Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1/16.7T1VFC.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: MENORES
PERIGO
INTERESSE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O conceito interesse da criança, enquanto instrumento operacional cuja utilização e confiada ao juiz, é uma noção em desenvolvimento contínuo e progressivo, de natureza polimorfa, plástica e essencialmente não objetivável, que pode assumir todas as formas e vigorar em todas as épocas e em todas as causas.
2. Deve, no entanto, entender-se por superior interesse da criança e do jovem, o seu direito ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições liberdade e dignidade.
3. A não existência ou o sério comprometimento de vínculos afetivos próprios da filiação é um requisito autónomo, de que há que há que fazer prova, não constituindo a verificação objetiva de uma das situações previstas nas cinco alíneas do art, 1978.°, n.º 1, presunção iuris et de iure de que aqueles vínculos não existem ou se encontram seriamente comprometidos.
4. De outro modo, ou seja, se apenas houvesse que fazer prova de uma dessas situações, seria inútil a exigência de que os vínculos afetivos próprios da filiação não existissem ou estivessem seriamente comprometidos.
5. Não basta, portanto, que estejam seriamente comprometidos os vínculos económico-sociais próprios da filiação, sendo necessário que o estejam também, ou que não existam sequer, os vínculos afetivos próprios da filiação.
6. Para se aquilatar dessa vinculação afetiva é absolutamente essencial perscrutar o modo como o progenitor se relaciona com o menor, a capacidade comunicacional daquele para com a criança, a forma como compreende as necessidades as necessidades desta ou até o modo como as encara.
7. A dimensão afetivo/relacional é indispensável na identificação dos indicadores da(s) boa(s) competência(s) parental(ais) e inclui a capacidade do adulto de: a) mostrar empatia e de se colocar no ponto de vista da criança; b) comunicar com a criança; c) compreender as necessidades desenvolvimentais físicas, sociais, cognitivas e afetivas da criança; d) servir de exemplo/modelo socialmente adequado; e) lidar com o stresse, a agressividade e a frustração.
8. No apuramento do grau de vinculação afetiva tem, além do mais, de se avaliar até que ponto os progenitores conseguirão colocar os interesses da criança à frente dos seus próprios interesses, sacrificando estes e dando prioridade àqueles.
9. Sempre que todos estes fatores primordiais estejam fortemente diminuídos (ou não existem de todo), ou quando o incumprimento dos deveres inerentes ao exercício capaz das responsabilidades atinge um grau intolerável e um ponto de irreversibilidade terá de se concluir pelo comprometimento sério dos vínculos afetivos próprios da filiação.
10. Importa, pois, fazer sempre uma apreciação global e ampla de todas as circunstâncias apuradas em cada caso concreto à luz do superior interesse da criança, visto de modo atual e concreto, sendo que o conceito de gravidade e de comprometimento sério dos vínculos afetivos próprios da filiação devem ser apreciados, tendo em conta a idade do menor, as suas necessidades, o seu grau de desenvolvimento e estado de saúde, assim como o comportamento global dos pais no exercício das suas funções parentais, não bastando a mera reclamação do filho no momento da confiança judicial.
11. Ou seja, não basta que haja relação afetiva entre pais e filhos, é necessário que esta assuma a natureza de verdadeira relação pai/mãe-filho, com a inerente auto-responsabilização do progenitor pelo cuidar do filho, por lhe dar orientação, estimulá-lo, valorizá-lo, amá-lo e demonstrar esse amor de forma objetiva e constante, de molde que a própria criança encare o progenitor como referência com as referidas caraterísticas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO:
Neste processo de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo, no dia 21 de dezembro de 2018 foi proferido acórdão pelo Tribunal Coletivo Misto, relativamente ao menor LD, nascido a __.__. 2013, filho de JD e de VO, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Em face do exposto decide-se:
1. - Aplicar ao menor LD, nascido a __-__-2013, filho de LD, a medida de acolhimento residencial na casa de acolhimento residencial "Associação", com vista a futura adoção, nos termos dos artigos 35.°, n.° 1, al g) e 38.° da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo e 1978.° do Código Civil;
2. - Nomeia-se a Dra. LP curadora provisória do menor, enquanto o mesmo permanecer na casa de acolhimento residencial "Associação";
3. - As técnicas sociais da instituição darão conta nos autos de todos os factos importantes relacionados com a execução da presente decisão, devendo o ISSA - Equipa de Adoção informar do estado de processo com a periodicidade de 3 meses (cfr. artigo 42°, n.° 1, do Regime Jurídico do Processo de Adoção);
4. - Determina-se ainda que o Serviço de Adoções do Instituto de Segurança Social comunique aos autos, logo que selecionado, o casal adotante ou candidato singular, para nomeação como curadores provisórios, tudo nos termos dos artigos 62°-A n.° 2 da LPCJP e artigo 51° n.° 3, do RJPA.»
5. - Mais se decide proibir as visitas dos familiares, e decreta-se ainda a inibição do exercício as responsabilidades parentais relativamente aos progenitores, comunicando-se oportunamente à Conservatória do Registo Civil para efeitos de registo — artigos 1978°-A) e 1920°-B alínea d), ambos do Cód. Civil na redação introduzida pela Lei 31/2003 de 22-08.»
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Inconformada com tal decisão, a mãe do menor, VO, interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
I - O Tribunal recorrido fez uma deficiente apreciação da prova.
II - Resulta dos factos provados que é notório e visível que a progenitora modificou o seu comportamento, tudo por amor a seu filho.
III - A adoção é a última das medidas, devendo-se privilegiar a família, algo que aqui não foi feito.
IV - Se nos presentes autos foram decididas medidas de apoio junto da mãe, quando a mesma estava mais debilitada, não se poderá recusar a continuidade desse apoio quando se verificam notórias melhorias no seu comportamento.
V - Após a audiência de julgamento a progenitora dirigiu-se, por escrito, ao Tribunal pedindo-lhe que não lhe fosse retirado o filho, que o ama.
VI - Só prova que a recorrente está disposta a tudo para o ter consigo, como é de elementar justiça.
VII - No entanto, nenhuma referência a isso mesmo se encontra na douta decisão.
VIII - Resulta claro para a recorrente que os factos dados como provados não são suficientes para que se considere que se encontram seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, de forma a perigar gravemente a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança, nos termos do disposto na alínea c), do n.º 1 do art.º 1978.º do C.C.
Nestes termos e melhores de direito, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, deve o presente recurso proceder, decidindo-se pela revogação da aplicação da medida de acolhimento residencial com vista à adoção e substituir a medida decretada pela medida de apoio junto da mãe, revogando-se a douta sentença recorrida, no que se fará a habitual Justiça.
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O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Nos dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, perante as conclusões da alegação da apelante, neste recurso importa decidir se deve ser revogado o acórdão recorrido, que aplicou, relativamente à criança acima identificada, a medida de promoção e proteção consistente na sua confiança judicial a instituição com vista à sua futura adoção.
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III – FUNDAMENTAÇÃO:
3.1 – Fundamentação de facto:
O acórdão recorrido considerou provada a seguinte factualidade:
1. LD nasceu a 30-01-2013 e é filho de JD e de VO;
2. Foi acolhido no "Lar", por acordo celebrado em 26/9/2016 (fls. 61), por 6 meses, em virtude de se encontrar numa situação de perigo para a sua vida e integridade física, por a progenitora se encontrar em estado de embriaguez apresentando uma TAS de 1.61 g/l (fls. 1 a 10) e ter sido expulsa da instituição onde residia com o menor, por comportamentos agressivos, o que deu origem à instauração do presente processo de promoção e proteção;
3. Então, a "Associação", onde mãe e filho estiveram acolhidos antes do primeiro acolhimento residencial do LD, através de informação de 2 de agosto de 2016, comunicou à CPCJ de ____ episódios de grande agressividade psicológica da progenitora relativamente à criança, que apelidava de feia e repreendia utilizando a expressão "mato-te", e ainda atitudes agressivas da progenitora relativamente às técnicas da instituição quando chamada à atenção, como seja a de atirar os pratos para o balcão ou anunciar que atirava a monitora pela janela e que qualquer dia a afogava;
4. No âmbito desse acordo a progenitora ficou sujeita a avaliação psiquiátrica e a consulta de alcoologia, e acompanhamento psicossocial na "Arrisca", esta intervenção psicológica a incidir na ventilação e gestão emocional e na desconstrução e flexibilização de ideias e crenças erróneas, que estão na origem do seu estado emocional marcado pelo humor ansioso e irritável, com ativação emocional rápida da emoção raiva, beneficiando ainda da intervenção da Equipa de Integração Familiar;
5. A perícia solicitada esclareceu que a progenitora apresenta uma personalidade com traços de impulsividade, encontrando-se estabilizada do ponto de vista psicopatológico, e que o exercício da parentalidade deveria ser desempenhado com supervisão;
6. Consequentemente, a 18-4-2017, o acordo foi alterado tendo o menor ficado à guarda e cuidados da progenitora;
7. A viver com o filho, o companheiro José Joaquim Mimoso Roque e a sogra, na residência desta, sita na Rua __, n.° __, em ____, entre julho e setembro de 2017 assistiu-se a um agravamento dos conflitos entre a progenitora e o seu companheiro por questões económicas e relacionadas com o LD, o que contribuiu para um mal-estar crescente e aumento das dificuldades de controlo de impulsos por parte da progenitora, que chegou a arranhar-se acentuadamente no pescoço no decorrer de uma situação de conflito;
8. Durante um conflito do casal, em agosto de 2017, a progenitora arranhou na cara o companheiro e este empurrou-a contra a parede, tudo na presença do menor;
9. A progenitora não reconheceu o impacto negativo no bem-estar do menor decorrente da exposição a episódio de violência entre o casal, verbalizando que ele não se apercebeu do que se passou com a mãe devido à sua tenra idade;
10. Depois da reunificação do menor com a mãe, esta deixou de tomar a medicação regularmente, por se sentir bem e encontrar-se mais estável, recorrendo à automedicação em situações de aumento de stress e tensão;
11. Antes da reunificação com o filho a progenitora teve acompanhamento psicossocial na "Arrisca" verificando-se ao longo do acompanhamento a predominância de humor ansioso e irritável, com ativação rápida da emoção raiva;
12. Em 20 de março de 2017 exibiu estado emocional disfórico, com sentimentos de tristeza, desesperança e raiva, comportamentos de para-suicídio (automutilação) e ideação suicida, sem intenção de plano definido;
13. A medida foi prorrogada em 13-10-17, em virtude da progenitora, já autonomizada com o menor em quarto (com acesso a áreas comuns), sito na Travessa ___, n.° __, ___, concelho de ____, desde 8-10-2017, apresentar instabilidade pessoal associada à sua situação económica precária, descompensação psíquica, emocional e comportamental, agravados por consumos excessivos de álcool, e expor o menor ao conflito com o companheiro;
14. No dia 25-10-2017 a PSP de ____ foi contactada por AA, técnica da EMAT, que informou que a progenitora anunciou que se iria matar assim como o menor LD e colocou no "facebook" uma mensagem em que afirmava que um dia ira acabar com tudo;
15. Contactada pela PSP a progenitora disse que fez aquelas afirmações apenas para chamar a atenção para as suas dificuldades financeiras, uma vez que considera que as instituições não lhe dão a ajuda económica que necessita;
16. O menor LD aparentava estar bem cuidado e nutrido e esteve sempre calmo na presença da PSP;
17. No dia 28-11-2017 a progenitora levou o LD à escola, apresentando então a criança um hematoma na testa e outras marcas de agressão na face e pescoço;
18. Questionado na escola sobre a autoria das lesões referiu que tinha sido o seu pai, querendo referir-se ao padrasto, na medida em que não tem convívios com o pai biológico;
19. Neste mesmo dia o menor foi conduzido e deu entrada no serviço de urgência do Hospital de ____, acompanhado pela educadora Dr.ª RB e pelo Assistente Social ES em virtude de ter verbalizado junto da educadora que «tinham batido com força»;
20. Já no Hospital e confrontada com as lesões, a progenitora disse que o menor caiu para justificar o hematoma na testa, e relativamente às lesões no pescoço justificou com a alça da mochila/lancheira, posição que voltou a sustentar em sede de debate judicial realizado a 17-12-2018;
21. Em novembro de 2017 a progenitora no hospital apresentou-se irritada e impaciente com a situação, sendo possível constatar na altura hálito etílico;
22. Efetuado o exame ao menor constatou-se que apresentava um hematoma frontal com equimose (4x4 cms), lesões escoriais lineares (tipo arranhadela) na região cervical desde a comissura labial direita até à região retro-auricular homologa com 13 cms, lesão escorial linear (tipo arranhadela) do ângulo direito da mandíbula até à região retro-auricular direita com 9 cms, lesão escorial linear (tipo arranhadela) cervical posterior com 4 cms; lesão escorial linear (tipo arranhadela) no antebraço com 6 cms, equimose supra clavicular esquerda com 1,5xlcms;
23. Perante a recusa da progenitora em dar o seu assentimento para aplicação de medida urgente o Serviço Social do Hospital de __ não permitiu, a título cautelar e urgente, a saída do menor do Hospital;
24. Em 30-11-2017 ao menor foi aplicada a título cautelar e provisório a medida de acolhimento residencial na Associação, para conferir ao menor a proteção que a sua mãe não lhe dava, findando assim a medida de apoio junto da mãe;
25. O menor nos primeiros dias do seu acolhimento residencial manifestou dificuldade em adormecer, verbalizando que "esta não é a minha casa, eu quero ir para a minha casa", mas ao fim de alguns dias acalmou e começou a desenvolver uma integração positiva na CAR;
26. O menor continuou a manifestar dificuldade em adormecer e durante o sono revelava muita agitação, falando alto, levantava-se sozinho e andava pelos corredores, mas desde que passou a fazer terapêutica medicamentosa (Rubifen 5 mg) prescrita pela pedopsiquiatra, que mantém atualmente, encontra-se mais calmo e tem noites mais tranquilas;
27. Apenas tem contacto com a figura materna, uma vez que, no que à figura paterna diz respeito, este só procurou a criança na CAR aquando do acolhimento do mesmo.
28. A progenitora desde dezembro de 2017 a julho de 2018 cumpriu com as visitas agendadas e quando não pôde comparecer na visita avisou atempadamente, mantendo contactos quase diários com o menor telefonicamente, revelando-se interessada em todos os assuntos relacionados com o filho, desde a saúde, contacto escolar e atividades da vida diária;
29. Após o acolhimento do LD a figura materna assumiu postura muito agressiva perante os técnicos da casa de acolhimento, verbalizando o menor ter medo de ir à visita com a mãe, e quando estava na presença da mãe que se queria ir embora;
30. Assim, na visita domiciliária efetuada à progenitora no dia 8-01-2018, esta encontrava-se alterada, falando alto, tendo então anunciado que se o LD não regressasse para ela iria ingerir um garrafão de lixívia e que acabava com a sua vida e a do bebé em gestação;
31. O progenitor do menor contactou a instituição pela primeira a vez a 6 de dezembro de 2017, agendado uma visita para o dia seguinte, denotando-se nesta visita não haver proximidade entre o progenitor e o filho, e que este deu mais importância aquilo que o pai lhe trouxe do que à interação com ele;
32. O pai do menor não se mostrou disponível para agendar visitas ao filho, invocando motivos de saúde, e não telefonou para a casa de acolhimento a fim de falar com o LD ou saber dele, consentido no debate de 17-12-2018 que a criança seja encaminhada para a adoção, provando-se que a mãe o tratou mal;
33. Após a audição da mãe no tribunal em fevereiro de 2018 esta alterou o seu comportamento, apresentando-se mais calma nas visitas, e verbalizando que teria de fazer o que lhe era pedido para não perder o filho;
34. O menor LD passou a ir bem-disposto para a visita mas ao ver a mãe não se dirigia para ela de imediato, tendo uma postura apática, permanecendo junto do adulto.
35. A mãe tomava a iniciativa de ir para junto do LD, beijando-o, contudo, o mesmo dirigia-se para a sala e perguntava-lhe, de imediato, se a mãe havia trazido brinquedos ou chocolates, e se ela o negasse ele normalmente reagia mal e dizia que queria ir-se embora, o que alterava a mãe, que chegou a verbalizar "a mãe faz um esforço para vir e tu não agradeces" e "tu não mereces nada".
36. Por vezes se a mãe aparecia nas visitas mais calma o menor conseguia ficar na mesma, mas outras visitas houve em que tal não acontecia, as quais duraram entre 10 a 15 minutos, por desistência do menor, situação que ainda perdura;
37. Perante as birras do menor neste contexto a figura materna fica visivelmente alterada, embora se tente conter, chegando a verbalizar, no verão passado, em estado de visível alteração, na presença da técnica que "se tivesse em casa as coisas seriam diferentes", e interpelada para explicar de que forma respondeu "eu tenho a minha maneira, mas aqui tenho de ser assim, tenho de me controlar";
38. Durante as visitas com a mãe o LD procura com a proximidade e o olhar as monitores em quem encontra proteção, e continua a não ir à procura da mãe, sendo esta quem tem a iniciativa de se aproximar dele, que por vezes dirige à mãe as expressões "pára" e "não quero";
39. Após o nascimento da irmã uterina do menor as visitas da figura materna ao LD diminuíram, na medida em que antes de outubro as visitas da progenitora ao LD perfaziam entre 15 a 20, sendo que em outubro ocorrem apenas 5 visitas, em novembro 4 visitas, e em dezembro corrente apenas duas;
40. A diminuição do número de visitas da mãe ao menor constituiu mais um fator de desestabilização do menor, que se apresenta no presente ano letivo mais instável na escola, onde frequenta uma turma pré-escolar, e neste contexto não acata regras, ficando o seu nível de aprendizagem muito aquém do esperado para a sua idade, e apresentando tendência para tirar objetos da sala de aulas e de colegas e levá-los para casa, como forma de compensação das suas carências afetivas;
41. O menor LD é uma criança meiga, carinhosa e bem-disposta, que procura relacionar-se com os outros através do afeto;
42 Faz muitas birras e apresenta alguma dificuldade em partilhar os seus brinquedos, mas que tem manifestado bom relacionamento com os pares, através da brincadeira e do convívio;
43. Com os adultos, relaciona-se de forma positiva e carinhosa, procurando atenção e afeto.
44. Necessita de desenvolver competências no que respeita ao cumprimento de regras;
45. Atualmente mantém apoio psicológico, de psicomotricidade e de terapia da fala na CDIJA, sendo acompanhado ao nível da pedopsiquiatria, e fazendo terapêutica medicamentosa (Rubifen 5 mg —''A ao pequeno almoço, Y2 ao almoço e V2 ao lanche);
46. A progenitora teve acompanhamento psicológico na "Arrisca", comparecendo a 6 sessões das 9 agendadas, justificando sempre a sua não comparência;
47. A intervenção psicológica centrou-se inicialmente na "ventilação e gestão emocional, especialmente focada na raiva, revolta e tristeza decorrentes do acolhimento do LD", bem como na desconstrução e flexibilização de ideias erróneas e aumento do insigth acerca do seu comportamento. Posteriormente foi trabalhada a vinculação materno-fetal e aceitação da gravidez;
48. VO foi assídua às consultas de psiquiatria;
49. A Equipa do RSI mantém o apoio económico à progenitora, abrangendo este a aquisição de bens alimentares, medicação e apoio para o transporte, tendo esta ainda acompanhamento de Ajudante Sócio Familiar para a orientação na aquisição de bens alimentares, por ter sido comprovado, através da entrega de documentos comprovativos, que a mesma gastava a prestação de RSI em "bens supérfluos" bem como para a organização do enxoval da irmã uterina do menor;
50. Após o nascimento da filha, irmã uterina do menor, a progenitora passou a beneficiar de abono de família e subsídio de maternidade;
51. Atualmente vive com um novo companheiro, não aparentando nas visitas domiciliárias realizadas sinais de consumo de bebidas alcoólicas em excesso;
52. O progenitor reside com a sua mulher e filhas, está desempregado, e sofre atualmente de doença oncológica grave revelando-se indisponível para visitar o menor, bem como para cuidar dele;
53. Não existem familiares, padrinhos do menor, ou outras pessoas disponíveis para o acolher;
54. O LD é um menino que desde o seu nascimento, tem experienciado uma dinâmica familiar pautada por elevada instabilidade a todos os níveis, o que afeto seriamente o seu desenvolvimento cognitivo e psicoemocional, muito notável na falta de estrutura interna e nas dificuldades que apresenta em contexto de lar de acolhimento;
55. É uma criança extremamente carente, com elevada desorganização interna, que tem noites muito intranquilas, dificuldades de aprendizagem e na vinculação com os outros, sentindo-se inseguro, demonstrando fraca tolerância à frustração, insensibilidade a regras, e características emocionais infantis atendendo ao esperado para a sua idade;
56. A este facto não é alheia toda a sua história de vinculação com a figura materna, com quem demonstra um modelo de vinculação insegura evitante, traduzida em desconforto no contacto físico / de proximidade, sentimentos de desamparo face às suas necessidades e rejeição desta figura por ser percebida como desestabilizadora;
57. O perito médico concluiu que a postura do LD em consulta face apenas à abordagem à sua figura materna - mudando o seu tónus emocional e verbalizando medo face à possibilidade de presença daquela no gabinete dele, são tradutores deste tipo de vínculo, não sendo necessário submeter a criança a urna forçosa observação da interação em contexto médico-legal (por si só "artificial");
58. Mais concluiu, face ao conhecimento sobre o desenvolvimento infantil que a literatura lhe providenciou, em termos científicos, sobre os efeitos da violência física e psicológica sobre crianças de tenra idade, e ainda sobre os modelos de vinculação inseguros rejeitantes, que o LD apresenta comportamentos compatíveis de uma criança negligenciada e maltratada pelas suas figuras afetivas de referência, importando por isso que a criança não volte a integrar o meio afetivo que, volvidos cinco anos da sua existência, não soube promover o seu salutar desenvolvimento, tão quanto potenciar a ajuda que tem recebido por parte de instituições de promoção da infância e adolescência.
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3.2 – Apreciação do mérito do recurso:
O n.º 1 do art. 35.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo[1], prevê, na sua al. g), entre as medidas de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo, aquela que consiste na sua confiança a instituição com vista à adoção.
Trata-se, como resulta do n.º 2 do artigo, de uma medida que apenas a título definitivo pode ser aplicada.
Nos termos do art. 38.º-A da LPCJP:
«A medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção, aplicável quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 1978.º do Código Civil, consiste:
a) Na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de candidato selecionado para a adoção pelo competente organismo de segurança social;
b) Ou na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de família de acolhimento ou de instituição com vista a futura adoção.».
A validade da aplicação destas medidas depende, assim, de no caso concreto se verificar qualquer uma das situações previstas no art. 1978.º do C.C., que regula a confiança judicial com vista a futura adoção.
Importa, pois, indagar se, "in casu", se verifica alguma das situações previstas no art. 1978.º do C.C., suscetível de determinar a aplicação, ao menor LD, da medida de promoção e proteção consiste na sua confiança a uma instituição dom vista à sua adoção.
Dispõe o mencionado artigo do Código Civil, com a redação que lhe foi dada pelo art. 2.º da Lei n.º 143/2015, de 08.09:
«1. O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:
a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adoção;
c) Se os pais tiverem abandonado a criança;
d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;
e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.
2 - Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.
3 - Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças.
4 - A confiança com fundamento nas situações previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 não pode ser decidida se a criança se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao 3.º grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aqueles familiares ou o tutor puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou se o tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o interesse daquela».
Uma tal medida não pode, em qualquer caso, olvidar o princípio orientador de intervenção a que alude a al. h) do art. 4.º da LPCJP[2], pelo que apenas deverá ser adotada quando que se mostre afastada a possibilidade de retorno da criança à sua família natural, para além, claro, da verificação concreta de alguma das situações referidas no citado art. 1978.º do C.C., e sempre no superior interesse da criança.
Isto porque, conforme estipula o n.º 5 do art. 36º da CRP, «os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos», acrescentando o n.º 6, que «os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial».
É competência dos pais, no interesse dos filhos, além do mais, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação (art. 1878.º do C.C.).
No entanto, por outro lado, tal como resulta dos arts. 65º e 69º da CRP, as crianças têm direito a ser protegidas pela sociedade e pelo Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, tendo direito a especial proteção do Estado as crianças órfãs ou que se encontrem em estado de abandono ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal, visando o seu integral desenvolvimento.
Incumbe, assim, ao Estado e à comunidade assegurar e viabilizar o direito fundamental de toda a criança a desenvolver-se numa família, enquanto elemento essencial do Estado, tendo ela própria direito à proteção do estado (art. 67.º da CRP).
A intervenção do Estado deve atender prioritariamente aos superiores interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto[3].
Nos termos do art. 4.º, al. a), da LPCJP, a intervenção para a promoção de direitos e proteção de criança e de jovem em perigo obedece ao princípio do seu superior interesse: «a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto».
A Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovada em Nova Iorque em 20 de Novembro de 1989, aprovada por Portugal e publicada no D.R., I série, de 12.9.1990, estabelece que todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança (art.º 3.º n.º 1).
Nos termos do n.º 1 do art.º 9.º da Convenção, a criança não será separada dos seus pais contra a vontade destes, a menos que a separação se mostre necessária, «no interesse superior da criança».
Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, «por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança» (2.º período do n.º 1 do art.º 9.º).
O art.º 20.º da Convenção prevê a situação de crianças que, «no seu interesse superior», não possam ser deixadas no seu ambiente familiar, reconhecendo-lhes o direito a proteção alternativa, que pode incluir a adoção.
O seu art.º 21.º da Convenção determina que o interesse superior da criança será a consideração primordial no domínio da adoção.
A Convenção Europeia em Matéria de Adoção de Crianças, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/90 e ratificada por Decreto do Presidente da República publicado no D.R., I série, de 30.5.1990, estipula que «a autoridade competente não decreta uma adoção sem adquirir a convicção de que a adoção assegura os interesses do menor» (art.º 8.º, n.º 1), devendo atribuir-se «particular importância a que a adoção proporcione ao menor um lar estável e harmonioso» (art.º 8.º, n.º 2).
O conceito de interesse da criança, não obstante ser uma expressão incontornável e subjacente a qualquer decisão que envolva a criança, escapa muitas vezes a um compreensão em profundidade e abrangência, suscetível de verificar e dar sentido prático ao direito[4].
Importa, pois, analisar e concretizar o que deve entender-se por “interesse da criança”, qual a sua natureza jurídica e conteúdo, tratando-se, como se trata, de um conceito jurídico indeterminado.
O conceito interesse da criança é, socorrendo-nos das palavras de Maria Clara Sottomayor, uma noção em desenvolvimento contínuo e progressivo, uma noção polimorfa, plástica e essencialmente não objetivável, que pode assumir todas as formas e vigorar em todas as épocas e em todas as causas.
No direito da família, a finalidade desta técnica legislativa apresenta uma originalidade, que consiste sobretudo em seguir a evolução singular de cada família, tida como um microcosmos.
A noção do interesse da criança traduz assim, a evolução do direito da família no sentido do abandono de um modelo familiar único e transcendente, a favor do reconhecimento da diversidade social e da gestão das situações individuais.
O legislador não terá definido o “interesse da criança” para permitir que a lei se pudesse adaptar à variabilidade e imprevisibilidade das situações da vida, maxime da situação de cada criança, podendo mesmo afirmar-se que o interesse da criança não é um fim em si mesmo, mas um instrumento operacional cuja utilização é confiada ao juiz.
A Autora a que nos vimos reportando chama a atenção para o facto de este conceito, dado o seu estreito contacto com a realidade quotidiana, não ser suscetível de uma definição em abstrato que valha para todos os casos.
Este critério só adquire eficácia prática quando referido ao interesse de cada criança, pois há tantos interesses da criança como crianças, cabendo, portanto, em cada caso concreto concretizar o conteúdo do interesse daquela criança cujo destino está em jogo.
Enquanto conceito jurídico indeterminado podem ser apresentadas duas funções ao critério "interesse da criança": critério de controlo e critério de decisão.
De acordo com a primeira, o interesse da criança serviria como critério de controlo, ou seja, seria um instrumento que permitiria vigiar o exercício das responsabilidades parentais. O interesse da criança tem, de acordo com este critério, a função de estabelecer um controlo mínimo do Estado em relação à família, o qual opera, de acordo com a legislação de cada ordem jurídica, só em casos de grave perigo para a saúde psíquica ou física da criança. Visa-se, deste modo, por um lado, proteger a criança e, por outro, delimitar a esfera de privacidade da família perante a intervenção do Estado, permitindo a intervenção deste apenas em casos excecionais.
O interesse da criança como critério de controlo não atinge um grau de indeterminação tão elevado como quando opera como critério de decisão, na maioria dos casos de atribuição da guarda. Com efeito, estamos numa área em que a ordem jurídica, através da Constituição, estabelece princípios fundamentais (art. 36.º, n.ºs 5 e 6, e art. 69.º, n.º 1) que definem o âmbito de privacidade da família face ao Estado e dos poderes dos pais face a terceiras pessoas.
Estes princípios informam o conteúdo daquilo a que costuma chamar-se o núcleo do conceito de interesse da criança, e serão também utilizados como critério de decisão, nos conflitos de guarda entre os pais, nos casos em que um deles põe em perigo a saúde, segurança ou formação moral da criança.
Por sua vez, de acordo com a segunda função, o interesse da criança é utilizado como critério de decisão numa situação jurídica conflitual. O direito positivo geralmente aponta o conceito de interesse da criança como critério para a resolução judicial dos conflitos de direitos que dizem respeito a esta.
Enquanto conceito indeterminado, pode dizer-se que o interesse da criança é formado por “dois halos conceituais”.
O primeiro, designado por "núcleo do conceito", goza de um grau de indeterminação menor e é caracterizado pelo recurso a princípios constitucionais e às normas sociais da comunidade. O “núcleo do conceito” permite resolver aqueles casos em que um dos pais põe em perigo a vida, a saúde física ou psíquica do menor ou em que só um dos pais é o “progenitor psicológico”[5] da criança. Trata-se, portanto, de casos que comportam só uma solução possível.
Por sua vez, o segundo, designado por "halo do conceito", deverá ser preenchido através de valorações pessoais do juiz, uma vez que comporta uma pluralidade de sentidos. Este “halo do conceito” confere ao juiz poderes discricionários na resolução daqueles casos mais difíceis, em que os princípios constitucionais ou as normas sociais da comunidade não fornecem a solução do caso. No entanto, a atribuição de poderes discricionários não legitima o juiz a decidir de acordo com os seus preconceitos, sentimentos ou valores.
A fundamentação das sentenças também assume, neste âmbito, um papel decisivo, pois permite aos seus destinatários identificar os fatores que levaram o juiz à decisão, o peso que lhes foi atribuído e o raciocínio que conduziu o juiz à declaração do direito do caso concreto, permitindo-lhes recorrer da decisão em caso de abuso dos poderes discricionários.
Podemos, portanto, concluir que o conceito de interesse da criança comporta uma zona em que, em maior ou menor grau, a subjetividade do juiz desempenha um papel na decisão final. Apesar de não ser possível medi-lo, o sentimento do juiz na aplicação do direito é, sobretudo nestas matérias, uma realidade inegável[6].
Em suma, com Almiro Rodrigues, deve entender-se por superior interesse da criança e do jovem, o seu direito ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições liberdade e dignidade[7].
Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira salientam que a redação do corpo do art. 1978.º do C.C., levanta uma dúvida: «a não existência ou o sério comprometimento de vínculos afetivos próprios da filiação é um requisito autónomo, de que há que há que fazer prova, ou a verificação objetiva de uma das situações previstas nas cinco alíneas do art, 1978.°, n.º 1, constitui presunção iuris et de iure de que aqueles vínculos não existem ou se encontram seriamente comprometidos, de modo que só há que fazer prova de uma dessas situações? Falando na verificação "objetiva" das situações que especifica, a lei pode sugerir este 2.° entendimento; mas inclinamo-nos para o 1.º (pois de outro modo seria inútil a exigência de que os vínculos afetivos próprios da filiação não existissem ou estivessem seriamente comprometidos), tendo assim a ação de confiança judicial uma causa de pedir complexa. Note-se que a lei continua a exigir que não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação [é a esses vínculos que a al. e) do n.º 1 se refere], não bastando que o estejam os vínculos, por assim dizer, económico-sociais próprios dela»[8].
No entender de Tomé Ramião, «a exigência desse pressuposto ("não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação") há de resultar da verificação objetiva de qualquer uma das situações referidas nas alíneas do seu n.º 1»[9].
No caso concreto está em causa a verificação, ou não, das situações previstas:
- na al. d) do n.º 1 do art. 1978.º do C.C., no que respeita à mãe da criança, a ora apelante;
 - na al. e) do n.º 1 do art. 1978.º do C.C., no que respeita ao progenitor da criança.
Quanto à al. e) do n.º 1 do art. 1978.º do C.C.: «se os pais da criança acolhida (…) por uma instituição (…) tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.»
A propósito desta alínea, escreve Paulo Guerra que a mesma «prescreve requisitos cumulativos e que sofreu algumas alterações de fundo, desde logo, reduzindo o prazo de 6 para 3 meses e acrescentando os epítetos «qualidade e continuidade», no que concerne aos vínculos parentais.
Os outrora seis meses, hoje três meses de separação, têm sido considerados o limite da irreversibilidade.
No entanto, há que atender ao grau de desenvolvimento de cada criança e ao estádio ou fase desse mesmo desenvolvimento.
Tenha-se, no entanto, em atenção que o prazo de 3 meses (prazo este que se conta desde o momento em que começa a cogitar, em tribunal, a aplicação da medida de confiança com vista a futura adoção) deve ser entendido com agilidade, de forma a não serem consideradas as visitas (ou os meros telefonemas) daqueles progenitores que se limitam a, de tempos a tempos, passarem pelo centro de acolhimento para «descarregarem» mais uma visita, sem que demonstrem qualquer sério esforço para reunir condições que viabilizem o retorno do filho ao meio familiar - como tal, é cogitável concluir-se pelo manifesto desinteresse dos pais apesar de estes visitarem o filho, por exemplo, todos os meses, mas de forma vazia e quase oportunista.
Neste particular, importa também que o Tribunal confie na leitura que a instituição que acolhe a criança faz dessas visitas, a fim de evitar ser enganado quanto ao que realmente se passou entre as quatro paredes do centro de acolhimento, vendo desinteresse onde afinal o não há, para aí empurrado por técnicos parciais que já pensaram e querem fazer vingar, contra tudo e contra todos, o pensado projeto daquela criança - no entanto, voltamos sempre, e ainda bem, ao comando constitucional do artigo 36.°, n.º 6 (nenhum filho pode ser separado de seus pais, contra a vontade destes, a não ser que estes o coloquem em perigo e sempre mediante a decisão de um Juiz e de mais ninguém)!
Com interesse para a definição do conceito de “desinteresse” é a contraposição face à antiga indignidade (que justificava a dispensa do consentimento).
Duas posições foram tomadas, na altura, sobre a matéria:
· tratavam-se de conceitos autónomos - tese maioritária [a alínea a) do n.º 2 do artigo 1988.° do CC, na redação original, permitia a dispensa do consentimento “... por serem indignas as pessoas... ou por mostrarem desinteresse...”, distinguindo os conceitos; o desinteresse seria apreciado na ação de declaração do estado de abandono e não no processo de adoção; o desinteresse dispensava a averiguação da indignidade quando levava à não exigência do consentimento por via da declaração do estado de abandono, resultando, assim, de uma omissão, de uma situação passiva, não sendo evidente o romper do vínculo afetivo, enquanto a indignidade operava pela atividade em si, objetivamente reveladora da quebra desse vínculo];
· a indignidade também envolveria condutas omissivas [a noção da alínea a) do n.º 2 do artigo 1988.º do CC visou ultrapassar a restrita noção de abandono do artigo 1962.º, restrita ao filho de pais incógnitos ou ausentes em parte incerta, deixado ao desamparo, e daí que se tenha eliminado a distinção, até face ao artigo 1978.°, na redação de 1977; haveria indignidade na falta de assistência material ou espiritual do filho].
Perante o atual regime, desapareceu o conceito de indignidade, constituindo o anterior desinteresse fundamento de dispensa do consentimento, o que vai no sentido dos defensores da segunda corrente acima mencionada.
Parece, assim, que a nova lei não visou alterar a anterior noção de desinteresse, mantendo-se o seu cariz de comportamento passivo ou omissivo.
O desinteresse distingue-se do abandono, porquanto este representa um comportamento ativo (ativo, no afastamento, omissivo, na sua manutenção), traduzindo-se num objetivo, patente e inequívoco afastamento (voluntário ou não), existindo já a quebra do vínculo afetivo da filiação.
O desinteresse supõe uma situação omissiva, de não fazer, em que ainda há contacto com a criança, gerando-se a dúvida acerca da manutenção ou não do referido vínculo.
Da omissão reiterada à ação de afastamento (afastamento inicial com posterior omissão de contacto com o menor) é uma questão de grau, pelo que, havendo dúvida sobre o abandono, dever tratar-se a questão, ou em sede de perigo ou em sede de desinteresse.
O perigo omissivo e o desinteresse supõem o contacto com a criança e a manutenção de um certo vínculo que pode estar comprometido.
A gravidade do perigo omissivo parece-nos ser, assim, um critério de distinção, assente, contudo, que a gravidade do perigo não se confunde com o comprometer do vínculo afetivo da filiação e que o critério da gravidade respeita ao grau de probabilidade do dano, ao tipo de dano possível e à maior ou menor reversibilidade da situação.
Mas mais importante é o facto de, na generalidade dos casos, não existir perigo imediato para a criança nos casos da alínea e) do artigo 1978.º, n.º 1, isto porque ela está ao cuidado de uma instituição de apoio ou acolhido por particular idóneo [esta alínea contempla, assim, situações de «abandono ficcionado», e não diretamente situações de perigo omissivo, embora, em nossa opinião, as possa abarcar, quando não sejam subsumíveis à alínea d) e constituam situações assimiláveis ao tal “abandono ficcionado”].
Como se vê, as alíneas c) e e) exigem a rutura (o abandono de facto, traduzido no inequívoco ato de quebra definitiva do vínculo afetivo próprio da filiação ou o desinteresse, traduzido no dito “abandono ficcionado” para efeitos legais) - a este propósito, há que dizer que o desinteresse da alínea e) deverá ser notório e não apenas subjetivo, sendo, por outro lado, irrelevante a alegação e prova da subsistência de um vínculo afetivo de ordem exclusivamente subjetiva»[10].
Acrescenta o Autor, em sintonia com a posição acima referida de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, que «todos estes fundamentos precisam de demonstrar na prática que não existem (nunca existiram) ou que se encontram seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação (vistos tanto na perspetiva dos pais para com os filhos como na dos filhos para com os pais), não bastando, assim, uma situação de mera incúria quanto ao cumprimento dos seus deveres ou de carência económica dos pais da criança - esta outra das novidades da Reforma de 2003.
(…) estas ações têm uma causa de pedir complexa, na linha do opinado por Guilherme de Oliveira: na realidade, ao lado dos fundamentos objetivos das várias alíneas do artigo 1978.°, há que provar - prova essa que resulta dos factos apurados e do juízo que deles se faz, a exemplo do que se fazia no divórcio litigioso - quando a culpa ainda perpassava pelos nossos divórcios - quanto à conclusão de que a violação ilícita e culposa de um dever conjugal, pela sua gravidade ou reiteração, comprometia a possibilidade de vida em comum de um casal - que, de facto, não existem ou estão seriamente comprometidos os vínculos afetivos (e não se fala aqui de vínculos económico-sociais) próprios da filiação.
Desta forma, entende-se que a verificação e prova das circunstâncias das alíneas do art. 1978.º, n.º 1, não constitui uma presunção iuris et de iure de que aqueles vínculos não existem ou se encontram seriamente comprometidos – o que é verdade é que nenhuma confiança com vista a futura adoção, em sede judiciária , pode ser decidida no sentido da procedência sem que a verificação do comprometimento dos vínculos próprios da filiação seja autonomamente feito»[11].
Por sua vez, afirma Madalena Alarcão, «é relativamente explícita quanto à existência de um desinvestimento afetivo dos pais relativamente a um menor acolhido. Nestas situações é importante avaliar e compreender o significado deste desinteresse parental, dos seus comportamentos de afastamento e/ou de contacto episódico e irregular»[12].
Apontando, adiante, para fatores como, entre outros, dificuldades de deslocação, dificuldades económicas, dificuldades de articulação com o trabalho, perda de controlo sobre a sua própria vida, poderem contribuir para explicar situações em que os pais, sobretudo ao fim de algum tempo, deixam de contactar os seus filhos quando estes estão temporariamente institucionalizados.
Acrescenta que em qualquer dos casos, a dúvida, a existir, quanto à adequação da solução da adoção da criança com cessação dos direitos dos seus pais passa não tanto pela constatação das dificuldades parentais mas, sobretudo, pela avaliação e constatação da impossibilidade de mudança do comportamento parental, pela ponderação do que é mais ameaçador para o desenvolvimento da criança, se a permanência num contexto familiar caracterizado por dificuldades e inconsistências da parentalidade, aliadas a alguma negligência, se o corte de uma filiação que embora atribulada, constitui uma referência num percurso desenvolvimental marcado por uma ou mais ruturas.
José Lino Saldanha Retroz Galvão Alvoeiro afirma que o cerne da al. e) do n.º 1 do art. 1978.º do C.C. na atual economia legislativa «o desinteresse que releva pressupõe a existência de contacto com a criança e a manutenção de um determinado vínculo com a criança, cuja qualidade ou continuidade está irremediavelmente comprometida ou, pelo menos, em que surge alguma dúvida quanto à sua manutenção.
(…) o âmago do conceito de desinteresse surpreende-se numa mera atitude omissiva, um comportamento negativo, uma abstenção, assim se distinguindo do abandono (…), muito embora, não poucas vezes, a distinção é de mero grau: o progenitor começa por se afastar da criança, sendo essa ausência de contacto cada vez mais espaçada no tempo até culminar num total apartamento do progenitor (ocorrendo, então, um «abandono ficcionado» para efeitos legais e não um perigo omissivo pois que a criança está à guarda de um particular ou de uma instituição).
Em geral, no desinteresse ainda houve apego, pelo menos aparente, sem a devida qualidade, mas houve uma ligação afetiva. Por isso a lei exige que o desinteresse seja manifesto e que perdure, para poder-se concluir pela rutura dos laços afetivos próprios da filiação, ou, pelo menos, que se verifique um comprometimento sério dos vínculos de afeto que caracterizam a filiação.
O desinteresse só releva se for manifesto, isto é, aparente, evidente, ostensivo e exteriorizado em comportamentos facilmente apreensíveis por terceiros, como sejam: a ausência de visitas ao filho institucionalizado; a falta de contribuição para o sustento do filho acolhido por terceiros; o desconhecimento dos gostos e interesses da criança; a falta de indagação sobre o desenvolvimento e comportamento do filho institucionalizado ou acolhido por pessoa singular ou família.
Mas não só: a falta de prestação de cuidados, ainda que no próprio período de visitas (como, por exemplo, o não mudar a fralda, o não querer alimentar a criança no período da visita), a falta de empenho na aquisição de competências parentais ou o desprendimento em relação filho (evidenciado na forma como se interrelaciona com a criança ou no modo como com ela brinca).
No entanto, pode-se assentar que não há desinteresse manifesto quando os pais encetam uma série de medidas para recuperarem a guarda dos filhos (mesmo em sede judicial) ou quando ainda antes da institucionalização procuraram melhorar as suas condições ou até quando um dos progenitores sinaliza uma situação de risco imputável ao outro progenitor e demonstra genuíno desejo de ter a criança à sua guarda.
Todavia, não poderão ser meras afirmações platónicas dos progenitores, sem qualquer correspondência em atitudes genuínas nem em consequências práticas, a sustentar um juízo probatório de inexistência do desinteresse manifesto.
Doutra guisa, não são meras visitas esporádicas dos progenitores aos filhos (não poucas vezes à beira de se completarem três meses da anterior visita e com o único desiderato de interromper o período temporal referido na última parte da alínea e) do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil) a evitar a comprovação do desinteresse manifesto.
O desinteresse não se manifesta senão por sinais exteriores, por todos visíveis.
A avaliação do desinteresse faz-se, portanto, de modo global, considerando todo o comportamento dos pais, mas em particular as declarações dos pais em juízo e o modo como decorrem as visitas destes à criança, isto é, a qualidade dessas visitas do ponto de vista relacional e comunicacional e na ótica dos afetos.
É que pode existir desinteresse manifesto ainda que os progenitores visitem religiosamente, todas as semanas, a criança numa instituição se e quando esses contactos decorrem de forma vazia e quase oportunista e os pais não logram estabelecer com o filho patamares de qualidade mínima naqueles parâmetros (quando, por exemplo, não tomam a iniciativa, não se relacionam, nem brincam verdadeiramente com o filho institucionalizado, nem com ele comunicam adequadamente) limitando-se a “picar o ponto” com uma indiferença atroz.
Este aspeto é bastante importante porquanto o julgador há-de ter em conta, apesar de tudo, que tais visitas são observadas, o que naturalmente pode condicionar o comportamento dos pais durante esses contactos com os filhos. Todavia, ao fim de várias visitas, o mais provável é que os pais se revelem totalmente e que a avaliação dos respetivos técnicos não seja contaminada por qualquer constrangimento decorrente dessa avaliação.
Embora a última decisão compita apenas ao julgador (pois que este é, ao menos numa conceção tradicional que ainda tem reflexo no texto da lei vigente, o “perito dos peritos”), certo é que o julgador deve confiar no parecer dos técnicos que procedem à avaliação da qualidade das visitas, mantendo, porém, um apurado sentido crítico e uma panóplia de conhecimentos que lhe permita fazer um escrutínio adequado das conclusões alcançadas pelos peritos.
Por outro lado, esses técnicos, que são muitas vezes assalariados da instituição onde a criança se encontra acolhida, devem manter total independência e distanciamento por forma a dar total credibilidade às suas conclusões, as quais terão necessariamente de assentar no saber e experiência da especialidade.
Para verificação integral dos pressupostos desta alínea e) do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil não basta, porém, a demonstração do desinteresse manifesto, antes se exigindo, concomitantemente, que o mesmo se mantenha durante certo período temporal, mais especificamente, durante os três meses anteriores ao pedido de confiança.
Esse período temporal constitui, portanto, um requisito distinto e adicional, o qual não se confunde com o pressuposto nuclear que é a existência do manifesto desinteresse. Destarte, torna-se claro que o conceito indeterminado de “manifesto desinteresse” dos pais, consagrado no art. 1978.º, n.º 1, alínea e), não deve ser mais aferido através de um critério cronológico, traduzido na mera existência ou inexistência de visitas, em cada três meses.
Não obsta a que se declare tal manutenção do desinteresse a eventual existência de um ou outro telefonema ou correspondência isolados, a ocorrência uma visita ocasional ou a oferta de um brinquedo ou de um livro num qualquer dia desses três meses, pois que tais atos, desgarrados de um comportamento persistente e constante no tempo não constituem evidências de interesse genuíno.
Consequentemente, pode-se assentar que não devem, por regra, ser consideradas as manifestações de interesse surgidas após o pedido de aplicação da medida de confiança judicial com vista a futura adoção.
Na prática judicial (…) acontece com amiudada frequência: apesar de anteriormente alertados para a possibilidade de um eventual encaminhamento para a adoção, os progenitores apenas parecem despertar para a gravidade da situação depois de tomarem conhecimento desse pedido.
Todavia, a irrelevância dessas tardias manifestações de interesse dos progenitores há de ter como limite último o superior interesse da criança, podendo este fazer com que aquela regra ceda, consoante determinado circunstancialismo concreto.
De facto, poderá haver determinados casos em que se torne totalmente desadequada e desatualizada uma confiança judicial aquando do momento da tomada de decisão, embora a mesma se pudesse ter como mais correta e própria naqueles três meses anteriores ao respetivo pedido.
E note-se que pode existir alguma distância temporal entre esse período de permanência do desinteresse e o momento em que o tribunal é chamado a decidir, o que pode criar um hiato profundo entre a realidade processual relevante e a realidade atual.
Ora, estamos em pleno domínio da jurisdição voluntária pelo que o tribunal não está vinculado a critérios de estrita legalidade sendo legítimo, em casos excecionais e segundo juízos de prudente oportunidade, extrair as consequências necessárias de um eventual interesse genuíno ainda que manifestado em momento posterior ao pedido da confiança.
Contudo, todas as cautelas serão poucas em situações deste calibre porquanto o passado recente dos progenitores indica o caminho da separação definitiva pais/filhos, enquanto o presente pode indiciar solução oposta. A dificuldade maior está, provavelmente, em perscrutar acerca da solidez desse interesse tardio e do seu eventual recuo a curto ou médio prazo. Da experiência (…) vivida nesta jurisdição de crianças e jovens [é possível] assegurar que só em caso de grande delonga do iter processual (dois anos ou mais) se afigura provável a possibilidade de inflexão da atitude dos progenitores perante a criança.
Conclui-se, portanto, que as manifestações de interesse tardio dos progenitores em relação à criança não relevam, por norma, para inferir o manifesto desinteresse anterior ao pedido de confiança.
De todo o modo, é mister concatenar tal regra geral com as consequências práticas da aplicação do princípio da atualidade, segundo o qual a intervenção judicial deve ser adequada à situação em que a criança (ou o jovem) se encontra no momento em que é tomada a decisão, sempre em subordinação ao superior interesse e aos direitos da criança»[13].
No caso concreto, resulta à evidência da matéria de facto provada, que se verifica, relativamente ao progenitor da criança, a situação a que alude a al. e) do n.º 1 do art. 1978.º do C.C.
É o que manifesto da seguinte factualidade:
- O progenitor reside com a sua mulher e filhas, está desempregado, e sofre atualmente de doença oncológica grave revelando-se indisponível para visitar o menor, bem como para cuidar dele;
- O progenitor do menor contactou a instituição pela primeira a vez a 6 de dezembro de 2017, agendado uma visita para o dia seguinte, denotando-se nesta visita não haver proximidade entre o progenitor e o filho, e que este deu mais importância aquilo que o pai lhe trouxe do que à interação com ele;
- O pai do menor não se mostrou disponível para agendar visitas ao filho, invocando motivos de saúde, e não telefonou para a casa de acolhimento a fim de falar com o LD ou saber dele, consentido no debate de 17-12-2018 que a criança seja encaminhada para a adoção, provando-se que a mãe o tratou mal;
A propósito da al. d) do n.º 1 do art. 1978.º do C.C., escreve Paulo Guerra que «há que dizer que na mesma se pressupõe a manutenção da relação pais/filhos, embora seriamente comprometida (o perigo hoje considerado grave, próximo da antiga indignidade - na interpretação que abarca a acção e a omissão -, traduzido na forte possibilidade do dano grave); note-se que o perigo aqui considerado é aquele que, de forma exemplificativa, surge circunstanciado nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 3.° da LPCJP (cf. artigo 1978.°, n.º 3, do CC).
Este perigo é uma situação de facto que ameaça um qualquer dos itens consagrados na alínea em causa (que em boa hora acrescentou agora o «desenvolvimento», a exemplo da LPCJP), não se exigindo que já se tenha verificado, como resultado de concreta acção dos pais, a efectiva lesão.
A este propósito, basta lembrarmo-nos daqueles situações muito vulgares de pais absolutamente disfuncionais (por comportamentos aditivos graves e igualmente graves enfermidades mentais), a quem outros filhos já foram retirados por clara negligência, e que vêem o seu filho recém-nascido sair da maternidade directamente para um centro de acolhimento, aí até o visitando e até demonstrando indícios de afecto pela criança - objectivamente, estes pais ainda não tiveram a oportunidade de colocar em perigo concreto o seu filho, precisamente porque ainda o não tiveram nos seus braços a sós, sendo óbvio que ninguém o irá entregar às suas mais do que suspeitas pessoas só para saber se, agora, com este filho, a alínea d) também poderá entrar em acção - basta assim a história pessoal passada dos pais - repetimos, grave e negra, em termos de condições objectivas e subjectivas para cuidar de uma criança -, e a prognose de que este comportamento disfuncional não se inverteu nem existe a probabilidade de se vir a inverter num futuro próximo, para que esta alínea possa funcionar para efeitos de se considerar uma criança em estado de adoptabilidade.
A novidade desta alínea, na reforma de 2003, reside na circunstância de se colocar, ao lado das situações de dolo ou negligência, aquelas que resultam de verdadeira incapacidade devida a razões de saúde mental (o que também é indiciado pelo adjectivo «objectiva» no corpo do n.º 1 do artigo em causa) - desta forma, tentou-se ultrapassar as divergências que giravam em torno deste fundamento, em caso de anomalia ou enfermidade psíquica dos pais.
De facto, não é a saúde mental dos pais que determina por si só com a relação com os filhos - é, antes, um problema de saúde mental que provoca Il';t1 perigo para os filhos e que, além disso, compromete seriamente os vínculos próprios da filiação.
Assim sendo, acentua-se o carácter objectivo das condutas ou situações vividas pela criança em perigo, podendo mesmo configurar-se como tal uma situação de gestação não vigiada pelos progenitores, aliada a toda uma disfuncionalidade vivencial subsequente ao nascimento»[14].
José Lino Saldanha Retroz Galvão Alvoeiro afirma que o que avulta nesta previsão da al. d) do n.º 1 do art. 1978º do C.C., é que «a confiança judicial dispensa a necessidade de verificação da imputação, a título culposo, dos comportamentos, ativos ou omissivos, dos progenitores para com os filhos[15].
Com efeito, a confiança judicial pode também ser decretada sempre que os pais, independentemente de culpa, coloquem em grave perigo o seu próprio filho.
Pressupõe-se aqui, pois, uma mera avaliação objetiva do modo como os pais desempenham a função parental e da forma como se relacionam com os filhos.
Neste particular e para a avaliação do tipo de ações e omissões causadores do perigo grave, é mister compreender que o incumprimento, ou o deficiente cumprimento, do exercício das responsabilidades parentais resulta, vastas vezes, não de atos conscientes e voluntários dos pais mas por motivos atinentes a mera incapacidade, a falta de empenho, à simples inexperiência, a determinados parâmetros culturais, a doença, a desvios comportamentos ou, ainda, em razão da dependência de determinadas substâncias, como estupefacientes ou álcool.
Não faz sentido, nem tal resulta da lei, que a confiança com vista a futura adoção seja configurada como uma forma de punir os pais por quaisquer atos praticados ou omitidos, antes estando legalmente delineada como uma providência cujo desiderato único é proteger a criança.
De facto, já supra salientámos que a verificação das condições previstas em qualquer uma das alíneas do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil se deve operar na ótica da primordial consideração dos direitos e interesses da criança, o que, de resto, resulta do n.º 2 daquele artigo 1978.º.
Tal significa que o julgador deve atender mais à situação concreta da criança, ao perigo em que a mesma se encontra e as respetivas causas, do que aos fatores concretos que permitiram a imputação subjetiva, através do conceito de culpa, dos comportamentos dos pais.
Em abono desta posição pode chamar-se à colação o disposto no artigo 1915.º do Código Civil onde se prevê como fundamento da inibição do exercício das responsabilidades parentais, ao lado da infração culposa dos deveres para com os filhos, a falta de condições para cumprir tais deveres por inexperiência, enfermidade, ausência, ou outras razões.
Ou seja, além das situações de violação culposa daqueles deveres que os pais têm para com os filhos, a lei permite que os progenitores sejam inibidos do exercício das responsabilidades parentais em determinados quadros factuais para as quais em nada contribuíram de modo voluntário e consciente: vejam-se os casos de doença e de inexperiência.
O fundamento que subjaz a tal previsão normativa é, obviamente, a necessidade de proteção do pólo mais débil da relação pais-filhos, sendo o interesse destes prevalecente face ao eventual interesse dos progenitores em manter tal relação.
No entanto, e como facilmente se antolha, na base desta hermenêutica está a superação completa da consideração do caduco poder paternal enquanto mero direito individual que vê nos filhos um objeto de posse do titular daquele direito.
Hodiernamente, a conceção do que seja o poder paternal é bem diversa.
De modo impressivo, não se alude já a esse poder, antes se preferindo o conceito de responsabilidades parentais que acentua parâmetros que contendem com aspetos relacionais, com os afetos, e com a obrigação e o modo de cuidar.
Esta denominação de responsabilidade ou cuidado parental exprime uma ideia de compromisso diário dos pais para com as necessidades físicas, emocionais e intelectuais dos filhos. Ou seja, traduz melhor o poder-dever dos pais de promoverem o desenvolvimento, a educação e a proteção dos filhos menores.
A expressão poder paternal, por seu turno, acentua a ideia de que o pai, enquanto figura dominante da família patriarcal, tem a posse ou o domínio sobre os filhos. Obviamente que tal expressão não é mais que o reflexo conceitual do paradigma tradicional da infância, ainda tributário do antigo direito romano, mas já totalmente ultrapassado, como aliás, demonstrámos no primeiro capítulo deste trabalho.
A família é hoje um espaço de igualdade em que os respetivos membros, enquanto sujeitos de direitos, não se inter-relacionam já num estrito plano hierárquico, outrossim num plano mais afetivo e emocional.
Daí que o exercício responsável da parentalidade implique uma vivência altruísta dos pais no sentido de fazerem prevalecer os interesses dos filhos sobre os seus próprios interesses, de colocarem as tarefas de cuidado e de acompanhamento das crianças à frente das suas necessidades, das suas preferências e das suas prioridades.
A par disso, esse exercício implica disponibilidade (de tempo, mas também emocional), capacidade de comunicar, afetividade, serenidade, bem como adoção de comportamentos equilibrados e sensatos, mas também normativos (no sentido de respeito pelas normas sociais e pelas leis) que possam servir de arquétipo e de bom exemplo para os filhos.
O comportamento dos pais é sempre um modelo para os filhos: os nossos filhos também imitam a nossa capacidade para identificar e gerir os sentimentos ou, como explica Eduardo Sá, as crianças são uma invenção dos pais: podem ser construídas peça a peça, assim os pais tenham os devidos cuidados na sua montagem.
Efetivamente, é sobejamente sabido que o normal desenvolvimento da criança se processa sob a forma de identificação aos modelos parentais com quem é suposto ter relações objectais privilegiadas nos primeiros anos de vida.
Neste particular sublinhe-se que a disciplina é o segundo presente mais importante que um pai pode dar a uma criança. O amor vem em primeiro lugar, é claro.
E é apodítico que a autoridade se legitima com bons exemplos.
É do senso comum que não há modelos ideais de boas mães ou de bons pais. As mães e os pais, de resto, são todos diferentes, mas todos imprescindíveis, desde que capazes, competentes e disponíveis.
Como é evidente, a capacidade biológica de gerar e dar à luz um filho nada diz quanto à efetiva capacidade de o educar, de o amar, de o proteger e de o fazer uma criança feliz e um adulto responsável, equilibrado e com ferramentas para enfrentar a vida.
A capacidade de ser mãe no sentido ora exposto e as respetivas competências têm de ser avaliadas, obviamente, de acordo com a história pessoal da mãe, com a sua personalidade, com o modo como se relaciona com o filho e também com a sua ligação ao pai da criança e até aos seus próprios progenitores.
No entanto, nessa avaliação, não se poderá perder de vista o meio sociocultural em que a mãe está inserida pois que, como alerta João Seabra Diniz é natural que as deficiências de uma capacidade materna sejam encobertas e compensadas num meio favorável e se tornem dramaticamente evidentes em condições externas muito negativas. No entanto, também há mães nas condições económicas mais deploráveis que nunca hesitam na sua consciente atitude materna em relação ao filho.
Do expendido e para além de qualquer dúvida razoável, decorre que a mera incapacidade de exercício responsável dos deveres de cuidado parentais pode fundamentar uma confiança judicial com vista a futura adoção posto que tal incapacidade coloque a criança em perigo, como, de resto, as mais das vezes acontecerá de modo claro.
Esse perigo, como infra se verá, não deriva apenas de eventuais lesões físicas podendo ter também a sua génese na falta de cuidados, na falta de afeto, na incapacidade de os progenitores interagirem com os seus filhos, na incapacidade de compreenderem e sentirem as necessidades dos filhos.
É que a experiência que a criança tem dos seus pais – adotivos ou não – é a dos cuidados e afeto. É a partir do desempenho da função parental que se organiza a relação. (...) Para uma criança, mãe ou pai, psicologicamente, é quem desempenha a respetiva função e a vive como tal, de uma forma autêntica e profunda.
Devem afastar-se, pois, fundamentos meramente biologistas ou resultantes de laços de consanguinidade na interpretação da previsão normativa do n.º1 do artigo 1978.º do Código Civil e em particular das respetivas alíneas d) e e).
Postas as coisas neste plano, surge como natural e sistematicamente coerente a opção legislativa pela conceção objetivista, prescindindo da culpa dos progenitores como requisito da confiança com vista a futura adoção[16]. Os comportamentos culposos dos pais biológicos não fazem parte, portanto, dos requisitos de adotabilidade. Ou seja, os comportamentos, ativos ou omissivos, dos progenitores que legitimam a confiança com vista a futura adoção podem ser consequência da toxicodependência, da delinquência, da deficiência mental, ou outros, dos progenitores.
Visto isto, pode-se assentar que o tónico fulcral da previsão legal desta alínea d). do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil consiste na demonstração factual da existência de um perigo grave para a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança causado pelos respetivos progenitores, ainda que por mera falta de qualidade funcional.
A definição do que seja esse perigo grave remete-nos para o elenco vertido nas alíneas do n.º 2 do artigo 3.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.
Assim, haverá perigo quando, designadamente, está abandonada ou vive entregue a si própria; sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; está aos cuidados de terceiros, durante o período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais; é obrigada a atividades ou trabalhos excessivos inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
No âmbito desta alínea d) do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil cabem, como é bom de ver, os casos de maus-tratos a crianças e jovens, qualquer que seja a sua modalidade e categoria: o mau-trato físico, a negligência, o abuso sexual, o mau-trato psicológico, a síndroma de Munchausen por procuração.
Segundo as mais modernas conceções uma criança é maltratada quando o seu tratamento é considerado inaceitável para uma determinada cultura, numa determinada época.
Todavia, por definição e até por natureza, o mau-trato implica necessariamente a ocorrência de graves danos nas crianças, como sejam os riscos de morte, de lesões cerebrais, fraturas, incapacidades, défices neurológicos permanentes e atrasos de desenvolvimento, entre outros[17].
No catálogo dos maus-tratos físicos podemos encontrar os casos de agressão, intoxicação, queimadura, traumatismos vários, lesões abdominais, sufocação e até afogamento.
(...)
O poder de correção que logra guarida na complexa teia em que se traduzem as responsabilidades parentais não é mais visto como um poder de punição, legitimador de práticas violentas, em razão de uma auctoritas do pater familias.
Esse poder de correção não é mais que um poder-dever de educação, ao qual, contudo, são completamente alheias as agressões e as ofensas físicas, verbais e psicológicas: o direito dos pais educarem os filhos não abrange o direito de os agredir, de ofender a sua integridade física e psíquica. Nem o dever de obediência dos filhos previsto no art. 1878.º, n.º 2, implica que o seu incumprimento acarrete violência por parte dos pais. Educação não significa punição mas implica ensinar e corrigir sem violência (física ou psíquica).
De resto – saindo agora do plano estritamente jurídico – a punição através de castigos corporais é absolutamente inútil. Bater numa criança não é uma atitude respeitável. Mostra que os pais são maiores que a criança (algo que não dura para sempre) e dá a entender que a violência é uma forma de resolver os problemas.
Do exposto se conclui que a previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil fica preenchida sempre que o poder de correção dos pais se exerça, de modo sistemático e repetido, através de práticas violentas e agressivas sobre os filhos, em especial através de castigos físicos (v.g. palmadas, bofetadas, murros, pontapés, etc.), pondo em perigo o normal desenvolvimento da criança, a sua educação e a sua saúde.
Todavia, como já salientei, a confiança judicial com vista a futura adoção só poderá ser decretada se e quando, além disso, não existam ou estejam seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação.
A doutrina distingue deste tipo de maus-tratos físicos a mera negligência.
A negligência consiste na incapacidade de proporcionar à criança a satisfação das suas necessidades de cuidados básicos de higiene, alimentação, afeto e saúde, indispensáveis ao seu crescimento e desenvolvimento normais. Pode ser exercida de forma ativa, com a intenção de causar dano à criança ou de forma passiva, geralmente resultante de incompetência dos pais em assegurar aqueles cuidados.
A negligência é uma forma muito frequente de mau-trato, insidiosa e de graves repercussões para a criança, nomeadamente, o risco de morte, acidentes, atraso de crescimento e de desenvolvimento e alterações de comportamento.
Nem sempre é fácil identificar situações de negligência. É através dos relatórios das Equipas Multidisciplinares de Apoio aos Tribunais da Segurança Social que o julgador melhor se poderá aperceber que está perante pais negligentes, sem prejuízo, obviamente, dos elementos recolhidos em consequência de outros meios de prova, nomeadamente, testemunhais.
(...)
(...) o julgador deverá ter em atenção, na identificação dos progenitores maltratantes, os seguintes factores de risco: antecedentes de maus-tratos na própria infância; idade inferior a vinte anos; características de personalidade imatura e impulsiva; maior vulnerabilidade ao stresse; fraca tolerância às frustrações; atraso mental; mudanças frequentes de companheiros e de residência; antecedentes de criminalidade; hábitos de alcoolismo e toxicodependência.
No entanto, como é de linear clareza, só os casos mais graves e mais ostensivos justificarão que o tribunal decrete a medida de confiança com vista a futura adoção, posto que se mostrem – e nunca é demais lembrá-lo – irremediavelmente comprometidos os vínculos próprios da filiação.
Vejamos, ainda, outros tipos de mau-trato: o abuso sexual; o mau-trato psicológico ou emocional e a síndroma de Munchausen por procuração.
(...)
(...) o mau trato psicológico ou emocional pode ser definido como a incapacidade de proporcionar à criança um ambiente de tranquilidade, bem estar afetivo e emocional, indispensável ao crescimento, desenvolvimento e comportamentos adequados. No mau-trato psicológico estão incluídas as ausências de afeto, a hostilização verbal, a depreciação, as ameaças e humilhações frequentes ou situações de grande violência familiar, que originando um clima de maior tensão, terror ou medo, se repercuta no comportamento, rendimento escolar, sono, controlo de esfíncteres ou outra atividade da criança.
(...)
Note-se, porém, que não é de exigir como requisito de aplicação desta alínea d) a efetiva materialização de um perigo grave, em concreto, para a criança, ou seja, a consumação de um dano para a criança.
Basta, para o efeito, a demonstração factual da muito provável consumação desse dano para a criança[18], em razão de determinadas disfuncionalidades ou incapacidades dos progenitores.
(...).
A defesa do interesse da criança não pode estar condicionada pelo sofrimento desta e pela constatação de um prejuízo efetivo até porque este, não poucas vezes, apenas é exteriormente visível algum tempo depois, muitas vezes tarde de mais.
Uma leitura diversa do preceito formataria a confiança judicial com vista a adoção como algo de marcadamente punitivo dos progenitores e estaria em total dissonância com a teleologia do instituto[19].
À luz dos extensos considerandos que antecedem, mas relevantes para que melhor se compreenda o sentido e o alcance do que adiante se decidirá, considera-se verificada, relativamente à mãe da criança, a ora apelante, a situação prevista na al. d) do n.º 1 do art. 1978.º.
Vejamos:
a) A criança, nascida em 30-01-2013, começou por ser acolhida no "Lar", por acordo celebrado em 26/9/2016, por 6 meses, em virtude de se encontrar numa situação de perigo para a sua vida e integridade física, por a progenitora se encontrar em estado de embriaguez apresentando uma TAS de 1.61 g/l, e ter sido expulsa da instituição onde residia com o menor, por comportamentos agressivos, o que deu origem à instauração do presente processo de promoção e proteção;
b) Então, a "Associação", onde mãe e filho estiveram acolhidos antes do primeiro acolhimento residencial do LD, através de informação de 2 de agosto de 2016, comunicou à CPCJ de ____ episódios de grande agressividade psicológica da progenitora relativamente à criança, que apelidava de feia e repreendia utilizando a expressão "mato-te", e ainda atitudes agressivas da progenitora relativamente às técnicas da instituição quando chamada à atenção, como seja a de atirar os pratos para o balcão ou anunciar que atirava a monitora pela janela e que qualquer dia a afogava;
c) O estado emocional da mãe do LD é marcado pelo humor ansioso e irritável, com ativação emocional rápida da emoção raiva;
d) Apresenta uma personalidade com traços de impulsividade;
e) Entre julho e setembro de 2017 assistiu-se a um agravamento dos conflitos entre a progenitora e o seu companheiro por questões económicas e relacionadas com o LD, o que contribuiu para um mal-estar crescente e aumento das dificuldades de controlo de impulsos por parte da progenitora, que chegou a arranhar-se acentuadamente no pescoço no decorrer de uma situação de conflito;
f) Durante um conflito do casal, em agosto de 2017, a progenitora arranhou na cara o companheiro e este empurrou-a contra a parede, tudo na presença do menor;
g) A progenitora não reconheceu o impacto negativo no bem-estar do menor decorrente da exposição a episódio de violência entre o casal, verbalizando que ele não se apercebeu do que se passou com a mãe devido à sua tenra idade;
h) Em 20 de março de 2017 exibiu estado emocional disfórico, com sentimentos de tristeza, desesperança e raiva, comportamentos de para-suicídio (automutilação) e ideação suicida, sem intenção de plano definido;
i) A partir de 8-10-2017 passou a apresentar instabilidade pessoal associada à sua situação económica precária, descompensação psíquica, emocional e comportamental, agravados por consumos excessivos de álcool, e expor o menor ao conflito com o companheiro;
j) No dia 25-10-2017 a PSP de ____ foi contactada por AA, técnica da EMAT, que informou que a progenitora anunciou que se iria matar assim como o menor LD e colocou no "facebook" uma mensagem em que afirmava que um dia ira acabar com tudo;
k) No dia 28-11-2017 a progenitora levou o LD à escola, apresentando então a criança um hematoma na testa e outras marcas de agressão na face e pescoço, lesões que, segundo o menor revelou na escola, foram provocadas pelo homem com a mãe então vivia;
l) (...) acabando por revelar, no Hospital de ____, que lhe «tinham batido com força»;
m) A progenitora, confrontada com as lesões que a criança apresentava, disse que o menor caiu para justificar o hematoma na testa, afirmando, relativamente às lesões no pescoço, que as mesmas foram causadas pela alça da mochila/lancheira [Tratam-se de justificações descabidas, para dizer o mínimo, posto que, efetuado o exame ao menor constatou-se que apresentava um hematoma frontal com equimose (4x4 cms), lesões escoriais lineares (tipo arranhadela) na região cervical desde a comissura labial direita até à região retro-auricular homologa com 13 cms, lesão escorial linear (tipo arranhadela) do ângulo direito da mandíbula até à região retro-auricular direita com 9 cms, lesão escorial linear (tipo arranhadela) cervical posterior com 4 cms; lesão escorial linear (tipo arranhadela) no antebraço com 6 cms, equimose supra clavicular esquerda com 1,5xlcms];
n) Nessa altura, no hospital, a progenitora apresentou-se irritada e impaciente com a situação, sendo possível constatar na altura hálito etílico, não tendo o Serviço Social do Hospital de PDL, a saída do menor do Hospital;
o) Consequentemente, em 30-11-2017 foi aplicada à criança, a título cautelar e provisório, a medida de acolhimento residencial na Associação, para lhe conferir a proteção que a sua mãe não lhe dava, findando assim a medida de apoio junto da mãe;
p) Nos primeiros dias do acolhimento residencial a criança revelou dificuldade em adormecer, verbalizando que "esta não é a minha casa, eu quero ir para a minha casa";
q) No entanto, ao fim de alguns dias acalmou e começou a desenvolver uma integração positiva na CAR;
r) Após o acolhimento do LD a figura materna assumiu postura muito agressiva perante os técnicos da casa de acolhimento, verbalizando o menor ter medo de ir à visita com a mãe, e quando estava na presença da mãe que se queria ir embora;
s) Na visita domiciliária efetuada à progenitora no dia 8-01-2018, esta encontrava-se alterada, falando alto, tendo então anunciado que se o LD não regressasse para ela iria ingerir um garrafão de lixívia e que acabava com a sua vida e a do bebé em gestação;
t) Após fevereiro de 2018 a criança passou a ir bem-disposta para a visita à mãe, mas ao vê-la, não se dirigia para ela de imediato, tendo uma postura apática, permanecendo junto do adulto;
u) A mãe tomava a iniciativa de ir para junto do LD, beijando-o;
v) Contudo, o mesmo dirigia-se para a sala e perguntava de imediato à mãe se esta tinha trazido brinquedos ou chocolates, reagindo mal à resposta negativa, afirmando que se queria ir embora;
w) Tal situação alterava a progenitora, que chegou a afimar: "a mãe faz um esforço para vir e tu não agradeces" e "tu não mereces nada";
x) Nalgumas visitas, ao fim de 10 a 15 minutos a criança deixava de querer permanecer ao pé da mãe, situação que ainda hoje se mantém;
y) Perante as birras da criança num tal contexto, a figura materna fica visivelmente alterada, embora se tente conter, chegando, no entanto, a afirmar, no verão passado, em estado de visível alteração, na presença da técnica que "se tivesse em casa as coisas seriam diferentes";
z) Interpelada para explicar de que forma respondeu "eu tenho a minha maneira, mas aqui tenho de ser assim, tenho de me controlar";
aa) Durante as visitas com a mãe o LD procura com a proximidade e o olhar as monitores em quem encontra proteção, e continua a não ir à procura da mãe, sendo esta quem tem a iniciativa de se aproximar dele, que por vezes dirige à mãe as expressões "pára" e "não quero";
bb) Após o nascimento da irmã uterina do LD, as visitas da mãe diminuíram, pois:
- antes de outubro as visitas visitas mensais da mãe ao LD perfaziam entre 15 a 20;
- em outubro, apenas o visitou por 5 vezes;
- em novembro, apenas por quatro vezes;
- em dezembro, apenas por duas vezes;
cc) A diminuição do número de visitas da mãe ao LD constituiu mais um fator de desestabilização do mesmo;
dd) (…) apresentando-se no presente ano letivo mais instável na escola, onde frequenta uma turma pré-escolar, não acatando regras, encontrando-se o seu nível de aprendizagem muito aquém do esperado para a sua idade;
ee) Apresenta ainda tendência para tirar objetos da sala de aulas e de colegas e levá-los para casa, como forma de compensação das suas carências afetivas;
ff) O LD é uma criança que necessita de desenvolver competências no que respeita ao cumprimento de regras;
gg) Atualmente mantém apoio psicológico, de psicomotricidade e de terapia da fala na CDIJA, sendo acompanhado ao nível da pedopsiquiatria, e fazendo terapêutica medicamentosa;
hh) A mãe do LD vive atualmente com um novo companheiro, não aparentando nas visitas domiciliárias realizadas sinais de consumo de bebidas alcoólicas em excesso;
ii) Não existem familiares, padrinhos, ou outras pessoas disponíveis para o acolher a criança;
jj) O LD é um menino que desde o seu nascimento, tem experienciado uma dinâmica familiar pautada por elevada instabilidade a todos os níveis;
kk) (...) o que tem afetado seriamente o seu desenvolvimento cognitivo e psicoemocional, muito percetível na falta de estrutura interna e nas dificuldades que apresenta em contexto de lar de acolhimento;
ll) Trata-se de uma criança extremamente carente, com elevada desorganização interna, que tem noites muito intranquilas, dificuldades de aprendizagem e na vinculação com os outros;
mm) (...) sentindo-se inseguro, demonstrando fraca tolerância à frustração, insensibilidade a regras, e características emocionais infantis atendendo ao esperado para a sua idade;
nn) A tal quadro não é alheia toda a sua história de vinculação com a figura materna, com quem demonstra um modelo de vinculação insegura evitante, traduzida em desconforto no contacto físico ou de proximidade, sentimentos de desamparo face às suas necessidades e rejeição desta figura por ser percebida como desestabilizadora;
oo) O LD revela medo face à possibilidade de presença da mãe;
pp) O LD apresenta comportamentos próprios de uma criança negligenciada e maltratada pelas suas figuras afetivas de referência.
Perante isto, norteados pelos considerandos anteriormente tecidos, não se nos suscitam dúvidas de que a mãe do LD, ora recorrente, como bem se salienta no acórdão recorrido, cuja fundamentação (fls. 340-341) aqui se acolhe na íntegra, por fazer irrepreensível interpretação dos elementos factuais que os autos revelam, tanto por ação, como por omissão, tem posto, em perigo grave, a segurança, a saúde (física e mental), a formação, a educação e o desenvolvimento da criança, não se perspetivando, num juízo de prognose, que a uma tal situação se venha a alterar.
Como muito pertinentemente se afirma no acórdão em crise, «por estarmos perante uma criança que não fosse o seu acolhimento residencial, estaria a viver com a mãe em situação de perigo concreto para a sua saúde psíquica, bem-estar emocional, integridade física, segurança e são desenvolvimento, em relação à qual não é expectável que no tempo útil da criança altere características de personalidade que em dois anos não conseguiu alterar apesar das intervenções de que beneficiou ao nível da psicologia, da psiquiatria, da Equipa de Terapia Familiar e Equipa de RSI, criança que na prática vive sem pai (totalmente ausente na sua vida), ou outros familiares, pessoas idóneas ou família de acolhimento disponíveis a proporcionar-lhe o afeto, a segurança e todos os demais cuidados de que carece, deve o LD ser encaminhado para a adoção, cujo adiamento implicará apenas a drástica redução ou a eliminação da possibilidade de vier a ser adotado e de, por essa via, encontrar a família onde poderá ainda usufruir de tudo aquilo que, até ao momento, não teve».
A propósito do requisito autónomo e comum a todas as subespécies de confiança judicial com vista a futura adoção, previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 1978.º do C.C., consistente na inexistência ou no sério comprometimento da existência dos vínculos próprios da filiação, escreve José Lino Saldanha Retroz Galvão Alvoeiro:
«Mas o que são os vínculos próprios da filiação?
A vinculação é um processo dinâmico e cumulativo de gestos recíprocos.
Sob o ponto de vista da psicologia, a vinculação é concebida como um processo ou modelo explicitamente relacional: a vinculação mais não é do que as relações afetivas significativas que nos interligam aos outros.
(…)
Os comportamentos de vinculação têm (…) por função a proteção da criança (figura vinculada) e o seu resultado previsível é a proximidade a uma figura específica (denominada figura de vinculação), potencialmente mais forte e mais capaz, que proporciona segurança, conforto e ajuda.
(…) a vinculação não é mais do que um tipo específico de ligações afetivas que se preenche (…) através dos seguintes caracteres: é persistente e não transitória; envolve determinada figura e reflete uma atração que um indivíduo tem por outro; é uma relação emocionalmente significativa; envolve o desejo de proximidade ou de contacto com essa figura; há perturbação do indivíduo face a uma separação involuntária ou perante uma impossibilidade de aproximação.
A procura de segurança e conforto na relação da figura vinculada com essa pessoa é, porém, o critério dominante para a distinção entre «ligações parentais» e «vinculação das crianças aos pais».
Nessa medida e ao assentar num modelo explicitamente relacional, a relação de vinculação é crucial para a sobrevivência, uma pré-condição para todas as interações humanas significativas e a chave para a segurança psicológica.
Em termos conceptuais é lícito conceber a vinculação no período da infância – que é o que realmente releva nesta sede – como sendo desenvolvida através da matriz relacional organizada em torno do sistema de cuidados da figura parental, que se exprime sob a forma de padrões de regulação diádica onde o grau de participação da criança vai sendo, progressivamente, maior.
A ciência da psicologia produziu vários estudos em que se pôde verificar que a variável materna (mais concretamente a capacidade da mãe em percecionar, interpretar corretamente e responder de forma adequada e rápida aos sinais e à comunicação do bebé) era a que mais contribuía para a classificação das crianças mais inseguras perante situações particulares, laboratorialmente estandardizadas, aproximadas ao quotidiano e destinadas a ativar e, ou, intensificar o sistema comportamental de vinculação.
Além disso, tem-se sublinhado que o que acima de tudo influencia o desenvolvimento da criança e a sua orientação afetiva é o clima emocional em que é criada, isto é, a qualidade, a forma de afetividade dos pais. É a afetividade que inspira a sua maneira de cuidar da criança, de lhe pegar, de a transportar, de a amamentar, de lhe ligar ou de a deixar chorar; é essa afetividade que condiciona os gestos da mãe.
De facto, a relação de vinculação é uma relação eminentemente emocional.
Partindo deste plano eminentemente psicológico, é possível autonomizar e densificar o conceito jurídico (e indeterminado) de vínculos próprios da filiação utilizado pelo legislador no corpo do artigo 1978.º do Código Civil.
Com efeito, esse conceito jurídico há de ser preenchido pelos contributos da psicologia mas devidamente conformado pelos princípios jurídicos e pelos comandos constitucionais aplicáveis.
Assim, considerando o comando fundamental de que os pais não podem ser separados dos filhos senão quando não cumpram os deveres fundamentais para com eles e considerando que esses deveres são os inerentes ao exercício empenhado das responsabilidades parentais, fácil é de concluir que os vínculos próprios da filiação se hão de descortinar, juridicamente, no modo como são (ou não) cumpridos esses deveres, em conjugação, com o envolvimento emocional e o relacionamento afetivo entre pais e filhos.
É na interseção desta tríade de elementos que se poderá aferir da qualidade, continuidade e existência da vinculação própria da filiação, por forma a garantir uma tanto quanto possível avaliação rigorosa do denominar comum a todos os casos de confiança judicial com vista a futura adoção.
Como é evidente, são sinais exteriores, manifestações comportamentais externas e a sua correspondência (ou não) com o discurso assumido pelos progenitores que nos indiciam aqueles elementos essenciais dos vínculos próprios da filiação enquanto conceito jurídico.
Neste ponto pode-se sublinhar que a importância fundamental da qualidade da díada mãe-filho nos primeiros tempos de vida da criança e da essencialidade de uma relação com os pais, estável e sem descontinuidades, ajuda a compreender o significado do discurso e das ações e omissões dos pais naturais, por forma a bem se decidir se os vínculos próprios da filiação se encontram ou não comprometidos.
De resto, para aquilatar da vinculação afetiva é absolutamente essencial perscrutar o modo como o progenitor se relaciona com o menor, a capacidade comunicacional do progenitor para com a criança, a forma como compreende as necessidades da criança ou até o modo como as encara.
(…) a dimensão afetivo/relacional é indispensável na identificação dos indicadores da(s) boa(s) competência(s) parental(ais) e inclui a capacidade do adulto de:
a) mostrar empatia e de se colocar no ponto de vista da criança;
b) comunicar com a criança;
c) compreender as necessidades desenvolvimentais físicas, sociais, cognitivas e afetivas da criança;
d) servir de exemplo/modelo socialmente adequado;
e) lidar com o stresse, a agressividade e a frustração.
No apuramento do grau de vinculação afetiva tem, além do mais, de se avaliar até que ponto os progenitores conseguirão colocar os interesses da criança à frente dos seus próprios interesses, sacrificando estes e dando prioridade àqueles: para os bons pais os filhos são o princípio, o meio e o fim.
Ora, quando todos estes fatores primordiais estão fortemente diminuídos (ou não existem de todo) ou quando o incumprimento dos deveres inerentes ao exercício capaz das responsabilidades atinge um grau intolerável e um ponto de irreversibilidade terá de se concluir pelo comprometimento sério dos vínculos próprios da filiação.
Há, pois, que fazer sempre uma apreciação global e ampla de todas as circunstâncias apuradas em cada caso concreto à luz do superior interesse da criança, visto de modo atual e concreto.
(…) o conceito de gravidade e de comprometimento sério dos vínculos afetivos próprios da filiação devem ser apreciados, tendo em conta a idade do menor, as suas necessidades, o seu grau de desenvolvimento e estado de saúde, assim como o comportamento global dos pais no exercício das suas funções parentais, não bastando a mera reclamação do filho no momento da confiança judicial»[20].
Dispõe o art. 1974º do C.C., com a redação introduzida pela Lei nº 31/2003, de 22.08, que «a adoção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adotando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adotante e seja razoável supor que entre o adotante e o adotando se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação».
Tal como se decidiu no acórdão desta Relação de 27.02.2014, Proc. n.º 1035/06.5TBVFX-A.L1-2 (Jorge Leal), «na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 57/IX 3618 (D.A.R., II Série A - Número 088, 26 de Abril de 2003, pág. 3618 e seguintes), que lhe deu origem, lê-se o seguinte: “A adoção constitui o instituto que visa proporcionar às crianças desprovidas de meio familiar o desenvolvimento pleno e harmonioso da sua personalidade num ambiente de amor e compreensão, através da sua integração numa nova família. Quando a família biológica é ausente ou apresenta disfuncionalidades que comprometem o estabelecimento de uma relação afetiva gratificante e securizante com a criança, impõe a Constituição que se salvaguarde o superior interesse da criança, particularmente através da adoção. Esta conceção da adoção corresponde àquela que está plasmada em importantes instrumentos jurídicos internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção Europeia em Matéria de Adoção de Crianças. Trata-se, por outro lado, de uma intervenção que se reclama urgente, porquanto a personalidade da criança se constrói nos primeiros tempos de vida, revelando-se imprescindível para que a criança seja feliz e saudável que quem exerce as funções parentais lhe preste os adequados cuidados e afeto. E se, atento o primado da família biológica, há efetivamente que apoiar as famílias disfuncionais, quando se vislumbra a possibilidade destas reencontrarem o equilíbrio, situações há em que tal não é viável, ou pelo menos não o é em tempo útil para a criança, devendo em tais situações encetar-se firme e atempadamente o caminho da adoção. (…) Há hoje cerca de onze mil e trezentas crianças acolhidas em instituições e famílias idóneas, cujo projeto de vida deve ser urgentemente definido, sendo certo que a institucionalização não pode ser considerada uma solução, mas tão somente uma medida de proteção. (…). Assim, passa a ser expressamente mencionado o superior interesse da criança como critério fundamental para ser decidida a adoção, o qual constitui, aliás, o conceito de referência nesta matéria. São desenvolvidos os conceitos de colocação do menor em perigo e de manifesto desinteresse pelo filho, pressupostos do decretamento da confiança judicial, clarificando-se que neste segundo conceito está essencialmente em causa a qualidade e a continuidade dos vínculos próprios da filiação. Reduz-se para três meses o período relevante para aferição do desinteresse, sendo certo que este prazo é suficiente para esse efeito e, simultaneamente, permite acelerar o processo.
Do regime legal e convencional supra referido emana a conceção de que o desenvolvimento feliz e harmonioso de uma criança se processa e deve realizar-se no seio da família biológica, tida como a mais capaz de proporcionar à criança o necessário ambiente de amor, aceitação e bem estar. Porém, se esta não puder ou não quiser desempenhar esse papel, haverá que, sendo possível, optar decididamente e rapidamente pela sua integração numa outra família, através da adoção (…)
Constitui pressuposto desta medida (confiança para adoção) que “não existam” ou “se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação”. Tal situação será constatada “pela verificação objetiva” de qualquer das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 1978.º do Código Civil (corpo do n.º 1 do art.º 1978.º).
Ou seja, a ocorrência de qualquer dessas situações constituirá via necessária para a demonstração da inexistência ou do sério comprometimento do vínculo afetivo entre o progenitor e a criança, para o efeito da confiança da criança para adoção. Adicionalmente, porém, haverá que apreciar se essas situações traduzem, em concreto, inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação (…).
Sendo certo que os vínculos afetivos que obstam à aplicação da medida sob análise são os “próprios da filiação”, não basta que haja relação afetiva entre pais e filhos, é necessário que esta assuma a natureza de verdadeira relação pai/mãe-filho, com a inerente auto-responsabilização do progenitor pelo cuidar do filho, por lhe dar orientação, estimulá-lo, valorizá-lo, amá-lo e demonstrar esse amor de forma objetiva e constante, de molde que a própria criança encare o progenitor como referência com as referidas caraterísticas. Pais são aqueles que cuidam dos filhos no dia-a-dia, são aqueles que cuidam da segurança, da saúde física e do bem estar emocional das crianças, assumindo na íntegra essa responsabilidade»[21].
Ora, o quadro factual descrito não revela:
- qualquer tipo de relação afetiva entre o LD e o seu pai;
- uma verdadeira relação afetiva, nos termos acima apontados, entre o LD e sua mãe, a ora recorrente:
Ou seja, o quadro factual descrito não revela:
- uma verdadeira relação mãe-filho (no caso do pai, essa relação é, de todo, inexistente);
- qualquer sentido de auto-responsabilização da mãe pelo cuidar do filho, por lhe dar orientação, por o estimular, por o valorizar, por o amar;
- objetivamente, qualquer relação baseada numa constante demonstração de amor, de molde a que o LD encare a mãe como uma referência com as mencionadas caraterísticas.
Os factos provados não permitem, conforme já referido, fazer qualquer juízo de prognose póstuma que permita inferir que alguma vez a recorrente, tendo em conta a sua personalidade, assim como o comportamentos que tem assumido, e que os autos bem revelam, venha a ter capacidade ou competência para cuidar desta criança, transmitindo-lhe segurança e afeto, cuidando da sua saúde física e do seu bem estar emocional, da sua educação, nos termos que o LD “reclama” e que a matéria de facto provada bem demonstra.
Ou seja, a matéria de facto não permite fazer um juízo de prognose póstuma no sentido de que a recorrente alguma vez venha a assumir, na íntegra, a responsabilidade de verdadeira mãe do LD.
Por isso se conclui que apenas uma decisão como a que foi proferida no bem fundamentado e estruturado acórdão recorrido é suscetível de acautelar os superiores direitos e interesses da criança.
*
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 12 de março de 2019
(Acórdão assinado digitalmente)
Relator
José Capacete
Adjuntos
Carlos Oliveira
Diogo Ravara

[1] Doravante, sempre que nos referirmos à Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, fá-lo-emos com referência às sucessivas atualizações que lhe foram introduzidas pelas Leis n.ºs 31/2003, de 22.08, 142/2015, de 08.09, e 23/2017, de 23.05, utilizando, para o efeito a sigla “LPCJP”.
[2] «A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios (…): h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável».
[3] Cfr. Tomé d’ Almeida Ramião, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada e Comentada, 8.ª Edição, Quid Juris, 2017, p. 40.
[4] Cfr. Lucinda Gomes e Maria Teresa Ribeiro, Mediação Familiar e Conflito Parental: Decisões Parentais Responsáveis e a Concretização do Superior Interesse da Criança, in Famílias: Questões de Desenvolvimento e Intervenção, Porto, LivPsic, 2011, p. 165.
[5] Expressão que significa o seguinte: alguém que, numa base de continuidade no dia-a-dia, através da interação, companhia, ação recíproca e mútua, preenche a necessidade psicológica e física da criança de ter um progenitor.
[6] Maria Clara Sottomayor, Exercício do Poder Paternal, Porto, Universidade Católica, 2003, pp. 63-87, e Joana Salazar Gomes, O Superior Interesse da Criança e as Novas Formas de Guarda, Universidade Católica Editora, 2017, pp. 58-62, que viemos acompanhando e transcrevendo.
[7] Almiro Rodrigues, Interesse do menor, contributo para uma definição, in Revista Infância e Juventude, n.º 1, 1985, pp. 18-19.
[8] Curso de Direito da Filiação, Vol. II (Direito da Filiação) Tomo I (Estabelecimento da Filiação – Adoção), Coimbra Editora, 2006. p. 278.
[9] Ob. Cit., p. 94.
[10] Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 6,ª Edição, Almedina, 2016, pp. 98-100.
[11] Idem, pp. 100-101.
[12] Incumprimentos da parentalidade, comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação e adopção, in Revista do Ministério Público, ano 29, Out./Dez. 2008, nº 116, pp. 121 e seguintes.
[13] Confiança Judicial com Vista a Futura Adoção, Tese de Mestrado em Direito Judiciário, Universidade do Minho, Escola de Direito, dezembro de 2015, pp. 141-147.
[14] Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 6,ª Edição, Almedina, 2016, pp. 97-98.
[15] «No sentido de que não é requisito da aplicação da medida a imputação aos pais, a título de culpa, da situação de perigo ou potenciadora de perigo, pois basta a objetiva verificação da situação e efeitos dela resultantes (a não existência, ou o sério comprometimento, dos vínculos afetivos próprios da filiação) vejam-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2011, disponível em http://www.gde.mj.pt; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de Abril de 2011, disponível em http://www.gde.mj.pt e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de Março de 2011, disponível em http://www.gde.mj.pt.»
[16] «Cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Outubro de 2015, processo n.º 1923/14.5TMPRT.P1, disponível em www.gov.mj.pt».
[17] «Sobre a matéria, cfr. AMBIKAPATHY, Patmalar; Prevenção do crime: violência familiar nos castigos físicos de Crianças, in Infância e Juventude; Julho – Setembro, nº. 3, 2004, p.87-100. O Autor põe em destaque que os maus tratos emocionais podem ser até mais graves para a criança do que os físicos e sublinha que em crianças que sofreram maus tratos, há uma correlação significativa entre stresse pós traumático e síndroma de hiperatividade com défice de atenção e outros síndromas, tal como a ideiação do suicídio­­­­­ (...) as crianças vítimas de maus tratos com stresse pós traumático têm perfis de atividade semelhantes aos das crianças com síndroma de hiperatividade com défice de atenção, enquanto as crianças vítimas de maus tratos sem stresse pós traumático têm perfis de atividade com uma maior semelhança com os das crianças depressivas (loc. cit., p.89). Isso mesmo é confirmado por CANHA, Jeni (ob. cit., p. 38) quando refere que uma criança maltratada corre sérios riscos de morte, lesões cerebrais e sequelas graves, sobretudo no primeiro ano de vida (...). A grande maioria dos casos fatais de maus-tratos ocorre nas crianças com menos de 3 anos. As causas mais frequentes são traumatismos cranianos dos pequenos lactentes, seguidos de pequenas lesões intraabdominais (rotura de vísceras), asfixia e sufocação. Nas crianças mais velhas, em idade escolar, não existe geralmente risco de vida. A repetição dos maus-tratos físicos ou psicológicos vai ter, no entanto, repercussões graves na sua vida futura. A Autora identifica, com base em variada doutrina, as seguintes sequelas de maus tratos, a longo prazo: o atraso de crescimento, o atraso de desenvolvimento, o atraso de linguagem, o insucesso escolar, as alterações de comportamento, o risco elevado de delinquência, a diminuição da autoestima, as dificuldades no relacionamento social, as baixas expectativas de vida e a transmissão de maus tratos às gerações futuras».
[18] «O perigo não tem que se ter já verificado para que se inicie a intervenção de proteção. Ou seja, não tem que se aguardar ou provocar a situação de perigo para a criança para que a intervenção protetora seja legítima. Necessário é que, e face das informações coligidas, do conhecimento que se obteve da criança e da sua família biológica, o perigo para a sua saúde, segurança e desenvolvimento vá ocorrer com alta probabilidade se não houver uma imediata intervenção para a promoção dos direitos e a proteção da criança – CARMO, Rui do; Consumo de Droga e Função Parental – Quando as crianças são as vítimas; Revista do Ministério Público, n.º 112 – Out/Dez 2007, pp.129-139. O Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 31 de Janeiro de 2007 (publicado na Coletânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2007, Ano XV, tomo I, pp.50-52) defendeu igual posição e expressamente sentenciou que o direito/dever de educar os filhos pode ser retirado aos pais quando se verifiquem razões ponderosas que se prendem com o perigo atual e iminente, ou futuro mas previsível e provável, de violação desses interesses do menor, interesses que devem presidir ao exercício do poder paternal».
[19] Ob. cit., pp. 125-137.
[20] Idem, pp. 153-156.
[21] «Havendo até quem defenda (não é a nossa opinião) que sempre que um tribunal protege uma criança da sua família de origem, essa proteção deve ser, tendencialmente, definitiva, maxime se a medida de proteção durar previsivelmente mais de seis meses, caso em que fica comprometido, de forma irreparável, o desenvolvimento subsequente da criança, a qual deverá ser encaminhada para um processo de adoção (Eduardo Sá, “O poder paternal”, in “Volume comemorativo dos 10 anos do Curso de Pós-Graduação “Proteção de Menores – Prof. Doutor F. M. Pereira Coelho””, 12, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, 2008, pág. 87).»