Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2185/14.0T8OER-A.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
EMBARGOS DE TERCEIRO
PENHORA
REGISTO
TERCEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.– As únicas restrições que a lei impõe à reapreciação da prova pela Relação são as que resultam do art. 640 do CPC: a reapreciação está limitada a determinados aspetos da matéria de facto dos quais o recorrente discorda e implicará, no mínimo, a reanálise dos elementos probatórios dos quais o recorrente entende resultar outra solução. Fora destas balizas, o CPC confere aos tribunais de 2.ª instância poderes-deveres semelhantes aos dos tribunais de 1.ª instância no que concerne à criação da convicção pela livre apreciação da prova.

II.– Tendo presente a definição de «terceiro» para efeitos de registo constante do n.º 4 do artigo 5.º do CRPredial, introduzido pelo DL 533/99, de 11 de dezembro, a compradora do veículo automóvel que não registou a aquisição e a exequente que penhorou o mesmo bem em execução movida contra a titular registada (que tinha vendido) não são terceiras entre si.

Sumário (art. 663, n.º 7, do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa*.

I.– Relatório:

... de ... ..., que deduziu embargos de terceiro no processo indicado à margem, em que são embargados a exequente, ... Envolvente – Gestão Social da Habitação, E.M., S.A., e a executada, Sara ... ... ..., notificada da sentença proferida em 2 de abril de 2017 que julgou improcedentes os seus embargos, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.

Por apenso aos autos de execução n.º 2185/14.0T8OER, nos quais foi penhorado o veículo automóvel de marca Nissan, com a matrícula ...1-...E-...1, veio a embargante deduzir embargos de terceiro, invocando, para tal e em síntese, que adquiriu a identificada viatura em 28.11.2015 (embora apenas tenha solicitado o registo de propriedade da mesma a seu favor em 04.12.2015), e que apenas teve conhecimento de que sobre a viatura impendia uma penhora em 17.02.2016.

Recebidos os embargos e notificadas as partes primitivas para contestar, contestou a exequente, invocando a caducidade do direito de deduzir embargos de terceiro (pois a penhora foi inscrita no registo público em 03.12.2015 e os embargos apenas foram deduzidos em 18.03.2016) e impugnando o alegado pela embargante (pois, aquando da penhora, o direito de propriedade sobre o veículo estava inscrito a favor da executada).

Após julgamento, foi proferida sentença com a fundamentação jurídica e a decisão a seguir transcritas:
«3.1.–Da invocada exceção de caducidade do direito de deduzir embargos de terceiro.
Compulsada a factualidade considerada como provada resulta do teor da mesma que a penhora que incide sobre o veículo com a matrícula ...1-...E-...1 foi efectuada e registada a favor de ... Envolvente – Gestão Social de Habitação, EM, SA em 03.12.2015.
Os presentes embargos de terceiro foram deduzidos em 18.03.2016 sendo certo que a embargante registou a aquisição sobre tal veículo em 04.12.2015.
Ora, nos termos do disposto no artº 344º, nº 2 do CPC, o embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa.
Nestes termos é manifesta a intempestividade dos presentes embargos que, no entanto, não foi conhecida em sede de despacho liminar, tendo os mesmos sido recebidos e sido produzida prova.
Sucede, porém, que não tendo sido liminarmente indeferidos com tal fundamento, não fica o julgador impedido de, após contestação da parte contrária que levanta a questão da intempestividade, pronunciar-se sobre esta, pois que: para os embargos de terceiro não existe fase introdutória formal e preclusiva e, por força de tal, o despacho liminar não constitui caso julgado quanto à tempestividade dos embargos – são sempre de considerar e aproveitar os benefícios oriundos do pleno exercício do princípio do contraditório para a correta aplicação da lei e a prossecução da justiça material conduzindo, nesta fase, à absolvição do embargado da instância.
Nem se refira que a embargante apenas em momento posterior a ter solicitado o registo de propriedade da viatura a que se alude em 1 teve conhecimento de que sobre a mesma incidia ónus, a saber, a penhora efectuada no âmbito dos autos principais a que os presentes se mostram apensos pois que, ao efectuar a compra daquela era-lhe exigível que se certificasse que a adquiria livre de ónus e encargos, pelo que, não o tendo feito, apenas a si pode assacar tal responsabilidade sendo, pois, de concluir pela procedência da invocada exceção.
De notar que, ainda que assim se não considerasse, sempre a pretensão da embargante haveria de soçobrar pois que não logrou a mesma fazer prova que a venda da sobredita viatura ocorreu em 28.11.2015 e que, a partir de tal data, a mesma passou a utilizá-la como sua proprietária.

IV.–DECISÃO
Face ao exposto e sem necessidade de ulteriores considerações, nos termos do disposto nos arts. 344.º, n.º 2; 576.º, n.ºs 1 e 2; 578.º, todos do CPC, julga-se procedente a invocada exceção dilatória de caducidade invocada pela embargante e, em consequência, julgo improcedentes os presentes embargos de terceiro, absolvendo-se a embargada da presente instância e determinando-se o levantamento da suspensão dos termos do processo de execução quanto à viatura automóvel com a matrícula ...1-...E-...1.»

A recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:
«1.ª– nos termos do n.º 2 do art. 342 do Cód. Civil, o ónus da prova da caducidade do direito de acionar através dos embargos compete à Exequente-embargada e ora Recorrida;
2.ª– esta nenhuma prova fez nesse sentido, mantendo-se a prova produzida e que serviu de base ao recebimento dos embargos;
3.ª– embora tal não lhe competisse, a Recorrente fez prova da tempestividade dos mesmos, através do documento n.º 2 junto com a petição de embargos, que não foi impugnado, datado de 17 de Fevereiro de 2016, data do conhecimento da penhora por parte da Recorrente;
4.ª– nesta conformidade, a exceção de caducidade invocada devia ter sido julgada improcedente;
5.ª– não decidindo assim, o Tribunal “a quo” violou, além do mais, o disposto no art.º 342 do Cód. Civil e 344, n.º 2, 576, n.ºs 1 e 2 e 578, todos do CP Civil;
6.ª– acresce que, como resulta do resumo da prova produzida em audiência constante da própria sentença recorrida, a Recorrente fez prova de tudo quanto alegou;
7.ª– designadamente de que adquiriu a viatura dos autos à Executada Sara ... em 28 de Novembro de 2015, passando a deslocar-se na mesma desde tal data e utilizando-a como coisa sua;
8.ª– mais acresce que, ao contrário do que o Tribunal recorrido parece pensar, uma declaração de venda de um veículo automóvel não é um contrato, antes, e como resulta do seu próprio nome, é uma simples declaração que serve de base ao registo e à qual subjaz um contrato de compra e venda verbal;
9.ª– não há quaisquer contradições ou oposições entre os depoimentos das testemunhas nem entre estes e os documentos juntos aos autos;
10.ª– o que mais vem confirmar que a matéria de facto constante da conclusão 7.ª devia ter sido dada como provada;
11.ª– como corolário lógico, os embargos deviam ter sido julgados procedentes e provados;
12.ª– não decidindo assim, o Tribunal “a quo” violou ainda o disposto no art.º 607 do C.P. Civil.
Termos em que, com os mais de direito, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se improcedente a invocada exceção de caducidade e, considerando-se provada a matéria de facto constante da conclusão 7.ª, os embargos serem julgados procedentes e provados, com as legais consequências, como é de JUSTIÇA».

Contra-alegando, a embargada-exequente concluiu:
«1– Entende a Recorrida que a decisão ora recorrida não merece qualquer reprovação;
2– Decorre do artigo 344.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que o embargante deduz a sua pretensão nos trinta (30) dias subsequentes ao conhecimento da ofensa do seu direito;
3– O prazo para a dedução de embargos de terceiros é extintivo do respetivo direito potestativo de ação, sob pena de caducidade do direito;
4– Decorre ainda do artigo 344.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, que o embargante apresenta desde logo a prova;
5– Entende a recorrida que a expressão utilizada pelo legislador não deve ser lida de forma inocente, seguramente que este pretendeu imputar o ónus de prova ao embargante, caso contrario a expressão escolhida não faria qualquer sentido;
6– Até porque a afetação da instância executiva já em curso acontece por iniciativa do embargante;
7– Acresce que, o prazo para intentar embargos de terceiro se conta a partir da data em que o embargante teve conhecimento da ofensa do seu direito, pelo que a contagem do prazo em questão respeita a factos pessoais do embargante;
8– Factos esses de que o embargado poderá não ter conhecimento, por não lhe dizerem respeito, daí podendo resultar uma situação manifestamente injusta e contraria ao direito, em que o embargado se encontra impossibilitado de fazer prova da intempestividade dos embargos;
9– O que in casu não aconteceu, uma vez que a recorrida logrou demonstrar em que data a recorrente teve acesso ao facto de que sobre o veículo objeto dos presentes impendia uma penhora;
10– Sendo certo que a recorrente nem sequer conseguiu que adquiriu o veículo em questão em 28 de Novembro de 2015, quanto mais que apenas teve conhecimento da penhora em 17 de Fevereiro de 2015;
11– A penhora a favor da recorrida foi registada sobre o veículo em questão em 03 de Dezembro de 2015;
12– A recorrente registou o veículo em seu nome em 04 de Dezembro de 2015;
13– A recorrente quando adquiriu o veículo, 04 de Dezembro de 2015, não só podia, como devia ter consultado o mesmo;
14– A Penhora do veículo é anterior à venda do mesmo à recorrente;
15– Bem andou o Tribunal em considerar o dia 04 de Dezembro de 2015 para os efeitos previstos no artigo 344.º, n.º 2 do Código de Processo Civil;
16– A recorrida apresentou em juízo a petição de embargos de terceiro em 18 de Março de 2016;
17– Com efeito, já há muito havia caducado o direito potestativo de ação daquela, pelo que não restava outra hipótese ao Tribunal recorrido, que não fosse julgar a ação totalmente improcedente nos termos dos artigos 344.º n.º 2, 576.º n.ºs 1 e 2 e 578.º do Código de Processo Civil;
18– A recorrente pretende a alteração dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, no entanto, fundamenta apenas a sua pretensão na prova testemunhal por si arrolada, que se revelou absolutamente inconclusiva e contraditória;
19– Para que pudesse proceder a alteração da factualidade dada como provada era absolutamente necessário demonstrar que o Tribunal recorrido havia incorrido numa avaliação totalmente arbitraria das provas careadas para os autos;
20– O que manifestamente não é o caso, uma vez que o Tribunal a quo justificou de forma minuciosa a valoração que fez de toda a prova produzida;
21– Nem podia, salvo o devido respeito, ser outra a interpretação daquele Tribunal, uma vez que os argumentos vertidos pela recorrente, quer em primeira instância, quer agora em sede de recurso, improcedem de facto e de direito constituindo o seu conteúdo mero expediente dilatório.»

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso.
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Tendo em conta o teor daquelas, importa averiguar:
– Se a prova foi mal apreciada, devendo a matéria de facto ser alterada;
– Se a embargante estava em tempo para deduzir os embargos;
– Na positiva, se adquiriu o veículo por compra em data anterior ao registo da penhora.

II.– Fundamentação de facto.

Estão provados os seguintes factos que correspondem aos adquiridos em 1.ª instância (1 a 3) e aos que, apreciando o presente recurso, entendemos que resultam da prova produzida como fundamentado em III.A. (4 e 5):
1.– Em 03.12.2015, no âmbito dos autos de execução n.º 2185/14.0T8OER, foi lavrado auto de penhora do veículo automóvel com a matrícula 91-LE-91, marca Nissan, modelo K13, com o quadro n.º MDHFBUK13U0005923, e, nessa mesma data, registada a penhora a favor de ... Envolvente – Gestão Social da Habitação, E.M., S.A.;
2.– Em 04.12.2015, ... de ... ... requereu junto do IRN – Conservatória do Registo Automóvel o registo de propriedade da viatura identificada em 1 a seu favor, ali constando como data da venda efectuada verbalmente 28.11.2015, sendo vendedora a executada Sara ... ... ... e compradora ... de ... ...;
3.– A referida viatura encontra-se registada a favor de ... de ... ... desde 04.12.2015.
4.– A embargante adquiriu a viatura à executada Sara ... ... ... em 28.11.2015, passando a deslocar-se na mesma desde tal data e utilizando-a como coisa sua.
5.– Apenas em 17.02.2016, a embargante tomou conhecimento de que sob a viatura impendia uma penhora, registada em 03.12.2015 por dívida da vendedora.

III.– Apreciação do mérito do recurso.

A.– Da reapreciação da prova e alteração da matéria de facto
O recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, caso em que deverá observar as regras contidas no art. 640 do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: a) os pontos da matéria de facto de que discorda; b) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida; e, c) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A recorrente cumpriu estes ónus, pelo que passamos a reapreciar a prova produzida com vista ao apuramento da situação efetivamente sucedida, no que aos pontos postos em crise respeita.

Como noutros arestos temos tido oportunidade de lembrar, as únicas restrições que a lei impõe à reapreciação da prova pela Relação são as que resultam do art. 640 do CPC: a reapreciação está limitada a determinados aspetos da matéria de facto dos quais o recorrente discorda e implicará a reanálise de elementos probatórios dos quais o recorrente entende resultar outra solução.
Fora destas balizas, o CPC confere aos tribunais de 2.ª instância poderes-deveres semelhantes aos dos tribunais de 1.ª instância no que concerne à criação da convicção pela livre apreciação da prova. Apesar de, no que à prova pessoal respeita, o objeto da apreciação pelo tribunal de 2.ª instância não ser exatamente o mesmo que aquele de que a 1.ª instância dispôs, pois trata-se apenas de uma gravação áudio deste, onde necessariamente se perde tudo o que é apreensível por outros sentidos além da audição, o legislador não limitou os poderes de livre apreciação da prova pela 2.ª instância.

Assim sendo, o tribunal de 2.ª instância não se pode limitar a um controlo formal da fundamentação que o tribunal recorrido expressou para os factos selecionados, nem a tecer considerações genéricas a propósito da menor imediação de que dispõe e de como isso o impede de pôr em causa o juízo a quo.

Perante as regras positivadas no CPC, e sem prejuízo do seccionamento do objeto da reapreciação por via do disposto no art. 640 do CPC, os tribunais da Relação devem proceder à efetiva reapreciação da prova produzida (nomeadamente dos meios de prova indicados no recurso, mas também de outros disponíveis e que entendam relevantes) da mesma forma – em consonância com os mesmos parâmetros legais – que o faz o juiz de 1.ª instância.

Tanto significa que os juízes desembargadores apreciam livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão (art. 607, n.º 5, do CPC).

Na sua livre apreciação, os juízes desembargadores não estão condicionados pela apreciação e fundamentação do tribunal a quo. Ou seja, o objeto da apreciação em 2.ª instância é a prova produzida (tal como em 1.ª instância) e não a apreciação que a 1.ª instância fez dessa prova. Esta pode ter sido formalmente correta, bem como exaustiva e logicamente fundamentada, e, não obstante, a Relação formar diferente convicção.

Claro que, como já referido, o que é dado apreciar aos juízes desembargadores não é exatamente o mesmo, no que à prova gravada respeita, que é observado em 1.ª instância. Esta circunstância inultrapassável (ainda que melhorável com recurso a outras tecnologias de reprodução) pode e deve ser ponderada na reapreciação que, em 2.ª instância, se faz da prova, mas isso não significa uma menorização do poder de livre apreciação da prova, mas apenas mais um dado a considerar nessa apreciação.

Pediu a embargante que passasse a provado o facto acima descrito sob o n.º 4 – ou seja, que adquiriu a viatura em 28 de novembro, apesar de apenas ter requerido o registo da aquisição em 4 de dezembro –, facto que o tribunal a quo tinha considerado não provado.

A prova pessoal produzida consistiu nos depoimentos de Sara ..., vendedora do veículo, Fábio Freitas, mecânico que reparou o veículo e intermediou a venda, e Paulo Mateus, amigo da vendedora que, na altura da reparação, trabalhava para o mecânico. Todos depuseram de forma espontânea, com riqueza de pormenores, alguns dos quais foram sendo recordados no decurso dos depoimentos, sempre com franca espontaneidade. Foram sobretudo elucidativos os depoimentos de Sara ... e de Fábio Feitas que narraram os mesmos factos, cada um do seu ponto de vista, a partir das suas vivências próprias, com discursos e pormenores diferenciados. O mecânico tinha à sua guarda a viatura havia muitos meses, uma vez que a então proprietária lha tinha confiado para reparar e encontrar comprador, pois ela não tinha capacidade financeira de pagar a sua reparação. Foi nestas circunstâncias que o mecânico, que também conhecia a mãe da compradora e sabia que esta procurava veículo para a filha, intermediou a venda.

As três testemunhas tinham, pelo dito, conhecimento direto do facto (compra em 28 de novembro e seu uso pleno pela compradora, ora embargante, a partir de então) e transmitiram-no de forma consistente e segura, nenhuma dúvida suscitando a sua ocorrência.

O facto em causa é também corroborado pelo documento n.º 1 junto com a petição de embargos – requerimento de registo automóvel efetuado online em 4 de dezembro, pela compradora embargante, com declaração da vendedora de que o contrato de compra e venda tinha sido realizado em 28 de novembro. Conforme estabelecido no art. 25, n.º 1, do Regulamento do Registo de Automóveis (DL 55/75, de 12 de fevereiro, com as suas atualizações, sendo a última a do DL 201/2015, de 17 de setembro), o registo posterior de propriedade adquirida por contrato verbal de compra e venda pode ser efetuado em face de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, através de declaração de venda apresentada com o pedido de registo. Foi o que sucedeu in casu, através da plataforma online de que a Conservatória dispõe.

Entre 28 de novembro e 3 de dezembro de 2015, a viatura dos autos esteve registada em nome da vendedora, registo que fazia presumir a titularidade nos termos do art. 7.º do CRPredial, ex vi do art. 29 do DL 54/75, de 12 de fevereiro (com atualizações várias até à da Lei 30/2017, de 30 de maio), que regula o registo automóvel. Tal presunção mostra-se ilidida por via da prova produzida neste processo.

Na petição de embargos, a embargante alegou que apenas em 17.02.2016 teve conhecimento de que sobre o adquirido veículo incidia uma penhora realizada e registada em 3 de dezembro, e explicou porquê, narrando os factos que a levaram a pedir nessa data certidão do registo automóvel.

Este facto é fulcral para a apreciação da causa, nomeadamente para a aferição da tempestividade dos embargos que a parte contrária pôs em causa.

Todavia, o tribunal a quo não se pronunciou sobre ele, nem por qualquer forma justificou a sua omissão.

Do depoimento da testemunha Fábio, o mecânico que tinha intermediado a venda, ficámos a saber que, a dada altura, a compradora, ora embargante, estranhando não receber o documento do automóvel após tanto tempo depois de ter requerido o registo, comentou esse facto consigo (mecânico). Este disse-lhe que não havia razão para demorar tanto e que fosse ver o que se passava. Foi assim que a embargante pediu a certidão do registo e se inteirou da penhora, em 17 de fevereiro, 30 dias antes de ter deduzido os embargos. Tomando conhecimento da penhora, a embargante interpelou a vendedora, Sara, com surpresa.

Perante os depoimentos de Sara e de Fábio, pelos seus conteúdos e pelos modos como foram transmitidos, não temos dúvidas de que a embargante apenas em 17 de fevereiro teve conhecimento de que sobre o veículo impendia uma penhora.

Tal facto, oportunamente alegado e, a final, provado, é de suma importância para a decisão da causa e, por isso, se consigna (supra, sob o n.º 5).

B.– Da caducidade.
Se a penhora ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê‐lo valer, deduzindo embargos de terceiro (art. 342, n.º 1, do CPC).

Os embargos são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante, e são deduzidos, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respetivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas (art. 344 do CPC).

Como decorre do supra exposto, os embargos foram deduzidos no 30.º dia após o conhecimento do ato lesivo do direito da embargante, pelo que são tempestivos.

Perante a prova deste facto torna-se irrelevante a discussão sobre quem recai o ónus de provar o dito: se sobre o embargante, como facto que lhe permite embargar (Ac. TRL de 22/04/2008, proc. 1156/2008-7), se sobre o embargado, como exceção de caducidade e, por isso, facto extintivo do direito de embargar (Ac. TRL de 26/11/2009, proc. 11372-F/1993.L1-8).

C.– Do mérito dos embargos.
A penhora dos autos atingiu o veículo propriedade da embargante, por si adquirido em 28 de novembro, data anterior à da penhora (3 de dezembro), à titular registada.

Nos termos do disposto no art. 408, n.º 1, do CC, a transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, ressalvadas as exceções que a lei preveja. No que à compra e venda respeita, o art. 879 do CC diz-nos que ela tem por efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa, além das obrigações de a entregar (para o vendedor) e de pagar o preço (para o comprador).

Por seu turno, a validade das declarações negociais não depende da observância de especial forma, uma vez mais sem prejuízo de exigência da lei em contrário (art. 219 do CC) que, para a transmissão de viaturas automóveis, não existe.
O contrato de compra e venda de veículo automóvel é portanto consensual, não carece de forma especial nem de entrega, operando-se a transferência do direito de propriedade por mero efeito do contrato, eventualmente constituído por estipulações orais.

No caso dos autos, como vimos, a embargante comprou em 28 de novembro, data em que foi para si transmitido, por mero efeito do contrato de compra e venda, o direito de propriedade sobre o veículo. Logo, a penhora efetuada dias depois, em 3 de dezembro, em execução contra a vendedora, ofende o direito de propriedade da embargante, impondo-se o seu levantamento.

A esta situação não é alheia a questão da oponibilidade a terceiros de factos sujeitos a registo. Como referimos acima, no que respeita ao período de 28 de novembro a 3 de dezembro de 2015, resultou ilidida a presunção do art. 7.º do CRPredial (aplicável aos veículos automóveis por via do disposto no art. 29 do DL 54/75, de 12 de fevereiro), segundo a qual o registo definitivo faz presumir a pertença do direito ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define. Apurou-se que a viatura era, nesse período, propriedade da embargante.

Esta, porém, apenas em 4 de dezembro registou a sua propriedade. Nos termos do disposto no art. 5.º, n.º 1, do CRPredial (aplicável subsidiariamente ao registo automóvel, como já referido), os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo. O direito de propriedade sobre veículos a motor é facto sujeito a registo, por via do disposto no art. 5.º do DL 54/75, de 12 de fevereiro). Perante estas normas, poderia questionar-se se a propriedade não registada da embargante é oponível à exequente embargada, que registou a sua penhora quando o bem ainda estava registado a favor da executada.

A resposta a esta questão passa pela definição de «terceiro» para efeitos do citado art. 5.º do CRPredial. O n.º 4 do mesmo artigo, introduzido pelo DL 533/99, de 11 de dezembro, define terceiros, para efeitos de registo, como os que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Esta definição abraçou a doutrina do Acórdão Unificador de Jurisprudência n.º 3/99, publicado no DR, I S-A, de 10/07/1999, colocando termo a velha contenda.

A situação dos autos é análoga à que esteve na base do AUJ 3/99, ali resumida da seguinte forma: «Os recorrentes compraram uma fração autónoma e não a registaram; O recorrido, credor do vendedor da fração, obteve a penhora desta e registou-a; A referida compra só depois foi registada.». Esse AUJ dá nota das várias posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre a matéria, incluindo a noção ampla contemplada no Acórdão do STJ com força obrigatória geral n.º 15/97, de 20 de maio (DR I S-A de 04/07/1997), acabando por dela se apartar e por formular o seguinte acórdão unificador de jurisprudência: «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.». A tomada de posição pela noção restrita de terceiro para efeitos de registo, provinda dos ensinamentos de Manuel de Andrade, está sobejamente justificada no AUJ (onde se encontram narrados os aspetos históricos e jurídicos do problema) e foi, como referimos, adotada pelo legislador em dezembro de 1999. Terá sido considerando este pano de fundo que a embargada não argumentou sequer que o direito de propriedade da embargante lhe fosse inoponível quando, em 3 de dezembro de 2015, registou a penhora. Com efeito, considerando a doutrina do AUJ 3/99, logo consagrada no n.º 4 do art. 5.º do CRPredial, embargante e exequente-embargada não são terceiras entre si para efeitos do disposto no art. 5.º daquele Código.

IV.–Decisão.
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente procedente, julgando os embargos de terceiro totalmente provados e procedentes, e, em consequência, determinando o levantamento da penhora que incide sobre o veículo da embargante.

Custas pela embargada exequente.



Lisboa, 20/12/2017


Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira


* Escrevemos todo o texto, incluindo citações de obras ou trechos de decisões escritas à luz do Acordo Ortográfico de 1945, em conformidade com a grafia vigente, do Acordo Ortográfico de 1990.