Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6192/19.8T8LRS.L1-8
Relator: ELEONORA VIEGAS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
LESÃO GRAVE E IRREPARÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A realização da escritura de justificação notarial para reatamento do trato sucessivo integra o exercício de um direito do interessado, não consubstanciando a necessidade da acção de impugnação da escritura qualquer lesão grave e irreparável do direito do titular inscrito.
II. A notificação feita pelo Notário, nos termos do art. 99.º do Código do Notariado, destina-se apenas a dar conhecimento ao titular inscrito da pretensão do interessado em realizar a escritura de justificação, não se verificando qualquer lacuna na lei que deva ser suprida através do recurso a uma providência cautelar antecipatória para impedir a realização da escritura.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
A [ …. APARÍCIO ] , portador do cartão de cidadão n.º 06073516 3ZY8, contribuinte fiscal n.º 135 240 808, residente na Rua Rodrigo da Fonseca n.º , 2º Direito, 1250 – 193 Lisboa, intentou um procedimento cautelar contra B [PARTIDO …. PORTUGUÊS] , pessoa colectiva 500 940 673 e sede na Rua Soeiro Pereira Gomes n.º , 1600 -196 Lisboa e C [  CATARINA …… ], Notária, contribuinte fiscal n.º 218 312 733, com domicílio profissional na Rua Alfredo Roque Gameiro,  , 2675-278 Odivelas, pedindo a condenação dos Requeridos à não realização da escritura de justificação para reatamento do trato sucessivo de um prédio urbano sito em Camarate, Loures.
Em sede de audiência de julgamento desistiu do pedido formulado contra C.
Por sentença de 18.09.2019 foi julgado improcedente o procedimento cautelar com fundamento em que, pese embora demonstrada a existência do seu direito de propriedade e o fundado receio da sua lesão pelo requerido, ao contrário do que seria necessário, não há no processo factos demonstrados, ou sequer alegados, que permitam afirmar que essa lesão assume natureza grave e é dificilmente reparável.
Inconformado o Requerente vem apelar da sentença, formulando as seguintes conclusões:
I) Entendeu o douto Tribunal não se mostrarem satisfeitos os requisitos necessários ao decretamento da providência, pela inexistência de factos que consubstanciassem a gravidade do prejuízo a cautelar;
II) Salvo o devido respeito por opinião contraditória, por um lado, a ser esse o entendimento judicial, deveria ter sido plasmado em sede de despacho liminar, com eventual convite ao aperfeiçoamento, ainda que se considere tratar-se de faculdade e não obrigação legal, ao abrigo do dever de gestão processual e do princípio da cooperação, tal como previstos nos artigos 6º e 7º do C.P.C., que tal entendimento parece violar;
III) Mas sobretudo, porque existe matéria factual alegada que permite a conclusão de que a lesão assume tal gravidade, que o não decretamento da providência poderá alterar os contornos do pleito em sede de ação principal, assim se mostrando violados os n.º 1 e 2 do artigo 362º do C.P.C.
Na verdade,
IV) Inexiste lei expressa que impeça a outorga do ato notarial pretendido pelo Requerido/Apelado, pelo que a tutela antecipatória é ampla e claramente justificada, na medida em que é por via judicial solucionada a lacuna, assim impedindo o afastamento tabelar e registal do titular inscrito, o ora Requerente/Apelante, tal como factualmente invocado no requerimento inicial;
Mais,
V) Dir-se-á que são os próprios termos da Oposição deduzida que confirmam a necessidade da providência, pela posição no mesmo assumida;
Por outro lado,
VI) Existirá erro no julgamento da matéria facto, em violação do princípio da justa composição do litígio, tal como plasmado na conjugação dos artigo 6º e 7º do C.P.C.;
Assim,
VII) Atento o disposto no artigo 662°, n.° 2 do C.P.C., a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal da Relação se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a respetiva resposta, nos termos do art.º 640º do C.P.C.;
Razões pelas quais,
VIII) E compaginando todos os meios de prova, incluindo os depoimentos supra transcritos no corpo da alegação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, deverá ser aditado o ponto 7 aos factos provados, sugerindo-se a seguinte redação: “O requerido terá recebido o imóvel e entrado na sua posse por doação verbal de alguém que tinha a qualidade de usufrutuária.”;
IX) O Tribunal, ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que, através das regras da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal Superior (cfr. art° 607° n° 4 e 5 do CPC);
In caso,
X) Não se trata de uma mera discordância ou interpretação diversa daquela que o Tribunal a quo teve, em contacto direto e livre com as provas, a verdade é que existe uma divergência marcada daquilo que resulta da prova testemunhal gravada e das parcas conclusões sumárias retiradas, ao não considerar provados (ainda que indiciariamente) o ponto fulcral que resultou da prova do Requerido/Apelado;
Assim se entendendo,
XI) E aditando os factos provados, compaginando todos os meios de prova carreados aos autos, deverá não só ser decretada a providência e impedida a realização do ato notarial pretendido pelo Requerido/Apelado, mas também afirmada a propriedade do Requerente/Apelante, com procedência do pedido de “inversão de contencioso”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Questões a decidir
Sendo o objecto do recurso, nos termos do disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, balizado pelas conclusões do apelante, as questões a decidir são as seguintes:
. alteração da matéria de facto considerada na sentença recorrida;
. violação do dever de gestão processual e de cooperação;
. existência de um fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito do Requerente;
. decretamento da providência e inversão do contencioso.
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III. Fundamentação
III.1. Os factos
Na sentença foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos:
1. Por apresentação de 27.7.1990, está inscrita aquisição, por compra, a favor do requerente do prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº.1128/19900316 da freguesia de Camarate.
2. O requerido pretende outorgar escritura de justificação notarial, com base em usucapião, com vista ao reatamento do trato sucessivo relativo ao prédio mencionado em 1), tendo para o efeito desenvolvido diligências no Cartório Notarial de Odivelas.
3. O imóvel referido em 1) é usado pelo requerido, o qual desde, pelo menos, 1980, tem nele o seu Centro de Trabalho, sede da sua actividade política na zona.    
4. A utilização referida em 3) é feita com conhecimento geral e do requerente e sem oposição.
5. O requerido nunca pagou ao requerente qualquer renda ou outra retribuição pela utilização dita em 3).
6. O requerido fez obras no imóvel referido em 1), sem ter solicitado autorização ao requerente.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
7. Que a utilização referida em 3) seja feita pelo requerido como se fosse proprietário do imóvel dito em 1).
8. Que, de forma autónoma, o requerido sempre se tenha dirigido aos órgãos autárquicos com vista à obtenção das licenças necessárias à realização das obras que fez no imóvel dito em 1), pagando as correspondentes taxas.
Resulta ainda dos autos que:
9. Pela apresentação 14 de 27.07.1990 está inscrito sobre o prédio referido em 1., o usufruto a favor de Maria ……. (doc. 3);
10. Maria ……. faleceu no dia 27/12/2006 (doc. 4);
11. Pelo ofício n.º 41/2019 de 15.02.2019 a Notária do Cartório Notarial de Odivelas notificou o Requerente, “na qualidade de inscrito, nos termos e para os efeitos do artigo 99.º do Código do Notariado, referente à escritura de justificação que Bruno ….. (…) o qual outorga na qualidade de procurador e em representação do Partido Comunista Português (…) pretende fazer para reatamento do trato sucessivo, relativamente ao seguinte prédio:
Prédio urbano (…) com aquisição registada a favor de A (…) e o usufruto registado pela mesma apresentação a favor de Maria de ….. (…).
Que o partido seu representado adquiriu o referido prédio, por doação meramente verbal há mais de vinte anos, feita pelo titular inscrito.” (doc. 5);
12. Em 15.02.2019 pela mesma Notária foi elaborado auto nos termos do disposto no art. 99.º do Código do Notariado do qual consta ter sido dito por Bruno ….. (…) que o partido seu representado detém a posse pacífica e pública do prédio urbano (…) com aquisição registada a favor de A (…) e o usufruto registado pela mesma apresentação a favor de Maria de …. (…)
Que o partido seu representado adquiriu o referido prédio, por doação meramente verbal há mais de vinte anos, feita pelo titular inscrito.
Que desde então tem exercido sobre o mesmo a posse pública, pacífica e de boa fé, tendo inclusive pago todas as taxas ou impostos inerentes ao mesmo, bem como usa, usufrui e cuida do imóvel como legal proprietário deste, praticando actos materiais de posse, nomeadamente, sendo o centro de trabalho do B (…)”
13. É o seguinte o teor da fundamentação da decisão recorrida:
9. Dos factos apurados decorre que o requerente é dono do imóvel referido em 1), sendo que para tanto beneficia da presunção estabelecida no artº.7º Cód. Registo Predial.
 Retirando-se deles também que o requerido, julgando-se titular do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, segundo ele adquirida por usucapião, encetou diligências com vista a ver reconhecido notarialmente o dito direito de propriedade para registalmente o fazer inscrever.
Neste cenário crê-se que não há dúvida que o requerente é titular de um direito que está ameaçado pelo requerido e pela sua intenção de o ver substituído por um de igual natureza reconhecido a seu favor.  
 Isto quando é certo que os factos apurados, diversamente do que defende o demandado, não permitem afirmar que estão verificados a seu favor os pressupostos da usucapião – cf. artº.1287º CC.
Não obstante, crê-se que a pretensão do demandante não pode senão improceder.
 É que, pese embora demonstrada a existência do seu direito de propriedade e o fundado receio da sua lesão pelo requerido, ao contrário do que seria necessário, não há no processo factos demonstrados, ou sequer alegados, que permitam afirmar que essa lesão assume natureza grave e é dificilmente reparável.
 O que implica também que não possa deferir-se a pretensão do demandante de ser dispensado da propositura da causa que dirima o litígio entre as partes - cf. artº.369º, nº.1 CPC.  
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III.2. Do mérito do recurso
O apelante pede que seja aditado à matéria de facto provada que “O requerido terá recebido o imóvel e entrado na sua posse por doação verbalizada de alguém que tinha a qualidade de usufrutuária”. Entende que uma vez alterada a matéria de facto com o aditamento desse facto, que reputa de essencial, é de admitir a inversão do contencioso.
O facto invocado pelo apelante resulta indiciariamente demonstrado quer dos depoimentos das testemunhas quer das próprias declarações do representante do B prestadas ao Notário e que constam quer da notificação quer do auto elaborado nos termos do art. 99.º do Código do Notariado. Contudo, a prova indiciária desse facto não tem a virtualidade de alterar o fundamento da improcedência do procedimento cautelar, tal como decidido na sentença, nem de justificar a inversão do contencioso, cujo primeiro pressuposto é o da procedência do procedimento cautelar (art. 369.º do CPC).
Conforme resulta da matéria de facto fixada na sentença recorrida, o apelante tem a seu favor inscrita a aquisição, por compra, do prédio relativamente ao qual o B pretende outorgar escritura de justificação notarial, com base em usucapião, para reatamento do trato sucessivo, tendo para o efeito declarado que o recebeu por doação meramente verbal há mais de vinte anos feita pelo titular inscrito. O apelante beneficia da presunção derivada do registo, nos termos do art. 7.º do Código do Registo Predial, conforme expresso na sentença, e o Partido Comunista pretende exercer o seu direito de fazer uma escritura de justificação notarial para reatamento do trato sucessivo, com base em usucapião.
O apelante requereu a condenação do Partido Comunista a não realizar a escritura invocando que a outorga da escritura de justificação incidente sobre o prédio conduz ao respectivo registo e averbamento de novo proprietário afastando o predialmente inscrito, sustentando que a única possibilidade de tutela do seu direito é impedir a outorga de um tal instrumento.
Sem razão, no entanto.
A escritura de justificação notarial, enquanto um dos modos necessários para o estabelecimento ou reatamento do trato sucessivo no registo predial, encontra acolhimento legal no art. 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, bem como nos arts. 89.º a 91.º, 96.º, n.º 1, e 101.º do Código do Notariado.
Como refere José Alberto Vieira (“Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito – Anotação ao AUJ n.º 1/2008, de 04-12-2007”, Cadernos de Direito Privado, n.º 24, Outubro/Dezembro de 2008, págs. 21 a 42) “quando o interessado pretende promover o registo de qualquer um destes factos (v.g., usucapião) está obrigado a providenciar um título escrito para ele (art. 43.º, n.º 1, do CRP). Ora, dentro dos meios dispostos pela ordem jurídica portuguesa para este efeito, das três uma: Recorre a juízo para obter a declaração judicial do facto a registar; Promove a celebração de uma escritura pública de justificação notarial; Instaura processo de justificação registal, nos termos do Código do Registo Predial”
Concretamente (op. cit., pág. 37) a escritura de justificação notarial “tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão”. A justificação notarial associa-se, assim, à dinâmica do registo predial, mormente à prova documental do facto jurídico a registar, imprescindível para o registo (art. 43.º, n.º 1, do CRP).
Nos termos do disposto no art. 99.º do Código do Notariado, no caso de reatamento do trato sucessivo ou de estabelecimento de novo trato, quando se verificar a falta de título em que tenha intervindo o titular inscrito, a escritura não pode ser lavrada sem a sua prévia notificação, efectuada pelo notário, a requerimento, escrito ou verbal, do interessado na escritura (n. º1), devendo, quando o pedido seja formulado verbalmente, ser reduzido a auto (n. º2). A notificação não admite qualquer oposição (n.º 8), devendo constar da escritura a menção de que foi efectuada (n.º10).
Sustenta o apelante que, não podendo deduzir oposição no procedimento de justificação notarial, o não decretamento da providência conduzirá à outorga da pretendida escritura de justificação e, consequentemente, à remoção registal da propriedade correctamente declarada na sentença.
Ora, da realização da escritura de justificação notarial, que consiste em declarações feitas pelo interessado perante o Notário (arts. 89.º a 91.º do Código do Notariado), não decorre automaticamente qualquer alteração registal. E o facto de a notificação do titular inscrito prevista no art. 99.º do Código do Notariado não admitir oposição não significa que o facto justificado não possa ser impugnado, como resulta expressamente do art. 101.º do mesmo Código sob a epígrafe Impugnação:
1 - Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da acção.
2 - Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extracto for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação.
3 - O disposto no número anterior não prejudica a passagem de certidão para efeito de impugnação, menção que da mesma deve constar expressamente.
4 - Em caso de impugnação, as certidões só podem ser passadas depois de averbada a decisão definitiva da acção.
5 - No caso de justificação simultânea, nos termos do artigo 93.º, não podem ser extraídas quaisquer certidões da escritura sem observância do prazo e das condições referidos nos números anteriores.
A notificação feita pelo Notário destina-se apenas a dar conhecimento ao titular inscrito da pretensão do interessado em realizar a escritura de justificação, não se verificando nenhuma lacuna na lei que deva ser suprida através do recurso a uma providência cautelar antecipatória para impedir a realização da escritura. Realizada a escritura é publicado um extracto do seu conteúdo, iniciando-se o prazo para a sua impugnação em acção judicial. A lei prevê, assim, o mecanismo de tutela do direito do titular inscrito no registo.
A escritura pública de justificação constitui um documento autêntico que faz prova plena do facto jurídico que titula (artºs 363.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1 do Código Civil) sendo passível, como qualquer outro acto jurídico, de ser impugnada judicialmente por parte de quem tenha legitimidade para tal. A sua força probatória plena só abrange os factos que nela se referem como praticados pela autoridade ou oficial público, assim como os factos que nesse documento são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, não fazendo prova plena das declarações prestadas pelos outorgantes, as quais são livremente impugnáveis pela parte contrária, cabendo então aos respectivos declarantes o ónus da sua prova (artº 371º do Código Civil). Pelo AUJ n.º 1/2008, de 4.12.2007, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63, de 31.03.2008, o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência no sentido de que: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1 do CRP e 89.º e 101.º do CN, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art. 7.º do CRP”. Esta jurisprudência permanece actual e tem sido acompanhada em vários Acórdãos do STJ, designadamente nos de 27.01.2010, 7.04.2011, 13.09.2011 e 19.02.2013 – cfr. acórdão do TRG de 7.06.2018.
Um dos requisitos para o decretamento de uma providência cautelar é o receio fundado (em termos objectivos) de lesão grave e irreparável ou de difícil reparação do direito invocado pelo requerente, que a sentença apelada decidiu que no caso não se verifica.
Relativamente a este requisito, não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão - António Abrantes Geraldes in "Temas da Reforma do Processo Civil", III Vol., 5 – Procedimento Cautelar Comum, 1998, p. 83 e ss.
Na sentença decidiu-se que não há no processo factos demonstrados, ou sequer alegados, que permitam afirmar que essa lesão assume natureza grave e é dificilmente reparável, o que, no entender do apelante, deveria ter sido plasmado em sede de despacho liminar, com eventual convite ao aperfeiçoamento, ao abrigo do dever de gestão processual e do princípio da cooperação, tal como previstos nos artigos 6º e 7º do Código de Processo Civil.
A decisão da primeira instância não se baseou na falta de prova de matéria de facto alegada pelo requerente (a matéria de facto considerada não provada foi a alegada na oposição) e sim, antes, na rejeição da tese do Requerente de que, a não ser impedida a realização da escritura, será causada uma lesão grave e irreparável do seu direito por via da alteração do registo predial onde figura como titular inscrito.
A lesão grave e dificilmente reparável que o apelante invocou na petição inicial e reitera nas alegações, é, em última análise, do seu direito de propriedade. Alega na petição que a celebração da escritura de justificação tendo por fundamento factos absoluta e materialmente falsos (arts. 25.º) é lesiva da propriedade inequívoca do Requerente e que a providência cautelar antecipatória via impedir a consolidação da lesão do seu património (art. 27.º) e a colisão de direitos predialmente incompatíveis, dos quais adviriam lesões á tutela do requerente, obrigando à intervenção em acção de anulação (art. 46.º). Nas alegações de recurso sublinha a tese de que não existe norma legal expressa que, ainda que com a sua oposição, impeça a outorga da escritura e a remoção registal do seu direito de propriedade.
Não existe qualquer violação dos poderes/deveres de gestão e cooperação previstos nos arts. 6.º e 7.º do CPC, como o apelante alega aparentar terem sido violados. Não está em causa o suprimento da falta ou regularização de um pressuposto processual susceptível de sanação pelo qual o juiz devesse ter providenciado, antes a improcedência da tese do Requerente sobre a gravidade e irreparabilidade da lesão que a outorga da escritura causará ao seu direito se não for decretada a providência cautelar. E, como vimos, não é fundado o receio de seja causada qualquer lesão grave e irreparável ou de difícil reparação do direito de propriedade invocado pelo apelante se o B não for impedido de outorgar a escritura de justificação notarial para reatamento do trato sucessivo: da sua realização não decorre, automaticamente, qualquer alteração na esfera jurídica do apelante, titular inscrito no registo, que dispõe do mecanismo legal para, caso a escritura venha efectivamente a realizar-se, impugnar o facto por ela justificado. A realização da escritura de justificação integra o exercício de um direito do interessado, não consubstanciando a necessidade da acção de impugnação da escritura qualquer lesão grave e irreparável do direito do apelante.
Pelo que não se verificando um dos requisitos previstos no art. 362.º do CPC para o decretamento da providência cautelar, o presente recurso deve ser julgado improcedente e a sentença confirmada.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar a presente apelação improcedente confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
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Lisboa, 23 de Janeiro de 2020
Eleonora Viegas
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães