Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
121/16.8YHLSB.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ACTA DE JULGAMENTO
FALSIDADE
MARCAS
FIRMA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Constitui arguição de falsidade da ata, a ser deduzida no prazo de 10 dias após se ter tomado conhecimento da mesma, a alegação de que na assentada do depoimento de parte não consta corretamente o que foi ditado pelo juiz que presidiu à audiência final e o que foi declarado pela parte.
II. A exceção de preclusão por tolerância, literalmente prevista para as marcas no art.º 267.º do CPI, também é aplicável às firmas.
III. Tal exceção improcede, aplicando-se o prazo regra de 10 anos previsto no art.º 266.º do CPI, se, conforme ocorreu no caso sub judice, o registo da marca posterior tiver sido efetuado de má-fé, isto é, com o conhecimento de que havia sinal distintivo, titulado por outrem, idêntico ou confundível com a marca a registar e/ou, como também ocorreu no caso sub judice, se a marca posterior nunca foi usada pelo respetivo titular, mas sim pelo titular do sinal do comércio anterior, no caso pela sociedade titular da firma (E..., Lda.) com a qual a marca posterior (E..., Lda.) se confundia.
IV. A condenação por litigância de má-fé pressupõe um juízo de censura reportado à conduta processual da parte, não devendo ser confundido ou contaminado com apreciações acerca da conduta extrajudicial daquela, incluindo a propositura de outras ações contra a mesma.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 04.4.2016 Juliana intentou no Tribunal da Propriedade Intelectual ação declarativa de condenação contra E..., Lda.
A A. alegou, em síntese, que:
- É titular da marca nº 43... – E..., Lda.;
- Tal marca foi registada a 18 de Setembro de 2008, tendo o pedido sido efetuado em 28/05/2008, pelo seu pai Humberto (…);
- Por escritura pública de doação, outorgada a 08/08/2014, foi-lhe transmitida a mencionada marca pelo seu pai;
- A R. foi constituída em 2004 com a denominação social “E..., Lda.” e tem por objeto o fabrico, comércio, importação e exportação de artigos ortopédicos, nomeadamente colchões e poltronas;
- O fundador da R. foi o seu pai;
- A R. tem um capital social de € 250.000,00 repartidos pelos sócios Bruno (…), com uma quota com o valor nominal de € 125.000,00, Ricardo (…), com uma quota com o valor nominal de € 37.500,00 e a A. com uma quota no valor nominal de € 50.000,00;
- A 23/04/2010 a A. foi designada gerente e por deliberação de 11/09/2015 foi destituída de gerente;
- Atualmente os seus primos Bruno e Ricardo são sócios e gerentes, mantendo-se a A. apenas sócia da R.
- A A. intentou 4 ações judiciais contra a R. em virtude de comportamentos ilícitos que têm vindo a ser perpetrados;
- Enviou carta à sociedade interpelando-a para deixar de usar a marca, mas esta respondeu dizendo pretender continuar a usá-la;
- Pretende refazer a sua vida usando no giro comercial a marca de que é titular;
- A A. tem usado a marca de forma ininterrupta desde 08/08/2014;
- A A. devido à atuação da R. entrou em estado depressivo,
- A R. ao utilizar uma marca da qual não é titular está a praticar atos de concorrência desleal.
A A. concluiu pedindo que:
a) A R. seja condenada a não usar, imitar ou usurpar, seja de que forma for e independentemente do meio usado, a marca nacional n.º 43... “E..., Lda.”;
b) A R. seja condenada a não praticar quaisquer atos de concorrência desleal, nomeadamente a prática de qualquer ato que permita associar a marca “E..., Lda.” à sua pessoa e às atividades que promove e desenvolve;
c) Seja anulada a firma da R. e a parte do seu contrato social que a insere, bem como cancelado o registo dessa denominação no Registo Nacional das Pessoas Coletivas e na Conservatória do Registo Comercial;
d) A R. seja condenada a pagar uma indemnização não inferior a € 10.000,00 por perdas e danos a liquidar em execução de sentença;
e) A R. seja condenada a pagar à A. uma indemnização pela prática de atos de concorrência desleal, que se computa em € 7.000,00,
f) Se fixe uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 100,00 por cada dia em que se mantenham os atos lesivos aos direitos de propriedade industrial e intelectual da A. a R.
A R. contestou a ação, alegando, em síntese, que:
- Esta é a 5ª ação intentada pela A. desde que foi destituída do cargo de gerente da R., sendo que todas têm o único fito de importunar a R. com invocação de teorias da conspiração;
- Na sua PI a A. limita-se a tecer considerações vagas e imprecisas, nada concretizando, pelo que a mesma é inepta;
- Há muito que caducou o direito de A. pedir a anulação da denominação social da R.;
- A A. formula pedidos genéricos, pelo que a R. deve ser absolvida dos mesmos por serem inadmissíveis;
- Não existe qualquer fundamento para o pedido indemnizatório;
- A R., desde a sua constituição, em 2004, que usa a denominação social “E..., Lda.”, bem como a respetiva marca, a qual apenas foi registada em 2008 em nome pessoal do Sr. Humberto, por razões alheias à R.;
- O Sr. Humberto ficou surpreendido quando foi confrontado com a doação da marca à sua filha, tendo dito nunca a ter efetuado;
- O Sr. Humberto apresentou queixa-crime contra a A. e revogou todas as procurações que lhe tinha outorgado;
- Independentemente da validade do ato da escritura, o certo é que o registo da marca é posterior ao da firma;
- A A. apenas comunicou o registo da marca a seu favor após ter sido destituída de gerente, nunca tendo até tal data se queixado do uso que a R. fazia da marca, pelo que está em abuso de direito com esta sua atuação;
- A R. foi destituída da gerência pelo facto de estar envolvida na venda de colchões da marca “M...” da sua mãe a padrasto;
- A A. litiga de má fé.
Em reconvenção a R. pediu que a marca registada em nome da A. fosse anulada.
A A. respondeu à reconvenção e às exceções, pugnando pela improcedência destas e daquela, arguindo, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 267.º do CPI, a caducidade do direito da R. requerer a anulação do registo da aludida marca.
A A. foi convidada a apresentar uma PI aperfeiçoada, tendo-a apresentado a fls. 531 e tendo a R. apresentado nova contestação a fls. 562.
Procedeu-se à elaboração de despacho saneador, onde foram julgadas improcedentes as exceções da ineptidão da PI, da ilegitimidade e falta de interesse em agir da A., da nulidade da PI por comportar pedidos genéricos e da litispendência no que concerne ao pedido indemnizatório peticionado.
Foi relegada para a sentença a apreciação da exceção da caducidade do pedido de anulação da firma.
Foi admitido o pedido reconvencional de anulação da marca da A.
Foram fixados o objeto do litígio e os temas da prova.
Realizou-se audiência final e em 22.02.2018 foi proferida sentença em que se julgou a ação improcedente e, consequentemente, se absolveu a R. dos pedidos, julgou-se a reconvenção procedente e, consequentemente, se anulou a marca nacional n.º 43... “E..., Lda.” registada em nome de Juliana (…) e se condenou a A., como litigante de má-fé, no pagamento da multa de 6 UCs.
A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. Inconformada com a Sentença proferida, a Autora vem dela interpor recurso, quanto à matéria de facto e de Direito, almejando, em suma, a sua revogação.
2. Desde logo, refira-se que, no que respeita à factualidade dada como provada, a prova produzida leva, indubitavelmente, a que alguns dos factos dados como provados não o devessem ter sido, impondo-se, como tal, a alteração das respostas à matéria de facto em conformidade com o que resultou da prova.
3. O mesmo se diga da matéria de facto dada como não provada que, como se demonstrou supra, deveria ter sido dada como provada.
4. Por outro lado, mesmo mantendo-se as repostas à matéria de facto, a correcta consideração dos elementos de facto e de Direito deveria ter levado o tribunal a quo a alcançar, inexoravelmente, conclusão diversa.
Almejando uma melhor compreensão do exposto,
5. no que concerne à matéria de facto dada como provada pela douta Sentença de que ora se recorre, verifica-se que ocorreu erro de julgamento notório e grave que conduz, consequentemente, à alteração da matéria de facto, impondo uma decisão diversa da proferida, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
6. Com efeito, segundo o Ponto primeiro da factualidade provada, o Sr. Humberto (…), pai da ora Apelante, registou a marca dos autos a 18/09/2008.
7. Porém, e como resulta por demais evidente da certidão permanente junta como Documento n.º 5 da petição inicial, o Sr. Bruno e o Sr. Ricardo (…), apenas se tornaram sócios da Sociedade dos autos a 29/07/2009.
8. O que significa que, quando os Sr.s Ricardo e Bruno (…) adquirem a qualidade de sócios, já a marca se encontra em nome do Sr. Humberto há quase um ano.
9. Para além de que, no momento da doação efectuada pelo Sr. Humberto à sua filha e aqui Apelante, já a marca era detida pelo Sr. Humberto há 6 anos.
Além do mais,
10. a Sentença em crise deu como provado, “18 – A A. apenas comunicou à R. e seu pai de que era a nova titular da marca E..., Lda. após ter sido destituída de gerente.”
11. Nesta senda, no que toca ao ónus estatuído no artigo 640.º do Código de Processo Civil, relativamente à impugnação da matéria de facto, reveste-se da maior importância atentar no Depoimento de Parte apresentado pela Autora.
12. Resulta da Acta de Audiência de Discussão e Julgamento o seguinte:
- A Autora afirmou que apenas comunicou formalmente à ré e ao seu pai que era titular da marca por carta enviada após ter deixado de trabalhar na sociedade (art. 124º).
13. O que se encontra claramente em contradição com a assentada ditada pela Mmª Juiz e que acima se reproduziu, tratando-se de um vício da referida Acta.
14. Nestes termos, encontra-se sobejamente demonstrado que a Ré e o pai da Apelante sabiam ou não podiam desconhecer que a marca era sua desde Agosto de 2014. VEJA-SE:
“Eu penso que eles já sabiam antes, mas eles foram confrontados FORMALMENTE por carta quando eu deixei de lá ser sócia, [*corrigido*] deixei de lá trabalhar,(…)” (ficheiro áudio 20180122110310_5631_2244352 – 22.01.2018) (tempo 00h32m:24 a 00h33m:09s do depoimento da testemunha)
“Meritissima Juiz: A Senhora alguma vez acedeu ao registo do INPI? Enquanto não houve doação da marca?
Parte: Fui.
Meritissima Juiz: Foi? Fazer o quê?
Parte: Eu e os meus primos também. Nós altura tínhamos um problema com uma empresa concorrente na Trofa chamada F... e por causa desse problema, os meus primos e eu, não é, tivemos a preocupação de ver se a marca estava registada em nome da E..., Lda. ou em nome do meu pai, em nome de alguém, se existia o registo da marca porque tinhamos medo que o dono da empresa F... registasse ele a marca numa forma de nos causar mais confusão e problemas (…)”(ficheiro áudio 20180122110310_5631_2244352 – 22.01.2018) (tempo 00h34m:21 a 00h36m:25s do depoimento da testemunha.
15. Nesta senda, destaque ainda para o ponto 6 da matéria de facto dada como provada que desde já se impugna para todos os efeitos legais. Estatuiu o douto Tribunal que “Em 29/07/2008 foi alterado, pela 2.ª vez, o contrato de sociedade, tendo nesta data ficado sócio para além de Humberto, o Bruno e Ricardo, tendo este último ficado com a gerência”.
16. Ora, dando cumprimento ao ónus consagrado no artigo 640.º do CPC, veja-se o documento 5 junto com a Petição Inicial, através do qual se conclui que o Sr. Bruno e o Sr. Ricardo, apenas se tornaram sócios da Sociedade dos autos a 29/07/2009.
17. Doutra banda, foi dado como não provado no Ponto II pelo Tribunal a quo, “– Que fosse clara a vontade de Humberto (…) em passar a marca E..., Lda. para nome pessoal da A.”,
18. sendo igualmente censurável o andamento do Tribunal a quo neste trecho, porquanto tal negócio jurídico de doação apenas é colocado em causa pelos depoimentos dos actuais Sócios e Gerentes Bruno e Ricardo (…) e pela testemunha Laura (…). Aqueles dois com claro interesse directo na causa e esta última com interesse directo na questão das procurações.
Neste seguimento,
19. está a Apelante em crer que toda a factualidade supra aludida condicionou, igualmente, o julgamento do Tribunal a quo no que tange ao pedido reconvencional de anulação da marca detida pela Apelante.
20. Antes de mais, esqueceu-se o douto Tribunal a quo de se debruçar sobre a questão da caducidade do direito à anulação por parte da Ré que, em boa verdade, precludira em 2013.
21. Ora, como o Sr. Humberto (…), conforme resulta da factualidade provada, registou em seu nome a marca dos autos em Setembro de 2008, numa altura em que era sócio e gerente único da Ré, esta última tinha, a partir desse momento, 10 anos para proceder à anulação do registo posterior ao abrigo do n.º 2 do artigo 304.º - R do CPI.
22. Coisa que não fez, nem o faria, porquanto nessa altura a condução da empresa estava entregue às mãos do Sr. Humberto, tendo este usado a sua marca que recentemente havia registado através da sociedade.
23. Assim, tolerou a Ré, desde 2008, que a marca registada posterior ao registo da firma fosse utilizada.
24. Por seu turno, quando em 29/07/2009 os Sr.s Bruno e Ricardo (…) passam a integrar a Ré, e em Novembro desse mesmo ano, integram igualmente a gerência, dificilmente se crê que estes não soubessem do registo da marca pelo Sr. Humberto.
25. Mesmo assim, certamente teriam ficado a saber em virtude do processo judicial com a empresa F....
26. Em síntese, o conhecimento da Ré – saliente-se, pessoa colectiva – quanto ao registo da marca, não se confunde com o conhecimento pessoal e individual de cada uma das pessoas que integram a gerência.
27. Aliás, sempre se diga que a Ré sempre tolerou o uso da marca.
28. Desta forma, não tendo o Sr. Ricardo ou o Sr. Bruno (…), em momento algum, intentado a acção de anulação no prazo de 5 anos o registo, ou seja, até 2013, precludiu o direito da Ré em anular o registo da marca, marca essa que a Apelante à imagem do seu pai, usava regularmente através da Ré de quem, reitere-se era e é sócia, sendo, como tal, irrelevante para efeitos de contagem de prazo a data da doação à Autora.
In fine,
29. no que concerne à condenação em litigância de má-fé, entendeu a Mmª Juiz condenar a autora como litigante de má-fé, no pagamento da multa de 6 UC’s.
30. Porém, não foram trazidos ao processo, nem provados factos que demonstrem que a Autora tenha agido com dolo ou negligência trazendo provas falsas para o processo, em consonância com o prescrito no artigo 542.º do Código de Processo Civil. Para além de que, sempre se diga que a defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável.
31. De facto, de acordo com o artigo 542.º do Código de Processo Civil, a parte age de má-fé ou com culpa, se tinha consciência de que não tinha razão e não ponderou com prudência as suas pretensas razões, situação que, de todo em todo, não se verificou, porquanto a Recorrente invocou factos, argumentou-os e diligenciou no sentido de os provar, não tendo, pura e simplesmente, sido bem sucedida.
Por outro lado,
32. o valor da multa fixado em 6 UC’s traduz uma clara afronta não só ao previsto no artigo 27.º do RCP, porquanto o seu n.º 4 manda a que se atenda à situação económica do agente, como também à repercussão da condenação no património deste, o que no caso em apreço não foi minimamente ponderado, vício que desde já se invoca para todos os efeitos legais e que de per si estatui desde logo a revogação da decisão proferida.
33. Concomitantemente, é clara a violação do artigo 20.º, n.º1 da CRP que o princípio da tutela jurisdicional efectiva, in concretu, na impossibilidade de denegação de justiça por insuficiência económica.
34. Assim sendo, no que concerne à questão do Direito, o douto Tribunal recorrido violou, entre outros, os artigos 405.º, n.º, 406.º, n.º 1, 817.º, 1154.º, 1156.º, 1157.º e 1167.º, alíneas b) e c), todos do Código Civil e artigo 542.º do Código de Processo Civil.
A apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada.
A R. contra-alegou, sem formular conclusões, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas neste recurso, tal como emergem das respetivas conclusões, são as seguintes: impugnação da matéria de facto; improcedência da reconvenção; inexistência de litigância de má-fé por parte da apelante.
Primeira questão (impugnação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1 – A marca nacional nº 43... foi registada em 18/09/2008 por Humberto (…) para assinalar na Classificação Internacional de Nice os seguintes produtos: Classe 10: “produtos ortopédicos”, na classe 20: “produtos para o lar” e na classe 35: “prestação de serviços comerciais, marketing e publicidade”.
2 – Em 08/08/2014 a A. requereu o registo da marca nº 43... a seu favor por transmissão de Humberto (…).
3- Em 08/08/2014 foi outorgada uma escritura pública denominada de “doação”, mas em que a A., em representação de seu pai declara que este lhe vende a marca nº 43... “E..., Lda.”, pelo preço de €1.000,00, os quais foram recebidos e de que dá quitação.
4 - A R. é uma sociedade comercial que foi constituída em 16/07/2004 e que tem por objecto social o fabrico, comércio, importação e exportação de artigos ortopédicos, nomeadamente colchões e poltronas.
5 – Inicialmente os sócios eram David (…) e Humberto (…).
6 – Em 29/07/2008 foi alterado, pela 2ª vez, o contrato de sociedade, tendo nesta data ficado sócios para além de Humberto (…), o Bruno (…) e Ricardo (…), tendo este último ficado com a gerência.
7 – Em 17/11/2009 Bruno (…) foi também designado gerente.
8 – Em 01/05/2010 foi efectuado o registo da A. como sócia da sociedade, tendo também sido nomeada gerente.
9 – Em 23/09/2015 foi a A. destituída da gerência da sociedade R.
10 – Actualmente a sociedade R. tem um capital social de €250.000,00 repartidos por Bruno (…), com uma quota nominal de €125.000,00, Ricardo (…), com duas quotas com o valor de €37.500,00 cada e a A. com uma quota de valor nominal de €50.000,00.
11 – Bruno (…) e Ricardo (…) são os gerentes da sociedade R.
12 – A A., para além desta, intentou 4 acções judiciais contra a R.:
- P. 229/16.0T8PVZ em que pede a indemnização de €94.000,00 a título de indemnização por inexistência de justa causa para a sua destituição como gerente, - P. 3645/15.0T8STS em que os gerentes da R. são réus e em que é pedida a realização de Inquérito Judicial.
- P. 7361/15.5T8MAI, em que também são réus os gerentes da R. e em que é pedido que seja reconhecido e declarado que a A. foi trabalhadora da R. desde 01/09/2005 e que seja declarado ilícito o seu despedimento.
- P. 3334/15.6T8STS em que é pedida que seja decretada a nulidade ou anulabilidade das deliberações da sociedade tomadas em Assembleia Geral que levaram à destituição da A. como gerente.
13 – Humberto por documento datado de 13/10/2015 revogou todas as procurações passadas à A. e apresentou queixa contra a mesma.
14 – A R. utiliza a marca “E..., Lda.” desde 2004.
15 – Bruno (…) através da sua empresa “FA..., Lda.” compra componentes eléctricos que fazem massagens em colchões e vende-os à R.
16 – E..., Lda. é uma expressão usada, de forma séria, nos últimos 12 anos, no mercado nacional conhecida e associada à R.
17 – A escritura denominada de “doação” foi efectuada em Santa Maria da Feira para que a A. não tivesse de ser confrontada com os seus primos/sócios da R.
18 – A A. apenas comunicou à R. e seu pai de que era a nova titular da marca E..., Lda. após ter sido destituída de gerente.
19 – A A. apenas utiliza a marca E..., Lda. enquanto sócia da R., não a utilizando pessoalmente.
20 – A. A. registou a marca para trabalhar na área ou vendê-la juntamente com a sua quota.
21 – Em 2015 a R. recebe carta da A. a pedir que deixem de utilizar a marca “E..., Lda.”.
22 – A A. foi estagiária da advogada Lara (…) entre 2010 e 2015.
23 – A Dra. Lara (…) prestou serviços à R. entre 2007 e 2014/2015.
24 – A marca foi registada em nome de Humberto (…), mas foi paga pela sociedade R.
25- As duas únicas procurações redigidas por Lara (…) para que a A. pudesse representar o pai Humberto prendiam-se com a sua representação nas Assembleias gerais e para podê-lo representar junto dos bancos.
26 – Humberto (…) teve um AVC em 2011, o qual não lhe afectou a função cognitiva.
27 – A marca só foi registada em 2008 na sequência da saída do sócio de Humberto (…), para que este a não usasse.
O tribunal a quo enunciou ainda, na sentença, os seguintes
Factos não provados
i – Que os dois gerentes da R. tenham praticado qualquer acto com vista ao afastamento da A. enquanto trabalhadora e gerente da R.
ii – Que fosse clara a vontade de Humberto (…) em passar a marca E..., Lda. para nome pessoal da A.
iii – Que Humberto (…) tivesse transmitido essa vontade de transmissão da marca aos gerentes da R.
O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC).
Neste recurso a apelante insurge-se contra o teor dos n.º 6 e 18 dos factos provados, que pretende sejam alterados, e manifesta discordância contra o dado como não provado sob o n.º ii.
Vejamos.
Sob o n.º 6 foi dado como provado o seguinte:
Em 29/07/2008 foi alterado, pela 2ª vez, o contrato de sociedade, tendo nesta data ficado sócios para além de Humberto (…), o Bruno (…) e Ricardo (…), tendo este último ficado com a gerência”.
A apelante entende que deve dar-se como provado que a alteração do contrato de sociedade ocorreu em 29/07/2009, sendo essa a data que consta na certidão permanente, junta com a petição inicial como documento n.º 5.
A apelada admite que a data correta é a indicada pela apelante, estando em causa, na sentença, um simples erro material, que deve ser corrigido, sem necessidade de impugnação da decisão de facto.
Resulta da certidão permanente documentada a fls 47 dos autos que a referida alteração da constituição societária da R. ocorreu em 29.07.2009, e não em 29.07.2008, conforme, por manifesto lapso material, consta na sentença.
Haverá, pois, que corrigir tal lapso material (art.º 614.º do CPC).
Quanto ao n.º 18 da matéria de facto, na sentença está provado o seguinte:
A A. apenas comunicou à R. e seu pai de que era a nova titular da marca E..., Lda. após ter sido destituída de gerente.”
A apelante defende que deve dar-se como provado que “A A. comunicou formalmente à R. por intermédio de carta de que era a nova titular da marca E..., Lda. após ter sido destituída de gerente.”
Para tal, a apelante invoca o depoimento prestado pela R. na audiência final.
Na fundamentação da decisão de facto, o tribunal a quo suporta a sua convicção, quanto a este facto, no “depoimento de parte da Ré.”
Conforme notam tanto a apelante como a apelada, na ata da audiência final consta a redução a escrito do depoimento da A., na parte confessória, nos termos do art.º 463.º do CPC.
Aí consta, a dado trecho, e em relação ao que fora alegado pela R. no art.º 124.º da contestação (“sendo certo que [a A.] nunca comunicou à Ré, ou aos seus gerentes, que a alegada titularidade da marca registada era sua”), o seguinte:
A autora afirmou que apenas comunicou formalmente à ré e ao seu pai que era titular da marca por carta enviada após ter deixado de trabalhar na sociedade ré (art.º 124.º).”
A apelante alega que o que consta na ata não corresponde ao que pela Exm.ª juíza foi ditado para constar na assentada, sendo certo que também não corresponde ao declarado pela A. no depoimento de parte. A disparidade, segundo a apelante, está no facto de nem a A., nem a meritíssima juíza, ao ditar a assentada, terem mencionado o pai da A., mas sim os primos da A., como destinatários da aludida comunicação formal.
Vejamos.
As atas da audiência final são documentos públicos, qualificáveis como documentos autênticos, nos termos dos artigos 363.º n.º 2 e 369.º n.º 1 do Código Civil. Assim, fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que nele são atestados com base na perceção da entidade documentadora: art.º 371.º n.º 1 do Código Civil. Essa força probatória só pode ser ilidida com base na falsidade do documento (n.º 1 do art.º 372.º do Código Civil). A falsidade do documento autêntico ocorre, segundo o legislador, “quando nele se atesta como tendo sido objeto da perceção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer ato que na realidade o não foi” (n.º 2 do art.º 372.º do CC).
Ora, se na ata se atesta que a parte fez declarações que efetivamente não fez, está-se perante uma situação de falsidade (parcial) da ata.
No que diz respeito a atos praticados no âmbito do CPC, nomeadamente a elaboração de ata de audiência final, no n.º 2 do art.º 451.º do CPC estipula-se que “a falsidade de qualquer outro ato judicial deve ser arguida no prazo de 10 dias, a contar daquele em que deva entender-se que a parte teve conhecimento do ato.”
A audiência em causa ocorreu em 22.01.2018. Devendo a secretaria disponibilizar a gravação da audiência no prazo de dois dias após o ato (n.º 3 do art.º 155.º do CPC), e sendo de cinco dias o prazo geral para a prática dos atos que competem à secretaria (art.º 162.º n.º 1 do CPC), em princípio a ata deveria estar acessível à parte entre 24 e 29 de janeiro de 2018. Assim, caberia ao apelante arguir a falsidade da ata até, no máximo, 08 de fevereiro de 2018 – recaindo sobre ele arguir qualquer facto que justificasse outro termo final.
Conclui-se que a invocação da aludida desconformidade da ata é extemporânea (a apelação foi interposta em 16.4.2018) e, além disso, formalmente errada (pois deveria ter sido arguida mediante incidente de falsidade), pelo que não cabe alterar o que consta na ata.
Contudo, o tribunal a quo não invocou, para fundamentar o aludido facto n.º 18 da matéria de facto, a confissão judicial provocada formalizada na aludida assentada, mas sim, de uma forma mais abrangente, o depoimento de parte da Ré.
Ora, esse depoimento foi gravado, e é nessa gravação que se funda a impugnação do n.º 18 da matéria de facto.
Como se disse, o n.º 18 da matéria de facto reporta-se ao alegado pela R. no art.º 124.º da contestação. E, nessa alegação, a R. apenas se refere ao momento em que a A. terá comunicado à Ré ou aos seus gerentes, que a aludida marca era dela, A.. Aí nada se refere quanto a uma omissão de comunicação ao pai da A.. Ouvida a gravação do depoimento prestado pela A. na audiência, verifica-se que esta declarou que só informara formalmente os primos (gerentes da R.), por meio de carta, após ter sido destituída da gerência. Perguntada se os teria informado, antes, informalmente, não o disse, limitando-se a afirmar que eles, porém, sabiam. Mas não explicou como, nem porquê – sendo por demais improvável que tal conhecimento antecipado, a existir, proviesse da A., uma vez que esta mesmo esclareceu que foi fazer a escritura de doação da marca em Santa Maria da Feira, e não na Trofa, porque queria evitar que os primos tivessem conhecimento e a confrontassem. Nada disse quanto à comunicação ao seu pai.
Pelo exposto, entendemos que a impugnação da redação do n.º 18 da matéria de facto deve proceder parcialmente, passando a ter a seguinte redação:
A A. apenas comunicou à R. que era a nova titular da marca E..., Lda. após ter sido destituída de gerente”.
Quanto ao facto não provado identificado sob o n.º ii:
Aí não se deu como provado “Que fosse clara a vontade de Humberto em passar a marca E..., Lda. para nome pessoal da A.”
Na sentença explica-se a falha da respetiva prova, bem como dos outros factos que enfileiram entre os factos não provados, “pela inexistência de qualquer prova nesse sentido, sendo que da prova produzida o tribunal tem dúvidas sobre as circunstâncias em que ocorreu a outorga da procuração que habilitou a A. a celebrar a escritura denominada de “doação”, mas cujo teor é de venda.”
A apelante, embora manifeste a sua discordância quanto a este ponto de facto, não sugere o sentido que, no seu entender, deveria ter sido adotado, nem indica qual o meio de prova que o deveria sustentar.
Assim, nesta parte, a impugnação da decisão de facto é improcedente.
Em suma:
a) Altera-se, por enfermar de lapso material, o n.º 6 da matéria de facto: onde nele se lê 29.07.2008, deve ler-se 29.07.2009;
b) O n.º 18 da matéria de facto passará a ter a seguinte redação:
A A. apenas comunicou à R. que era a nova titular da marca E..., Lda. após ter sido destituída de gerente”.
No mais, a impugnação da decisão de facto é improcedente.
Segunda questão (improcedência da reconvenção)
Os comerciantes são obrigados a adotar uma firma (art.º 18.º do Código Comercial).
Nos contratos constitutivos de sociedades comerciais, seja qual for o seu tipo, deve constar a respetiva firma (art.º 9.º n.º 1 alínea c) do Código das Sociedades Comerciais – CSC).
Segundo o n.º 2 do art.º 10.º do CSC, quando a firma da sociedade for exclusivamente composta com nomes ou firmas de sócios (a chamada “firma-nome”), “não pode ser idêntica à firma registada de outra sociedade, ou por tal forma semelhante que possa induzir em erro.”
Na formulação do n.º 3 mesmo artigo, respeitante às usualmente designadas “firma-denominação” e “firma-mista”, “a firma da sociedade constituída por denominação particular ou por denominação e nome ou firma de sócio não pode ser idêntica à firma registada de outra sociedade, ou por tal forma semelhante que possa induzir em erro.”
As firmas estão sujeitas a registo, constitutivo do direito ao seu uso exclusivo (art.º 3.º do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas - RRNPC, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 129/98, de 13.5, com as alterações publicitadas).
Cabe ao Registo Nacional de Pessoas Coletivas organizar e gerir o ficheiro central de pessoas coletivas (FCPC), onde são inscritas, nomeadamente, as respetivas firmas, bem como apreciar a sua admissibilidade (artigos 1.º a 3.º do RRNPC).
A atribuição das firmas está sujeita à observância dos princípios da verdade e da novidade (art.º 3.º do RRNPC).
No que concerne ao princípio da verdade, estipula-se no n.º 1 do art.º 32.º do RRNPC que “os elementos componentes das firmas e denominações devem ser verdadeiros e não induzir em erro sobre a identificação, natureza ou actividade do seu titular”. No n.º 2 do mesmo artigo acrescenta-se que “os elementos característicos das firmas e denominações, ainda quando constituídos por designações de fantasia, siglas ou composições, não podem sugerir actividade diferente da que constitui o objecto social.
Em relação ao princípio da novidade, que é o que está em questão neste recurso, é o seguinte o teor do art.º 32.º do RRNPC, na parte que ora releva:
Princípio da novidade
1 - As firmas e denominações devem ser distintas e não susceptíveis de confusão ou erro com as registadas ou licenciadas no mesmo âmbito de exclusividade, mesmo quando a lei permita a inclusão de elementos utilizados por outras já registadas, ou com designações de instituições notoriamente conhecidas.
2 - Os juízos sobre a distinção e a não susceptibilidade de confusão ou erro devem ter em conta o tipo de pessoa, o seu domicílio ou sede, a afinidade ou proximidade das suas actividades e o âmbito territorial destas.
3 - Não são admitidas denominações constituídas exclusivamente por vocábulos de uso corrente que permitam identificar ou se relacionem com actividade, técnica ou produto, bem como topónimos e qualquer indicação de proveniência geográfica.
(…)”
O registo definitivo da firma confere o direito ao seu uso exclusivo no âmbito territorial especialmente definido para a entidade em causa (n.º 1 do art.º 35.º).
No caso das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, têm direito ao uso exclusivo da sua firma em todo o território nacional (n.º 2 do art.º 37.º).
Os despachos de admissão (ou de recusa) de firma podem ser alvo de recurso hierárquico para o presidente do IRN, IP ou de impugnação judicial (art.º 63.º n.º 1 alínea a) do RRNPC).
No caso de impugnação judicial, o diretor do RNPC poderá reparar ou sustentar o despacho. Se o sustentar, o processo será remetido para o tribunal competente (art.º 70.º do RRNPC). Esse tribunal é o Tribunal da Propriedade Intelectual, sediado em Lisboa (art.º 111.º n.º 1 alínea i) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26.8 e mapa IV do Regulamento da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 49/2014, de 27.3).
Todo este sistema se justifica face à importância que a firma reveste, enquanto sinal identificativo do comerciante, nome que o distingue dos demais e que o individualiza perante os clientes, fornecedores e demais agentes económicos. Assim, exige-se que a firma, além de não induzir em erro quanto à identificação, natureza ou atividade do seu titular (princípio da verdade), garanta a distinção entre a entidade por ela designada e qualquer outra (princípio da novidade ou do exclusivismo).
O respeito pelo princípio da novidade determina, na formulação legal, que a firma registanda não seja suscetível de confusão ou erro com as registadas no mesmo âmbito de exclusividade (n.ºs 1 e 2 do art.º 32.º do RRNPC).
No juízo de não suscetibilidade de confusão o n.º 5 do art.º 33.º do RRNPC estipula ainda que deve ser “considerada a existência de marcas e logótipos já concedidos que sejam de tal forma semelhantes que possam induzir em erro sobre a titularidade desses sinais distintivos”. Sendo certo que, para que os titulares das marcas ou logótipos se possam prevalecer dos seus direitos deverão ter efetuado anteriormente a respetiva prova junto do RNPC.
A proteção das marcas perante firmas ou denominações sociais com elas confundíveis é expressamente consagrada no n.º 4 do art.º 4.º do CPI, que prevê a anulabilidade ou recusa destas se forem posteriores àquelas.
Como resulta da matéria de facto provada, a R. está constituída e registada, com a firma E..., Lda., , desde 2004, isto é, desde data anterior à do registo da marca atualmente titulada pela A., E..., Lda. (que ocorreu em 2008). Tal marca é idêntica ao elemento predominante da firma da R. (a palavra de fantasia “E..., Lda.”), pelo que ofende o direito da R., que goza da já referida prioridade.
Seguramente por isso, a apelante não renovou, neste recurso, o petitório formulado com a propositura da ação, nomeadamente o de anulação da firma da R.. Assim, nesta parte, de improcedência da ação, a sentença recorrida não se mostra impugnada.
A apelação dirige-se, assim (para além da questão da condenação da A. como litigante de má-fé), à reconvenção, ou seja, opõe-se ao sucesso da contra-ação deduzida pela R. contra a A., que desembocou na declaração de anulação, pelo tribunal a quo, da marca nacional E..., Lda., titulada pela A..
Com efeito, o tribunal a quo, na sequência do pedido reconvencional, anulou a marca nacional n.º 43..., “E..., Lda.”, titulada pela A.. E fê-lo por considerar que a aludida marca era confundível com a firma da R., sendo certo que a marca tem em comum com a firma a palavra “E...” e está registada para a mesma área de atividade da R. (produção e comercialização de produtos ortopédicos). Assim, estavam reunidos os fundamentos de invalidade previstos nos artigos 239.º n.º 2 al. a), 245.º e 266.º n.º 1 do CPI.
Na sua apelação a recorrente não questione as aludidas confundibilidade da sua marca com a firma da R., nem a prioridade do registo desta em relação àquela. Na apelação a A. reitera a invocação, que já fizera na primeira instância em resposta à reconvenção, do disposto no art.º 267.º do CPI.
Este artigo tem a seguinte redação:
Preclusão por tolerância
1 - O titular de uma marca registada que, tendo conhecimento do facto, tiver tolerado, durante um período de cinco anos consecutivos, o uso de uma marca registada posterior, deixa de ter direito, com base na sua marca anterior, a requerer a anulação do registo da marca posterior, ou a opor-se ao seu uso, em relação aos produtos ou serviços nos quais a marca posterior tenha sido usada, salvo se o registo da marca posterior tiver sido efectuado de má fé.
2 - O prazo de cinco anos, previsto no número anterior, conta-se a partir do momento em que o titular teve conhecimento do facto.
3 - O titular do registo de marca posterior não pode opor-se ao direito anterior, mesmo que este já não possa ser invocado contra a marca posterior.
Este artigo tem como efeito o encurtamento do prazo dentro do qual o titular de marca registada pode reagir contra o posterior registo de marca idêntica. O prazo de 10 anos previsto no art.º 266.º n.º 4 do CPI é reduzido para 5 anos, com base na teoria da confiança e da boa-fé, impedindo o chamado venire contra factum proprium (v.g., Código da Propriedade Industria anotado, coordenação científica de Luís Couto Gonçalves, 2010, Almedina, p. 504).
Como bem refere a apelante, esta norma, embora na sua letra se refira tão só a marcas, é aplicável, por identidade de razão, a outros sinais distintivos, como as firmas (neste sentido, vide o acórdão do STJ, de 14.10.2004, processo 04B1938).
A sentença recorrida não abordou esta questão.
Haverá que apreciá-la, tanto mais que havia sido suscitada pela apelante na primeira instância, no uso que fez do contraditório face à reconvenção.
Afigura-se-nos que a invocada exceção de preclusão por tolerância improcede, por duas razões.
Em primeiro lugar, porque a referida redução do prazo não ocorre se o registo da marca posterior tiver sido efetuado de má-fé (parte final do n.º 1 do art.º 267.º). A má-fé consiste no conhecimento de que havia sinal distintivo, titulado por outrem, idêntico ou confundível com a marca a registar.
Ora, é evidente que o pai da A., Humberto (…), quando registou a seu favor a marca “E...”, tinha perfeito conhecimento de que tal afrontava a exclusividade da firma da sociedade R., de quem ele era um dos sócios fundadores. E de todos estes factos tinha a ora A. perfeito conhecimento, quando registou a transmissão da marca a seu favor. Note-se que a A. é filha do primitivo titular da marca, é sócia e foi gerente da R..
Mesmo que não existisse má-fé do lado dos promotores do registo da marca, a verdade é que também não teria ocorrido a invocada tolerância do uso por parte da R.. Isto, pelo simples facto de a marca nunca ter sido usada por Humberto (…) ou pela A., mas pela própria R., no exercício da sua atividade (cfr. n.ºs 14, 16 e 19 da matéria de facto).
Pelo que a aludida exceção improcede, devendo manter-se a procedência do pedido reconvencional.
Terceira questão (litigância de má-fé)
Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A atual redação do preceito, introduzida no anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 (onde era o art.º 456.º), visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
No acórdão do STJ, de 11.12.2003 (processo 03B3893 – internet, dgsi-itij), expendeu-se o seguinte: “O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do artº 456º, CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a e b, do nº2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico - sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual.”
Concorda-se com a abordagem do referido instituto expressa no citado acórdão, a qual se mostra reiterada igualmente, por exemplo, nos acórdãos do STJ de 28.5.2009 (09B0681), 21.5.2009 (09B0641) e 26.2.2009 (09B0278).
O tribunal a quo alicerçou a condenação da A. como litigante de má-fé nas seguintes considerações:
No caso, e face a todas as circunstâncias factuais que se apuraram em torno da forma como a A. procedeu ao registo da marca em seu nome, os contornos subjacentes à transmissão da marca para seu nome, considerando que a mesma afirmou que nunca usou a marca E..., Lda. fora da sociedade, considerando que admitiu que pretendia vender a marca juntamente com a sua quota e considerando que apenas após ter sido destituída do cargo de gerente da sociedade R. é que decidiu proibir esta de usar a marca que sempre usou e que coincide com a sua firma, e ainda considerando que nunca informou a R. na pessoa dos demais sócios (inclusivamente o seu pai) de que tinha registado a marca em seu nome próprio, como a própria admitiu em sede de depoimento de parte, contrariamente ao que disse nos articulados, entendo que, efectivamente, a A. litigou de má fé, pois como a própria afirmou, o que pretende é ser ressarcida pelo facto de ter sido destituída de gerente, tendo interposto, para o efeito, 5 acções contra a R., da qual, não esqueçamos, é sócia. Por outro lado, não poderemos dissociar toda esta actuação do facto de beneficiar de apoio judiciário, o que lhe permitirá intentar as acções que entenda, sem pagar qualquer valor a título de taxa de justiça ou custas.
Atento o exposto, temos de concluir que a pretensão da Autora foi deduzida com absoluta falta de fundamento, falta de fundamento que não devia ignorar.
Conforme decorre do Ac. da RL de 01/02/2006, disponível em www.dgsi.pt se a parte “sabia que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume o aspecto de conduta ilícita, impondo o art. 456º, 1, do Cód. Proc. Civil que a parte que litigar dessa forma seja condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta pedir”.
No caso, existe, efectivamente, um uso reprovável do processo, pois a A. para além de deduzir pretensão que deveria saber não ter fundamento, é ela quem verdadeiramente agiu com total falta de lealdade para com os demais sócios da R., desde logo, ao ocultar-lhes o registo da marca em seu nome pessoal, sabendo que a mesma sempre foi usada pela R. e que é igual à sua firma, para com isso conseguir uma determinada vantagem patrimonial.
É um caso de litigância extremamente censurável, dada a série de deveres de conduta violados de forma dolosa. A gravidade da sua conduta decorre ainda de estar conscientemente a prejudicar os interesses e direitos da R. durante o decurso da acção. Assim, deve ser fixada uma multa de valor relativamente elevado.”
Discordamos do tribunal a quo. Com efeito, a litigância de má-fé reporta-se ao comportamento processual da parte. Ora, o juízo negativo que fundou a condenação da A. numa multa de 6 UC reporta-se, não tanto à conduta da A. na ação, mas fora dela, ou seja, à propositura de várias ações, pela ora A., contra a R., em reação à destituição do cargo de gerente da R. (o que não lobrigamos seja motivo de censura), ao facto de não ter informado os gerentes da R. do registo da marca em seu nome pessoal, sabendo que a mesma sempre fora usada pela R. e que era igual à sua firma, para com isso conseguir uma determinada vantagem patrimonial - o que poderá ser fundamento para a invocação de má fé substantiva – não processual -, e consequente abuso de direito, mas não para condenação por litigância de má-fé.
Sendo a A., como é, titular da marca “E..., Lda.”, embora em circunstâncias que, como se reconhece na sentença, não estão completamente esclarecidas (recorde-se, em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto, o trecho em que se expende que “os três factos dados não provados, foram-no pela inexistência de qualquer prova nesse sentido, sendo que da prova produzida o tribunal tem dúvidas sobre as circunstâncias em que ocorreu a outorga da procuração que habilitou a A. a celebrar a escritura denominada de “doação”, mas cujo teor é de venda”), não se vê razões para sentenciar que a A. propôs a ação devendo saber que a mesma era destituída de fundamento. Nem se vê por que razão a A., que foi destituída do cargo de gerente na sociedade R., há-de ser censurada por não se conformar com tal situação, cujos contornos o tribunal a quo não está em condições, nem lhe compete, apreciar.
Entendemos, assim, que nesta parte a apelação é procedente.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou a A. como litigante de má-fé; no mais, mantém-se a sentença recorrida.
As custas da apelação são a cargo de ambas as partes, que nela decaíram, na proporção de ¾ a cargo da A. e ¼ a cargo da R., sem prejuízo do apoio judiciário de que a A. beneficia (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 15.11.2018

Jorge Leal

Pedro Martins

Laurinda Gemas