Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9699/2004-9
Relator: CID GERALDO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MENOR
MEDIDA TUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa


1. – O Ministério Público requereu a abertura da fase jurisdicional do processo tutelar educativo, referentes ao menor (R), imputando-lhe factos que, na sua perspectiva, integravam um crime continuado de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 172° n°2 do Código Penal e um crime continuado de ameaças p. e p. pelo art. 153°, n°1 do mesmo diploma legal e requereu que fosse aplicado ao menor as medidas tutelares educativas de obrigação de frequência de consultas de pedopsiquiatria e obrigação de frequência de estabelecimento escolar com assiduidade e aproveitamento.
Procedeu-se à realização da audiência preliminar, finda a qual, foi proferida decisão que não aplicou ao menor (R) medida tutelar educativa, concluindo que o menor não praticou o crime continuado de abuso sexual de criança e o crime continuado de ameaça, determinando o arquivamento dos autos.
O Digno Magistrado do MºPº inconformado, recorreu da decisão, concluindo na sua motivação que:
§ A Lei Tutelar Educativa é aplicável aos menores com idade compreendida entre os doze e os dezasseis anos (art. 1° da Lei Tutelar Educativa n°166/99, de 14, 09) que pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime.
§ O Tribunal a quo deu como provados factos integradores do ilícito penal p. e p. pelo art. 172° , n°2 do Código Penal.
§ O menor (R)tinha 13 anos à data da prática de tais factos integradores do referido ilícito p. no art. 172° do Código de Processo Penal.
§ O normativo p. no art. 172°, n°2 do Código Penal, estabelece apenas o limite temporal de 14 anos no que à vitima concerne.
§ Não se encontra consagrado na Lei tutelar Educativa qualquer excepção ao principio consagrado no art. 1°, e nomeadamente nos casos em que os menores pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime de natureza sexual.
§ Deu ainda o Tribunal como provado que o menor denota dificuldade na aquisição dos valores jurídico-sociais e tem dificuldade em lidar de forma positiva com aspectos relacionados com a sexualidade.
§ O menor (R)apresenta necessidades de educação para o direito.
§ Face aos elementos dados como provados não poderia o Tribunal a quo deixar de subsumir a conduta do menor (R)no normativo p. no art. 172°, n°2 do Código Penal e atenta a necessidade de educação para o direito manifestado pelo menor à data da prática do facto e no presente, e aplicar-lhe medida tutelar educativa que se mostre mais adequada à situação do menor e que lhe permita adquirir competências e contribua para o fortalecimento de condições psicobiológicas necessárias ao desenvolvimento integral da sua personalidade e sexualidade.
§ Não o tendo feito, violou o disposto no art. 172°, n° 2 do Código Penal; art. 1° , 4°, n° 1, a) f), art. 14 °, n°1 ai. a) e n° 2 ai. c), todos da Lei Tutelar Educativa.
§ Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, declarando-se cometido pelo menor o facto qualificado como crime p. e p. pelo art. 172°, n°2 do Código Penal, e consequentemente se aplique ao mesmo a medida tutelar educativa que se mostre mais adequada à situação do menor e que lhe permita adquirir competências e contribua para o fortalecimento de condições psicobiológicas necessárias ao desenvolvimento integral da sua personalidade e sexualidade.
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Neste Tribunal, o Exmo. Procurador Geral Adjunto concordou com as motivações do recurso interposto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. – Como é sabido o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
E, nas conclusões do recurso o recorrente insurge-se contra a decisão recorrida porquanto, só um lamentável erro de apreciação permitiu considerar que o menor não praticou facto susceptível de integrar o crime p. no art. 172°, n°2 do Código Penal e determinar o arquivamento dos autos, sem aplicar ao menor (R)medida tutelar educativa.
Vejamos:
O Tribunal a quo deu como provada a seguinte matéria de facto:
- Em data e hora não apuradas do ano de 2002 (antes de 6 de Outubro) o menor (R) estava a brincar nas traseiras da "Peixaria ..." (num recanto ali existente) situada na Rua ..., em Corroios com o menor (J) e outros menores;
- No momento e no local indicados o menor (R) disse ao menor (J) nascido a 05.10.1995) para este "lhe fazer um broche ";
- O menor (R) retirou das cuecas o pénis erecto e introduziu o seu pénis erecto na boca do menor (J).
- O menor (J) chupou de seguida o pénis do menor (R).
- O menor (R) sabia que o menor (J) tinha menos de doze anos de idade e actuou de forma livre, com o propósito de praticar os factos " supra descritos";
- O menor (R) tem maior compleição física do que o menor (J);
- O menor (R) frequenta o 6° ano de escolaridade e tem beneficiado de acompanhamento psicológico no Hospital Garcia de Orta;
- O menor (R) vive na companhia dos pais;
- A mãe do menor exerce a profissão de auxiliar de acção educativa;
- O pai do menor tem a profissão de carpinteiro de estores e está, no presente, desempregado.
- O menor denota dificuldade na aquisição dos valores jurídico-sociais e tem dificuldade em lidar de forma positiva com aspectos relacionados com a sexualidade.
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Não se provou:
- Que o menor (R) tivesse pedido ao menor (O) e ao menor (P) para ficarem a vigiar;
- Que os factos apurados sob 2,3 e 4 tivessem ocorrido mais de uma vez;
- Que o menor (R) tivesse dito ao menor (J) que lhe bateria se este não praticasse os factos acima indicados sob 4;
- Que o menor (J) tivesse receio que o menor (R) lhe batesse, por ser mais velho e ter maior compleição física;
- Que o recanto onde ocorreram os factos fosse de difícil visibilidade exterior;
- Que o menor (R) soubesse a idade exacta do menor (J).
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Da matéria dada como provada, não resultam factos que integrem a prática do crime de ameaças, e nisto concorda o Digno recorrente.
Porém, entendemos, tal como o recorrente, que outro tanto não se poderá dizer, relativamente ao crime, p. e p. pelo art. 172° , n° 2 do Código Penal.
Perante a matéria factual dada como assente é incontestável que estamos perante a prática de um facto integrador do ilícito penal , p. no art. 172°, n°2 do Código Penal.
Assim não o entendeu o tribunal a quo, por considerar que constitui elemento do tipo (art. 172° do Código Penal ) que o menor ofendido tenha menos de 14 anos e que o menor sujeito do processo deverá ter completado 14 anos, sob pena de ocorrer confusão entre menor ofendido e menor sujeito do processo e que o ilícito penal em apreço ao não efectuar distinções entre menores de 12 anos e menores de 14 anos, não se pode entender que os menores de treze anos pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime de abuso sexual de criança, pelo que, que tendo o menor (R) à data dos factos 13 anos de idade, não praticou factos que integram um crime de abuso sexual de criança.
Porém, e tal como entende o Digno recorrente, só um lamentável erro de apreciação em que incorreu o Tribunal a quo, permitiu considerar que o menor não praticou facto susceptível de integrar o crime p. no art. 172°, n°2 do Código Penal e determinar o arquivamento dos autos, sem aplicar ao menor (R) medida tutelar educativa.
A Lei Tutelar Educativa é clara ao prever a aplicação de medida tutelar educativa aos menores com idade compreendida entre os doze e os dezasseis anos ( art. 1° da Lei Tutelar Educativa n°166/99, de 14, 09) que pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime, por se entender que se torna necessário responsabilizar o menor pelo dano social provocado, mostrando-lhe que essa conduta não é tolerada pela sociedade em que se insere, educando-o para o direito, de forma a que a sua personalidade em formação interiorize o respeito pelas normas e valores fundamentais da sociedade em que se integra.
Porém, e porque a sua personalidade está em formação, a prática de um facto ilícito tipificado na lei penal não determina necessariamente a aplicação de medida tutelar educativa, porque o fim da intervenção tutelar é a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável na vida em comunidade, e não o seu sancionamento ou punição pela prática do facto ilícito penal, pelo que, e apesar do menor cometer facto qualificado pela lei penal como crime, não implica necessáriamente que lhe seja aplicada medida tutelar educativa, por se concluir pela desnecessidade de correcção da sua personalidade no plano do dever-ser jurídico manifestada na prática do facto, importando ponderar se o facto concretamente praticado pelo menor é ou não susceptível de um desvalor objectivo, pelo menos análogo ao que é vertido na incriminação típica, e se aquele facto concreto praticado pelo menor com idade inferior a 16 anos, detém o mesmo significado ético social da facto incriminado pelo tipo legal.
Assim, a aplicação de medida tutelar educativa só seja legítima desde que verificados cumulativamente os seguintes pressupostos
- O menor cometa facto ilícito tipificado na lei penal como crime;
- Necessidade de correcção da sua personalidade no plano do dever ser jurídico manifestada na prática do facto;
- E que essa necessidade subsista no momento da decisão de aplicação de medida.
Ora verifica-se que o Menor (R) tinha à data da prática dos factos 13 anos de idade e o menor (J) tinha 6 anos à data da prática dos factos.
O bem jurídico protegido no crime de abuso sexual de criança do art. 172° do Código Penal é o da autodeterminação sexual, mas num particular prisma qual seja de evitar que certas condutas de natureza sexual, em consideração da pouca idade da vítima mesmo sem coacção, possam prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, dentro de bem jurídico mais amplo da auto conformação da vida e da prática sexual da pessoa – Ac. STJ de 7 de Dezembro de 1999, proc. 530/99 3ª SASTJ , n°36, 59.
O Tribunal a quo refere que só um menor agente, para os efeitos da Lei Tutelar Educativa, com 14 anos de idade, já feitos, poderá praticar este crime, sob pena de se assim se não entender poder haver confusão entre vítima e agente, dando como exemplo uma situação entre menor agente e vítima ambos de doze anos.
Tal comparação, porém, constitui uma falácia.
Na verdade, o legislador ao contemplar a idade da vítima dos 0 aos 14 anos pretendeu proteger os menores que ainda não têm capacidade e discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão no que concerne ao relacionamento sexual.
No caso em apreço, a diferença de idades entre o menor ofendido e o menor agente do processo tutelar educativo é pelo menos de seis anos entre um e outro.
Não existe qualquer possibilidade face às circunstâncias em que ocorreram os factos e perante os factos dados como provados, e bem assim face à superioridade da compleição física do menor agente, que aponte estarmos perante uma experiência de iniciação sexual, em que não se possa distinguir a vítima do agente e em que possa haver confusão entre estes dois papeis como pretende o Tribunal a quo.
Como bem salienta o Digno Magistrado do MºPº, a aceitar-se tal interpretação, poderíamos ser confrontados com situações chocantes, se imaginarmos um menor vítima de três anos e um agente de 13 anos ....
Não pode pois aceitar-se a interpretação seguida pelo Tribunal a quo de que um menor de doze anos não pode cometer factos qualificados como crime p. e p. no art. 172° do Código Penal.
Não existe qualquer restrição no âmbito de aplicação deste normativo no que respeita à idade do menor agente e abrangido pela Lei Tutelar Educativa ( menor com idade compreendida entre 12 a 16 anos ).
Por outro lado, não resultou dos factos dados como provados que ao menor não lhe deveria ser aplicada medida tutelar educativa, por resultar inequivocamente que o menor (R) tinha conhecimento que o menor (J) tinha idade inferior à sua; que em data anterior a 6 de Outubro 2002 o menor (R) estava a brincar nas traseiras da "Peixaria Bom Isco" (num recanto ali existente) situada na Rua da Casa do Povo, em Corroios com o menor (J) e outros menores; no momento e no local indicados o menor (R) disse ao menor (J) ( nascido a 05.10.1995) para este "lhe fazer um broche "; o menor (R) retirou das cuecas o pénis erecto e introduziu o seu pénis erecto na boca do menor (J); o menor (J) chupou de seguida o pénis do menor (R); dando ainda como provado que o menor (R) sabia que o menor (J) tinha menos de doze anos de idade e que actuou de forma livre, com o propósito de praticar os factos e que o menor (R) tem maior compleição física do que o menor (J). Deu ainda o Tribunal como provado que o menor denota dificuldade na aquisição dos valores jurídico-sociais e tem dificuldade em lidar de forma positiva com aspectos relacionados com a sexualidade.
Assim, e face aos elementos dados como provados não poderia o Tribunal a quo deixar de subsumir a conduta do menor (R) no normativo p. no art. 172°, n°2 do Código Penal e atenta a necessidade de educação para o direito manifestado pelo menor à data da prática do facto e no presente, aplicar-lhe medida tutelar educativa requerida ou outra que se mostrasse mais adequada à sua situação actual.

3. – Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, declarando ter sido cometido pelo menor o facto qualificado como crime p. e p. pelo art. 172°, n°2 do Código Penal, aplique ao mesmo a medida tutelar educativa que se mostre mais adequada à situação.
Sem tributação.

Lisboa, 2 de Dezembro de 2004

Cid Geraldo
Trigo Mesquita
Maria da Luz