Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
586/15.5TDLSB-H.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: APREENSÃO DE BENS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1.– A proprietária de bens apreendidos no âmbito de processo crime que não se constitui assistente não tem legitimidade para discutir a existência de indícios da prática dos crimes imputados nos autos.
O instituto processual da apreensão tutela a necessidade de recolha e conservação de prova para efeitos de instrução do processo mas tem igualmente aplicação nas situações em que importa, única e exclusivamente, a segurança dos bens apreendidos, tendo em vista a sua disponibilização para efeitos de confisco, ou seja, é um meio ao serviço da eventualidade da declaração de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, previstas nos artºs 109º e ss do CP
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal.

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I–Relatório:


Indeferido que foi o pedido de levantamento da apreensão sobre a conta da Massa Insolvente da sociedade L. – LP, S.A., identificada a fls. 3651, veio a referida massa recorrer do despacho, concluindo nos termos que se transcrevem:
« a)- O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito versada no douto despacho promovido pelo Juiz de Instrução Criminal, datado de 06/12/2016, fls. 18 e 19 dos autos do Apenso H do processo em referência:
b) Impugnando-se expressamente a apreensão sobre a conta da massa insolvente, melhor identificada a fls. 3651, dos autos principais.
c)-  O Administrador de Insolvência requereu o levantamento da apreensão de bens que não pertenciam ao Arguido o que lhe foi expressamente concedido, nos termos do n.°1 do art. 186.° do C.P.P..
d)-  A apreensão subsequente, e da qual se recorre é ilegal, sendo que afronta, designadamente o art. 62.° da Lei Fundamental, bem como o disposto nas normas dos arts. 36°, 46.° e 149.3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - C.I R.E.
e)- A apreensão efectuada em ... padece de nulidade, cf. apreensão sobre a conta da massa insolvente identificada a fls, 3651. nos termos das normas supra referidas.
f)- A apreensão é ilegal, dado que, o Sr. Administrador de Insolvência não foi previamente ouvido, como determinava o artigo 81°, n.° 4 do CIRE.
g)- Salvo melhor entendimento a referida apreensão é ainda inconstitucional, pois viola as normas contidas nos arts 13.°, n.° 1, 20.°, n.°s 1, 4 e 5 da CRP.
h)- O Decreto-Lei n° 11/2007 de 19 de Janeiro, não prevê a possibilidade de o valor da Massa Insolvente apreendido para se declarar perdido a favor do Estado, o que veio a acontecer nos presentes autos.
i)-  Acresce que, sustenta a decisão da qual se recorre, a fls. 19 que “solidificaram-se os indícios de que o arguido E. terá praticado crimes...".
j)- Tal afirmação é manifestamente ilegal e viola o princípio da presunção de inocência.
k)- O saldo bancário apreendido - propriedade da massa insolvente - não foi declarado perdido a favor do Estado, nem tão pouco desencadeado o procedimentalismo para tanto.
I)-  O despacho recorrido enferma de uma vaguidade, abstracção e suposições, sendo que por falta de fundamentação, deve igualmente determinar-se a nulidade do despacho do tribunal a quo, proferido pelo Juiz de Instrução Criminal.
m) Todo e qualquer crédito que o Ministério Público entenda reclamar sobre a L. – LP, S.A., com o NIPC 508313422, tem de ser reclamado no processo de insolvência, sendo manifestamente ilegal e inconstitucional que use o presente processo-crime para o efeito, pois tal violaria o direito dos demais credores da Insolvência.
n)- Violando-se, igualmente, diversos princípios constitucionais regulares do Estado de Direito, maxime arts. 13.°, n.° 1, 20.°, n.°s 1, 4 e 5 da CRP que expressamente se invocam para os devidos efeitos legais.
o)- O valor agora apreendido só foi possível de realizar por a Massa Insolvente ter incorrido em diversas despesas.
p)- Despesas essas que o Administrador de Insolvência se vê agora manietado de cumprir.
q)- Se o Ministério Público pretendia reclamar sobre o resultado da apreensão dos bens para a massa insolvente, então, deveria tê-lo requerido por via do procedimento a que aludem os art.°s 141° e seguintes, do CIRE.
r)- Ao não o fazer subverteu as competências próprias da figura do Administrador de Insolvência.
s)- Evitando os trabalhos e custos previstos no n.° 2, do artigo 185°. do CPP.
t)- O Administrador de Insolvência não é titular de acção penal nem lhe estão delegadas funções nesse sentido, não sendo, com todo o devido respeito, funcionário do M P.
u)- A apreensão do saldo bancário - propriedade da Massa Insolvente - não se revela necessária, proporcional ou adequada, o que viola transversalmente o princípio da proporcionalidade.
v)- A apreensão não obedece aos pressupostos contidos no art. 181°, n.°1 do C.P.P.. porquanto nem o saldo bancário tem que ver com crime algum, nem tal se afigura interessante para a descoberta da verdade ou para a prova.
w)- A fls. 19 do despacho recorrido afirma-se: "(...) a sua venda sido autorizada pelo Ministério Público em conformidade com o art 185°. n.°s 1 e 2 do CPP, dado que a manutenção da apreensão sobre os bens em causa, atenta a natureza dos mesmos, não só não acarretaria custos para o Estado como iria necessariamente determinar uma perda do valor’:.
x)- O que vai de encontro ao disposto nas alíneas b) e c) do art 410.° do C.PP. e revelador de que foi cometida uma ilegalidade.
y)- Além da falta de fundamentação concreta, jamais se demonstra que os bens fossem perecíveis, perigosos, deterioráveis ou que a sua utilização implicasse perda de valor ou qualidades e que com isso se determinasse a sua venda.
z)- Igualmente revelador das ilegalidades cometidas e da leviandade com que que se actuou, é que o produto da venda não é nenhum sinalagma resultante de qualquer modalidade de venda prevista em lei processual civil, para os fins do n.° 2 do art. 185 ° do CPP
aa)- Razão pela qual se não pode fundamentar, ficcionando-se, a situação de facto com a recondução à norma acabada de referir.
bb)- Giza o despacho recorrido que "(...) a manutenção da apreensão sobre os bens em causa, atenta a natureza dos mesmos, não só acarretaria custos para o Estado como iria necessariamente determinar uma perda de valor”.
cc)- Além de antagónico, tal argumentação é insuficiente para a decisão da matéria de facto provada nos termos da alínea a) do n.°2 do art. 410 ° do CPP.
dd)- Uma vez que todos os custos oriundos do depósito, conservação e guarda dos bens - que foram vendidos - integraram a contabilidade da Massa Insolvente, aqui recorrente.
ee)Cabendo-lhe a ela liquidar os montantes das rendas do Armazém sito em Vale Figueira, no valor de € 71.398,16, bem como, pagar todas as despesas relacionadas com os serviços de segurança, bem como todas aquelas que se revelarão necessárias à intermediação da venda dos bens.
ff)-  Razão pela qual se anota o desacerto do despacho recorrido e que é forçoso que se revogue em absoluto.
gg)- A apreensão é ilegal, inconstitucional, pois é desnecessária, desadequada e desproporcional fazendo uma interpretação errada daquilo que são as normas invocadas, designadamente, os arts. 111.°, n.°2 do C.R 178.°. n.°1, 181.°, n.°1 e 185°, n°1 e 2 do CPR
hh)- O despacho recorrido viola o princípio da culpa, o princípio da igualdade, viola a boa-fé e as legítimas expectativas tuteladas pelo Direito no que toca à posição patrimonial da Massa lnsolvente aqui recorrente.
ii)-  Viola o princípio do contraditório e da autonomia patrimonial, ao mesmo tempo que faz tábua rasa do princípio da proporcionalidade.
jj)- Caso assim se não entenda, o que por mero dever de patrocínio se coloca, deverá, no limite, ser o Ministério Público condenado a entregar à Massa Insolvente a quantia referente a todas as despesas resultantes da guarda, conservação e venda acrescida de juros legais que se vierem a apurar em incidente de liquidação, conforme n.°3 do art. 185.° do C.P.P..
kk)- O despacho recorrido além de injusto é ilegal, sendo proferido ao arrepio do disposto, designadamente, nas normas dos arts. 62.°, 13 n°1, 20.° n.°1, 4 e 5, 32.°, 18 ° da C.R.P.; 46°, n.°1, 36°, 81° n.°4, 149° e 141.° do C.I.R.E., 181.° n.°1, 185.° do C.P.P..
II)-  Por tudo o que foi exposto, a apreensão que aqui se recorre deve ser revogada, nos termos do n.° 6 do art. 178.° do CPP.
mm)-  Violou-se a Lei ao proceder como se procedeu criando uma injustiça e afronta incompatível com um Estado de Direito Democrático que ao douto Tribunal da Relação de Lisboa cumpre sindicar.
Termos em que se requer que seja dado provimento ao recurso e em consequência seja revogada a decisão que aqui se recorre, maxime a apreensão sobre a conta da massa insolvente, melhor identificada a fls. 3651 dos autos, ou caso assim se não entenda, o que por mera hipótese e dever de patrocínio se coloca ser o Ministério Público obrigado a entregar à Massa Insolvente a quantia equivalente às despesas resultantes da guarda, conservação e venda dos bens, acrescida de juros legais, que esta teve de suportar ou que a si é exigido, conforme sentido teleológico da norma do n.°3 do art. 185.° do C.P.P., e que se vier a apurar em incidente de liquidação. ».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso, com fundamento em que: «A apreensão dos bens da L. – LP, S.A., efetuada pela Polícia Judiciária, foi validada tempestivamente pelo Ministério Público, nos termos do art. 178° n.° 1, 3 e 5 do Código de Processo Penal, carecendo de qualquer fundamento outrossim a invocação de nulidade dessa apreensão, sendo que o respetivo n.° 7 impõe o exercício do contraditório posteriormente à apreensão (como ocorreu) e não antes.

Essa apreensão precedeu, em muito, a declaração de insolvência da L. – LP, S.A., inexistindo dúvidas de que os bens em causa estiveram até à sua venda sempre à ordem destes autos, pelo que o destino da quantia resultante da venda dos mesmos tem de ser decidida neste âmbito e não no do processo de insolvência, aliás menos até por isso do que pela natureza de um e de outro.

O Ministério Público não invocou (nem tinha de invocar) qualquer crédito sobre a L. – LP, S.A. mas sim, como resulta de mera leitura da promoção e do douto despacho, que os bens adquiridos pela L. – LP, S.A. com dinheiro desviado pelo arguido E. G. de massas insolventes por si geridas são produto do crime de peculato em causa nos autos e, logo, também o é o resultado dessa venda, a qual o Ministério Público somente autorizou nesse intuito e de modo a conseguir o maior valor possível e não porque quisesse “abrir mão”, nestes autos, desses bens ou montantes. Aliás, a apreensão dos bens só foi levantada depois de determinada judicialmente e efetuada a do saldo bancário precisamente por isso.

Inexistiu qualquer aproveitamento indevido do trabalho do senhor administrador de insolvência da L. – LP, S.A.. Tratou-se apenas de não obstar à melhor venda possível dos bens, que evidentemente com o decurso do tempo iriam desvalorizar-se (como outrossim assinalou a Mma. Juíza de Instrução Criminal), e só depois discutir o destino do respetivo montante.

Os bens jurídicos protegidos pelo crime de peculato foram previamente violados à instauração do processo de insolvência e, a nosso ver e salvo o devido respeito, são mais relevantes do que os interesses dos credores da L. – LP, S.A. (incluindo do proprietário do armazém onde os bens se encontravam), os quais têm de aguardar o desfecho dos presentes autos, tanto mais que antes desses ainda estão os dos restantes credores das massas insolventes que foram geridas e espoliadas pelo arguido E. G..

Visto que se apreendeu o saldo de uma conta bancária e o Decreto-Lei n.° 11/2007, de 19 de janeiro, não abrange valores pecuniários, a alusão ao respetivo regime carece de utilidade, assim como as do CIRE, porquanto as normas aplicáveis à apreensão são as do Código de Processo Penal, conforme doutamente sustentou a Mma. Juíza de Instrução Criminal.

Já a alusão à alegada violação do princípio da presunção de inocência do arguido E. G. é despropositada, pois as medidas de coação e de garantia patrimonial são sempre aplicadas com base em indícios probatórios, assim como às normas da Lei Fundamental, pois foi dado cumprimento ao disposto no art. 178° n.°s 7 e 9 do Código de Processo Penal e o recurso ao qual se responde é interposto de decisão que apreciou a bondade da pretensão da recorrente».
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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto viu os autos.  
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II–Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).

As questões colocadas pela recorrente são:
- A revogação da apreensão sobre a conta da massa insolvente, melhor identificada a fls. 3651 dos autos;
- Subsidiariamente, a condenação do Ministério Público a entregar à Massa Insolvente a quantia equivalente às despesas resultantes da guarda, conservação e venda dos bens, acrescida de juros legais, em montante que se vier a apurar em incidente de liquidação.                  
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III–Fundamentação de facto:

Há que considerar os seguintes os factos:
1– Nos presentes autos foi considerada indiciada a prática, pelo arguido E. G., de um crime de peculato, p. e p. pelos artºs 30° e 375°/1, do CP, com referência ao artº 386°/1-d), do CP, um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artº 103° e 104°, do RGIT e um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368°A/2 e 3, do CP porquanto, entre o mais, se considerou indiciado que ele se apropriou de bens e valores pertencentes a massas insolventes e com elas financiou a sociedade L. – LP, S.A., adquirindo o património que permitiu o funcionamento desta última sociedade.

2– A 3/10/2016 foi proferido, nos autos, o seguinte despacho:
«A partir da análise indiciária da prova até à data recolhida constata-se que o arguido E. G., mediante a prática do crime de peculato, p.p. no art. 375.° n° 1 do C. Penal, financiou a sociedade L. – LP, S.A., adquirindo o património que permitiu o seu funcionamento com as quantias de que se apropriou à custa de várias sociedades insolventes.
Na presente data e após a declaração de falência da L. – LP, S.A. os bens da mesma foram adquiridos pelo montante de € 675.000, os quais nos termos do art.111.° n° 2 do C. Penal deverão ser declarados perdidos a favor do Estado por corresponderem indirectamente ao produto de um crime.
Assim e importando assegurar tal finalidade e simultaneamente evitar a deterioração dos bens já adquiridos por terceiro no âmbito da falência da L. – LP, S.A., nos termos dos arts. 178.° n° 1 e 181.° n° 1 CPP, determino a apreensão da quantia titulada pela massa insolvente da L. – LP, S.A. na conta id. a fls. 3651, autorizando-se apenas que esta conta tenha movimentos a crédito. (….)».

3– Desse despacho reclamou a Massa Insolvente da L. – LP, S.A., pedindo o levantamento da apreensão sobre a referida conta, «nos termos e para os efeitos do disposto no artº 178°/6, do CPP», com fundamento em que os bens apreendidos não pertencem ao arguido mas à massa insolvente, que é um património de afectação distinto, destinado à satisfação dos direitos dos credores da insolvência, local onde o MP deve reclamar os créditos que entenda ter sobre a dita sociedade. Mais referiu que o valor em causa foi obtido por venda dos bens apreendidos, na sequência de levantamento da apreensão determinada pelo MP, o que causou custos à massa insolvente e que em causa está uma apreensão e não um arrestou ou caução económica.
 
4– Na sequência, foi proferido o despacho recorrido, a 6/12/2016, que se contem nos seguintes termos:
«Massa Insolvente da L. – LP, S.A. veio requerer o levantamento da apreensão da quantia proveniente da venda judicial dos bens da sociedade L. – LP, S.A. alegando que a mesma não se enquadra nas normas legais aplicáveis, não tendo sido ouvido sobre a mesma o Administrador de Insolvência, o que determina a sua nulidade nos termos do art. 81 ° n° 4 do CIRE.
Invoca a requerente que a quantia apreendida não pertence ao arguido E. G. mas sim à massa da sociedade insolvente, destinando-se à satisfação dos interesses dos credores da massa falida, pelo que a presente apreensão, permitindo ao Ministério Público ser ressarcido antes dos demais credores é ilegal e inconstitucional nos termos dos arts. 13.° n° 1, 20.° n°s 1, 4 e 5 da CRP.
O MP deduziu oposição ao requerido, alegando que os bens em causa são produto do crime de peculato, foram apreendidos nos autos principais pela PJ nos termos do art. 178.° n° 1, 3 e 5 do CPP, apenas se tendo autorizado a sua venda a fim de se obter o maior valor possível e não como forma de colocar os mesmos à disposição do Administrador de Insolvência.
Compulsados os autos principais, constata-se que os bens cuja venda deu origem à quantia cuja devolução é requerido foram apreendidos pela PJ nos termos referidos pelo Ministério Público, tendo a referida quantia sido apreendida por despacho judicial nos termos do art. 181.° n° 1 do CPP.
Até à presente data nos autos principais solidificaram-se os indícios de que o arguido E. terá praticado os crimes de peculato e branqueamento, p.p. no art. 368.°-A e 375.° ambos do C. Penal.
Tal conduta, para além do mais, foi desenvolvida pelo arguido com o fito de equipar a L. – LP, S.A. com os bens apreendidos, os quais são por esse motivo produto de um crime e como tal sempre seriam susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado, art. 111.° n° 2 do C. Penal.
De igual modo, a quantia que foi obtida com a venda destes bens é susceptível de ser declarada perdida a favor do Estado.
Acresce que os bens em causa foram apreendidos nos autos principais e não no âmbito da falência, tendo a sua venda sido autorizada pelo Ministério Público em conformidade com o art. 185.° n°s 1 e 2 do CPP, dado que a manutenção da apreensão sobre os bens em causa, atenta a natureza dos mesmos, não só acarretaria custos para o Estado como iria necessariamente determinar uma perda do valor.
Em suma, a apreensão originária dos bens da L. – LP, S.A. e a subsequente apreensão do seu produto foram realizadas em conformidade com as normas aplicáveis, que são as do Código de Processo Penal e não as que regem as insolvências, pelo que não se afigura que a mesma esteja ferida de invalidade ou inconstitucionalidade nos termos invocados pela requerente.
Assim e nos termos dos arts. 111.° n° 2 do C. Penal, 178.° n° 1 e 181.° n° 1 do CPP, indefiro o requerido, mantendo-se a apreensão como já determinado.»
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IV–Fundamentos de direito:

A recorrente entende que:
1- A apreensão é ilegal porque os bens cuja venda deu origem ao valor titulado na conta apreendida eram propriedade da insolvente e não do arguido;
2- O despacho ofende o disposto nos artºs 36º, 46º, 81º/4 e 149º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e 13º/1, 20º/1, 4 e 5 e 62º da Constituição da República Portuguesa;
3- O regime do DL 11/2007 de 19/01 não foi cumprido;
4- A afirmação de que se solidificaram os indícios de que o arguido E. praticou crimes atenta contra princípios do direito penal e a presunção de inocência;
5- É ilegal o entendimento de que os bens sejam produto de um crime e como tal susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado;
6- O destino dos bens deve ser determinado em sentença;
7- O despacho é nulo por falta de fundamentação;
8- Os créditos do MP devem ser reclamados na insolvência, em termos de igualdade com os restantes credores, sob pena de violação do disposto nos artºs 13º/1, 20º/1, 4 e 5, da CRP;
9- O saldo bancário não tem que ver com crime nem a apreensão se mostra interessante para a descoberta da verdade;
10- Não se demonstra que os bens fossem perecíveis para efeitos do artº 185º/CPP;
11- O produto da venda não é sinalagma de qualquer modalidade de venda prevista na lei processual civil, para os fins do artº 185º/CPP;
12- Constitui insuficiência para a matéria de facto provada, nos termos do nº 2 do artº 410º/CPP o entendimento de que «a manutenção da apreensão sobre os bens em causa, atenta a natureza dos mesmos, não só acarretaria custos para o Estado como iria necessariamente determinar uma perda do valor»;
13- A apreensão é ilegal, inconstitucional, desnecessária, desadequada e desproporcional;
14- O despacho recorrido viola os princípios da culpa, da igualdade, do contraditório, da autonomia patrimonial, da proporcionalidade, da boa-fé e as legítimas expectativas da Massa Insolvente, aqui recorrente;
15- Em causa está uma apreensão, não um arresto nem uma caução económica, visando as apreensões apenas assegurar a conservação da prova ou objectos relacionados com o crime.
16- Mais se insurge contra o facto de o MP ter levantado a apreensão, ter permitido a venda pelo administrador da insolvência, servindo-se do administrador e provocando despesas de guarda e venda dos bens e agora vir a ser apreendido o saldo.

Vejamos:
O direito ao recurso não coincide com o direito à tutela jurisdicional, tout court, mas sim com o direito à impugnação, como concretização do direito ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional. Dito de outro modo: o direito ao acesso ao direito e à efectiva tutela jurisdicional concretiza-se, por princípio, pelo direito de acesso aos Tribunais, concebido enquanto direito à protecção, do particular, pelo Estado, e dever de prestação dessa protecção, por parte do Estado.
O direito ao recurso tem subjacente a ideia de que essa tutela, manifestada através das decisões judiciais, comporta, inexoravelmente, uma margem de erro ou imperfeição, da qual o particular há de poder salvaguardar-se. Nasce então o direito ao recurso, como direito à protecção judicial contra as próprias decisões judiciais.
Manifestamente, o nosso direito processual penal adoptou, em matéria de recursos, a orientação de que estes se regem pelo princípio do dispositivo, isto é, são as partes que dispõem do direito de impugnar ou não impugnar as decisões.
Sendo a manifestação de uma discordância em relação à decisão judicial proferida, o recurso é o remédio jurídico de que a parte dispõe, para ver essa decisão substituída por outra que, no seu entendimento, melhor tutele o seu direito. Consequentemente, ao recorrente cabe um duplo ónus: o de indicar com precisão, o que entende que foi mal julgado e o de propor a solução que entende que melhor se adequa à aplicação da lei.
A proposta de solução há de ser concreta, precisa e susceptível de rigorosa apreciação pelo Tribunal de recurso, quer na perspectiva dos factos em que se alicerça, quer na do direito cuja aplicação resultaria numa decisão mais conforme com a lei, ou com o direito, no entendimento do recorrente.
Ao Tribunal de recurso cabe apreciar questões, concretamente colocadas, já apreciadas no despacho recorrido e devidamente fundamentadas em termos de facto e de direito (artº 412º/CPP).
Tudo ponderado, resulta que é ónus da recorrente indicar com precisão qual o fundamento das diversas inconstitucionalidades, nulidades e ilegalidades que aponta à decisão recorrida.
Manifestamente, a recorrente não fundamenta a arguição de falta de fundamentação do despacho recorrido. Afirma-o por duas vezes, ao longo do corpo da motivação, sem qualquer reporte para matéria concreta (vide pontos 23 e 37 do corpo da motivação), sendo que se verifica que o despacho recorrido se mostra fundamentado de forma suficiente e necessária à compreensão da decisão, de tal forma que a própria recorrente manifesta um perfeito entendimento sobre o mesmo, em face dos termos do presente recurso.
A recorrente também não fundamenta as pretensas inconstitucionalidades invocadas. A invocação de uma inconstitucionalidade não se basta com a menção de que determinado despacho violou determinados artigos da CRP. É preciso explicar que segmento do normativo constitucional foi violado e em que termos o despacho recorrido colide com o comando nele contido, facto que a recorrente se dispensou.
Outro tanto se passa com as pretensas ilegalidades ou vícios. Dizer que a apreensão ou a afirmação de que «a sua venda sido autorizada pelo Ministério Público em conformidade com o art 185°. n.°s 1 e 2 do CPP, dado que a manutenção da apreensão sobre os bens em causa, atenta a natureza dos mesmos, não só não acarretaria custos para o Estado como iria necessariamente determinar uma perda do valor vai de encontro ao disposto nas alíneas b) e c) do art 410.° do CPP e é revelador de que foi cometida uma ilegalidade» é perfeitamente inócuo, em termos jurídicos (que é aquilo de que aqui se trata).
E mesmo se diga a propósito da pretensa violação dos princípios de direito.

Em suma: as questões colocadas supra elencadas sob os pontos 2, 7, 8, 13 e 14 são manifestamente improcedentes.
A recorrente confunde a apreensão no âmbito do processo penal com o regime da liquidação do património no âmbito do CIRE, quando em causa, neste recurso, está apenas aferir da legalidade da apreensão determinada no âmbito do processo em que é arguido E. G., a quem é imputado o facto de se ter apropriado de bens e valores pertencentes a outras massas insolventes e com elas ter financiado a sociedade L. – LP, S.A., adquirindo o património que permitiu o seu funcionamento.
Significa isto que todas as questões relativas ao cumprimento ou incumprimento de normas do CIRE e bem assim as questões colocadas com fundamento em eventuais reclamações de créditos por parte do MP são manifestamente improcedentes nos autos.
Aliás, no que a este último tipo de questões concerne diga-se que o pedido de pagamento de despesas com a venda ou manutenção dos bens inicialmente arrestados e convertidos nos valores depositados na conta em causa é também manifestamente improcedente no âmbito deste recurso, porque é questão que só se pode decidir no âmbito do despacho/sentença que decida de mérito sobre o processo em curso, e não nesta fase do processo, sendo que, além disso, é uma questão nova sobre a qual o Tribunal recorrido não se pronunciou nem foi chamado a pronunciar-se.
Em face do exposto, temos que também as questões supra elencadas em 2 e 7 são improcedentes, tal como é a invocação de ilegalidade com fundamento em que o Administrador de Insolvência não foi previamente ouvido, nos termos do artigo 81°, n.° 4 do CIRE. Em causa não está nenhuma reclamação de créditos por parte do MP, pelo que a invocação de inconstitucionalidades emergentes de tal entendimento também sempre seria improcedente, ainda que fundamentada estivesse.
A recorrente invoca ainda uma série de questões partindo do pressuposto que está em causa o cometimento de um crime por parte da insolvente e não do arguido E.. Tal entendimento contradiz expressa e frontalmente o entendimento exarado no despacho recorrido e bem assim no despacho que determinou o arresto, pelo que todas as consequências dele emergentes são, igualmente, manifestamente improcedentes. Está neste rol a questão supra elencada sob o ponto 1.
A recorrente não se constituiu assistente nestes autos. Logo, a sua legitimidade recursiva limita-se à defesa do seu interesse patrimonial no regresso do valor apreendido à massa insolvente (artº 401º/-d), parte final, do CPP). Não tem legitimidade, portanto, para discutir os entendimentos exarados pelo despacho recorrido relativos aos indícios da prática de crimes investigados nos autos, o que significa que as questões que coloca sob os pontos 4, 5 e 9 não são sequer discutíveis no âmbito deste recurso.
Entende a recorrente que o destino dos bens deve ser determinado em sentença. Tal entendimento não colide com o acto de que recorre, que não se pronunciou sobre tal tema, que é irrelevante para a questão de que conhece, a saber, a determinação de uma apreensão, necessariamente provisória. Essa apreensão, como é de lei, cessa pelo menos em face da prolação de sentença que, de acordo com os termos legais, terá que se pronunciar sobre o destino dos bens apreendidos, caso ela se mantenha na altura em que for proferida (artº 374º/3-c), do CPP). É inconsequente, portanto, a questão que coloca supra elencada sob o ponto 6.
Em causa nos autos não está a forma como se efectuou a venda dos bens e se obteve o valor arrestado, mas a validade da manutenção desse arresto em face da oposição oferecida pela recorrente, que é a única matéria sobre a qual o despacho recorrido se pronuncia. Ou seja, a questão de saber se os bens vendidos eram perecíveis ou não, se a venda respeitou o disposto no artº 185º/CPP, ou se o MP agiu de acordo com a lei extravasam o âmbito do despacho recorrido e como tal, são insusceptíveis de serem discutidas neste âmbito deste recurso. Improcedem também as questões colocadas sob os pontos 3, 10,11 e 16.
Entende o recorrente que constitui insuficiência para a matéria de facto provada, nos termos do nº 2 do artº 410º/CPP o entendimento de que «a manutenção da apreensão sobre os bens em causa, atenta a natureza dos mesmos, não só acarretaria custos para o Estado como iria necessariamente determinar uma perda do valor».
O vício invocado é apanágio da sentença e pressupõe sempre que a decisão de facto apurada não é bastante para a decisão de direito encontrada. O vício só ocorre quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação, por faltarem elementos necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição ([3]). Por outras palavras, aí, os factos provados são insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada, sendo que, no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o Tribunal poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa ([4]) e ([5]).
Em face da caracterização do vício não se vislumbra compatibilização possível entre a fundamentação invocada pela ora recorrente para o mesmo e a respectiva natureza. O que a recorrente faz não é mais do que uma manifestação de desacordo com a afirmação que reproduz, o que não é susceptível de fundamentar vício algum. Improcede, consequentemente, a questão colocada sob o ponto 12.
Resta portanto a apreciação da questão supra elencada sob o ponto 3 (de que o regime do DL 11/2007 de 19/01 não foi cumprido) e o entendimento subjacente ao recurso, mas não efectivamente explicitado, de que a apreensão é injustificada, por não se destinar à obtenção de prova, e «de que a apreensão não obedece aos pressupostos contidos no artº 181º/1, do CPP, porquanto nem o saldo bancário tem que ver com crime algum, nem tal se afigura interessante para a descoberta da verdade ou para a prova».
Começando pelo fim, diga-se que o alegado fundamento para o pressuposto incumprimento do disposto no artº 181º não tem nexo porque este normativo reporta-se à forma de procedimento das apreensões em estabelecimentos bancários e não aos fundamentos dessas apreensões, que é a questão aqui colocada. Além disso, repita-se, a recorrente não tem legitimidade para discutir a existência de indícios do crime imputado a terceiro, conforme supra referido.
Por outro lado, o regime do DL 11/2007, de 19/01 não tem aplicação quanto a apreensão de saldo de conta, na medida em que ele se aplica, única e exclusivamente, à avaliação, utilização, alienação e indemnização de bens apreendidos pelos órgãos de polícia criminal, sendo que em causa está um valor pecuniário e não um bem. A sua invocação só teria cabimento em face da apreensão dos bens que já foram vendidos, momento processual há muito ultrapassado.
A única questão com cabimento que o recurso pressupõe, em face da apreensão do saldo da conta, é saber se o meio foi o próprio.
***

Do despacho recorrido, tal como do despacho que determinou a apreensão, resulta que o dinheiro depositado na referida conta bancária resulta da venda de bens que foram apreendidos nos autos por terem sido adquiridos com recurso a valores objecto de peculato. Os bens foram vendidos e agora foi decretada a apreensão do produto da venda.

O MP promoveu a apreensão destes valores mediante a consideração de que são produto dos crimes de peculato praticados pelo arguido E. G. e de que importa assegurar o ressarcimento dos credores das massas insolventes anteriormente administradas pelo arguido, objecto da sua actuação criminosa. Ou seja a argumentação é dupla: de que os valores são produto da venda de bens obtidos mediante os crimes de peculato e de que urge garantir os credores prejudicados, das massas insolventes de onde eles foram retirados pelo arguido.

O despacho que determinou a apreensão fundamentou-se em que o produto da venda dos bens da insolvência da L. – LP, S.A., no valor de 675 mil euros, deverá ser declarado perdido a favor do Estado, por corresponder ao produto de um crime, importando ainda «evitar a deterioração dos bens já adquiridos por terceiro no âmbito da falência da L. – LP, S.A.».

No despacho recorrido manteve-se a apreensão com fundamento em que os bens apreendidos, por serem produto de um crime, deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado sendo que, tendo sido convertidos em dinheiro, deverá ser o valor correspondente igualmente confiscado.

Entende a recorrente que a apreensão é um meio de obtenção de prova e não de tutela de interesses patrimoniais sendo que foram estes que justificaram a apreensão que, nessa medida, é ilegal.

A questão remete-nos à questão controversa sobre saber se a apreensão é, ou não, o meio próprio de segurança dos valores, produto de bens obtidos mediante um crime, que podem vir a ser declarados perdidos a favor do Estado. Na verdade, esse foi o único fundamento invocado no despacho recorrido para manter a apreensão já decretada e é também o único fundamento perceptível dos contidos no despacho que determina a apreensão ([6]).

A apreensão, que tem o seu regime fixado no artº 178º/CPP, que se insere no título “Dos meios de Prova”, do livro “Da prova”, é, indiscutivelmente um meio de obtenção de prova. Já assim era entendida face ao disposto no artº 202º do CPP de 1929 e continua a sê-lo no actual CPP. Damos a função por indiscutida.

A questão é saber se ela tutela exclusivamente a necessidade de recolha e conservação de prova para efeitos de instrução do processo ou se tem aplicação ainda nas situações em que importa, única e exclusivamente, a segurança dos bens apreendidos, tendo em vista a sua disponibilização para efeitos de confisco, ou seja, como meio ao serviço da eventualidade da declaração de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, previstas nos artºs 109º e ss do CP.

Houve e há posições divergentes na doutrina e na jurisprudência.

Para quem defende a exclusividade da função de meio de prova a argumentação usada é, a par da colocação da norma na sistemática do CPP, o texto do artº 186º/1, do CPP, que determina que se levante a apreensão logo que ela se torne desnecessária para efeito de prova. Carlos da Silva Campos, ([7]) por exemplo, continua a entender também que a «finalidade de garantir a execução patrimonial – seja a favor do Estado, seja a favor de partes civis – não é justificação legal para a apreensão, nem fundamento para a sua validação ou manutenção. A apreensão -ou a validação da mesma -que tenha sido efectuada exclusivamente para garantir a execução de pena patrimonial (pena pecuniária ou perda de objectos) ou para garantir o ressarcimento de lesados é ilegal e passível de impugnação, devendo ser revogada, oficiosamente ou a requerimento. Com efeito, a finalidade de garantia patrimonial não é servida pelas medidas de apreensão, mas por outras medidas especialmente previstas para o efeito pelo CPP, designadamente a caução económica (227º) e o arresto preventivo (228º). A caução económica é independente e acumulável com a medida de apreensão, porque as suas finalidades não se confundem. Se necessário, a apreensão pode ser convertida em arresto preventivo (286º, nº 3). Se a apreensão pudesse ser mantida apenas com a finalidade de garantia patrimonial, sem se proceder ao arresto preventivo, então este último seria uma figura supérflua no CPP, o que não se pode admitir. De resto, a manutenção de uma apreensão sem finalidade probatória contraria directamente o disposto no artigo 186º, nº 1, do CPP: “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito”. A manutenção da apreensão para qualquer outro efeito é, por conseguinte ilegal.

Este mesmo regime já resultava do CPP de 1929, cujo artigo 208º estabelecia: “Os papéis e objectos que não forem necessários à instrução da causa não poderão ser apreendidos, e, se posteriormente se reconhecer que o não deviam ter sido, serão imediatamente restituídos a quem de direito” 4. Ou seja, a finalidade probatória é essencial quer para a justificação prévia do acto de apreensão, quer para a sua validação e manutenção. Os códigos novo e velho coincidem em dois aspectos essenciais: (i) a apreensão tem que ser necessária, e não apenas útil ou conveniente, o que significa, sendo possível obter ou conservar a prova por outro meio, a apreensão deve ser evitada ou revogada; (ii) verificando-se a “desnecessidade” para a prova, a apreensão deve ser revogada (“imediatamente”, dizia o CPP de 1929, e “logo”, diz o CPP em vigor). Esgotada a finalidade probatória, a privação de propriedade só pode manter-se por arresto preventivo ou por declaração de perda a favor do Estado, nos termos legais».
Do outro lado, há o entendimento de que a apreensão é meio de prova mas também meio de garantia da manutenção na esfera do Estado dos bens ou valores susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado.

Germano Marques da Silva começou por defender que a apreensão «é também» um meio de segurança de bens para garantir a execução «embora na grande maioria dos casos esses objectos sirvam também como meios de prova» ([8]). Desenvolvendo, afirma em actualização recente da obra que «a apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens. Nesta perspectiva a apreensão é um meio de segurança dos bens que tenham servido, ou estiveram destinados a servir, a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos ou direitos apreendidos à ordem do processo até à decisão final» ([9]).

Carmona da Mota referia, no ac. do STJ tirado no processo nº 158/03, da 5.ª Secção, de 13/02/2003, que «Meios de obtenção da prova (TítuloII do LivroII ['Da prova'] do CPP) são, para além dos 'exames', das 'revistas e buscas' e das 'escutas telefónicas', as 'apreensões' (arts. 178.º e segs. do CPP). E, para tal, 'são apreendidas, além de outros objectos 'susceptíveis de servir a prova', os que (previsivelmente) 'constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa' (art. 178.º, n.º 1).

II- Essa sua função instrumental demandará, obviamente, que os objectos apreendidos sejam restituídos, 'logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova', a quem de direito (art. 186.º, n.º 1).
III- Mas já os objectos susceptíveis de 'confisco' (arts. 109.º e segs. do CPP) só serão restituídos (e, nesse caso, 'logo que transite em julgado a sentença') se, nesta (art. 374.º, n.º 3, al. c) do CPP), não 'tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado' (art. 186.º, n.º 2)».
O Ac. da Relação de Guimarães, de 18/12/2006, tirado no processo 1837/06-1ª secção, defendeu a mesma tese, com fundamento no acórdão do STJ supra referido dizendo que «Por isso que se possa concluir, à semelhança do que já sucedia no âmbito do anterior Código de Processo Penal (cfr., v.g. Ary Elias da Costa, Linhas Gerais de Instrução Preparatória em Processo Penal, Coimbra, 1960, págs. 62-63) que a apreensão, embora se destine essencialmente a conservar provas reais, visa também garantir a efectivação da privação definitiva do bem (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, cit., pág. 217 e o Ac. da Rel. do Porto e 31-1-1990, BMJ n.º 393, pág. 655…).

Vejamos:
A interpretação de um texto jurídico exige, a par da compreensão do puro elemento literal, a compreensão das circunstâncias em que ele foi elaborado, sendo que não pode ser considerado um entendimento que não tenha correspondência com o texto exarado (aplicam-se as regras do artº 9º/CC). Isso significa que a interpretação do despacho deve buscar na sua letra o maior fundamento de significado - mas não se pode alhear do seu elemento lógico, sistemático e histórico.

Analisando o elemento histórico, diga-se que na vigência do CPP de 1929, a apreensão estava regulada no artº 202º que rezava que «serão apreendidas e examinadas todas as armas e instrumentos que serviram à infracção ou estavam destinadas para ela e bem assim todos os objectos que forem deixados pelos delinquentes no local do crime, ou quaisquer outros cujo exame seja necessário para a instrução».  Cavaleiro Ferreira defendia que «(…) a apreensão respeita somente à segurança de provas reais; os objectos da apreensão só servem ao tribunal como prova.

As provas reais devem encontrar-se à disposição do tribunal, porque a sua utilização comum pode fazer-lhes perder essa qualidade de provas; é indispensável, não somente garantir a sua existência, mas ainda mais evitar alterações que modifiquem ou diminuam o seu valor como prova. (…).

O fim que legitima a apreensão é a necessidade dos objectos apreendidos para a instrução. Ora a instrução abrange o conjunto de provas para fundamentar a acusação ou desfazer a suspeita inicial. Objectos necessários à instrução são, assim, as provas reais.

É também esta a interpretação que a origem histórica do art.º 202.º inculca; o art.º 905.º da Novíssima Reforma Judiciária tinha similar redacção, definindo somente objecto da apreensão, através da sua serventia «para o descobrimento da verdade», expressão que o art.: 202.º substituiu pela indicação da sua necessidade «para a instrução»,

Numa e outra disposições se verifica a definição dos objectos susceptíveis de apreensão pelo seu significado probatório, porque «servem para o descobrimento da verdade» ou porque o seu «exame é necessário para a instrução». (…)

É de notar, porém, que objecto material da infracção é a coisa sobre que incide a acção criminosa, e não o dinheiro ou valor monetário que eventualmente a substituam, pois que então se não tratará de apreensão de provas reais, mas ele garantia ele responsabilidade civil, função alheia à apreensão penal».

Na verdade, a norma era expressa ao referir-se a objectos – armas, instrumentos e objectos deixados no local do crime – podendo, com propriedade, dizer-se de que em causa estava tão-somente a tutela da manutenção de prova real do crime, o que não impedia que vozes divergentes não vissem aqui um meio de tutela dos fins de confisco (cf. Ary Elias da Costa, na obra citada).
Revogado o CPP de 1929, entrou em vigor o artº 178º, que à data da prolação do despacho mantinha o nº 1 inalterado, tendo-lhe sido aditados pela Lei 59/98, de 25/8, os actuais nºs 3 a 7. Actualmente todo o normativo foi alterado, assim como o disposto nos artºs 109 a 112º, tendo sido acrescentado um artigo 112º-A, sendo que tais alterações entraram em vigor no dia 31/05/2017, conforme resulta do artº 24º da Lei 30/2017, de 30/05.

O nº 1 do referido normativo, em vigor à data do despacho, passou a determinar que «são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova». Manifestamente este normativo apontou decisivamente no sentido de que as apreensões são visam só a manutenção de meios de prova “real”, pois que também abrangem valores e, entre eles, o produto da venda dos objectos com os quais se praticou o crime ou por este produzidos. Significa isto que a norma decidiu a controvérsia, determinando que apreensão passasse a funcionar, a par de meio de prova, como instrumento de garantia da segurança dos bens que tivessem servido ou se destinassem à prática do crime, assim como do produto respectivo - e quer esses bens fossem propriedade do agente do crime quer fossem de terceiro.

Na conformidade, o artº 110º/2, do CP, definia os termos da perda dos bens produzidos pela prática de um crime sempre que os respectivos titulares tivessem concorrido para a sua produção, dela retirando vantagens ou fossem adquiridos após a prática do ilícito, conhecendo o adquirente a sua proveniência.

Ora, é precisamente esta situação a que se encontra indiciada nos autos, o que determina a adequação do arresto decretado para a manutenção do produto dos bens produzidos pelo crime na esfera do Estado e da sua manutenção em face do pedido de revogação da medida por falta de fundamento para tanto.

Já depois de proferido o despacho em apreciação entrou em vigor a referida Lei 30/2017, de 30/05. E, se dúvidas ainda pudessem restar sobre a adequação da apreensão para a segurança do eventual confisco, elas mostram-se de todo dissipadas, porquanto por força da nova redacção se passou a permitir aos próprios órgãos de polícia criminal a apreensão de produtos de objectos provenientes da prática de um facto ilícito desde que susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado (actual nº 5 do artº 178º/CPP). De iure constituendo pode-se argumentar que há incompatibilidade entre este fim de apreensão e o disposto no artº 186º/1 do CPP, mas em face da tónica na função de prevenção de confisco, na prática, impõe-se a leitura daquele preceito em concordância também com a garantia desta finalidade.

Concluímos, pois, que a apreensão é o meio próprio para os fins de garantia da manutenção do produto do crime na esfera do Estado, dando suporte a um eventual confisco, a decidir unicamente em sede de sentença.

Não tendo a recorrente logrado demonstrar a ilegalidade ou desadequação da apreensão em face das circunstâncias do caso concreto, resta a manutenção do despacho recorrido, por ter sido usado o meio legal para garantia dos fins que fundamentaram a referida apreensão.
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V–Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça de 4 ucs.



Lisboa, 25/10/2017



Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
                                                                                             
      
                            
(Maria da Graça M. P. dos Santos Silva)                                  
(A.Augusto Lourenço)


[1]Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em  B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em  B.M.J. 477º-271.
[2]Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.
[3]Cf. Ac. STJ de 15.1.98, proc.1075/97, acessível em www.dgsi.pt.
[4]Cf. Acs. do STJ de 20.04.2006, no proc.nº.06P363, e de 16.04.1998, em www.dgsi.pt;
[5]Cf. Ac.STJ de 2.6.99, proc.288/99, acessível em www.dgsi.pt.
[6]Mal-grado nosso, não se entende o que se quer dizer com o «evitar a deterioração dos bens já adquiridos por terceiro no âmbito da falência da Lavapor», atendendo a que os bens em causa foram vendidos e a apreensão determinada conteve-se nos estritos limites dos valores objecto do depósito da conta bancária.
[7]Em «Apreensão e propriedade considerações sobre as medidas de apreensão em processo penal», verbo juridico, outubro de 2006, em http://www.verbojuridico.net/doutrina/penal/penal_apreensaopropriedade.pdfem 
[8]Em Curso de Processo penal, II, Editorial Verbo, 2008,4ª edição revista e actualizada, pág 242.
[9]Cf. Código de Processo Penal anotado por Henriques Gaspar e
outros, Almedina, 2014, pág. 757.