Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
209/11.1SFLSB.L1-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS A MENORES
INSTITUIÇÃO PRIVADA DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – A arguida, ao dirigir-se aos bebés e crianças pequenas que estavam ao seu cuidado, crianças particularmente frágeis e vulneráveis, disse que elas eram “poços de doenças”, “nojentos”, “filhos da puta” e que “deviam morrer”.
II – Mesmo se alguns dos bebés, dada a sua tenra idade, não tinham capacidade de compreender o sentido do que era dito pela arguida, não se pode esquecer que afirmações como estas não são nunca pronunciadas num tom neutro. O comportamento verbal e não-verbal de quem assim actua traduz a agressividade que as palavras encerram, o que permite que mesmo aqueles que as não compreendam as sintam como uma agressão.

III – Idêntico juízo de dignidade penal deve ser feito quanto ao que consta do ponto 11, quando aí se narra que «pelo menos uma vez, em data não determinada, a arguida pegou na LB com força, abanou-a, sacudindo-a com força, pressionando com ambas as mãos o corpo da menor, ao mesmo tempo que lhe dizia: “cala-te, cala-te”».

IV – Todos estes actos, que envolvem as quatro crianças e não apenas alguma ou algumas delas, consubstanciam maus-tratos físicos e psíquicos e estão revestidos da necessária dignidade penal, o que justifica a condenação da arguida pela prática de quatro crimes p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa



I – RELATÓRIO
1 – O Ministério Público deduziu acusação contra a arguida Maria imputando-lhe a prática de quatro crimes de violência doméstica, condutas p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, da actual redacção do Código Penal, em concurso aparente com quatro crimes de maus tratos a menor, condutas p. e p. pela alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º-A do mesmo diploma legal (fls. 1310 a 1315).
No dia 5 de Julho de 2012, no termo da audiência de julgamento, que se realizou no 6.º Juízo Criminal de Lisboa, foi proferida sentença através da qual o tribunal decidiu absolver a arguida da prática dos crimes que lhe tinham sido imputados.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:

1. A “S - Associação de Apoio às Crianças com HIV/Sida” ­é uma pessoa colectiva – instituição particular de solidariedade social – que visa proporcionar apoio a crianças com HIV/Sida e suas famílias e tem sede social na R...., Lisboa.

2. A denominada Casa ... acolhe nas instalações da sua sede, lar residencial, crianças com HIV/Sida, com o objectivo de promover o desenvolvimento de actividades com vista ao acompanhamento e apoio de crianças com a referida doença, a fim de possibilitar a sua integração sócio-profissional e acompanhamento estreito ao nível dos cuidados de saúde, tendo a seu cargo 21 crianças e jovens nessas condições.

3. A arguida Maria foi contratada pela referida instituição para desempenhar as funções de auxiliar de educação, na sede da instituição, no ano de 2006.

4. A arguida exercia as suas funções na Casa ..., local onde a Associação Sol, tem a seu cargo bebés, crianças e jovens que se encontram à sua guarda.

5. No exercício dessas funções, a arguida cumpria o horário das 8h00 às 17h00.

6. Entre os residentes da Casa ..., aos cuidados da arguida, figuravam os seguintes:

M, nascida em 15/03/2005;

IS, nascida em 26/10/2009;

Pedro (bebé Pedro), nascido em 16/10/2008;

R, nascido em 22/07/2008.

7. No desempenho das funções de auxiliar educativa, a arguida além das incumbências inerentes a tal função, tinha como funções específicas dar de comer aos bebés e crianças mais pequenas, mudar-lhes a fralda e dar-lhes banho.

8. No início de 2010, por razões não apuradas, a arguida Maria começou a ter alterações de comportamento, por vezes de relativa agressividade para com as crianças mais pequenas.

9. Assim, por vezes, dirigindo-se ou referindo-se aos bebés e crianças pequenas que estavam sobre a sua alçada, em concreto os identificados em 6), dizendo-lhes “poços de doenças”, “nojentos”, “filhos da puta” e “deviam morrer”.

10. Por algumas vezes a arguida chegou a pegar nas crianças supra identificadas, com força, colocando-as dessa forma dentro do parque ou dentro das cadeiras auto, as quais, por vezes, ficavam a chorar.

11. Pelo menos uma vez, em data não determinada, a arguida pegou na LB com força, abanou-a, sacudindo-a com força, pressionando com ambas as mãos o corpo da menor, ao mesmo tempo que lhe dizia: "cala-te, cala-te".

12. A arguida agiu de forma livre e consciente em relação aos referidos menores, nos termos descritos em 8) a 11).

13. Sabia, por ser deles auxiliar de educação, cuidadora, que durante o período em que permaneciam ao seu cuidado os referidos menores se encontravam sob a sua responsabilidade, direcção e educação, e que devido à sua idade não tinham capacidade para reagirem aos actos e afirmações que lhe eram dirigidos.

14. Actuou livre e conscientemente, sabendo que essa sua conduta não lhe era permitida.

15. A arguida não tem antecedentes criminais.

16. Encontra-se sujeita à medida de coacção de suspensão do exercício da função de auxiliar de educação na instituição "S" ou em qualquer outra em que tenha contacto com crianças menores de 16 anos desde 21/06/2011.

17. Foi suspensa por 20 dias na sequência de processo disciplinar instaurado pela Associação "S", após participação feita por carta entregue pela sua colega Carla à directora técnica da instituição, carta cuja cópia consta de fls. 40 dos autos, posteriormente entregue à Direcção da mesma instituição, fundamentando-se, todavia, tal decisão de suspensão em comportamentos e atitudes da arguida para com a colaboradora SD, mãe da jovem Mariana.

18. A partir do período referenciado em 8) a arguida começou a evidenciar sinais de grande enervamento, acentuados a partir do Verão de 2010, com desavenças com colegas, designadamente com as subscritoras da carta aludida em 17), gritando e chegando a ter crises de choro e a fechar-se na casa de banho.

19. Chegou a estar de baixa, por depressão.

20. Quanto ao seu passado pessoal, por abandono por parte dos pais, a arguida foi criada, conjuntamente com a irmã, pela avó materna, que se assumiu como a sua figura parental de referência, tendo a arguida registado dificuldades de relacionamento com uma tia no período da adolescência.

21. Tem o 9.º ano se escolaridade e formação técnico-profissional como auxiliar de acção educativa, tendo trabalhado nessa área, em colégios e casas particulares.

22. É solteira, residindo actualmente sozinha, apesar de manter um relacionamento afectivo há mais de um ano, tido por gratificante e securizante.

23. Estando actualmente sem desenvolver actividade laboral, subsiste essencialmente do apoio prestado pelo núcleo familiar de proximidade – irmã e namorado.

24. A nível pessoal desenvolveu um quadro depressivo, estando actualmente medicada em conformidade.
O tribunal considerou não provado que:

a) Que sejam 22 as crianças e jovens integradas na associação "S", nos termos indicados em 2);

b) Que tenha começado a ter comportamentos agressivos para com as crianças mais pequenas, para além dos expressamente indicados em 8) a 11);

c) Que desde a altura referida em 8) e até Janeiro de 2011, a arguida, quase diariamente, desferisse chapadas na cara, cabeça e no corpo dos bebés que tinha seu cuidado, quando estes não queriam comer;

d) Que fosse diariamente que a arguida se dirigia aos bebés e crianças que estavam sobre a sua alçada nos termos indicados em 9);

e) Que nas situações aludidas em 10) a arguida chegasse a atirar as crianças aí referidas para dentro do parque e para dentro das cadeiras auto;

f) Que para as obrigar a dormir a arguida agarrasse nos menores supra identificados e os metesse à força na cama, tapando-lhes a cabeça com a manta e desferindo-­lhes palmadas no rabo, cara e pelo corpo todo;

g) Que a arguida por diversas vezes se tenha dirigido aos bebés e crianças que tinha ao seu cuidado, gritando-lhes: "que lhes iria amarrar uma pedra ao pescoço e os lançaria ao fundo do mar ou ainda lhes espetaria um ferro na barriga e queimava-os vivos";

h) Que igualmente quando tinha de trocar as fraldas aos bebés, dissesse que não era paga para trocar fraldas, abanando-os e dando-lhes palmadas nos rabos;

i) Que a arguida por diversas vezes tenha batido com as mãos na cabeça da M;

j) Que no início do ano de 2010, em data não concretamente apurada, a arguida se tenha dirigido ao menor Pedro, tenha pegado no sapato que tinha calçado e tenha dado com ele na cara do menor enquanto lhe dizia: "não estás a falar com a drogada da tua mãe";

k) Que no mês de Outubro de 2010 o menor R tenha caído do parque para bebés onde se encontrava a brincar, tendo a arguida Maria de imediato dito: "bem feito. Devias ter morrido, a puta da tua mãe que te venha aturar'';

l) Que a arguida Maria no ano de 2010, em data não concretamente apurada, tenha desferido vários pontapés nas pernas da M, junto à porta da casa de banho do rés-do-chão;

m) Que tenha sido concretamente no dia 25 de Novembro de 2010, pelas 11h00, que a arguida pegou na LB com força, abanou-a, sacudindo-a com força, pressionando com ambas as mãos o corpo da menor, ao mesmo tempo que lhe dizia: "cala-te, cala-te", como referido em 11);

n) Que a arguida Maria, em data não concretamente apurada, mas situada no período supra referido, tenha batido com força com um livro, na cabeça do menor Pedro;

o) Que para além do que se deu por assente em 8) a 14), a arguida tenha ainda agido de forma livre e consciente, e de forma reiterada, em relação aos menores, batendo-lhes, com o único propósito de lhes infligir dor e sofrimento, maltratando-os física e psicologicamente, revelando tais actos instintos de malvadez e crueldade;

p) Que a arguida não desconhecesse que ao dizer-lhes que lhes faria mal, que lhes espetava um ferro, que eram poços de doenças, lhes causava medo, inquietação e insegurança, e agiu tenha querido agir;

q) Que a arguida soubesse que, ao dirigir-se aos referidos menores nos termos em que o fez, os melindrava perante os colegas e tenha querido assim actuar;

r) Que a arguida tenha actuado relativamente aos factos descritos em c) a l) e n) livre e conscientemente, sabendo que essas suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.  
O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:

O Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto que deu por provada e por não provada pela valoração conjunta e crítica, segundo as regras comuns da experiência, dos elementos de prova seguintes:

apenso I – processo disciplinar referente à arguida;

cópia de carta/declaração escrita[1], de fls. 40;

cópia de listagem de funcionários da Casa ..., de fls. 62 e 63/ 115 a 117/ 231 e 232/ 241 a 243;

listagens de menores a cargo da instituição "S", de fls. 64 e 65/ 233 e 234/ 269 a 274;

cópia de estatutos da Associação "S", de fls. 369 a 385;

reportagem fotográfica referente a diversos espaços da instituição, de fls. 1047 a 1061;

impressão referente aos B.I. de diversas crianças e jovens residentes na "S", de fls. 1249 a 1268;

cópia de cartão de autorização de residência referente à menor Mariana, de fls. 1370;

cópia de declaração médica, de fls. 1529;

cópia de informações e elementos clínicos referentes a diversos menores da instituição, de fls. 1565 a 1589 [2];
relatório social para determinação de sanção, de fls. 1593 a 1597;
C.R.C. da arguida, de fls. 1608;
declarações prestadas pela arguida, que apenas em declarações finais e de forma emotiva se pronunciou sobre os factos, negando a sua prática; admitiu por vezes falar alto e levantar a voz, mas ser tal involuntário, sem disso sequer dar conta, dizendo que por vezes poderia ralhar ou chamar à atenção, mas como toda a gente; aludiu, de forma um pouco confusa, a divergências pessoais com a participante inicial – Carla –, de quem anteriormente era amiga, pretendendo ser a mesma uma pessoa manipuladora e que as demais participantes terão aderido à denúncia também por razões mesquinhas ou por amizade com aquela, aludindo até a situações que se prenderiam com o facto de não ter dado determinado tipo de esclarecimentos a colegas sobre o seu relacionamento com o seu companheiro, com quem fora vista por uma delas, questões alegadamente relacionadas com os atritos que teve com as mesmas; enfatizou o facto de ter sempre trabalhado com crianças e de até às vezes se sentir demasiado próxima de alguns do bebés a seu cargo;
depoimentos prestados pelas testemunhas, que se sintetizam nos aspectos tidos pelo tribunal por mais relevantes:
· Gabriela, à data dos factos trabalhando como motorista na instituição “"S"”, onde entrou através de empresa de trabalho temporário em Novembro de 2007, tendo feito contrato com a própria instituição em Março de 2008 e cessado funções em Março de 2011; pronunciou-se de forma circunstanciada sobre as suas próprias funções, sobre as funções de diversas colegas e das técnicas da instituição, sobre o modo de funcionamento da instituição e características das instalações, e referiu quais as crianças aí residentes; aludiu a diversas situações que entendeu erradas, desadequadas, por si observadas, desde o início das suas funções, não apenas referentes a atitudes da ora arguida, como também de outras pessoas, designadamente das técnicas; referiu-se igualmente à subscrição da carta que deu origem à participação dos presentes autos e suas motivações para tal subscrição; 

· Vânia, à data dos factos trabalhando na instituição como auxiliar de educação, igualmente entrando para a instituição através de empresa de trabalho temporário em Novembro de 2007, tendo feito contrato com a própria instituição em Março de 2008 e cessado funções em Março de 2011, por não renovação de contrato; da mesma forma, reportou diversas situações a que assistira, invocando serem do conhecimento das técnicas da instituição, que nada faziam, aludindo também a atitudes destas para com as crianças; referiu-se igualmente às razões que a levaram a participar os factos que deram origem ao presente processo;

· Carolina, jovem residente na instituição "S", actualmente com 16 anos de idade; esclareceu o período que estava na casa, fora do horário escolar e referiu-se aos menores que estariam ao cuidado da arguida e à própria participação da depoente no auxílio de algumas tarefas ou a brincar com os bebés; negou que a arguida tratasse mal os bebés a seu cargo, afirmando nunca ter visto “nada de mal”, nem ter ouvido à arguida palavras ofensivas, mas admitindo, contudo, que a mesma às vezes falasse “um bocadinho mais alto”, mas referindo-se a tal duma forma desculpabilizante, dizendo que percebia que estaria cansada ou “chateada com alguma coisa”, referindo também tê-la visto ir “furiosa”, emendando depois que não seria bem furiosa, mas mais nervosa, indo a tremer, para a casa de banho; 

· Maria Lurdes, tendo trabalhado na instituição entre Novembro de 2008 e Dezembro de 2010, como auxiliar de serviços gerais, trabalhando essencialmente na lavandaria; imputou também à arguida (e não apenas a esta) diversos comportamentos concretos, referindo que eram do conhecimento da técnicaInês, que nada fazia; sublinhou ainda o facto da carta que veio a subscrever com as demais participantes ter demorado muito tempo a chegar ao conhecimento da Dr.ª Teresa;

· Maria José, funcionária da instituição desde 2008, como auxiliar de serviços gerais; referiu que a arguida às vezes se mostrava zangada ou “chateada” e que gritava com as crianças ou que chegava a deixá-las sozinhas e ia para a casa de banho; referiu que a arguida por vezes aludia à doença das crianças, mostrando desagrado e colocando-as com irritação dentro dos berços, mas negou que dissesse “outros nomes feios”, concluindo que a arguida às vezes brincava e tratava bem as crianças e às vezes gritava muito com elas; aludiu também ao facto da arguida apenas querer dar banho aos mais pequenos e não à Anaís e àMariana;

· Ouly também funcionária da "S" desde Dezembro de 2008, como auxiliar de serviços gerais; disse nunca ter visto a arguida bater nas crianças, mas afirmou que gritava muito com os bebés, que por vezes os deixava a chorar, gritando também com as colegas; referiu ter chegado a ver a técnica Inês a chamá-la à atenção; sublinhou também o facto da arguida se recusar a dar banho à Anaís e à Mariana; 

· Vera, auxiliar de educação, trabalhando na "S" desde 24/10/2010; reportou-se às tarefas desempenhadas pelas diversas funcionárias e técnicas, especificando também quais as crianças que estavam a cargo da arguida; reportou essencialmente o gritar constante por parte da arguida, proferindo palavrões e algumas das expressões ofensivas indicadas, relacionadas com o facto de se tratarem crianças seropositivas; sublinhou também o facto das crianças mais pequenas serem mantidas prolongadamente nos “ovos” ou cadeiras de carros;

· Carla, funcionária da "S" durante cerca de um ano; disse nunca ter assistido a qualquer situação de agressão ou de proferir de termos menos próprios por parte da arguida, dizendo que esta por vezes poderia levantar a voz, ralhar ou castigar as crianças, se necessário, mas não mais do que isso;

· Cátia, auxiliar de educação da instituição "S" desde Setembro de 2007; esclareceu fazer geralmente o turno da noite, trabalhando conjuntamente com a arguida poucas vezes, em prolongamento de turno; referiu que a arguida por vezes levantava a voz para as crianças ou punha-as de castigo, o que a depoente classificou de “normal”, embora algumas outras colegas não achassem correcto; aludiu à existência de zangas entre a arguida e outras colegas, designadamente a participante Carla, mas não sabendo a depoente explicar o porquê;

· Luísa, irmã da arguida; relatou que arguida reportou problemas de relacionamento com colegas, que não levavam a sério as regras da casa, queixando-se a arguida de andar sobrecarregada de trabalho e de ser alvo de provocações, tendo necessidade de se ir muitas vezes para a casa de banho chorar, para “descarregar”; aludiu ao facto da sua irmã ter problemas de coluna, não podendo pegar em pesos; reportou-se ao estado de espírito da arguida em razão deste processo; referiu-se ainda à anterior experiência profissional da arguida a trabalhar com crianças, afirmando o gosto da mesma por tal actividade;

· Fernanda, funcionária administrativa da instituição "S" desde 1/10/2005; sublinhou o facto da arguida ser uma funcionária assídua e por vezes se encontrar sozinha, sendo auxiliada pelas técnicas e por funcionárias administrativas devido à falta de outras auxiliares; admitiu que por diversas vezes, com relativa frequência, a arguida falava alto e revelava pouca paciência; aludiu a uma situação de briga entre a arguida e a participante Carla, em que esta acusava aquela de ter maltratado os meninos e a arguida negava, o que terá acontecido algum tempo antes de ter surgido a carta que esteve na origem deste processo, aludindo ao facto de anteriormente as mesmas parecerem darem-se muito bem; 

· Denise, trabalhando na "S" há 8 ou 9 anos como encarregada de serviços gerais; negou ter alguma vez visto a arguida bater ou chamar nomes às crianças, dizendo que a arguida cuidava bem das mesmas; aludiu ao facto da própria depoente ter tido problemas com “as senhoras que fizeram a carta” reportada nestes autos;

· Andreia, educadora de infância da instituição "S"; reportou-se de forma circunstanciada às funções desempenhadas, em especial por si e pelas demais técnicas, sublinhando o facto destas se ausentarem muitas vezes em acompanhamento das crianças, designadamente a consultas médicas; admitiu que a arguida gritava algumas vezes ou falava em tom mais alto, sendo advertida; aludiu a zanga que teria ocorrido entre a arguida e as colegas Cristina, Gabriela e Lurdes, mas não soube precisar o que se passou;

· Micaela, funcionária da "S" de Setembro de 2010 a Março de 2011, saindo na sequência de processo disciplinar por faltas e após ter estado período de baixa por depressão; referiu quais as crianças que estavam ao cuidado da arguida, afirmando que os bebés tinham reacção de medo perante a arguida, sublinhando a atitude alterada e vocabulário que esta tinha para com os mesmos menores, concretizando algumas situações por si presenciadas ou relatadas por terceiros; aludiu também a outras situações, nomeadamente referentes à alimentação de menores com produtos fora de prazo e relativas também à funcionária Denise, já objecto de despacho de arquivamento; referiu não ter subscrito a carta assinada por outras participantes por reportar situações que ela própria não havia presenciado;

· Ana, educadora social da instituição "S", de Setembro de 2007 a Setembro de 2011; afirmou não ter nada a apontar à arguida, dizendo ser a mesma cumpridora e cuidadosa com as crianças, negando que sequer falasse alto para com os bebés; disse saber que a arguida e as participantes não se davam bem, mas que eram questões fora do trabalho, referindo ter assistido a discussão entre a arguida, a Cristina e a Lurdes, que entretanto se sanou; mencionou que efectivamente se apercebeu da arguida por uma ou duas vezes ter ido para a casa de banho, mas não sabendo dizer o que aconteceu, apesar de pretender que até tinham uma relação próxima; referiu ainda que as funcionárias Vânia e Patrícia não eram assíduas e que quem ajudava a arguida nas tarefas eram as próprias técnicas, ou colegas auxiliares que seguiam o turno que tinham feito anteriormente; reportou-se ainda aos horários e funções desempenhadas, em especial pelas técnicas, referindo que passavam muitas horas fora da casa, justificando com a necessidade de acompanhamento de menores;

· José, cunhado da arguida; referiu ter a arguida evidenciado angústia e desespero com o presente processo e pelo facto de estar sem trabalho; sublinhou o facto da arguida trabalhar com crianças há vários anos, demonstrando gosto e empenho pelo que faz, ficando muitas vezes com as próprias filhas do depoente;

· Manuel, jovem residente da "S", actualmente com 16 anos de idade; afirmou que a arguida sempre gostou muito dos bebés, admitindo que gritava muito, mas negando que batesse nos menores; aludiu a situações que teriam sido reportadas na net ou em notícias, sobre as quais nem foi questionado, numa clara postura de defender a imagem da casa, em detrimento do que poderia ter sido afirmado pelas “pessoas que prejudicam a casa e de que não gosta e que por isso não chama de tias”;

· Marta, residente da instituição, agora com 17 anos de idade; reportou-se às funções da arguida e rotinas diárias das crianças, referindo que aquela tinha afecto com os bebés, nunca tendo visto situações que achasse incorrectas, embora referindo que por vezes gritava, em especial quando mais nervosa;

· Mafalda, tendo exercido as funções de psicóloga clínica na instituição em apreço entre Março de 2007 e Maio de 2011; referiu-se às funções por si desempenhadas e ao quotidiano da instituição, sublinhando o facto das crianças irem ao médico de três em três meses, por vezes mais, e de não haver quaisquer indícios de que fossem alvo de maus-tratos, nem demonstração de dificuldades a nível de comportamentos; afirmou ser a arguida cuidadosa no trato com as crianças, zelando pela sua higiene e tratando-as com carinho, desempenhando bem as suas funções, pelo que observou; referiu ter-se apercebido de questões entre as auxiliares, mas que seriam de natureza pessoal, pelo que optou por não intervir, dizendo nunca ter observado situações desagradáveis entre colegas; negou ter sequer ouvido a Madalena a gritar, tendo a depoente sabido da carta entregue à directora técnica Inês e à Dr.ª Teresa quando regressou de férias, havendo um inquérito aberto e estando a arguida suspensa;

· Inês, directora técnica da instituição desde 2006; referiu-se às actividades diárias desempenhadas pela arguida, afirmando nunca ter assistido ou ter tido conhecimento de nada do reportado, dizendo que a arguida falava alto, mas que não gritava, nunca a tendo ouvido dirigir palavras ofensivas às crianças; disse que a arguida se queixava por um lado das faltas das colegas e que estas referiam que a arguida era complicada a nível de feitio e que tentou gerir essas situações do dia-a-dia; disse ter-lhe sido indicado pela Dr.ª Teresa que a razão da suspensão de funções da arguida se prendeu com o seu comportamento relativamente à mãe daMariana, embora a depoente também nunca tivesse visto qualquer atitude da arguida em relação a esta; afirmou ter ficado “surpreendidíssima” com o teor da carta que lhe foi entregue numa segunda-feira pela Carla, ficando com a mesma por alguns dias, entregando-a só no sábado à Dr.ª Teresa, justificando com a pretensão de observar o que vinha relatado, apesar de ter contacto diário com a direcção; sublinhou situação de atrito entre a arguida e a referida Carla, que se teriam iniciado nesse Verão, e que se reportariam a questões relacionadas com os respectivos companheiros, admitindo que a arguida desde aí tinha discussões com as colegas;

· Daniele, funcionária administrativa da "S" desde 2008; disse nunca ter assistido a nada que fosse de referenciar, nem sequer o facto da arguida gritar, dizendo só ter tido conhecimento da situação pelo que foi noticiado nos jornais;

· Dora, professora do menor Manuel Gonçalves na escola frequentada pelo mesmo, nada sabendo quanto aos factos discutidos nestes autos;

· Teresa, Presidente da Associação "S"; esclareceu as circunstâncias em que lhe chegou às mãos a carta cuja cópia consta de fls. 40, referindo as diligências que de imediato tomou, reunindo com as crianças e jovens da casa para tentar perceber através deles se havia fundamento quanto aos invocados maus tratos e reunindo depois com a direcção, tendo sido instaurado processo de averiguações, sublinhando ter este terminado com a suspensão da arguida, mas não por problemas com as crianças, mas por motivos de incompatibilidade com a mãe da Mariana; disse que a directora técnica lhe justificou a não entrega imediata da carta em questão porque não teria acreditado no seu teor e não achou tal necessário, tendo sido repreendida por isso; aludiu à repercussão do caso na comunicação social, contestando as reportagens feitas e usando a expressão “circo”, promovido pelas “senhoras que tinham feito as denúncias”, inclusive com cartazes nas escolas, com perturbação e prejuízo não apenas para a arguida, mas para as próprias crianças da instituição; sublinhou a realização de exames de medicina legal a duas meninas mais crescidas, mas não ter sido feita qualquer observação por especialistas aos bebés e crianças mais pequenas; referiu não ter a instituição inconveniente em manter a arguida a trabalhar, manifestando as crianças gostarem da mesma; aludiu ao facto da arguida ter estado de baixa por depressão, mas já não saber precisar quando; sublinhou que nunca antes as participantes falaram consigo sobre os factos em apreço, podendo tê-lo feito.

Não foi produzida outra prova em julgamento.

Não foi valorado o teor apenso II – expediente do Tribunal de Família e Menores de Lisboa – por não se reportar directamente ao objecto dos presentes autos.

Não foi igualmente valorada a demais prova documental relacionada com outros factos participados sobre os quais veio a recair despacho de arquivamento e/ou sem relação directa com a factualidade que é objecto destes autos.

Na formação da convicção deste tribunal quanto à matéria de facto que veio a dar por assente e por não provada, foram tidos em consideração, em especial, os seguintes factores de ponderação:

em primeiro lugar, teve o tribunal presente a limitação do seu poder de cognição aos factos concretamente imputados à arguida na acusação e não outros, nos termos do disposto no artigo 124.º, n.º 1 do C.P.P.;
sendo no caso concreto a prova essencialmente produzida por declarações ou depoimentos (revestindo a prova documental uma utilidade meramente acessória, de complemento de um ou outro ponto aludido pelos diferentes intervenientes), apenas assumem relevo os factos confirmados por conhecimento directo dos declarantes, sendo a valoração de depoimentos indirectos, vozes públicas ou convicções pessoais limitada nos termos dos artigos 129.º e 130.º do C.P.P.;
foi manifesta em audiência de julgamento duas posturas por parte dos depoentes diametralmente opostas: uma acusatória – sustentada essencialmente pelas testemunhas que subscreveram a participação de fls. 40 e/ou que cessaram funções com a instituição "S" e que, ao que foi indicado, terão participado também na divulgação do caso perante os meios de comunicação social, em que transpareceu por vezes algum excesso, traduzido no frisar de situações alheias ao próprio objecto do processo e à própria conduta da arguida; outra de negação total de todo e qualquer tipo de problema, sustentada essencialmente pela equipe técnica da instituição responsável à altura, em especial por Ana, Mafalda e Inês, num claro intuito de minimizar o que lhes cabia de quota-parte de responsabilidade, dadas as funções pelas próprias exercidas;
a factualidade vertida na acusação, para além do que se deu por assente, teria sustento, e apenas parcial, nos depoimentos das testemunhas Gabriela , Vânia e Lurdes e Miacaela, depoimentos cuja credibilidade é fragilizada não apenas pela razão supra apontada, mas também pela negação não apenas da arguida, mas da generalidade das demais testemunhas ouvidas, que negam, designadamente, a existência de maus tratos físicos e nalguns casos até apontam para uma atitude cuidadosa da arguida para com as crianças[3], afigurando-se, assim, essa mesma prova insuficiente, contraditada ou, pelos aspectos indicados, passível de suscitar dúvidas, dúvidas essas que necessariamente terão de beneficiar a arguida em obediência ao princípio in dubio pro reo;

todavia, assumiram-se como merecedores de especial credibilidade, pela postura de isenção demonstrada (apesar da sua vinculação laboral à instituição em causa), os depoimentos das testemunhas Vera, Maria José, Ouly e Fernanda, dos quais resultou a percepção do tribunal de que, efectivamente, durante o período temporal em causa, a arguida, por razões não claramente esclarecidas, que poderão ter sido de ordem pessoal, de saúde, de sobrecarga de trabalho, de desentendimentos com as colegas mais próximas, atravessou um período de alteração comportamental, com manifestações de crises nervosas (gritar, falar excessivamente alto, fechar-se na casa de banho), com necessários reflexos no desempenho do seu trabalho e a que não terão sido alheios os comportamentos aludidos por estas testemunhas e que se deram por apurados em 8) a 11).

2 – O Ministério Público interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

1ª- Na sentença proferida o tribunal a quo deu como provado, entre outros factos, que a arguida, «por vezes, dirigindo-se ou referindo-se aos bebés e crianças pequenas que estavam sob a sua alçada, em concreto os identificados em 6), dizendo-lhes “poços de doenças”, “nojentos”, “filhos da puta” e “deviam morrer”;

Por algumas vezes a arguida chegou a pegar nas crianças supra identificadas, com força, colocando-as dessa forma dentro do parque ou dentro das cadeiras auto, as quais, por vezes, ficavam a chorar;

Pelo menos uma vez, em data não determinada, a arguida pegou na LB com força, abanou-a, sacudindo-a com força, pressionando com ambas as mãos o corpo da menor, ao mesmo tempo que lhe dizia: "cala-te, cala-te";

A arguida agiu de forma livre e consciente em relação aos referidos menores;

Sabia, por ser deles auxiliar de educação, cuidadora, que durante o período em que permaneciam ao seu cuidado os referidos menores se encontravam sob a sua responsabilidade, direcção e educação, e que devido à sua idade não tinham capacidade para reagirem aos actos e afirmações que lhe eram dirigidos.

Actuou livre e conscientemente, sabendo que essa sua conduta não lhe era permitida.»

2ª- Apesar da objectiva gravidade e censurabilidade das condutas da arguida que foram consideradas como provadas na sentença recorrida, o tribunal a quo concluiu que a danosidade dessas condutas não atingiu o patamar da censura jurídico-penal, pelo que a absolveu, tendo mesmo afirmado que esta “matéria dada por assente, retratando comportamentos de brusquidão física por parte da arguida, desadequados enquanto forma de pegar e lidar com crianças tão pequenas, no nosso entender, não chegam a atingir a gravidade suficiente para serem qualificados como actos de maus tratos físicos, não provocando o resultado danoso da lesão da saúde ou do corpo das vítimas que implicaria a integração deste conceito, nos termos supra apontados”. E que aquelas palavras dirigidas às crianças “se claramente censuráveis pelo conteúdo ofensivo que lhes é inerente, acabam por ser chocantes para os terceiros que as ouvem, mas, devido à própria incapacidade das crianças de entenderem o seu sentido ou conteúdo, não resultam lesivas para as mesmas, não integrando, por isso, o elemento típico do crime”.

3ª- Analisando os factos dados como provados nesta decisão à luz do disposto no art. 152.º-A, n.º 1 - a), do C. Penal, que tipifica os crimes de maus tratos que à arguida vinham imputados na acusação, verifica-se que a sentença recorrida violou este normativo legal ao estabelecer um patamar de exigência de preenchimento do conceito de maus tratos a menores (de idade muito precoce) completamente desajustada (por exagerada) do grau de exigência legalmente consagrado para o efeito, como resulta da interpretação sistemática desta norma, bem como do sentido da evolução legislativa verificada nesta matéria no nosso ordenamento jurídico-penal.

4ª- Salvo o devido respeito, a tese em apreço ofende o espírito e a letra da Declaração Universal dos Direitos da Criança, mormente o seu artigo 19.º, bem como o disposto nos artigos 16.º e 25.º da Constituição da República Portuguesa e, finalmente, o preceituado no artigo 152.º-A, n.º 1 - a), do C. Penal, surgindo, nos dias de hoje, como totalmente descabida.

5ª- Assim, a questão que se coloca, como objecto essencial deste recurso que apenas versa matéria de direito, é a da impossibilidade lógico-jurídica da interpretação dada ao artigo 152.º-A, n.º 1 - a) do C. Penal nesta decisão do tribunal a quo face ao conceito de maus tratos legalmente consagrado no nosso ordenamento jurídico-penal, redundando numa flagrante violação do espírito e da letra daquela norma jurídica.

6ª- Com efeito, na sentença recorrida o tribunal a quo considerou que a integridade física e/ou a dignidade pessoal de cada um destes quatro menores não foi, em concreto, atingida pelo comportamento da arguida, o que é manifestamente contraditório com os factos dados como provados, cujo significado não pode deixar de ser devidamente valorado em toda a sua extensão, tendo em conta que as vítimas são, neste caso, três crianças muito pequenas (bebés) e uma criança de 5 anos, todas portadoras de HIV/Sida e institucionalizadas, apresentando por isso todas elas uma enorme vulnerabilidade da sua saúde física e psíquica.

7ª- Para qualquer cidadão médio e medianamente informado é óbvia a especial fragilidade da saúde física e psico-emocional destas quatro crianças, quer pela sua tenra idade, quer pelas doenças de que padecem e dos permanentes tratamentos medico-medicamentosos de que carecem, quer pela institucionalização a que estão sujeitas na “Associação "S"”, sendo por isso todas elas absolutamente dependentes dos cuidados, atenção e carinho diários das pessoas que trabalham na “Casa ...”, das quais se destacava a arguida durante o ano de 2010, porque nesse ano era uma das pessoas que mais horas passava em contacto directo com estes quatro menores, já que lhe competia, no exercício das suas funções de auxiliar educativa, tomar conta dos bebés e crianças mais pequenas, dar-lhes de comer, mudar-lhes a fralda e dar-lhes banho.

8ª- Daí que o descrito comportamento da arguida para com estas quatro crianças tão pequenas, que “se encontravam sob a sua responsabilidade, direcção e educação, e que devido à sua idade não tinham capacidade para reagirem aos actos e afirmações que lhes eram dirigidos”, não se limitasse apenas a uma “relativa agressividade”, mas a verdadeiros maus tratos físicos e psíquicos destes quatro menores que a ela estavam vinculados, por ser deles auxiliar de educação, cuidadora e responsável durante o período em que permaneciam ao seu cuidado.

9ª- Estes comportamentos consubstanciam verdadeiros maus tratos físicos, porque é óbvio que quando se diz, como consta dos factos provados na sentença, que a arguida, “por algumas vezes, pegava nas crianças com força e as colocava com força nas cadeiras ou no parque”, está a dizer-se que ela usava uma força excessiva, desproporcionada aos movimentos em causa, sujeitando estas crianças aos impactos físicos inerentes ao uso de força superior à necessária para os pegar e colocar nas cadeiras, ou no parque, provocando por vezes o seu choro.

10ª- Também quando se dá como provado, como sucedeu neste caso, que «pelo menos uma vez, em data não determinada, a arguida pegou naLB (bebé) com força, abanou-a, sacudindo-a com força, pressionando com ambas as mãos o corpo da menor, ao mesmo tempo que lhe dizia: "cala-te, cala-te", está a dar-se como provado que, pelo menos uma vez, esta bebé de meses foi verdadeiramente “chocalhada” pela arguida para além de ter pegado com força na mesma e de ter pressionado com as duas mãos o seu corpo, enquanto lhe dizia “cala-te, cala-te”, estando actualmente já descrito pela comunidade científica da área da pedopsiquiatria o “síndrome dos bebés chocalhados”.

11ª- Acresce que a arguida, para além deste tipo de trato físico quando pegava nestas quatro crianças tão pequenas e doentes devido a infecção com o vírus HIV/Sida, por algumas vezes, chamava-lhes “poços de doenças”, “nojentos”, “filhos da puta” e dizia-lhes que “deviam morrer”.

12ª- A análise rigorosa deste caso no que concerne aos maus tratos psíquicos, não pode perder de vista que estamos no domínio da linguagem e, sobretudo, da importância da linguagem não-verbal em crianças que se encontram ainda na fase pré-verbal (bebés), uma idade de particular risco porque o cérebro ainda está em formação e em que os traumas são mais graves porque ficam muito inculcados, tornando mais difícil a sua identificação e, em consequência, o tratamento das perturbações da saúde mental que geram.

13ª- Trata-se da fase em que o processo de vinculação da criança ao adulto cuidador é essencial para o seu desenvolvimento harmonioso e equilibrado, nomeadamente ao nível psico-afectivo e emocional, pois é nesta altura que a criança constrói modelos operantes internos a partir da representação mental que elabora com base nas experiências de vinculação inerentes ao comportamento do adulto cuidador.

14ª- Não podemos, assim, aceitar como minimamente razoável e válida a conclusão da fundamentação da sentença recorrida de que estas palavras e expressões – “poços de doenças”, “nojentos”, “filhos da puta” e “deviam morrer” –, embora clara e objectivamente injuriosas, quando dirigidas a estes quatro menores «devido à própria incapacidade das crianças de entenderem o seu sentido ou conteúdo não resultam lesivas para as mesmas».

15ª- Salvo o devido respeito, é do senso comum que quando alguém dirige a outrem palavras ou expressões tão violentas como estas (“poços de doenças”, “nojentos”, “filhos da puta” e “deviam morrer”), normalmente acompanha essa linguagem verbal de uma entoação que dá ênfase aos sentimentos de repulsa, desdém, e desprezo que tais palavras/expressões (objectivamente insultuosas) revelam, mas também de uma expressão facial desagradável, de repulsa enérgica e intimidante, bem como de gestos tensos, enérgicos e agressivos, ou seja, de uma complexa e completa atitude corporal que corresponde ao vociferar de tais palavras e revela os sentimentos de repugnância e desdém que a arguida tinha por aquelas crianças infectadas com o vírus do HIV/Sida e que estavam ao seu cuidado na referida instituição, especialmente criada para acolher e tratar crianças com esta doença.

16ª- Como afirmar, então, que nenhuma destas quatro crianças tinha capacidade para entender o sentido ou o conteúdo desta linguagem da arguida para com todas e cada uma delas?

17ª- Mesmo admitindo, apenas por mera hipótese de raciocínio, que os três bebés, ainda na fase pré-verbal do seu desenvolvimento, não eram ainda capazes de entenderem “o sentido e conteúdo” de tais expressões, na sua completa asserção, não é totalmente evidente que uma criança como era a M, com o normal desenvolvimento dos seus 5 anos de idade (nascida em 15/03/2005), percebia perfeitamente o sentido e conteúdo de tais expressões objectivamente injuriosas, humilhantes, degradantes e discriminatórias (em razão da sua doença)?

18ª- Como acima procuramos ilustrar, a linguagem é um fenómeno muito complexo, que não se resume às palavras ou expressões verbalmente proferidas, mas que integra inúmeros elementos verbais e não verbais que as crianças vão aprendendo e desenvolvendo desde o nascimento, pelo que é evidente que estas crianças as três que ainda eram bebés e a que já tinha 5 anos , eram capazes de compreender, cada uma à sua medida, o sentido profundamente negativo, agressivo, degradante e insultuoso das palavras e expressões que a arguida lhes dirigia «por algumas vezes».

19ª- É evidente, portanto, que tais comportamentos da arguida correspondem, não só a repetidas molestações e injúrias, mas a verdadeiros maus tratos psíquicos destas quatro crianças, quer individualmente, quer no seu conjunto (quando não eram vítimas directas, todas assistiam ao que se passava com as outras na mesma sala), porque correspondem a um tratamento lesivo da sua saúde psico-emocional.

20ª- Quanto maior for a incapacidade da vítima, melhor se enquadrará no conceito de pessoa particularmente indefesa constante do art. 152.º-A do C. Penal, cuja saúde – física, psíquica e mental – é o bem jurídico complexo protegido por este tipo de crime, que tem a sua ratio na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, como revela a inserção sistemática deste tipo legal no Título I, dedicado aos “Crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “Crimes contra a integridade física”.

21ª- Os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas (também em sentido amplo, incluindo toda e qualquer perturbação psíquica, tenha ou não reflexos físicos).

22ª- O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos.

23ª- Neste caso, para além das agressões físicas a que foram sujeitas, estas quatro crianças, de idades tão precoces, viveram desde o início do ano de 2010 e até à suspensão de funções da arguida, durante cerca de 1 ano, um período de intensa violência psicológica com a referida linguagem injuriosa e degradante que a arguida lhes dirigia, que por todas era vivenciada e que a todas vitimava.

24ª- A conduta da arguida descrita nos factos provados na sentença recorrida consubstancia abusos verbais, molestações, apoucamentos e humilhações, fortemente lesivas da saúde psíquica e emocional destas quatro crianças tão pequenas, porque ofendiam a sua auto-estima e atingiam todo o seu desenvolvimento psico-emocional, fazendo-as sentir que eram alvo de repugnância e de desprezo por parte da arguida, sentimentos que a mesma, por algumas vezes, lhes manifestava expressamente, injuriando-os com as expressões “poços de doenças”, “nojentos”, “filhos da puta” e dizendo-lhes “deviam morrer”, ou quando empregava uma força excessiva para lhes pegar ou para os pousar, de forma tão bruta que elas, por vezes, ficavam a chorar, perturbando fortemente o seu processo de vinculação, provocando-lhes inevitável sentimento de ambivalência em relação à figura da cuidadora, e, em consequência, degradando a sua auto-estima devido aos tratamentos que esta lhes dava.

25ª- Estes tratamentos degradantes que a arguida, por algumas vezes, dava à M, nascida em 15/03/2005; à IS, nascida em 26/10/2009, ao Pedro, nascido em 16/10/2008 e ao R, nascido em 22/07/2008, caracterizam-se como condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que colocaram em causa a dignidade daqueles quatro seres humanos, enquanto pessoas individuais, particularmente indefesas em razão da sua idade precoce e da doença que os atinge, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos.

26ª- Consequentemente, neste caso, a conduta da arguida consubstancia a prática de actos de maus tratos físicos e psíquicos juridico-penalmente relevantes.

27ª- Fica, assim, patente, o erro do tribunal a quo ao decidir que a matéria fáctica que foi dada como provada, nomeadamente estes tratamentos degradantes da arguida, não possuem a virtualidade de lesar a dignidade de cada uma destas quatro crianças.

28ª- Discordamos em absoluto desta interpretação restritiva e errada do artigo 152.º-A do C. Penal, que prevê e pune o crime de maus-tratos a menores dependentes.

29ª- O conceito de maus tratos desta norma penal não pode deixar de integrar o conceito de maus-tratos consagrado na Declaração Universal dos Direitos da Criança, mormente no seu artigo 19.º, abrangendo maus tratos físicos, reconhecidos como aqueles que afectam a integridade física das pessoas que podem ser sujeitos passivos deste crime, bem como os maus-tratos psíquicos, considerados como os que prejudicam a auto-estima e as competências sociais das vítimas, enquanto seres humanos dependentes do agente, entre os quais se contam as humilhações, vexames, provocações e molestações e ainda os tratamentos desumanos ou cruéis.

30ª- A evolução legislativa em relação ao crime de maus-tratos tem vindo a realizar-se de forma muito rápida e sempre no sentido do alargamento do tipo legal, tendo o legislador deixado de exigir para o seu preenchimento a reiteração de condutas, ou mesmo que estas revistam especial gravidade, tendo sido colocado o foco essencial na especial relação existente entre o agressor e a vítima, independentemente da gravidade intrínseca das condutas (problemática da vinculação).

31ª- No que concerne às situações de maus-tratos de menores de idades muito precoces sujeitos a institucionalização, é manifesto que as mesmas devem ser alvo de uma análise muito cuidada e especialmente sensível dos operadores judiciários, com um elevado grau de exigência em relação aos padrões de comportamento de todas as pessoas que podem ser agentes deste crime específico (os responsáveis pela sua guarda, cuidado e educação), para proteger ao máximo a enorme fragilidade e vulnerabilidade dessas crianças.

32ª- Daí que qualquer conduta que envolva violência física, psíquica ou emocional exercida sobre estas crianças particularmente indefesas e expostas a perturbações sérias do seu processo de vinculação psico-afectivo, corresponda sempre a um maior impacto negativo no seu desenvolvimento, sendo necessariamente mais grave do que em crianças que não estão expostas a processos de institucionalização.

33ª- Ao tratar cada um destes quatro menores tão pequenos, portadores de HIV/Sida (e por isso colocados naquela instituição) com o desprezo e a repulsa que a sua conduta evidenciam, até porque se lhes dirigia por algumas vezes vociferando expressões insultuosas que referiam o facto de serem doentes, a arguida estava a estigmatizá-los e a sujeitá-los a uma inadmissível discriminação, em razão da doença que os afecta, tratamentos degradantes, esses, que prejudicavam a sua auto-estima, ofendendo a sua dignidade enquanto pessoas individuais.

34ª- Pelo que, face à factualidade dada como provada e com os fundamentos supra referidos, divergindo assim do entendimento do tribunal “a quo”, estão reunidas todas as condições e pressupostos legais (concretamente, os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal) para responsabilizar criminalmente a arguida pelos factos dados como provados, que correspondem ao crime de maus-tratos p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1 - a), do C. Penal, devendo, consentaneamente, a mesma ser condenada.

35ª- Ao decidir como decidiu na douta sentença recorrida fez o Tribunal “a quo” uma interpretação errada e desadequada do artigo 152.º-A, n.º 1 - a), do C. Penal, norma essa que deverá ser interpretada e aplicada, a nosso ver, no sentido de que o preenchimento do conceito de maus-tratos (físicos e psíquicos) erigido pelo nosso actual ordenamento jurídico-penal, é independente da capacidade da(s) vítima(s) para entenderem plenamente o sentido e conteúdo das ofensas (físicas e/ou psíquicas) que lhes são dirigidas, importando para o efeito, essencialmente, aferir a gravidade da conduta traduzida por crueldade, insensibilidade ou mesmo vingança.

36ª- A decisão de absolver a arguida dos quatro crimes de maus-tratos que lhe vinham imputados deve ser revogada, devendo a mesma ser substituída pela condenação da arguida pelos quatro crimes de maus-tratos por que foi acusada, por se encontrarem preenchidos todos os elementos do tipo legal respectivo e por não existir qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa, ou qualquer outro obstáculo à punição.

37ª- Porém, salvaguardando o princípio do duplo grau de jurisdição, para efeitos de determinação da medida das penas parcelares e da pena única a aplicar à arguida, em cúmulo jurídico, impõe-se que seja ordenada a reabertura da audiência, nos termos previstos no artigo 371.º do CPP, de molde a ser proferida, a final, sentença que proceda à determinação de tais penas.

Nestes termos e nos melhores de direito que V.as Ex.as doutamente suprirão, deverá ser revogada a sentença recorrida, assim se fazendo justiça.

3 – A arguida respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 1653 a 1658).

4 – Este recurso foi admitido pelo despacho de fls. 1660.

II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – A única questão que o Ministério Público coloca à consideração deste tribunal é a de saber se a conduta da arguida, essencialmente descrita nos pontos 8 a 11 da matéria de facto provada, integra o conceito de «maus tratos físicos ou psíquicos» que é um dos elementos do tipo objectivo da incriminação contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 152.º-A do Código Penal.
Entendeu o tribunal recorrido que «a conduta da arguida que resultou assente, sendo sem dúvida ética e socialmente censurável, não assume, contudo, a danosidade determinante da censura jurídico-penal e consequente responsabilização criminal da arguida nos termos por que vinha acusada», razão pela qual a absolveu dos quatro crimes de maus-tratos que lhe eram imputados[4].
Colocando as coisas noutros termos, sem que com isto estejamos, segundo cremos, a adulterar o pensamento da magistrada que redigiu a sentença, o tribunal de 1.ª instância considerou que a conduta da arguida não era típica por ter entendido que ela não assumia a necessária dignidade penal, entendida esta como «a expressão de um juízo qualificado de intolerabilidade social, assente na valoração ético-social de uma conduta, na perspectiva da sua criminalização e punibilidade»[5].
Ora, nesta sede, e embora devamos reconhecer que algumas passagens do que é narrado nos pontos 8 a 11 da matéria de facto provada são vagas[6] e se reportam a factos que não ocorreram na presença das crianças[7] e que, portanto, esses factos não eram aptos a lesar a dignidade pessoal e a saúde física, psíquica e mental[8] das mesmas, outro tanto não se passa, a nosso ver, quando aí se diz que a arguida, dirigindo-se aos bebés e crianças pequenas que estavam ao seu cuidado, crianças particularmente frágeis e vulneráveis, disse que elas eram “poços de doenças”, “nojentos”, “filhos da puta” e que “deviam morrer”.
Mesmo se alguns dos bebés, dada a sua tenra idade, não tinham capacidade de compreender o sentido do que era dito pela arguida, não se pode esquecer que afirmações como estas não são nunca pronunciadas num tom neutro. O comportamento verbal e não-verbal de quem assim actua traduz a agressividade que as palavras encerram, o que permite que mesmo aqueles que as não compreendam as sintam como uma agressão.
Idêntico juízo de dignidade penal deve ser feito quanto ao que consta do ponto 11, quando aí se narra que «pelo menos uma vez, em data não determinada, a arguida pegou na LB com força, abanou-a, sacudindo-a com força, pressionando com ambas as mãos o corpo da menor, ao mesmo tempo que lhe dizia: “cala-te, cala-te”».
Todos estes actos, que envolvem as quatro crianças e não apenas alguma ou algumas delas, consubstanciam maus-tratos físicos e psíquicos e estão revestidos da necessária dignidade penal, o que bem justifica a condenação da arguida pela prática de quatro crimes p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Por isso, o recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado procedente, sendo revogada a decisão recorrida e condenada a arguida pela prática daqueles quatro crimes, devendo, consequentemente, o tribunal recorrido, assente a decisão de condenação nos termos referidos, reabrir a audiência de acordo com o previsto no artigo 371.º do Código de Processo Penal, procedendo à escolha e determinação da medida da pena que é aplicável à arguida, único procedimento que, no sistema vigente, assegura o efectivo duplo grau de jurisdição quanto a tal matéria.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando a decisão recorrida, e condenando a arguida Maria pela prática dos quatro crimes de maus-tratos p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal;
b) Determinar que o tribunal recorrido reabra a audiência de julgamento, nos termos previstos no artigo 371.º do Código de Processo Penal, e proceda à escolha e determinação da medida da pena aplicável à arguida.
Sem custas.

²

Lisboa, 3 de Outubro de 2012


(Carlos Rodrigues de Almeida)


(Vasco de Freitas)
_________________________________________________
[1] - Que terá sido subscrita inicialmente apenas pela Carla Ferreira Moreira, sendo depois uma segunda cópia subscrita também por Patrícia, Vânia, Gabriela e Lurdes.
[2] - Com especial relevo para a informação médica de fls. 1565 a 1567, referindo-se expressamente aos menores indicados como estando ao cuidado directo da arguida.
[3] Assumiu neste ponto relevo, designadamente, o depoimento dos próprios jovens residentes na instituição.
[4] O tribunal recorrido afastou liminarmente a aplicação ao caso do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal porque não existia coabitação entre a arguida e as vítimas, decisão que não merece qualquer reparo.
[5] ANDRADE, Manuel da Costa, in “A «dignidade penal» e a «carência de tutela penal» como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime”, in RPCC, Ano 2, n.º 2, p. 184.
[6] Ver, nomeadamente o ponto 8 e também, em grande medida, o ponto 10.
[7] Ver o ponto 9, na parte que se afirma que a arguida se referiu aos bebés e às crianças em determinados termos (mas não quando aí se diz que se lhes dirigiu nesses mesmos termos).
[8] Bem jurídico tutelado por esta norma incriminadora (veja-se, neste sentido, CARVALHO, Américo Taipa de, in «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 535.