Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8496/14.7T8LSB-A.L1-1
Relator: JOÃO RAMOS DE SOUSA
Descritores: REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-O tribunal português é incompetente para conhecer de uma ação de regulação de responsabilidades parentais relativamente a uma menor que foi levada por ambos os pais para Hong Kong e aí ficou com o acordo do pai, na companhia da mãe nascida e residente em Hong Kong, quando este regressou a Portugal.
II-O requerente poderá fazer valer aí os seus direitos com todas as garantias de justiça, como é próprio do sistema judiciário da common law, vigente naquela Região Administrativa Especial, e que ainda aí se mantém durante o período de transição de 50 anos até à integração plena na República Popular da China.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


O Tribunal de Instância Central (Lisboa), 1ª Secção de Família e Menores, J5, da Comarca de Lisboa declarou a sua incompetência, em razão da matéria, para regular o exercício das responsabilidades parentais entre António José ... ... (requerente, recorrente) e Jessica Lily ... (requerida, recorrida), relativamente à filha menor de ambos, A. Zoe ....

O requerente recorreu, pedindo que se revogue a sentença recorrida, para normal tramitação da ação. A requerida não se pronunciou. Nem o MºPº. Correram os vistos.

Cumpre decidir se o tribunal português é ou não competente para apreciar o pedido de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor A..

Fundamentos.
Factos.

Provaram-se os seguintes factos:

1.-A Requerida e o Requerente contraíram casamento entre si em 20 de Novembro de 2006, em Lisboa – fls. 11.
2.-Do casamento, nasceu em S. Jorge de Arroios, Lisboa, em 15 de Janeiro de 2009, a menor A. Zoe ... – fls. 14vº e 102-103.
3.-A mãe da menor nasceu em Hong Kong e aí tinha residência à data do casamento – fls. 11.
4.-A menor residiu em Lisboa até 2011, altura em que passou a residir em Hong Kong com a mãe – fls. 4vº § 7 e fls. 5 § 15.
5.-A presente ação deu entrada em 2015.04.01 – fls. 2.
6.-À data da propositura da ação, a menor residia habitualmente em Hong Kong, à guarda e cuidados da mãe,  e tal situação ainda se mantém – fls. 5, § 15.
7.-A menor dispõe de cartão de identidade emitido pelas autoridades de Hong Kong, que lhe permite ter residência permanente naquela Região Administrativa Especial – fls. 102.
8.-É titular de passaporte, mencionando o nascimento em Portugal, mas consagrando a nacionalidade chinesa, emitido pelas autoridades da Região Administrativa Especial de Hong Kong da República Popular da China – fls. 103.
9.-Tendo nascido em Portugal, filha de pai português, tem documentos que comprovam também a nacionalidade portuguesa, à luz do direito português – fls.14-15.
10.-Em ata conferência de pais realizada em 2015.11.05, em que a mãe da menor não esteve presente, mas foi representada pela sua mandatária com poderes especiais (fls. 45), o Tribunal de Instância Central da Comarca de Lisboa homologou um acordo provisório parcial entre ambos os pais da menor, sem se pronunciar sobre a questão da competência do tribunal,  que havia sido  suscitada pela requerida – fls. 52-58.

Análise jurídica.

Considerações do Tribunal recorrido

O Tribunal a quo fundamentou-se nas seguintes considerações:

Nos presentes autos pretendia, o requerente, António José ... ... regular o exercício das responsabilidades parentais, relativamente à sua filha menor A. Zoe ....
No entanto, à data da propositura da acção, a criança residia habitualmente em Hong Kong, à guarda e cuidados da progenitora e tal ainda se mantém.
Dispõe o artigo 9º do RGPTC que 1- “ Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado”.
Por seu turno, o artigo 98 do CPC refere que “ Se a incompetência for arguida antes de ser proferido o despacho saneador pode conhecer-se dela imediatamente ou reservar-se a apreciação para esse despacho; se for arguida posteriormente ao despacho, deve conhecer-se logo da arguição”.
Mais determina o artigo 99 nº 1 do mesmo diploma legal que “ a verificação da incompe-tência absoluta implica a absolvição da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar”.
Verifica-se, assim, que este tribunal não tem competência para tramitar e decidir a presente ação, sendo competente para a sua tramitação, o tribunal da área de residência da menor, Amelia Zoe ....

Conclusões do recorrente.
A  isto, opõe o recorrente as seguintes conclusões:

1–A decisão proferida pelo Tribunal a quo é recorrível, o recurso mostra-se interposto tempestivamente, o Recorrente tem legitimidade para o efeito e a taxa de justiça mostra-se auto-liquidada;
2–A menor, filha de Requerente e Requerida, nasceu na vigência do matrimónio, contraído em Portugal e sob a lei portuguesa, entre o Requerente e Requerida, tem nacionalidade portuguesa e é cidadã nacional.
3–Foi em Portugal que a menor residiu e tinha residência fixa até à recusa da mãe em regressar a este país, após o que não seriam mais do que umas breves férias no país de origem da Requerida, a China.
4–À data da subtração da menor, a menor residia em Portugal, onde se encontrava matriculada para frequentar a escola neste país e vivia com os pais na casa de morada de família existente à data.
5–São muitos os elementos de conexão que determinam a competência internacional dos Tribunais portugueses para julgar os presentes autos sob pena de a decisão proferida pelo Tribunal a quo “premiar” todos aqueles que subtraem crianças ao progenitor(a) em Portugal e se dirigem a um país longínquo onde é materialmente impossível para um cidadão nacional obter justiça ou recorrer aos Tribunais, como é o caso dos autos;
6–A Lei 141/2015 de 8 de Setembro, que regula o Regime Geral do Processo Tutelar Cível, determina no art. 9º, nº 1 que, para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado, sendo que o Tribunal a que se refere tal lei é em Portugal e não no estrangeiro.
7–Quando a Lei 141/2015 de 8 de Setembro fala em residência da menor, está a referir- se a residência regular e licita e não ilícita ou obtida a partir de facto ilícito como ocorreu nos presentes autos, pelo que nunca a residência da menor em Hong Kong, derivada de facto ilícito, poderá ser critério para determinar a competência do Tribunal a quo, o que consubstanciaria num autentico venire contra factum proprium por parte da Requerida e atribuir vantagem a quem praticou o facto ilícito no âmbito da regulação das responsabilidades parentais.
8–O Requerente não tem possibilidade de intentar acção de regulação das responsabilidades parentais na China, em Hong Kong, um dos países do mundo mais longínquos de Portugal, a 18 horas de avião de Lisboa, pois é professor, funcionário público e não tem rendimentos, possibilidade pessoal e profissional para o efeito, constituindo um esforço e sacrifício desproporcional e desmedido que a lei pretendeu acautelar através do disposto no art. 62 do C.P.C. que a sentença recorrida não teve em causa.
9–Face ao disposto no art. 62 do C.P.C., o Tribunal a quo, antes de proferir a declaração de incompetência absoluta para julgar os presentes autos e estando perante a regulação das responsabilidades parentais de uma cidadão nacional de sete anos de idade, deveria ter apurado se o Requerente tinha ou não possibilidade de intentar acção na China e, só depois, face ao apurado, decidir da competência do Tribunal, pois de outro modo existe o sério e fundado risco de a menor ficar sem tutela legal no que respeita à regulação da responsabilidade parental, a que tem legítimo direito e é dever do Estado Português fornecer e garantir.
10–Nos termos do disposto no art. 9º, nº 9 da Lei no 141/2015 de 8 de Setembro, o conhecimento da causa pertence à secção da instância central de família e menores de Lisboa, da Comarca de Lisboa.
11–Nos termos do art. 9º, nº 7 da mesma Lei no 141/2015 de 8 de Setembro se, no momento da instauração da acção, o menor residir no estrangeiro, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal de residência do Requerente, como é o caso dos autos.
12–A sentença proferida pelo Tribunal a quo violou as normas dos arts. 4º, nº 1, do Regulamento da União Europeia no 156/2012 de 22 de Fevereiro, art. 9º, nº 1, 7 e 9 da Lei 141/2015 de 8 de setembro e, ainda, os arts. 62 alíneas a), b) e c) e 59 do Código de Processo Civil.


Delimitação do objeto do recurso.
Salvo alguma questão de conhecimento oficioso, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões do recorrente – arts. 608.2, 635.4 e 639 do CPC. São somente essas as questões que serão aqui apreciadas.

Não se apurou em que circunstâncias a menor foi levada para Hong Kong.

Tendo nascido em Portugal em 2009, a menor foi levada por ambos os pais para Hong Kong, de onde a mãe é natural, durante as férias de verão de 2011, tendo o pai regressado depois sozinho a Portugal; não se apurando se este combinou que a mãe ficaria lá com ela mais uma ou duas semanas, e ela depois resolveu não regressar (versão do pai, fls. 4vº, §§ 7 a 13); ou se o pai deixou em Hong Kong a filha com a mãe, na sequência de desinteligências conjugais (versão da mãe, fls. 95, §§ 5 a 8).
Em face da matéria provada, não pode concluir-se que a menor foi levada para Hong  Kong contra a vontade do pai.  Se ficou lá a residir com a mãe desde 2011, sem que o pai tivesse requerido a regulação das responsabilidades parentais durante esses quatro anos, só pode concluir-se que ele aceitou a situação e só no contexto do processo de divórcio pretende agora esta regulação.
Assim, entende este Tribunal, com o de 1ª Instância, que a menor, à data da propositura desta ação residia habitualmente em Hong Kong com a mãe, e tal situação ainda se mantém.


É competente o tribunal da residência da menor.

O recorrente alega que a atual residência da menor em Hong Kong resulta de facto ilícito praticado pela mãe. Mas tal não se provou, porquanto a menor foi levada para lá com o acordo do pai e da mãe e o pai voluntariamente regressou sozinho a Portugal no fim das férias, em agosto de 2011.  Se a mãe da menor decidiu depois não regressar a Portugal, a menor ficou a residir com ela naquela cidade. E tem inclusive documentos de que resulta dupla nacionalidade chinesa e portuguesa (segundo o direito português) e chinesa (segundo o direito chinês) – factos provados 7, 8 e 9.

A menor tem, pois, residência permanente em Hong Kong, onde está à guarda e cuidados da mãe há mais de cinco anos. O que já acontecia à data da propositura da presente ação de regulação.

Nestas condições, é competente para a regulação de responsabilidades parentais o respetivo tribunal da Região Administrativa Especial de Hong Kong, onde a menor tem residência (art. 9º do RGPTC) e onde o requerente poderá fazer os seus direitos com todas as garantias de justiça. Como é próprio do sistema judiciário da common law, vigente naquela Região Administrativa Especial, e que ainda aí se mantém durante o período de transição de 50 anos (“um país, dois sistemas”: sistema capitalista, poder judicial independente, liberdade de imprensa, de expressão e de manifestação, sindicatos e direito à greve, etc.) para a integração plena na República Popular da China.

Ao contrário do que alega, o recorrente não tem dificuldade apreciável na propositura da ação em Hong Kong, nem em obter aí justiça para o seu caso – art. 62.c do CPC. Pelo menos igual dificuldade tem em Portugal a mãe da menor, que só fala inglês e chinês, reside naquele território e isso não a impediu de constituir mandatária no nosso País para defender os seus direitos.

De resto, os Ex.mos Mandatários do recorrente, atentas os especiais conhecimentos  e contactos internacionais da Sociedade de Advogados ………. e Associados a que pertencem, não terão dificuldade em defender aí os interesses do seu constituinte ou de substabelecer num Advogado local, com apoio judiciário se necessário. Como é sabido, em Hong Kong há 4.700 solicitors (advogados), 750 barristers (advogados séniores) e 620 law firms (sociedades de advogados); O Legal Aid Department do  território garante apoio judiciário a qualquer pessoa envolvida em processos judiciais, seja ou não residente local. Mas a situação financeira do recorrente não o impediu de fazer várias viagens a Hong Kong nem de constituir dois advogados em Portugal (fls.9) sem ter pedido sequer apoio judiciário.

Assim, a decisão recorrida não violou qualquer norma legal.

Em suma:

11.–O tribunal português é incompetente para conhecer de uma ação de regulação de responsabilidades parentais relativamente a uma menor que foi levada por ambos os pais para Hong Kong e aí ficou com o acordo do pai, na companhia da mãe nascida e residente em Hong Kong, quando este regressou a Portugal.
12.-O requerente poderá fazer valer aí os seus direitos com todas as garantias de justiça, como é próprio do sistema judiciário da common law, vigente naquela Região Administrativa Especial, e que ainda aí se mantém durante o período de transição de 50 anos até à integração plena na República Popular da China.


Decisão:

Assim, e pelo exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso e confirmamos na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.



Lisboa, 2017.03.07



João Ramos de Sousa
Manuel Ribeiro Marques
Pedro Brighton