente de quaisquer outras circunstâncias respeitantes à ausência de conhecimento por parte dos herdeiros quanto à existência dos certificados.
Desse mesmo parecer consta, porém, um voto de vencido do Conselheiro Paulo Dá Mesquita, proficientemente elaborado e amplamente fundamentado, que merece a nossa inteira concordância.
Aqui se transcrevem, pela sua especial relevância e consistência, as suas considerações:
I - A consulta centra-se na problemática do início de contagem do prazo de dez anos, previsto no n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei 172-B/86, de 30 de junho (na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 47/2008 de 13 de março):
«Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:
«a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou «b) O respetivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado.» Importa, de qualquer modo, ter presente que a questão jurídica apreciada não se relaciona com a estatuição do n.º 1 do artigo 7.º, do Decreto-Lei 47/2008 de 13 de março (opção pelos herdeiros de uma de duas alternativas de concretização da transmissão sucessória), mas com a extinção do direito dos herdeiros a um bem da herança consagrada no n.º 2 do mesmo artigo:
«Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respetivos certificados».
Pelo que, em síntese, o parecer preconizou a seguinte interpretação: Não tendo os herdeiros requerido no prazo de dez anos contado desde a data da morte do aforrador a transmissão da totalidade das unidades que constituem um certificado de aforro ou o reembolso dos valores dos respetivos certificados, estes consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública.
II - A economia do presente voto de vencido vai cingir-se à problemática da extinção de direitos preconizada na interpretação defendida no parecer que, embora estribado na sua vertente conclusiva na disposição do artigo 306.º, n.º 1, primeira parte, do Código Civil, é precedido por uma estrutura argumentativa em larga medida sustentada em duas alterações normativas:
A modificação do prazo da versão originária do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei 172-B/86, de 30 de junho pelo artigo 12.º do Decreto-Lei 122/2002 de 4 de maio, de cinco para dez anos;
«A criação do registo central de certificados de aforro, operada pelo Decreto-Lei 47/2008 de 13 de março, com o aditamento do artigo 9.º-A ao Decreto-Lei 122/2002, que, recorde-se, tem por expressa finalidade possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e sobre a identificação do respetivo titular (n.º 1)».
Da última alteração legislativa, extrai-se uma enfática asserção gnoseológica:
«Com a instituição do registo central de certificados de aforro, parece-nos manifestamente inviável a alegação do desconhecimento, pelos herdeiros, da existência de certificados de que era titular o de cujus». Acrescentando-se mais à frente: «Só por manifesto desinteresse ou negligência permanecerão os herdeiros do aforrista na ignorância desta parte do acervo da herança da sua herança».
Em certa medida, parece estabelecer-se uma presunção de negligência dos herdeiros por via do sobrelevado novo elemento fáctico a possibilidade de informação proporcionada aos herdeiros pelo registo central de certificados de aforro. Em sentido diverso, parece-me que a alegada negligência carecia de explicitação da pressuposta base normativa do dever de cuidado dos herdeiros que seria indevidamente omitido no caso de desconhecimento da subscrição, isto é uma pauta de conduta no sentido de que ocorrendo um óbito os herdeiros devem diligenciar por consultar o registo central de certificados de aforro. Acresce que tal ideia de ordem geral exigia uma fundamentação epistemológica (eventualmente por referência ao homem médio) que, na falta de estabelecimento de um dever legal de ação, não podia prescindir de considerandos de ordem empírica.
Sublinhe-se ainda que, na medida em que se estabelece como dies ad quo do prazo de prescrição extintiva de direitos a um bem da herança o evento morte, está a estabelecer-se também um dever dos herdeiros conhecerem o óbito do titular dos certificados de aforro, independentemente do título de vocação sucessória (lei, testamento ou contrato).
Ao nível jurídico-normativo importa ainda ter presente uma outra alteração consagrada no diploma de 2008 relativa ao «dever de as entidades ou os serviços consultarem o registo sempre que celebrem atos de adjudicação ou partilha de bens adquiridos por sucessão, devendo fazer menção do resultado da consulta realizada no ato público celebrado». Parece-nos que tratando-se neste caso de um inequívoco dever jurídico de informação dos herdeiros, da responsabilidade de agentes com funções públicas, o respetivo desrespeito não pode deixar de implicar consequências jurídicas, especialmente se se associa ao não exercício da simples faculdade de consulta pelos herdeiros do registo uma base argumentativa para extinção de direitos a bens da herança.
Acresce que, como se vai destacar à frente, no direito sucessório português o evento morte não se confunde com conhecimento da morte, nem com a informação por parte de herdeiros do respetivo chamamento à herança.
No que concerne à ampliação do prazo decorrente do artigo 12.º do Decreto-Lei 122/2002 de 4 de maio, o facto de um prazo se ter alargado não implica, por si, que se altere o respetivo termo inicial.
Em síntese, as duas alterações normativas (direta e indireta) do regime do artigo 7.º, n.os 1 e 2 Decreto-Lei 172-B/86, de 30 de junho não compreendem nenhum razão que sustente, na nossa perspetiva, uma interpretação actualista no sentido de que, ao invés do que sucederia antes, com esses diplomas o dies ad quo do prazo de 10 anos extintivo do direito dos herdeiros ao reembolso dos certificados do de cujus deveria passar a ser a data do óbito, e não o conhecimento pelos herdeiros da existência dos certificados de aforro.
III - Afastado o imperativo de uma interpretação atualista, não se pode prescindir de um diálogo com a jurisprudência anterior a 2008, em que se concluiu que o termo inicial do prazo para a extinção de direitos consagrada no n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei 172-B/86, de 30 de Junho dependia do conhecimento do óbito e da existência dos certificados de aforro.
Importando recordar nesta sede o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de novembro de 2005 (41):
«Reportando-nos diretamente à situação de facto colocada nesta ação - os direitos que o n.º 1 reconhece (à emissão de novos certificados ou ao seu levantamento) eram exercitáveis desde a morte do subscritor dos certificados de aforro”.
Esta linha de raciocínio, profundamente curial, coerente e lógica, revela-se muito relevante no sentido de dever perfilhar-se a tese contrária àquela que a recorrente legitimamente sustenta.
Assentamos, portanto, a nossa posição nos seguintes fundamentos que sinteticamente se deixam elencados:
- Do que se trata é da extinção de um direito, adquirido por via hereditária, exclusivamente com base na inércia do seu titular em exercitá-lo, dentro do período temporal tido por adequado e razoável, segundo o critério do legislador.
- Ou seja, por via do instituto da prescrição, é gravemente penalizada a postura omissiva e negligente do sujeito em providenciar pela defesa atempada dos seus interesses juridicamente tutelados.
- Tal supõe, logicamente, que o sujeito dispôs da oportunidade real e efectiva de, conhecendo e prefigurando a situação factual propícia ao exercício do seu direito, promover as diligências aptas a torná-lo funcional e eficaz.
- A primeira das condições para que tal possa acontecer radica precisamente no conhecimento de que tal direito se encontrava no âmbito e na esfera da sua actuação jurídica.
Como se compreende, não se exerce uma pretensão, seja ela qual for, sobre uma realidade desconhecida, insuspeita ou oculta, relativamente à qual inexiste o dever de informação e o esclarecimento idóneo a torná-la conhecida, concreta ou desvelada.
- Os certificados de aforro constituem, tão simplesmente, um instrumento financeiro e uma modalidade de aforro e investimento, criada a partir dos fundos monetários daquele que os subscreve, integrando-se, no momento da sua morte, no acervo hereditário do de cujus, em pé de igualdade com todos os outros bens e direitos que compõem o relictum, sem qualquer especialidade que leve a prever ou reclamar regime diferenciado ou particular.
A natureza de instrumento financeiro criado pelo artigo 14º do Decreto-Lei nº 43453 de 30 de Dezembro de 1960, formado por títulos nominativos, amortizáveis, só transmissíveis por morte, destinados a pessoas singulares – no dizer da lei “assentados” em nome de pessoas singulares -, não confere aos Certificados de Aforro qualquer singularidade no domínio da vulgar transmissão dos bens e direitos mortis causa em favor de quem suceda ao autor da herança.
O seu destino comum e normal não deve ser, como facilmente se compreende, o da reversão dos montantes pecuniários entregues pelo particular em favor da entidade pública, assim financiada e sobre a qual impende a primordial obrigação de reembolso, beneficiando-a à custa dos herdeiros do investidor falecido, a não ser que, em termos perfeitamente excepcionais, estes deixem seguramente vincado o seu desinteresse em agir durante o tempo tido pela lei como equilibrado e razoável, funcionando então (e só então), nestas excepcionais circunstâncias, o sistema comum e corrente da extinção do seu direito por prescrição devida a inacção prolongada e injustificada.
- Na situação sub judice, à data da morte do decujus não havia sido ainda criado o registo central de certificados de aforro, dificultando, desta forma, aos herdeiros do falecido, a possibilidade de conhecimento da existência no património hereditário do decujus de quaisquer certificados de aforro (que podem sempre, em abstracto e por hipótese, existir ou não).
Sempre se dirá que a própria existência do registo central de certificados de aforro não garante em absoluto a consciência da existência dos títulos, como é evidente. O fenómeno sucessório pode arrastar-se devido a uma diversidade de situações, originadas pelo próprio desconhecimento do óbito do titular, e não existirem verdadeiras condições para a descoberta dos certificados.
De todo o modo, trata-se de um expediente que reduz muitíssimo – quiçá quase a zero - a probabilidade do sucesso da alegação desse desconhecimento pelos herdeiros do titular falecido a quem compete, igualmente, desenvolver com qualificado zelo e empenho todas as normais diligências para o apuramento dos bens que compõem o acervo hereditário do decujus.
- Considerando que tal inovatório registo central, resultante de oportuna intervenção legislativa, veio finalmente introduzir elementos muito relevantes para a informação e divulgação públicas da existência de certificados de aforro no acervo hereditário do titular falecido, cuja anterior inexistência dificultava esse efectivo conhecimento, salvo prova em contrário quanto à verificação de outros factos reveladores da inércia no pedido de reembolso - antes da instalação desse registo - ou do efectivo acesso a elementos que possibilitaram ou possibilitariam aos sucessores o prévio conhecimento da existência dos Certificados de Aforro, deverão os herdeiros beneficiar, em princípio, da contagem do prazo prescricional de dez anos realizada com referência à data da entrada em vigor do diploma que o criou – o Decreto-lei nº 47/2008, de 13 de Março – e da sua efectiva instalação.
(Sobre este ponto, em particular, vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Abril de 2018 (relator Torres Vouga), publicado in www.dgsi.pt e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Dezembro de 2018, proferido no Processo nº. 1396/16.8BELSB.L1 (relatora Conceição Saavedra), sendo relatora neste último aresto a ora 2ª adjunta que subscreve o presente acórdão).
- O artigo 2059º, nº 1, do Código Civil, respeitante à caducidade do direito de suceder, estipula que “O direito de aceitar a herança caduca ao fim de dez anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido a ela chamado”.
Tal significa que a própria vocação sucessória opera temporalmente por referência ao momento do conhecimento pelo sucessível da sua qualidade sucessória, não tendo por base real, prática e efectiva, o momento do falecimento do de cujus, irrelevante para este desígnio.
De resto, a retroacção dos efeitos da aceitação ao momento da morte do de cujus, tal como previsto nos artigos 2031º e 2050º, nº 2, do Código Civil, constitui um mecanismo de pura ficção jurídica, que nada tem a ver com a realidade factual dos acontecimentos da vida, domínio no qual se torna relevante, sim, a tempestividade do acto de aceitação da herança contado a partir do conhecimento da qualidade de sucessor, o que pode perfeitamente ocorrer, segundo o nosso ordenamento jurídico, mais de uma dezena anos após a morte do autor da herança.
- Na situação sub judice, os AA. adquiriram o direito potestativo à aceitação da herança de seu avô Luís …..Alves, falecido em 23 de Setembro de 2002, através de um fenómeno de dupla transmissão sucessória, por morte de Luís ….. Alves e esposa Elima …… (ocorrida, respectivamente, em 14 de Maio de 2016 e 15 de Dezembro de 2007) como únicos herdeiros do dito Luís …..Alves.
A justificação apresentada IGCP, conforme carta cuja cópia se encontra junta a fls. 24, datada de 10 de Fevereiro de 2017, resume-se à afirmação de que: “(...) nos termos da lei o direito dos herdeiros requererem a transmissão dos certificados prescreve a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública após o decurso de 10 anos, contados desde a data de falecimento do aforrista. (...) o valor dos referidos certificados encontra-se prescrito relativamente ao Sr. Luís Pereira Alves”.
Tal argumentação do IGCP olvida a lógica, o sentido e a ratio de funcionamento do instituto da prescrição, bem como as regras essenciais relativas ao funcionamento do fenómeno sucessório, que se destinam a salvaguardar primacialmente os direitos dos sucessíveis do autor da herança e não a servir ou apoiar (generosamente) a gestão de tesouraria do Estado português.
Em consonância com todas as razões que se deixaram expendidas supra, tal rejeição liminar do reembolso dos Certificados de Aforro, com fundamento apenas no decurso do prazo de dez anos sobre a morte do titular falecido, carece de respaldo legal, sendo juridicamente inaceitável.
Não se entende como seja possível qualificar-se o artigo 7º, nº 1, alínea b), do Decreto-lei nº 172-B/86, de 30 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 122/2004, de 4 de Maio, e pelo Decreto-lei nº 47/2008, de 13 de Março, onde apenas se refere que: “Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de dez anos, o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado”, como norma especial para, desse modo, afastar a aplicação da disposição legal, de carácter geral, do artigo 306º, nº 1, do Código Civil.
Obviamente que não existe qualquer tipo de relação de especialidade entre estas duas normas.
A primeira limita-se a estabelecer um prazo (dez anos) para o exercício de um direito, sob pena de extinção do mesmo por prescrição; a segunda regula os próprios termos referentes ao instituto da prescrição, que serão naturalmente avocados para a apreciação de cada uma das situações concretas de pedido de reembolso pelos herdeiros do titular falecido.
Em parte alguma do artigo 7º, nº 1, alínea b), do Decreto-lei nº 172-B/86, de 30 de Julho, se alude a que o prazo para o dito reembolso se inicia a partir da data do óbito do titular falecido, como o legislador poderia perfeitamente haver estabelecido, afastando, desse modo, quaisquer dúvidas interpretativas.
O que refere, somente, é que, falecendo o titular, isto é, “por morte do titular de certificados de aforro”, os seus herdeiros dispõem do prazo de dez anos para reclamar o reembolso dos certificados.
Os Decretos-lei nº 287/2003, de 12 de Novembro e Decreto-lei nº 27/2008, de 13 de Março são posterior ao óbito do de cujus – verificado em 23 de Setembro de 2002 -, sendo certo que, como já se referiu supra, o registo central de certificados de aforro não existia aquando da abertura da sucessão do titular dos certificados de aforro, sendo portanto necessário retirar as pertinentes ilações dessa inexistência, conjugada com a necessidade sentida pelo legislador ordinário de criar, no ano de 2008, este expediente de informação e divulgação ao público da existência dos Certificados de Aforro.
Precisamente sobre este ponto pronunciou-se, com toda a clarividência, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Janeiro de 2019 (relator Pedro Lima Gonçalves), publicado in www.dgsi.pt.
Assim sendo, perante o elenco dos factos dados como provados em audiência de julgamento, que a ora recorrente não ousou impugnar com observância das exigências previstas no artigo 640º do Código de Processo Civil, antes os aceitando plenamente (e fundando nessa aceitação a legalidade da interposição do seu recurso per saltum, nos termos do artigo 678º do Código de Processo Civil), é evidente e manifesto que não se verificou a extinção do direito exercido nestes autos pelos AA. por via do instituto da prescrição, conforme o pretendido – erroneamente – pela Ré.
Sobre esta questão jurídica essencial, tome-se nota da seguinte jurisprudência, claramente firmada e consolidada, no sentido agora propugnado:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Janeiro de 2019 (relator Pedro Lima Gonçalves), publicado in www.dgsi.pt, no qual se salientou que: “a prescrição resulta da desvalorização da inércia do titular no exercício do direito. (...) supõe a inércia do titular do direito. (...) O facto “morte do subscritor” é, em si, neutro, nada lhes diz (aos herdeiros) relativamente à existência da subscrição de certificados de aforro pelo de cujus. (...) a Autora só poderia exercer o seu direito (não a partir da ocorrência do óbito da sua mãe, titular dos nove certificados de aforro, série B) quando teve conhecimento da existência dos certificados de aforro”.
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Novembro de 2005 (relator Lopes Pinto), publicado in www.dgsi.pt., onde se enfatizou: “O facto que permite desencadear o instituto da prescrição é, em si, neutro. Ninguém pode exercer um direito que não conhece ter, que não sabe que lhe assiste. Se, desconhecendo-o, o prazo de escoou não se pode falar verdadeiramente de inércia (há apenas decurso de um lapso de tempo) e, menos ainda, de negligência, sendo que pela prescrição se sanciona a inércia negligente do titular do direito. Por outras palavras e reportando-nos directamente à situação de facto colocada nesta acção – os direitos que o nº 1 reconhece (à emissão de novos certificados ou ao seu levantamento) eram exercitáveis desde a morte do subscritor dos certificados de aforro. Logo à partida, pressupõe isto conhecerem os herdeiros a existência da subscrição de certificados de aforro pelo de cujus. Só assim, tomam conhecimento que, pela sua morte, ficam titulares daqueles direitos conferidos pelo artigo 7º, nº 1, do Decreto-lei nº 172-B/86”.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Abril de 2018 (relator Torres Vouga), publicitado in www.jusnet.pt. que não subscreveu a tese sustentada no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República citado supra, respaldando-se ao invés no voto de vencido do Conselheiro Paulo Dá Mesquita.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Setembro de 2017 (relatora Maria Manuela Gomes), publicitado in www.jusnet.pt. que fez notar, afastando a presente situação do âmbito da caducidade, que ”o que está aqui em causa não é a existência de um prazo legal para o exercício de um direito, com a cominação de o mesmo se extinguir “ipso jure”.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Dezembro de 2006 (relatora Carla Mendes), publicitado in www.jusnet.pt.
- Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12 de Março de 2015 (relator Rui Pereira), publicitado in www.jusnet.pt.
- Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Outubro de 2015 (relatora Ana Paula Portela), sumariado in www.dgsi.pt.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Março de 2019 (relatora Amélia Ameixoeira), publicitado in www.jusnet.pt., onde se salienta que: “Não existindo à data do óbito do titular dos certificados de aforro, ainda, a base de dados de registo dos aludidos certificados – o registo central electrónico só surgiu com o Decreto-lei nº 47/2008, e com elementos a aprovar por Portaria – pertinente não é reportar-se o início do prazo de prescrição à data do óbito do titular falecido, data em que não tinha o seu herdeiro acesso à existência, localização e titularidade dos investimentos financeiros do titular falecido, logo não podia iniciar-se - à data do óbito – o prazo de prescrição nos termos do artigo 306º, nº 1, do Código Civil”.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Julho de 2020 (relator Luís Filipe Pires de Sousa), publicado in www.dgsi.pt, onde se salienta que:
“I.–À contagem do termo inicial da contagem do prazo de prescrição previsto no Artigo 7º do Decreto-lei nº 172-B/86, respeitante à prescrição do direito de pedir o reembolso ou transmissão dos certificados de aforro de que era titular o de cujus, não basta o facto neutro morte do de cujus, exigindo-se também a aquisição pelos herdeiros do conhecimento da existência de tais certificados de aforro. II.–Esta interpretação, reiterada pela jurisprudência, dever prevalecer designadamente porque: (i)- ao cabeça de casal não está imposta, em qualquer disposição legal, a obrigatoriedade de diligenciar, antes de apresentar a relação de bens nas Finanças, junto do IGCP para saber da eventual existência de certificados de aforro, nem o facto de não diligenciar se pode considerar como comportamento negligente; (ii)- a interpretação contrária conduz a um resultado abstruso, disforme e colidente com outras normas jurídicas, designadamente com o Artigo 2059º do Código Civil, porquanto – nos termos de tal interpretação estrita e literal - o prazo da prescrição extintiva do direito dos herdeiros reclamarem os certificados de aforro pode prescrever antes de sequer se iniciar a contagem do prazo para se aceitar a herança; (iii)- só a interpretação sistemática, na senda da maioria da jurisprudência, é a que garante uma concordância prática, de acordo com o princípio da proporcionalidade, entre os interesses dos herdeiros do titular dos certificados de aforro e o IGCP. Na verdade, sancionando o instituto da prescrição a inércia do titular do direito, só se pode falar de inércia perante uma realidade conhecida e não perante o desconhecido: não se reage a uma realidade desconhecida;(iv)- não se divisa um direito do Estado merecedor de tutela que se superiorize ao interesse dos herdeiros em aceitarem uma herança, que tem como activos certificados de aforro, tanto mais que o Estado dispõe de mecanismos para accionar e controlar o conhecimento do óbito por parte dos herdeiros”.
Improcede, portanto, por todos estes motivos, suficientemente desenvolvidos, a presente apelação.
IV - DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 29 de Setembro de 2020.
Luís Espírito Santo.
Isabel Salgado.
Conceição Saavedra.