Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
484/12.4TYLSB-CU.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: VIOLAÇÃO DE CASO JULGADO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
PREJUDICIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1 – Uma decisão que suspende a instância nos termos do nº1 do art. 272º do CPC, após a prolação de acórdão anulatório que ordenou a ampliação da matéria de facto e o prosseguimento da causa, anulando, nessa parte, saneador-sentença proferido, não ofende o caso julgado formado pela decisão do tribunal superior.
2 – Numa ação apensada ao processo de insolvência nos termos do art. 85º do CIRE, apenas no concreto se poderá aferir a aplicabilidade do disposto no nº1 do art. 8º do CIRE, à luz dos respetivos fundamentos lidos sob o foco das finalidades últimas do processo de insolvência, não se podendo, à partida e de forma automática, afirmar a impossibilidade de aplicação do disposto no artigo 272º nº1 do CPC.
3 – Quando a prejudicialidade invocada se mostra correta, adequada, proporcional e realiza o interesse coletivo dos credores, ou seja, garante as finalidades próprias do processo de insolvência, torna-se legítimo postergar a celeridade e a proibição de suspensão da instância, numa ação comum apensa ao processo de insolvência nos termos do art. 85º do CIRE, nomeadamente para dedicar recursos à tramitação específica que conduzirá ao pagamento ao coletivo dos credores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
Massa insolvente de EMGPE, SA, intentou ação declarativa de condenação sob a forma comum contra ER, CRL, e contra Banco …, SA, substituído por Banco…, SA, pedindo (apenso BY):
1) Declarado inexistente o direito da 1ª Ré a executar as garantias bancárias e consequentemente deverá:
a) A 1ª Ré ser condenada a abster-se de acionar as garantias bancárias que lhe foram prestadas pela Autora e emitida pela 2ª Ré;
b) A 2ª Ré ser condenada a abster-se de proceder ao pagamento das garantias bancárias,
Caso assim não se entenda
2) Declarado o abuso de direito da 1ª Ré ao executar as garantias bancárias e consequentemente deverá:
a) A 1ª Ré ser condenada a abster-se de acionar as garantias bancárias que lhe foram prestadas pela Autora e emitida pela 2ª Ré;
b) A 2ª Ré ser condenada a abster-se de proceder ao pagamento das garantias bancárias
3) Sem conceder, caso a 2ª Ré proceda ao pagamento das garantias bancárias na pendência da presente acção, deverá a 1ª Ré ser condenada a pagar à Autora o respectivo valor com vista o reembolso à 2ª Ré do respectivo valor.
Citadas as RR., contestou ER, CRL, pedindo a improcedência da ação e, em reconvenção, o reconhecimento do direito a ser indemnizada e a condenação da 2ª R. no pagamento da mesma.
A A. replicou, pedindo a improcedência da reconvenção.
Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho que não admitiu o pedido reconvencional deduzido e foi proferido despacho saneador e fixados o objeto do litigio e os temas da prova, bem como a matéria já assente.
Após a junção de elementos, o tribunal considerou estarem reunidos todos os elementos necessários à prolação de uma decisão de mérito, e deu às partes a oportunidade de se pronunciarem.
A 1ª R. não se opôs e a A. requereu a realização da prova requerida nos articulados por considerar remanescer factualidade relevante controvertida.
Foi seguidamente proferida sentença que julgou a ação improcedente por não provada e absolveu as RR. de todos os pedidos.
Inconformada apelou a A., vindo a ser proferido, em 30/06/2020, acórdão deste Tribunal nos seguintes termos:
“1. Julgar parcialmente improcedente o recurso interposto pela Recorrente e, consequentemente, manter a decisão de absolvição do pedido de declaração de inexistência do direito da Recorrida executar as garantias com fundamento em caducidade produzida pela declaração da insolvência.
2. No demais anular a sentença recorrida proferida para, sem prejuízo dos factos por ela julgados assentes, permitir a ampliação e julgamento de matéria de facto, tendo como objeto os temas de prova fixados em audiência prévia e por este acórdão densificados sob os pontos B.”
Após baixa dos autos foi proferido o seguinte despacho:
“Tomei conhecimento do acórdão que baixou do Tribunal da Relação da Lisboa.
*
Em obediência ao mesmo importa ampliar a matéria de facto, tendo como objeto os temas de prova fixados em audiência prévia e densificados no ponto B do acórdão. O objetivo é, conforme estipulou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, permitir à autora Massa Insolvente que o tribunal profira decisão de mérito sobre eventual reconhecimento da inexistência do direito da ré ER CRL sobre a insolvente, “com a consequente declaração (judicial), ou da inexistência do direito de acionar as garantias, ou da obrigação de restituir as quantias assim recebidas, para obstar a que de uma ou outra forma o Banco garante concorra ao produto da massa insolvente que, cumprida a liquidação, resulte (se resultar) disponível para rateio pelos credores comuns”
É cristalino que a utilidade, ainda que residual, da apreciação de tal pedido, dependerá sempre do que sobejar das forças da massa, após o pagamento dos créditos com preferência no pagamento sobre os créditos comuns. É igualmente claro que atendendo à atual composição da massa insolvente, tal utilidade ainda não se manifesta, facto que não deixou de ser considerado e assertivamente fundamentado pelo Tribunal da Relação de Lisboa nos termos que passo a transcrever:
“Não podemos também deixar de consignar que, ainda que de uma forma invertida – que, por corresponder a ação de mera apreciação negativa, torna a sua discussão ainda mais complexa -, esta e as ações comuns dos apensos CK e BX têm como pano de fundo ou relação jurídica dominante o contrato de empreitada que a Massa Insolvente, aqui Recorrente, se propôs e tomou a iniciativa de discutir judicialmente e tomar ao seu encargo, não obstante os benefícios que por elas pode almejar obter para o coletivo dos credores da insolvência não passem senão pela subtração/redução do valor de cerca de € 266.700,00 a um passivo relacionado/reconhecido nos termos do art. 129º do CIRE no montante total de € 273.753.184,53, este constituído por créditos de natureza comum (cerca de €79.552.000,00 sem condição e cerca de € 186.421.000,00 sob condição), créditos subordinados (cerca de € 234.500,00) e créditos de natureza laboral, estes no montante de cerca de € 10.223.000,00, sendo certo que, de acordo com as contas intercalares prestadas em apenso (CR), o saldo da massa insolvente cifra-se a esta data no montante de cerca de € 7.000.000,00. Para consignarmos que os sujeitos que manifesta, direta, e inevitavelmente poderão ser beneficiados com o resultado positivo destas ações resumem-se aos três Bancos credores prestadores das garantias e, na eventualidade, improvável, de o ser, só muito remota e residualmente o coletivo dos credores comuns que com aqueles concorrem (mesmo na hipótese de os credores comuns serem contemplados pelo produto da venda, o acréscimo que daquela redução do passivo resulte para cada credor será parcamente residual, e se antes não for consumido pelas despesas que a massa insolvente suportou com estas ações), sendo desde já certo e incontornável que o montante do produto da liquidação a distribuir pelos credores laborais, à frente dos credores comuns, por força da imputação/pagamento das custas e encargos do processo proporcionalmente pelo produto de cada classe de bens ou de cada bem (móveis e imóveis) resultará sempre diminuído pela afetação de receitas da massa insolvente ao pagamento dos encargos destas ações que, para além das custas e outros encargos, incluem honorários a mandatário forense. Com estes contornos, não antevemos como linear o enquadramento destas ações no âmbito da atividade de liquidação da massa insolvente, que deve reger-se pelo critério da sua otimização, sendo certo que não se enquadram na finalidade de qualquer uma das ações especifica e expressamente previstas pelo art. 82º, nº 3 do CIRE que, conforme delas ostensivamente resulta, visam a proteção dos ativos que integram a massa insolvente através do reconhecimento de direitos de crédito da massa insolvente sobre terceiros, e não a discussão/negação, sob impulso e ação da massa insolvente, de créditos sobre a insolvência que não foram discutidos pelos próprios credores, interessados diretos, e que, para além das ações de verificação ulterior de créditos (art. 146º e ss. do CIRE), têm o seu lugar próprio no apenso de reclamação de créditos. Mais se consigna que não será alheio ao supra assinalado a perspetiva pela qual a Recorrente aborda e conclui pelo abuso de direito no acionamento da garantia bancária por parte da Recorrida, que seria mais consentânea com a posição juridicamente admissível ao Banco garante, e não com a posição da Insolvente na qualidade de parte no contrato subjacente que celebrou com a Recorrida. Com efeito, como é consensual, as características jurídicas da garantia autónoma ou à primeira solicitação impedem o Banco garante de invocar as vicissitudes próprias da relação material subjacente à emissão da garantia e, em princípio, e conforme jurisprudência superior e posições doutrinárias nesse sentido - para além da caducidade da garantia pelo seu não exercício no prazo da validade da mesma (a aferir pela data ou outro evento extintivo aposto no título que corporiza a garantia), da falta de requisitos formais ou documento convencionalmente exigido, da inexistência ou objeto ilegal do contrato base -, verificando-se os respetivos pressupostos, apenas lhe resta a válvula de ‘escape’ da fraude ou abuso de direito para obstar ao acionamento e pagamento da garantia2. Porém, tanto já não sucede relativamente à contratante da garantia autónoma, no caso, à insolvente (patrimonialmente substituída pelo património autónomo massa insolvente e, em sede de representação da mesma, pelo Administrador da Insolvência) pois, na qualidade de parte contratante e de acordo com o princípio da eficácia relativa dos contratos, tem legitimidade para invocar as vicissitudes e exceções atinentes com a relação causal subjacente à contratação das garantias - no caso, o contrato de empreitada que celebrou com a Recorrida -, incluindo as que permitam concluir pela inexistência do direito desta em acionar as garantias (que, nas relações entre estas, seria apto a afastar o instituto do abuso de direito, precisamente, porque pressupõe que o direito exista). Ou seja, a insolvente e, assim, a massa insolvente, que no âmbito das relações jurídicas obrigacionais de natureza patrimonial a substitui, tem reconhecida legitimidade para invocar a inexistência do direito de acionar a garantia bancária com fundamento na inexistência do direito por ela pretendido garantir (ou porque não se chegou a constituir, ou porque se extinguiu) e, através de sentença oponível à beneficiária da garantia, dela liberar a parte que a assumiu, com consequente extinção da obrigação de pagamento que dela emergiria para o Banco garante3. Acresce que o imputado abuso (da Recorrida) vislumbra-se antes de mais na perspetiva do Banco garante e não da Autora/Recorrente porque, para além de esta litigar em substituição da parte outorgante no contrato base subjacente à garantia, considerando a natureza ou estatuto que detém - de património autónomo de afetação -, nem o conteúdo ou acervo patrimonial que integra a massa insolvente é alterado pelo exercício da garantia pela Recorrida, nem a posição dos demais credores relativamente ao produto da massa insolvente (mais concretamente, ao que a final resulte disponível para distribuição pelos credores da insolvência) sofreria alteração pelo facto de no processo da insolvência serem reclamado os créditos emergentes das garantias bancárias, ou, ao invés destes, os créditos por elas garantidos. Uns ou outros iriam engrossar o passivo a satisfazer pelo produto da massa insolvente que, assim, teria que ser rateado também pelos créditos, ou do Banco garante ou da Recorrida, na proporção do respetivo montante, com inevitável redução dos montantes a distribuir pelos demais credores, na hipótese (remota) de os credores comuns virem a por ele ser contemplados. Não obstante o exposto, apto a questionar o pressuposto processual, de conhecimento oficioso, do interesse em agir da massa insolvente (que se pressupõe no interesse do coletivo dos credores e não de apenas alguns deles), no rigor formal da objetividade da apreciação jurisdicional (que não consente decisões assentes em premissas ou formulações hipotéticas, antes exige um silogismo assente em fatos processualmente adquiridos), obsta ao seu conhecimento o facto de ainda não ter sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos.”
Aqui chegados, impõe-se conceder à Massa Insolvente e aos credores o direito de verem julgada e apreciada a sua pretensão, mas num quadro em que esteja garantida a utilidade do pedido, designadamente, na certeza de que pagos os credores privilegiados a massa tem disponibilidade para pagar rateadamente aos credores comuns, sob pena de estar o tribunal a afetar meios e recursos em causas que, não obstante legítimas, revelar-se-ão a final inúteis. Meios que manifestamente carece. É que os autos principais têm longevidade superior a 12 anos, reclamaram créditos centenas de credores, a maior parte deles trabalhadores que à data de hoje ainda não lograram receber qualquer pagamento à ordem dos presentes autos. A complexidade dos autos, o elevado número de apensos declarativos e a incapacidade de resposta do tribunal potenciada por uma gritante insuficiência de meios humanos afetos ao Juízo de Comércio de Lisboa, devidamente reportada ao Conselho Superior da Magistratura ao longo dos anos, contribuíram, para que tal ocorresse. Insuficiência de meios que assume especial relevância num quadro de elevada pendência de processos com longevidade superior a 10 anos de que estes autos sendo exemplo, não se inserem no grupo dos mais antigos. Sem prejuízo, inserem-se no grupo de processos antigos com maior número de créditos reclamados e com maior volume de património apreendido e liquidado. Neste contexto, é urgente que o processo flua para a fase de pagamentos, sendo necessário para tal tramitar e julgar o apenso de reclamação de créditos que, consigna-se ter à data de hoje conclusão aberta.
Após o trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de reclamação de créditos, impor-se-á efetuar no processo principal um rateio parcial para pagamento aos credores privilegiados e/ou garantidos nos termos dos artigos 173.º, 174.º, 175.º e 178.º, todos do CIRE.
Concretizado o rateio parcial, será possível prever de acordo com o estado da liquidação à data, se a massa insolvente tem ou não meios para pagar os créditos comuns que aqui se discutem e na afirmativa, prosseguir de imediato com os presentes autos e, na negativa, questionar com critérios de atualidade por causa superveniente, o interesse em agir da massa insolvente. A ocorrência do rateio parcial e saldo remanescente da disponibilidade da massa insolvente afigura-se prejudicial.
Pelo exposto, sem prejuízo do determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, determino ao abrigo do disposto no artigo 272.º n.º 1 do Código de Processo Civil que os autos aguardem a prolação da sentença de verificação e graduação de créditos e a concretização do rateio parcial, após o que deverá ser aberta conclusão.
Notifique.”
Inconformada a A., arguiu ad cautelam a nulidade da decisão recorrida por violação do disposto no art. 8º nº1 do CIRE, o que consubstancia nulidade nos termos do artigo 195º, que reclama nos termos dos arts. 197º nº1 e 148º do CIRE.
Interpôs igualmente recurso da decisão proferida, pedindo seja revogado o douto despacho sob impugnação e ordenado o imediato e normal prosseguimento dos autos até final, conhecendo-se do petitório formulado pela A., ora Apelante, com base na ampliação da matéria de facto determinada no douto Acórdão deste Tribunal da Relação de 30.6.2020 e formulando as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto do despacho de 5.11.2020 que decretou a suspensão da instância, por acobertar nulidade processual e, ademais, por colher fundamento nos artigos 629.º/2, al. a) e 644.º/2, al. c), ambos do CPC.
B. No processo insolvencial, incluindo as ações apensas, mostra-se liminarmente proscrita a suspensão da instância, nos termos do artigo 8.º/1 CIRE (não se aplicando o CPC neste conspecto, por força da parte final do artigo 17º/1 do mesmo diploma e do princípio lex specialis…). Cfr. ac. RP 8.4.2014; proc. n.º 1168/12.9TBOAZ-N.
C. Destarte, o decretamento da suspensão da instância configura ato inválido que, por influir no exame (pronto e corretamente enquadrado) da lide e atentar contra a natureza urgente de toda a tramitação matricial e apendicular (artigo 9º CIRE), constitui nulidade processual, arguível e reparável mediante recurso.
D. Subsidiariamente e com os mesmos fundamentos normativos, o despacho sob reação enferma de erro de julgamento, que, de igual modo e ao abrigo do artigo 5.º/3 do CPC, importa, como se requer, a sua revogação hierárquica.
E. Ademais, o despacho em crise ofende o caso julgado formado pelo douto Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 30.6.2020, porquanto, ao anular o despacho saneador – sentença e ordenar o prosseguimento dos autos, este Venerando Tribunal não ressalvou (porquanto não vislumbrou) motivo que pudesse obstar à pronta obediência da sua decisão pela 1.ª instância.
F. O Tribunal a quo estriba-se em excerto do douto acórdão em causa que constitui mero obiter dictum, destituído de finalidade decisória (tendo um fito de mero enquadramento e diversão argumentativa), não fundando o julgado nem surtindo impacto no dispositivo final que, com o devido respeito, vinculava, de imediato, a 1.ª instância.
G. Inexiste relação de prejudicialidade entre o presente apenso e o de reclamação de créditos. Este não constitui causa prejudicial daquele.
H. O que se visa com a lide é a recuperação do montante ilicitamente acionado pela 1.ª R. junto do 2.º R. para a massa insolvente, acumulando o valor desta.
I. O direito de resgate de tal quantia assiste à A. e, por conseguinte, deve ser-lhe permitido tramitar a lide onde o faz valer.
J. A questão primeva dos presentes autos posiciona-se no quadro do contrato de empreitada celebrado entre a Insolvente e a 1.ª R. (relação de valuta). Em consequência, está em causa, antes do mais, a responsabilidade contratual da cooperativa ante a A.
K. Por conseguinte, a presente ação beneficia o coletivo dos credores.
L. O valor recuperado será percebido pelo Banco nos termos do artigo 90.º CIRE.
M. O presente pleito é processualmente <independente> da verificação do passivo.
N. Como estamos defronte de ação que se destina a exponenciar o produto a ratear pelos credores, há que aplicar a lógica plasmada no artigo 158.º/1 CIRE: avançar “com prontidão” (sic) “independentemente da verificação do passivo”.
O. Considerando que a massa insolvente tem direito a ver reconhecida a pretensão formulada nos presentes autos – o que concretiza o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva – não são relevantes nem oponíveis aos credores, s.d.r., considerações relativas à gestão dos Tribunais, porquanto nos reportamos a direito análogo aos direitos, liberdades e garantias previstos no Titulo II da CRP.
P. Pelo exposto e o mais que V. Exas. doutamente suprirão, o despacho recorrido deve ser revogado e ordenado o imediato e normal prosseguimento da lide até final. Só assim se fará justiça!
Normas jurídicas violadas:
• Artigos 17.º e 20.º/1 e 4 CRP;
• Artigo 6.º CEDH;
• Artigos 8.º/1, 9.º/1, 17.º/1; 90.º do CIRE;
• Artigos 2.º/2; 152.º/1, in fine; 272.º/1; 620.º/1 e 628.º do CPC;
• Artigo 4.º/1 da LOSJ;
• Artigo 4.º/1 do EMJ.”
Contra-alegou ER…, CRL, pedindo seja negado provimento ao recurso e formulando as seguintes conclusões:
“A. No despacho recorrido, o Tribunal partiu dos seguintes pressupostos, impostos pelo acórdão anteriormente proferido:
a. A necessidade de aferir a legitimidade da Recorrente em propor e fazer seguir as acções ordinárias propostas sob o presente apenso e sob os apensos CK e BX, face ao facto de os Bancos garantes e os restantes credores não terem contestado o pagamento das garantias à Recorrida;
b. A necessidade de ampliar a matéria de facto, para que a mesma passe a incluir os temas de prova relacionados com o incumprimento da prestação imputada à Recorrente pela Recorrida;
c. A necessidade de aferir da utilidade da apreciação do pedido de restituição das garantias face à existência, ou não, de valores a distribuir pelos credores comuns, posteriormente ao pagamento dos créditos com preferência no pagamento sobre aqueles.
B. É prejudicial ao julgamento da causa a aferição da utilidade superveniente do pedido nela formulado, bem como do interesse em agir da ora Recorrente.
C. Não havendo quaisquer quantias a repartir pelos credores comuns, não fará qualquer diferença o aumento ou diminuição da posição relativa de cada um deles face à eventual diminuição do valor global dos créditos reclamados caso, porventura, as acções contra a Recorrida viessem a ser julgadas procedentes.
D. Não foi o processo de insolvência que foi suspenso, mas sim o presente apenso, que constitui uma acção ordinária, apensa ao processo de insolvência por vontade e a pedido expresso da Recorrente.
E. Não existe uma inerência material das acções ordinárias julgadas nestes três apensos ao processo de insolvência, os quais poderiam ter continuado a correr no Tribunal Cível, onde já teriam sido certamente julgados, não fora a intenção da massa insolvente de acrescentar morosidade ao desenvolvimento do presente processo, que se traduziu num perdurar dos defeitos de construção, com consequências acrescidas pela passagem do tempo, e que aumentam o valor necessário para a reparação desses defeitos e das consequentes deficiências, directas e indirectas, causadas ao edifício.
F. A suspensão é fundada na necessidade de se articularem dois (ou quatro) apensos do mesmo processo de insolvência, e não na de atender a qualquer evento estranho ao desenrolar do processo de insolvência, sendo necessária para evitar decisões contraditórias e diligencias inúteis no processo de insolvência.
G. É, portanto, uma suspensão com base na prejudicialidade de dois processos, em que não se poderá entrar na apreciação do objecto processual dependente, qual seja o interesse em agir da Recorrente nos apensos, sem interferir na análise do objecto processual prejudicial, ou seja a determinação da quantia real a ratear pelos credores comuns.
H. Esta aferição de prejudicialidade deriva, antes de mais, e contrariamente ao alegado pela Recorrente, de uma imposição prescrita pelo próprio Tribunal da Relação, que ditou que se aferisse, em primeiro lugar, quais as disponibilidades financeiras reais da massa insolvente, posteriormente ao rateio da quantia arrecadada nos autos pelos credores privilegiados, para prover ao pagamento dos créditos reclamados pelos credores comuns, e determinou que essa aferição era essencial para se poder apreciar o interesse em agir da Recorrente no presente processo.
I. A Recorrente pretende impedir que esta aferição aconteça, porque, caso se determine que a quantia a distribuir é insuficiente para pagar aos credores comuns, como será provável, estas e outras duas acções serão arquivadas por inutilidade superveniente das respectivas lides.
J. Nos termos do plano de insolvência (página 12), os honorários dos mandatários da Recorrente são calculados percentualmente sobre as quantias recuperadas nos processos apensos ao processo de insolvência, com base num acordo de sucess fee de 5% sobre o valor total das garantias bancárias canceladas, saindo previamente dos valores arrecadados no presente processo, como despesas da massa insolvente, nos termos do artigo 51.º, alíneas b) e c), do CIRE.
K. A avaliação do pressuposto processual, de conhecimento oficioso, do interesse em agir da Recorrente, requer, neste caso concreto, e no entender do Tribunal da Relação, a prolação prévia da sentença de verificação e graduação de créditos, pelo que não existe violação do caso julgado formal estabelecido pelo acórdão por parte do despacho recorrido.
L. As providências cautelares foram julgadas improcedentes por ter sido judicialmente determinada a existência concreta de defeitos de construção da obra levada a cabo pela Recorrente, atempadamente reclamados pela Recorrida, bem como o reconhecimento dos mesmos na fase pós-obra, pela própria Recorrente, quer textualmente quer pela realização de reparações solicitadas pela Recorrida.
M. O facto de a Recorrente ter legitimidade para intentar a acção, ao poder questionar os pressupostos da garantia bancária, não significa que o possa fazer desacompanhada do Banco garante, havendo aqui um caso ilegitimidade activa, pois a massa insolvente não poderá tomar para si a defesa de um interesse alheio, qual seja o dos Bancos garantes, sem que estes o exerçam em nome próprio.
N. O presente apenso não visa a recuperação de um montante que ingressa na massa insolvente, pois o pedido formulado é o de que seja reembolsada a quantia paga pelo Banco garante para que a Recorrente depois lho devolva, pelo que a massa insolvente nunca iria receber, nem acumular tais quantias, pois as mesmas sempre se destinariam, caso, porventura, a Recorrente viesse a obter ganho de causa, aos próprios Bancos garantes.
O. A não ser assim, a Massa Insolvente estaria a locupletar-se com quantias que pertencem a terceiros, os Bancos emissores das garantias, o que também não é admissível.
P. Estes três apensos não se assemelham a acções de cobrança de créditos da insolvência, nem se enquadram nas acções admitidas pelo artigo 82.º, n.º 3, do CIRE.
Q. Tendo já sido julgadas, e declaradas improcedentes, quatro providências cautelares sobre o pagamento das garantias bancárias, movidas pela Recorrente contra a Recorrida, em que se avaliaram concretamente os defeitos de construção e a garantia prestada sobre a obra, demonstra-se cabalmente o escrutínio judicial do acionamento das garantias já ocorreu, e com ganho de causa para a Recorrida, que provou ter legitimidade para o acionamento das garantias.
R. Assim, resultam infundados os argumentos apresentados pela Recorrente, não tendo a mesma razão no recurso interposto e devendo o mesmo ser considerado improcedente, mantendo-se o despacho recorrido.
A recorrente apresentou resposta às contra-alegações apresentadas, alegando terem sido “introduzidos elementos inovatórios ou questões processuais que cumpre, ao abrigo do citado preceito processual (665º nº3 do CPC), rebater e esclarecer.”
O recurso foi admitido por despacho de 06/04/2021 (ref.ª 403887517), no qual conheceu da nulidade arguida, nos seguintes termos:
“Não se conformando com o teor do despacho referência 399922320, do mesmo recorreu a autora massa insolvente, secundada pelo senhor administrador da insolvência, invocando nulidade do mesmo. A ré apresentou contra-alegações.
O tribunal, no âmbito de um poder discricionário conferido por lei nos termos do artigo 152.º n.º 4 do Código de Processo Civil, determinou sem interferir no conflito de interesses entre as partes, o momento em que daria cumprimento ao decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Pretende nos termos da fundamentação ali plasmada priorizar a tramitação do apenso de reclamação de créditos e o pagamento aos credores e, concomitantemente, evitar a prática de atos inúteis. Certo é que o mesmo se traduziu efetivamente numa suspensão da instância, pelo que, sem prejuízo do disposto no artigo 630.º n.º 1 do Código de Processo Civil, se entenderá admissível o recurso nos termos do artigo 644.º n.º 2 alínea c) do Código de Processo Civil.
O recurso foi requerido por quem tem legitimidade e apresentado em tempo – artigo 631.º n.º 1 e 638.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
O recorrente invocou nulidade do despacho por violação do disposto no artigo 8.º e 9.º do CIRE, que proíbem a suspensão da instância do processo de insolvência e atribuem-lhe natureza urgente. Importa decidir nos termos do artigo 617.º n.º 1 do Código de Processo Civil. Quer a proibição da suspensão da instância, quer a atribuição de natureza urgente ao processo de insolvência visam o fim último previsto no artigo 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas: “satisfação dos credores pela (…) liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.” O despacho do tribunal visa este fim, pelo que não enferma da apontada nulidade.
Termos em que julgo improcedente a invocada nulidade.”
*
2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas, as questões a decidir são, por ordem lógico processual de conhecimento:
- violação do caso julgado formado pela decisão deste tribunal da Relação de 30/06/2020;
- violação do disposto no art. 8º nº1 do CIRE e 272º nº1 do CPC – nulidade, suspensão da instância e relação de prejudicialidade.
*
A apelante apresentou resposta às contra-alegações, invocando a antecipação do disposto no nº3 do artigo 665º do CPC.
Tendo em conta que as contra-alegações não contêm matéria de recurso subordinado ou ampliação de recurso (arts. 633º e 636º do CPC) e não levantam qualquer questão processual quanto ao recurso, propriamente dito (ou seja, não é arguida a irrecorribilidade, falta de legitimidade ou extemporaneidade da instância recursiva, por exemplo) e que pese embora arguindo uma nulidade processual do despacho recorrido, a apelação pede a sua revogação, não se vislumbrando, da lide recursiva, tal como configurada pelas alegações, que venha a ser aplicado o disposto no nº2 do art. 665º do CPC, seja qual for o seu resultado, e que, ainda que assim não fosse, sempre dependeria de despacho do relator, inexiste o direito de resposta às contra-alegações, pelo que a peça processual em causa não será considerada.
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3. Fundamentação de facto:
Os factos relevantes para a decisão do recurso são os constantes do relatório, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
4. Fundamentação de direito
4.1. Violação de caso julgado formado pela decisão do Tribunal da Relação de 30/06/2020
O primeiro exercício necessário é o da determinação da regras aplicáveis e respetivo âmbito.
«O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.» – art. 1º nº1 do CIRE[1].
É um processo especial que, quanto à sua natureza, pode ser considerado misto, com uma fase marcadamente declarativa (até à declaração de insolvência) e outra claramente executiva (após a declaração de insolvência com liquidação de todo o património do devedor que integra a massa insolvente para satisfação dos credores ou através da aprovação de um plano de insolvência)[2].
Nos termos do nº1 do art. 17ºdo CIRE, o processo de insolvência é regido pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código.».
Sem prejuízo, ao longo do CIRE, o legislador remeteu especificamente para algumas regras do CPC, em especial para as normas que regulam o processo executivo na parte relativa à tramitação de feição “executiva”, ou seja, a apreensão e liquidação, mas não só[3]. A regra geral do art. 17º, no entanto vale também para as remissões expressas, ou seja, a aplicação dos preceitos do CPC dá-se enquanto os mesmos não contrariem disposições do CIRE.
A recorrente argumenta que a decisão sob recurso ofende o caso julgado formado pelo Acórdão desta Relação de 30/06/2020 porque esta decisão, ao anular o despacho saneador-sentença e ao ordenar o prosseguimento dos autos não ordenou (porque não vislumbrou) motivo que pudesse obstar à pronta obediência da sua decisão pela 1ª instância. O tribunal de recurso não usou sequer a fórmula “se nada a isso obstar”. Não foi ressalvada qualquer causa e as contra-alegações não ampliaram o objeto do recurso com matéria que pudesse obstar, no provimento da apelação, à imediata realização de audiência de discussão e julgamento. Mais defende que o caso julgado formado pelo Acórdão de 30/06/2020 não admite exceções que contornem a ordem de realização do julgamento e abrange eventuais causas pré-existentes ao julgamento do recurso que pudessem ter sido apreciadas pelo tribunal de recurso e não o foram.
A parte que a decisão transcreve do Acórdão de 30/06/20 constitui, quanto àquele, mero obter dictum, não fazendo caso julgado. Ainda assim, o tribunal de recurso ponderou que o interesse em agir não podia ser conhecido por falta de sentença de verificação e graduação de créditos e não entendeu existir causa prejudicial ou motivo para suspender ou deferir o julgamento da causa, não podendo o juiz a quo decidir de forma diversa do ponderado pela 2ª instância.
Entende que o despacho recorrido, nesta dimensão, violou o disposto no art. 152º nº1, in fine, 620º nº1 e 628º do CPC, 4º nº1, in fine da LOSJ e 4º nº1 do EMJ.
A apelada contra-argumentou que resulta do Acórdão de 30/06/2020 que a avaliação do interesse em agir da recorrente requer, no caso concreto, a prolação prévia da sentença de verificação de créditos, pelo que urge que a mesma seja emitida e apenas depois, caso exista interesse, se devendo prosseguir para julgamento nos apensos, o que foi devidamente entendido e acolhido pelo tribunal de 1ª instância pelo que inexiste violação de caso julgado formal.
Apreciando:
O caso julgado designa tanto “a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como o conjunto dos efeitos jurídicos que têm o transito em julgado da decisão judicial por condição.[4]
O princípio constitucional consagrado no artigo 205.º, n.º 2, da CRP, que determina a obrigatoriedade das decisões dos tribunais para todas as entidades públicas e privadas, prevalecendo sobre as de quaisquer outras autoridades, exige que lhes seja conferida eficácia de caso julgado, em prol da segurança e certeza jurídica na resolução dos litígios.
Assim, às decisões judiciais que versem sobre a relação material controvertida, quando transitadas em julgado, é atribuída força obrigatória dentro (formal) e fora (material) do processo nos limites subjetivos e objetivos fixados nos artigos 580.º e 581.º do CPC, e nos precisos termos em que julga, como se estipula nos artigos 619.º, n.º 1, 620.º e 621.º do CPC.
A força obrigatória do caso julgado desdobra-se num efeito negativo e num efeito positivo. O efeito negativo “consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. (…).
 O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior.”[5]
Com Rui Pinto diremos ainda que “a possibilidade de um efeito positivo externo do caso julgado apresenta duas condições objetivas, negativa e positiva. Assim, como condição objetiva negativa, a autoridade de caso julgado opera em simetria com a exceção de caso julgado: opera em qualquer configuração de uma causa que não seja a de identidade com causa anterior; ou seja, supõe uma não repetição de causas. Se houvesse uma repetição de causas, haveria, ipso facto, exceção de caso julgado.” [6]
“Para tanto, basta que não ocorra um dos requisitos exigidos pelo artigo 581.º: assim, não há repetição de causa se (i) uma das partes não é a mesma da primeira causa ou se a parte ativa pretende (ii) obter o mesmo efeito jurídico de outros fundamentos, (iii) retirar diferente efeito jurídico dos mesmos fundamentos ou (iv) obter diferente efeito jurídico de outros fundamentos. Nessa configuração, não se verificam as previsões dos artigos 577.º, al. i), 580.º e 581.º, pelo que o tribunal pode conhecer do mérito, pois não está impedido pelo obstáculo da exceção de caso julgado, sem prejuízo de a instância padecer, eventualmente, de outra exceção dilatória insuprível ou não suprida.
A condição objetiva positiva, por sua vez, consiste numa “relação de prejudicialidade [Ac. do TRP de 21-11-2016/Proc. 1677/15.8T8VNG.P1 (Jorge Seabra)] ou uma relação de concurso material entre objetos processuais ou, pelo prisma da decisão, uma relação entre os efeitos do caso julgado prévio e os efeitos da causa posterior, seja quanto a um mesmo bem jurídico, seja quanto a bens jurídicos conexos. Naturalmente que, na ausência dessas relações, “não é invocável a força vinculativa da autoridade de caso julgado”, frisa o Ac. do TRP de 21-11-2016/Proc. 1677/15.8T8VNG.P1 (Jorge Seabra).
Generalizando, e apresentando-a por outra perspetiva, a condição objetiva positiva consiste na existência de uma relação entre os objetos processuais de dois processos de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor.”
Retornando à situação sub judice temos que foi proferida uma decisão que textualmente anulou “a sentença recorrida proferida para, sem prejuízo dos factos por ela julgados assentes, permitir a ampliação e julgamento de matéria de facto, tendo como objeto os temas de prova fixados em audiência prévia e por este acórdão densificados sob os pontos B.”
O tribunal de 1ª instância, recebida a decisão do tribunal de recurso, textualmente, decidiu: “Pelo exposto, sem prejuízo do determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, determino ao abrigo do disposto no artigo 272.º n.º 1 do Código de Processo Civil que os autos aguardem a prolação da sentença de verificação e graduação de créditos e a concretização do rateio parcial, após o que deverá ser aberta conclusão.”
O ponto 1 da decisão deste Tribunal de 30/06/2020[7] formou caso julgado material por se ter pronunciado sobre parte da decisão de mérito (confirmando-a).
O ponto 2 da decisão, que acima transcrevemos, anulando parte da decisão de mérito proferida decidiu de mérito e no mais formou caso julgado formal, que recai unicamente sobre a relação processual. No passo em que decide, como consequência da anulação, que, “sem prejuízo dos factos por ela julgados assentes, permitir a ampliação e julgamento de matéria de facto, tendo como objeto os temas de prova fixados em audiência prévia e por este acórdão densificados sob os pontos B.” o tribunal decide que os autos devem prosseguir e com que finalidade, determinando a instrução e julgamento relativo a determinada matéria de facto, em ordem ao conhecimento de determinado pedido.
O efeito de caso julgado veda, o que foi integralmente respeitado, que o tribunal volte a apreciar e decidir as questões decididas no Acórdão proferido em 30/06/12.
Quanto a este pedido (cuja decisão prévia o tribunal anulou) a decisão de mérito irá ser proferida a final, depois de seguido o iter processual comum, no fundo o que o tribunal da Relação determinou.
O que o Tribunal da Relação não decidiu foi se existia alguma causa prejudicial ou motivo justificado que determinasse a suspensão da instância, porque tal questão, como bem frisa a apelante, não lhe foi colocada.
A tese da apelante é que o caso julgado formado sobre o dispositivo final do Acórdão de 30/06/2020, não admite exceções que contornem a ordem de realização do julgamento e abrange eventuais causas, preexistentes ao julgamento do recurso, que pudessem ter sido apreciadas pelo Tribunal de Recurso e não foram.
Não é assim. O tribunal identificou o objeto do recurso e decidiu-o, não decidindo nem formando, nem na decisão, nem nos fundamentos nesta vertidos, caso julgado em relação a nenhuma outra questão, não colocada.
O facto de o tribunal não ter usado a fórmula (que não é uma fórmula) “se nada a isso obstar” ou equivalente, não releva nos termos pretendidos pela apelada, dado que, efetivamente, mesmo no juízo de substituição previsto no art. 665º do CPC, o tribunal superior apenas aprecia as questões prejudicadas quando disponha dos elementos para tal (nº2 in fine do art. 665º do CPC) e não se substitui ao tribunal recorrido na tramitação processual posterior dos autos. Dando um exemplo, neste caso concreto, o tribunal ordenou a baixa dos autos para ampliação da matéria de facto a conhecer, incluindo pontos por si indicados e os constantes dos temas de prova. Não ordenou a imediata realização de audiência de julgamento, nem o podia fazer, dado que agora há que instruir a causa, tramitação cuja condução cabe exclusivamente ao tribunal recorrido. Ou seja, o facto de o tribunal não ter referido a eventualidade de haver obstáculo ao conhecimento não significa que tenha decidido que não há obstáculo ao conhecimento e logo, não significa que esse obstáculo não exista e não deva ser valorado[8].
Movemo-nos assim no âmbito de aplicação do art. 620º, estando o juiz de 1ª instância vinculado a ampliar a matéria de facto e proceder ao julgamento da mesma, mas não ao modo ou tempo de o fazer.
Precisamente, o que fez o tribunal recorrido foi dizer que, neste momento, não irá prosseguir a instrução (e julgamento da causa), não decidindo que não o vai fazer, aliás, ressalvando expressamente “(…) sem prejuízo do determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa”, e justificando com a atribuição de prioridade à tramitação processual da verificação e graduação de créditos, para ser efetuado o rateio parcial e, feito este, aferir então da tramitação a seguir.
E a tramitação a seguir pode vir a ser o prosseguimento dos autos após a aferição do interesse em agir da insolvente nos exatos termos do despacho proferido:     
“Concretizado o rateio parcial, será possível prever de acordo com o estado da liquidação à data, se a massa insolvente tem ou não meios para pagar os créditos comuns que aqui se discutem e na afirmativa, prosseguir de imediato com os presentes autos e, na negativa, questionar com critérios de atualidade por causa superveniente, o interesse em agir da massa insolvente.
Esta questão assinalada, de aferição do interesse em agir, surge na sequência da parte transcrita do Acórdão proferido em 30/06/2020, que, como refere a apelante, constitui obter dictum e assim deve ser entendido. Mas precisamente por esse motivo é que não é possível acompanhar o raciocínio da apelante de que a Relação ponderou o facto processual omissivo e entendeu inexistir causa prejudicial pelo que não pode o Sr. Juiz de 1ª instância agir de modo diverso. A Relação apontou que o interesse em agir surgia, no caso, como crítico, mas que o estado dos autos não lhe permitia tomar uma decisão sobre tal pressuposto, prosseguindo na sua análise. Não ponderou a suspensão da instância por esta ou por outra causa prejudicial ou motivo justificado, apontou um problema e fundamentou não ir decidir o mesmo em sede da decisão de recurso a proferir.
Também o facto de ter sido usada a expressão «impõe-se o prosseguimento dos autos» não significa que o tribunal superior ordenou o prosseguimento imediato dos autos. Significa que revogou uma sentença (que tinha posto fim à causa), por entender dever ser apreciada matéria de facto controvertida e que, por esse motivo, os autos não podiam findar, tinham que prosseguir (e por esse motivo revogou a decisão nessa parte).
Assim, improcede o fundamento do recurso baseado em violação do caso julgado (conclusões E e F), não se surpreendendo qualquer violação dos arts. 152º nº1, in fine, 619º, 620º e 628º, todos do CPC, 4º nº1 da LOSJ ou 4º nº1 do EMJ.
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4.2. Violação do disposto no art. 8º nº1 do CIRE e 272º nº1 do CPC – nulidade, suspensão da instância e relação de prejudicialidade
A apelante inicia as suas alegações apontando que o despacho recorrido cometeu uma nulidade processual, que, pese embora tenha arguido ante o tribunal a quo, pode reclamar em sede de recurso, invocando para o efeito o disposto no artigo 627.º, n.º 1, do CPC, o princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o artigo 630.º, n.º 2, do CPC.
E a nulidade processual em causa consubstancia-se, nas suas alegações, na violação do art. 8.º, n.º 1, do CIRE, correspondendo assim a um ato violador da lei adjetiva que influi na decisão da causa (na medida em que admite a sua preclusão a final) e preenchendo o disposto no nº1 do art. 195º do CPC.
O art. 195º do CPC prevê as denominadas nulidades secundárias, inominadas ou atípicas, que podem ter na base a prática de um ato que a lei não admite, a omissão de um ato que a lei prescreva, a prática de um ato admitido ou prescrito sem observâncias das formalidades respetivas e a prática de um ato ou a sua omissão em violação de sequência processual fixada pelo juiz nos termos do art. 547º[9]. Tais irregularidades, porém, apenas produzirão nulidade se a lei assim o declarar ou se influírem no exame ou decisão da causa.
Basta esta enumeração para se compreender que o procedimento processual seguido nos autos não corresponde a qualquer das hipóteses legais de irregularidade. É também notório que a decisão que suspendeu a instância não influi no exame ou decisão da causa, já que admitir a preclusão da causa não é o mesmo que pôr-lhe fim, podendo, caso tal decisão venha a ser proferida, ser impugnada pelos meios gerais.
No caso concreto, é bastante óbvio que o que vem argumentado é erro de julgamento e a violação de uma regra concreta, ou seja, a apelante ataca diretamente o conteúdo do ato processual e não a prática ou omissão de determinado ato processual.
Não se trata, pois, de uma alegação de nulidade processual nos termos do nº1 do art. 195º do CPC (que não seria, a suceder, fundamento de recurso, já que “das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se”) mas sim de erro de julgamento, ou seja, violação do art. 8º nº1 do CIRE[10], também arguido, de que se passará a conhecer.
Improcede, nestes termos do fundamento de recurso que aponta ao despacho recorrido nulidade processual (conclusões A a C).
Como já referido, as alegações da apelante centram-se na inaplicabilidade do disposto nos arts. 269º e ss. do CPC ao processo de insolvência, devido ao disposto no nº1 do art. 8º do CIRE, onde se dispõe:
«A instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, excepto nos casos expressamente previstos neste Código.»
A apelada argumenta que o processo de insolvência não foi suspenso mas sim o presente apenso, que é uma ação ordinária que foi apensada ao processo de insolvência a pedido do administrador da insolvência, que não existe entre esta (e as outras duas ações similares) e o processo de insolvência uma inerência material. Alega ainda que a suspensão destes apensos procede da necessidade de realizar uma articulação lógica entre estes e o apenso da reclamação de créditos, fundada na necessidade de se articularem vários apensos do mesmo processo de insolvência, e não na necessidade de se atender a qualquer evento estranho ao desenrolar do processo de insolvência, para evitar decisões contraditórias e diligências inúteis no próprio processo de insolvência.
Mais defende que a aferição do interesse em agir deriva de uma imposição prescrita pelo próprio Tribunal da Relação no acórdão de 30/06/2020.
Apreciando:
Os arts. 1º a 17º do CIRE funcionam como um corpo de regras gerais do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, encabeçado pelo art. 1º, que enuncia a finalidade do processo de insolvência, já transcrito acima, e que, tendencialmente, se aplicam a todos os processos previstos neste código. Dizemos tendencialmente porque algumas das regras, na letra da lei, apenas se aplicam aos processos de insolvência, sendo necessário labor interpretativo para averiguar da sua aplicabilidade aos demais processos previstos no Código (é o caso do PER ou do PEAP).
A finalidade do processo de insolvência, ou seja, a satisfação dos credores[11], seja mediante a aprovação de um plano de insolvência, seja através da liquidação do devedor, é o grande princípio norteador que deve guiar o intérprete na análise das normas aplicáveis.
O artigo 8º é exatamente um daqueles preceitos que se aplica, na letra da lei, ao processo de insolvência, sem tradição no direito anterior e unanimemente apontado pela doutrina como visando afastar o regime previsto nos arts. 269º e ss. do CPC[12].
O processo de insolvência, porque se desenvolve numa estrutura mista, com fases marcadamente declarativas, fases claramente executivas e algumas de natureza híbrida, está legalmente desenhado em processo principal, incidentes processados neste (como a exoneração do passivo restante, o diferimento de desocupação ou a prestação de alimentos ao insolvente, trabalhadores ou outros credores, só para dar alguns exemplos), incidentes processados por apenso e apensos que incluem processos cuja apensação aos autos foi determinada, por lei, pelo juiz ou pelo Administrador da Insolvência (nos termos dos arts. 85º e ss. do CIRE) e processos diretamente intentados por apenso.
Nas palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 248/2012, de 22/05/2012[13]O processo de insolvência, apesar de ser considerado uma execução, apresenta-se como um processo de elevada complexidade, envolvendo múltiplas atividades repartidas pela sua fase declarativa (a inicial, em que é permitida a oposição) e a executiva (Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2009, p. 19). O legislador previu a reserva de decisão jurisdicional dos pontos litigiosos que se apresentem no decurso do processo, pelo que o Tribunal está vinculado a solucionar os múltiplos pleitos secundários que podem surgir no decurso do processo, com respeito pelo contraditório e pela produção da prova que considere necessária.”
Para esse efeito podem distinguir-se apensos “naturais”, previstos no próprio CIRE como resultado da tramitação regra, como os embargos (41º nº1 do CIRE), os recursos (14º CIRE), a qualificação da insolvência (185º e ss.), a verificação e graduação de créditos (132º e ss.), a liquidação do ativo (158º e ss.), a apreensão de bens (149º e ss.), a prestação de contas (art. 64º) e nestes alguns necessários e outros eventuais. São exemplo de apensos eventuais conaturais ao processo de insolvência, além dos já apontados, embargos, recursos e qualificação da insolvência, as ações de responsabilidade previstas no art. 82º nºs 3 a 6, a resolução em benefício da massa insolvente (120º e ss.) e impugnação da mesma, a restituição e separação de bens (141º, 144º e 145º), a verificação ulterior de créditos e outros direitos (148º) e o plano de pagamentos (251º e ss.).
São ainda apensos possíveis, e cuja apensação é regulada, as ações intentadas contra o devedor, nos casos previstos no art. 85º, as ações executivas que quadrem no disposto no art. 88º e as ações relativas a dívidas da massa insolvente, previstas no art. 89º.
Voltando ao nº1 do artigo 8º, e focando-nos na expressão “processo de insolvência”, ali usada, não há qualquer dúvida de que, relativamente ao próprio processo principal de insolvência e incidentes nele processados não é possível a suspensão da instância por qualquer dos motivos previstos nos arts. 269º e ss. do CPC. Veja-se que uma das possíveis causas de suspensão (o falecimento do devedor, subjetivamente uma das partes) tem regulação diversa e específica no art. 10º do CIRE.
É aliás nessa linha que encontramos jurisprudência sobre o tema:
- o Ac. 248/2012 do Tribunal Constitucional, já citado, foi tirado num caso em que a questão da suspensão da instância se colocava no processo principal, previamente à declaração da insolvência, sendo a causa prejudicial relativa ao crédito invocado. O Tribunal centrou, precisamente, a sua análise no acesso ao direito e possibilidade de exercício do contraditório relativos à fase declarativa (ver pontos 11 e 12 da fundamentação);
- o Ac. TRL de 22/10/09 (Neto Neves)[14] decidiu que não se aplicava o nº4 do então art. 279º do CPC (suspensão por acordo das partes) em processo de insolvência, na fase declarativa prévia à declaração de insolvência;
- o Ac. TRL de 08/11/2018 (Pedro Martins)[15] decidiu pela impossibilidade de suspensão da instância antes da prolação da decisão liminar de exoneração do passivo restante (que tinha sido decidida apenas relativamente ao incidente) até ser decidida ação de impugnação de resolução apensa, invocando também (entre outra fundamentação específica relativamente à exoneração do passivo restante), o art. 8º nº1 do CIRE;
- o Ac. TRP de 27/06/2018 (Fátima Andrade)[16], decidiu ser possível a suspensão da instância no incidente da exoneração do passivo restante, após o decurso do prazo de cessão de rendimentos, aguardando inventário em que era interessado o devedor, com o argumento de que o processo de insolvência já se encontrava encerrado por decisão judicial transitada em julgado.
A letra da lei, em especial se compararmos a diferente redação dos nºs 1 dos arts. 8º, 9º e art. 11º (“processo de insolvência”, “processo de insolvência incluindo todos os seus incidentes apensos e recursos” e “processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação da insolvência”) indicam desde logo que, para a determinação da extensão da proibição de suspensão da instância, por outras causas que não as especificamente previstas no CIRE aos demais apensos, em especial aos apensos eventuais como as ações apensas nos termos do art. 85º (ou seja o caso presente), teremos que buscar outros subsídios no próprio Código, que terão de ser encontrados sempre com recurso à finalidade última do processo, que comanda toda a sua tramitação, incluindo as apensações[17].
E é jogando todas as caraterísticas do processo de insolvência – um processo de execução universal, concursal, híbrido[18] – com a sua finalidade última de satisfação dos credores (embora tal satisfação possa ser atingida por diversos meios, nomeadamente privilegiando a recuperação do devedor), que se compreende a razão da consagração da natureza urgente a todo o processo, incidentes e apensos (nº1 do art. 9º).
A regra do nº1 o art. 8º revela uma ligação umbilical com as mesmas razões de consagração da natureza urgente, como nos dá conta Alexandre Soveral Martins[19] quando nota que “O regime da suspensão da instância no processo de insolvência é influenciado pela necessidade de assegurar um rápido desenrolar da tramitação.”
Havendo que dar sentido à diferença de redação entre o nº1 do art. 8º e o nº1 do art. 9º, será nas finalidades do processo de insolvência que iremos encontrar o norte na conformação no caso concreto.
De entre todos os tipos de apensos possíveis, temos diferentes naturezas, tramitações e partes[20] que têm em comum serem urgentes e terem interesse para as finalidades do processo de insolvência, máxime a satisfação coletiva dos direitos dos credores.
É, assim, nas finalidades do processo de insolvência que teremos que buscar a extensão concreta da aplicabilidade da proibição da suspensão da instância. E a ferramenta para o fazer terá que ser a gestão processual que ao juiz compete em todos os processos (art. 6º do CPC), mas que num processo com tais caraterísticas se empola e revela todas as suas potencialidades.
Como se escreveu em acórdão aprovado nesta mesma sessão, proferido no apenso CV deste processo, relatado por Amélia Sofia Rebelo[21] quanto à aplicabilidade do nº1 do art. 8º “não deverá inviabilizar a possibilidade legal de o Administrador da Insolvência, em representação da massa insolvente e, por exemplo, o autor de uma ação de impugnação de resolução, verem deferida a suspensão da instância por motivo justificado, designadamente, por estarem em vias de chegar a acordo – ou diligenciar pela obtenção do mesmo – se essa via, de acordo com os critérios de gestão do processo previstos pelo art. 6º do CPC da banda do juiz, e da gestão dos interesses da massa insolvente da banda do Administrador da Insolvência, for a mais adequada à simplificação e agilização processual, por um lado, e à tutela ou maximização da massa insolvente, por outro. Muito menos se deverá entender como impossibilidade de o juiz sustar oficiosamente na realização ou na consumação de determinada atividade (processual ou não) num determinado apenso ou incidente com fundamento em questão ou causa prejudicial emergente do regime e características específicas da insolvência – que no cumprimento do seu objeto se caracteriza pelo cumprimento de atividades materialmente distintas, mas entre si numa lógica natural e/ou legal sequencial e de sucessiva dependência - ou do objeto de uma outra ação comum a ela apensa, conforme supra se exemplificou.”
Ou seja, ponderando em concreto a finalidade e natureza do apenso em questão, os interesses mediata e imediatamente protegidos e a finalidade máxima do processo de insolvência, poderá ser afastada a aplicação da proibição de suspensão da instância fora do processo principal de insolvência.
Como se decidiu, também em acórdão aprovado nesta sessão, no apenso CT deste processo, relatado por Adelaide Domingos[22]: “Não se afigura questionável que todo o complexo normativo inserto no CIRE tenha como finalidade última a defesa do interesse de todos os credores em ordem à máxima satisfação dos seus créditos, se possível através de um plano de insolvência, ou se não o for, através da liquidação do património do devedor insolvente e repartição do produto obtido pelos credores (artigo 1.º do CIRE).
A natureza urgente alargada a todo o universo processual insolvencial e o referido caráter universal e auto suficiente são instrumentos dessa finalidade última.
A maximização e otimização dos atos processuais devem-na ter sempre em conta.
A tramitação processual é um instrumento e não um fim em si mesmo. Tem de estar ao serviço da finalidade que visa o processo.
E é nesse campo que não pode ser arredado do processo de insolvência e dos seus apensos o poder-dever imposto atualmente ao juiz relacionado com a gestão processual e adequação processual expressamente previsto nos artigos 6.º e 547.º do CPC, aplicáveis inexoravelmente ao universo procedimental da insolvência por via do disposto no artigo 17.º do CIRE.”
Aqui chegados, podemos com segurança afirmar que, numa ação apensada ao processo de insolvência nos termos do art. 85º do CIRE, apenas no concreto se poderá aferir a aplicabilidade do disposto no nº1 do art. 8º do CIRE, à luz dos respetivos fundamentos lidos sob o foco das finalidades últimas do processo de insolvência, não se podendo à partida e de forma automática afirmar a impossibilidade de aplicação do disposto no artigo 272º nº1 do CPC, não se surpreendendo, pois, em abstrato, erro de julgamento que importe reparar.
Esta conclusão leva-nos, sim, à análise da fundamentação da decisão recorrida neste enfoque, cabendo nesta análise tanto os argumentos relacionados com a existência de causa prejudicial como a funcionalidade da suspensão na economia do processo insolvencial concreto e seu estado.
Improcede, pois, este fundamento da apelação (conclusão D).
Nas suas conclusões G a O a apelante centra-se na inexistência de prejudicialidade argumentando, em síntese que:
- o apenso de verificação e graduação de créditos não constitui causa prejudicial em relação a este apenso;
- a recorrente é a única legitimada para discutir a legalidade do acionamento das garantias bancárias e tem esse direito, podendo recuperar o valor pago pela instituição garante o que confere à massa insolvente inquestionável legitimidade e interesse em agir na prossecução ininterrupta da presente lide, em benefício do coletivo dos credores;
- o objetivo é a incorporação dos montantes indevidamente pagos pelo banco na massa insolvente, sendo que o modo como o dinheiro chega ao banco não poderá deixar de ser nos termos previstos no CIRE (cfr art. 90º);
- a presente assemelha-se a uma ação de cobrança de créditos da insolvência ou da massa insolvente; porquanto se visa exponenciar o produto a ratear pelos credores (pagando ao banco garante) há que aplicar a lógica prevista no nº1 do art. 158º: avançar com prontidão independentemente da verificação do passivo;
- não permitir o exercício do direito aqui reclamado pela A. é legitimar tacitamente o acionamento abusivo e ilícito destas garantias;
- a massa insolvente tem direito à tutela jurisdicional efetiva, não podendo contra si ser brandidas falta de meios do tribunal ou questões gestionárias a tanto se opondo o nº4 do art. 20º da CRP e o artigo 6º da CEDH.
A apelada contra-argumentou:
- o que vem questionado é a legitimidade em agir da recorrente, na medida em que não detém a totalidade dos interesses visados com a norma que permite discutir a legalidade da execução das garantias;
- o presente apenso não visa o ingresso de determinado montante na massa insolvente, mas antes o reembolso ao Banco garante;
- estas não são, assim, ações de cobrança de créditos;
- foram já julgadas improcedentes quatro providencias cautelares sobre o pagamento das garantias bancárias movidas pela recorrente contra a recorrida em que o escrutínio da legalidade foi já efetuado e em que a recorrida provou ter legitimidade para o acionamento das garantias.
Retornando ao despacho recorrido, ali se fundamentou que “impõe-se conceder à Massa Insolvente e aos credores o direito de verem julgada e apreciada a sua pretensão, mas num quadro em que esteja garantida a utilidade do pedido, designadamente, na certeza de que pagos os credores privilegiados a massa tem disponibilidade para pagar rateadamente aos credores comuns, sob pena de estar o tribunal a afetar meios e recursos em causas que, não obstante legítimas, revelar-se-ão a final inúteis.”
Consequentemente com este raciocínio, e após expor sinteticamente a complexidade e longevidade dos autos bem como a escassez de meios de que dispõe, o tribunal considerou que “é urgente que o processo flua para a fase de pagamentos, sendo necessário para tal tramitar e julgar o apenso de reclamação de créditos que, consigna-se ter à data de hoje conclusão aberta.
Após o trânsito em julgado da sentença a proferir no apenso de reclamação de créditos, impor-se-á efetuar no processo principal um rateio parcial para pagamento aos credores privilegiados e/ou garantidos nos termos dos artigos 173.º, 174.º, 175.º e 178.º, todos do CIRE.
Concretizado o rateio parcial, será possível prever de acordo com o estado da liquidação à data, se a massa insolvente tem ou não meios para pagar os créditos comuns que aqui se discutem e na afirmativa, prosseguir de imediato com os presentes autos e, na negativa, questionar com critérios de atualidade por causa superveniente, o interesse em agir da massa insolvente. A ocorrência do rateio parcial e saldo remanescente da disponibilidade da massa insolvente afigura-se prejudicial.”
Assim, o tribunal aplicou o disposto no nº1 do art. 272º do CPC, suspendendo a instância determinado que os autos aguardassem «a prolação da sentença de verificação e graduação de créditos e a concretização do rateio parcial, após o que deverá ser a ré notificada para se pronunciar sobre a desistência da requerida perícia – artigo 474.º do Código de Processo Civil.»
Ou seja, de forma absolutamente coerente e condicente com o raciocínio exposto, o tribunal considerou que só após a prolação de sentença de verificação e graduação de créditos e realização de rateio parcial estaria em condições de avaliar se, pagos os credores privilegiados, ainda se poderiam realizar pagamentos aos credores comuns. O evento determinante não é a sentença de verificação e graduação de créditos, que aqui surge como pressuposto do início da fase de pagamentos, nos termos do art. 173º do CIRE, sendo que só com o mapa de rateio, concretamente e na previsão do tribunal, um rateio parcial, se saberá se o produto a distribuir logra atingir o pagamento dos créditos comuns (entre os quais o reclamado pelo banco garante quanto à garantia paga).
A verificação e graduação de créditos não é, assim, a causa prejudicial, antes o sendo a realização do rateio e a distribuição do produto da liquidação pelos credores verificados e graduados.
A decisão sob recurso não questionou, por qualquer forma, a legitimidade da recorrente, antes enunciou que necessitava de atingir os pressupostos necessários para conhecer de um outro pressuposto processual, o interesse em agir. Compreenda-se que o que o tribunal fez foi ponderar que, antes de gastar recursos da massa – que devem ser distribuídos por todos os credores – numa instrução que, no mínimo, compreende uma perícia dispendiosa, com o fim último de não ter que proceder ao pagamento de um crédito comum, deveria assegurar que isso traria um efetivo benefício para o coletivo de credores, o que só pode fazer percebendo se os pagamentos chegarão até aos credores comuns.
Esta é a prejudicialidade invocada, que se considera correta, adequada, proporcional e realiza o interesse coletivo dos credores (incluindo os credores bancários que prestaram as garantias), ou seja, garante as finalidades próprias do processo de insolvência, o que torna legítimo postergar a celeridade e a proibição da suspensão da instância, mais a mais para a incrementar na tramitação que conduzirá ao pagamento ao coletivo dos credores.
Conclui-se, assim, que não só se encontra preenchida a previsão do nº1 do art. 272º do CPC, como a situação concreta justifica a suspensão da instância à luz das finalidades do processo de insolvência e do prosseguimento dos interesses do coletivo dos credores.
Refira-se que a situação não tem qualquer correspondência com a previsão do nº1 do art. 158º do CIRE, por não ter sido considerada como causa prejudicial a verificação do passivo, e porque a lide se distancia muito de uma simples cobrança de créditos pela massa insolvente (como resulta do respetivo pedido e causa de pedir).
Por fim, realça-se que não foi proferida qualquer decisão de mérito sobre o pressuposto processual interesse em agir, que se anunciou ir conhecer após cessação do motivo justificado, pelo que não foi negada qualquer tutela jurisdicional ou o direito de ação, não se surpreendendo, pois, qualquer violação dos arts. 2º nº2 do CPC, 20º nº4 da CRP ou 6º da CEDH, improcedendo as conclusões G a O das alegações apresentadas pela recorrente.
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A apelante, porque vencida, suportará integralmente as custas do presente recurso que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e este não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[23].
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5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas de parte na presente instância recursiva pela recorrente.
Notifique.
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Lisboa, 22 de junho de 2021
Fátima Reis Silva
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
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[1] Diploma a que se referirão todas as indicações sem identificação de proveniência ao longo do texto.
[2] Cfr. Lebre de Freitas em Apreensão, restituição, separação e venda de bens no processo de falência, in: RFDUL. Vol. XXXVI, n.2, 1995, pg. 373, Maria do Rosário, Epifânio em Manual de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2012, pg. 13, Catarina Serra em A falência no quadro jurisdicional dos direitos de crédito – o problema da natureza jurídica do processo de liquidação aplicável à insolvência no direito português, Coimbra Editora, 2009, pg. 72, Gisela César em Os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa em curso, Almedina, 205, pg. 38, entre outros.
[3] Por exemplo, a remissão relativa ao limite de testemunhas constante do nº2 do art. 25º do CIRE, a remissão do nº5 do art. 35º do CIRE para o art. 596º do CPC ou a remissão para os termos do processo comum constantes do art. 148º, também do CIRE.
[4] Rui Pinto em Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JulgarOnline, novembro de 2018 | 1, pg. 2, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/11/20181126-ARTIGO-JULGAR-Exce%C3%A7%C3%A3o-e-autoridade-do-caso-julgado-Rui-Pinto.pdf.
[5] Rui Pinto, local citado na nota anterior, pg. 6.
[6] Rui Pinto, local citado na nota 5, pgs. 26 e 27.
[7] Que decidiu “Julgar parcialmente improcedente o recurso interposto pela Recorrente e, consequentemente, manter a decisão de absolvição do pedido de declaração de inexistência do direito da Recorrida executar as garantias com fundamento em caducidade produzida pela declaração da insolvência.”
[8] As alegações, claramente, dirigem-se a obstáculos de natureza processual, mas na verdade outros obstáculos podem surgir. No caso concreto, e porque estamos num apenso de um processo de insolvência podemos hipotizar outros obstáculos. Por exemplo, se, entretanto, o devedor deixar de estar em situação de insolvência, seja antes, seja depois da decisão do tribunal superior, pode pedir, no processo principal, o encerramento dos autos e, à partida, uma ação como a presente teria que ser desapensada e enviada para o tribunal competente (arts. 230º nº1, al. c), 231º e 233º nº4 todos do CIRE) antes sequer de ser retomada a tramitação.
[9] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa em Código de Processo Civil Anotado, I Vol., Almedina, 2018, pg. 235.
[10] Como, aliás a apelante acaba por reconhecer, na alínea D das suas conclusões.
[11] Ver Alexandre Soveral Martins em Um curso de direito da insolvência, Almedina, 2016, 6ª edição, pgs. 36 a 40.
[12] Ver João Labareda e Carvalho Fernandes em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2015, 3ª edição, pg. 109 e Menezes Leitão em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2015, 3ª edição, pgs. 69 e 70.
[13] Disponível em https://dre.pt/home/-/dre/3451950/details/maximized
[14] Disponível em www.dgsi.pt.
[15] Disponível em https://outrosacordaostrp.com/2018/11/10/ac-do-trl-de-08-11-2018-proc-131-15-2t8vls-l1-incidente-de-exoneracao-do-passivo-restante-impossibilidade-de-suspensao-ao-menos-no-caso-do-art-238-1-e-do-cire-poderes-inquisitorios-e-arts-8/
[16] Disponível em www.dgsi.pt.
[17] Precisamente, encontramos na parte final do nº1 do art. 85º um afloramento desta omnipresença das finalidades do processo quando se determina que as ações ali previstas são apensadas ao processo de insolvência «desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.» (sublinhado nosso).
[18] Alexandre Soveral Martins, em Um curso de direito da insolvência, Almedina, 2016, 2ª edição, pgs. 41 e 42.
[19] Local citado na nota anterior, pg. 43.
[20] O processo de insolvência é um processo sem partes, mas inclui, mesmo na fase executiva, processos de partes, como é o caso das ações comuns apensas.
[21] Que subscreve o presente como adjunta.
[22] No qual a aqui subscritora intervém como adjunta.
[23] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.