Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
169/20.8IDSTB.L1-9
Relator: MADALENA CALDEIRA
Descritores: NOTIFICAÇÃO POR VIA POSTAL SIMPLES
IRREGULARIDADE
NULIDADE INSANÁVEL
CONHECIMENTO OFICIOSO
CORREÇÃO DO VÍCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O envio por parte do Ministério Público, para notificação de uma acusação a um arguido acusado, de uma carta simples, com prova de depósito, para uma morada grosseiramente distinta do TIR prestado e que teve como consequência a sua devolução com a indicação de que “não existe Rua, lote, número de porta”, não tem a virtualidade de cumprir com os efeitos processuais e substantivos a que a carta se destinava.
II. Tal notificação, a não se considerar ferida de inexistência jurídica, terá de ser julgada irregular, invalidade que é de conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato e conter um enorme potencial de violação dos mais básicos direitos de defesa do arguido (art.º 123º, n.º 2, do CPP), sendo equiparada nos seus efeitos a uma nulidade insanável.
III. Essa irregularidade da notificação da acusação pode e deve ser conhecida pelo juiz do julgamento aquando do cumprimento do disposto no art.º 311º, do CPP, na vertente do saneamento do processo, por obstar à apreciação do mérito da causa.
IV. Em tal situação o juiz pode ordenar a devolução dos autos aos Serviços do Ministério Público para, querendo, proceder à correção do vício, dado que a competência legal para essa notificação é atribuída ao Ministério Público, o processo só deve ser remetido para julgamento quando a fase das notificações da acusação estiver completa (sem prejuízo do caso excecional previsto no art.º 283º, n.º 5, 2ª parte do CPP), o processo continua num limbo entre a fase de inquérito e a de julgamento e não é indiferente para um arguido ser notificado da acusação num momento em que o processo está em fase de inquérito ou em fase de julgamento.
V. Essa devolução do processo não viola os poderes de autonomia e de independência do Ministério Público.
VI. A defesa da estrutura acusatória do processo penal e da autonomia do Ministério Público não se pode confundir com a aceitação da desoneração de competências processuais que a este competem, em desrespeito do estrito ritual processual penal, não podendo aceitar-se como normal, no sentido de “normalizar ou banalizar”, a remessa de inquéritos para a fase de julgamento sem o regular cumprimento da fase das notificações da acusação, apesar da ilegalidade dessa prática, com os prejuízos que acarreta para os sujeitos processuais, em particular para os arguidos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
Por despacho datado de 27.03.2022, proferido ao abrigo do art.º 311º, do CPP, foi determinada a remessa dos autos ao Ministério Público para sanação de irregularidade na notificação da acusação à sociedade arguida “A”
*
Recurso da decisão
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso do despacho, tendo extraído da sua motivação as seguintes CONCLUSÕES (que transcrevemos):
1. Em sede do despacho recorrido, a MM.ª Juiz de Direito decidiu devolver os autos ao Ministério Público para reparação da irregularidade processual de falta de notificação regular da sociedade arguida.
2. Com tal decisão, foram violados os artigos 32.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 118.º, 123.º, 262.º e 311.º do Código de Processo Penal.
3. A sociedade arguida foi regularmente notificada por via postal simples, como prescreviam os artigos 113.º, n.º 1, al. c), 196.º, n.º 1 e 2, 283.º, n.º 5 e 6 e 277.º, nº 3 e 4, al. a) do Código de Processo Penal.
4. Tendo a sociedade arguida, aquando da prestação de termo de identidade e residência, indicado uma morada insusceptível de receber correspondência (seja por inexistir a morada, pela mesma não ter receptáculo postal ou por este estar avariado) sempre se deverá considerar regularmente notificada do despacho de acusação remetido para essa morada.
5. Concordamos em abstracto, com o teor do despacho recorrido quando refere que a falta de notificação do arguido é uma irregularidade processual.
6. Porém, nos termos dos artigos 118.º e 123.º do Código de Processo Penal, tal regularidade não é de conhecimento oficioso, porquanto não contende com direitos de defesa do arguido.
7. Pelo que, não poderia a MM.ª Juiz de Direito ter apreciado da irregularidade sem alegação por parte de um sujeito processual.
8. Ainda que considerássemos que tal vício corresponde a uma irregularidade de conhecimento oficioso, a decisão recorrida põe em causa a independência e autonomia do Ministério Público, violando os artigos 32.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa.
9. O Ministério Público não recebe ordens nem directivas de quaisquer outras entidades.
10. O Ministério Público é a autoridade judiciária a quem cumpre promover o processo penal e a direcção do inquérito, conforme artigos 48.º e 262.º do Código de Processo Penal.
11. Com o devido respeito por opinião contrária, não cabe no leque de competências da MM. ª Juíza de Direito ordenar ao Ministério Público (ainda que indirectamente), a prática de quaisquer actos processuais.
12. O artigo 123.º, n.º 2 do Código de Processo Penal é claro quando refere que “ordena-se oficiosamente a reparação da irregularidade”.
13. A irregularidade mantém-se com a remessa dos autos ao Ministério Público, pelo que o acto ordenado pela MM. ª Juíza de Direito em nada contribuiu para a sanação de tal vício processual.
14. Apenas impôs ao Ministério Público a prática de um acto processual que visa a reparação da irregularidade.
15. Tendo o Tribunal conhecimento da morada do representante legal, o mesmo certamente poderia proceder à notificação da acusação, nos termos em que exemplificou no douto despacho.
16. Tal solução, além de mais célere, é também uma que não colocaria em causa a independência e autonomia do Ministério Público e a que nos parece mais conforme a Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, e, em consequência, o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público ou, caso se considere que, a notificação não foi correctamente efectuada e de que estamos perante e uma irregularidade de conhecimento oficioso, substituindo-o por outro que determine a reparação dessa irregularidade pela secretaria do Juízo Local Criminal do Seixal – Juiz 3, o que se requer aos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa.
*
Não foi apresentada resposta ao recurso.
*
O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo.
*
Parecer do Ministério Público junto da Relação
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto aderiu às alegações do recurso apresentadas pelo Ministério Público na primeira instância.
*
Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPP, a sociedade arguida pugnou pela não revogação do despacho recorrido.
*
Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir, nos termos resultantes do labor da conferência.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
A delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre por exemplo com os vícios previstos nos artigos 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.ºs 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP).
Posto isto, passamos a delimitar o thema decidendum, que o mesmo é dizer a elencar as questões colocadas à apreciação deste tribunal e que no caso são três:
1. Saber se é de revogar o despacho recorrido por a sociedade arguida dever considerar-se regularmente notificada da acusação.
2. Na negativa, saber se é de revogar o despacho recorrido por a eventual irregularidade processual não ser de conhecimento oficioso.
3. Na negativa,  saber se é de revogar o despacho recorrido por o tribunal não poder dar ordens ao Ministério Público, em violação da autonomia e independência deste.
*
A Decisão Recorrida:
A decisão recorrida tem o seguinte teor (que se transcreve integralmente):
Compulsados atentamente os presentes autos, afigura-se-nos que não foi devidamente respeitado o disposto no artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, pois as diligências de notificação do despacho de acusação à sociedade arguida que se impunham legalmente efectuar não foram levadas a cabo.
Ora, é verdade que, após a prolação da acusação, foi remetida notificação da mesma à sociedade arguida por via postal simples com prova de depósito para a morada do termo de identidade e residência prestado a fls. 64, conforme oficio de fls. 187, mas essa notificação realizada dessa forma não se efectivou, porquanto não houve o depósito de tal notificação no receptáculo postal da morada indicada – cfr. fls. 194.
Ora, a este respeito, há que atentar que o artigo 113.º, n.ºs 3 e 4 , do Código de Processo Penal prevê o seguinte:
“3 - Quando efectuadas por via postal simples, o funcionário judicial lavra uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do domicílio para a qual foi enviada e o distribuidor do serviço postal deposita a carta na caixa de correio do notificando, lavra uma declaração indicando a data e confirmando o local exacto do depósito, e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente, considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal, cominação esta que deverá constar do acto de notificação.
4 - Se for impossível proceder ao depósito da carta na caixa de correio, o distribuidor do serviço postal lavra nota do incidente, apõe-lhe a data e envia-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente.”.
De tais normativos afigura-se-nos resultar que o legislador somente presumiu que a notificação de um acto processual por via postal simples se concretiza mediante o depósito dessa carta no receptáculo postal de destino, ao 5.º dia depois desse depósito, mas já não fez a mesma equiparação para as situações de impossibilidade de depósito de tal carta. E percebe-se que assim seja, pois não é ao destinatário da notificação que tem que onerar o facto do receptáculo postal estar avariado: bastará pensarmos na hipótese de alguém que se ausenta 48 horas de casa e que nesse espaço de tempo alguém lhe vandaliza a caixa do correio sem que disso tenha conhecimento. É caso para perguntar como o podia tal pessoa prever e evitar e porque é que ficará prejudicado, considerando-se notificado de algo que nunca esteve na sua esfera de disponibilidade.
Preconizando este entendimento, citamos, entre outros, e para além do douto acórdão da Relação do Porto já citado em tal despacho recorrido, o douto aresto do Tribunal da Relação de Évora, de 15-12-2016 (Proc. n.º 46/13.9 TAVVC.E1), disponível em www.dsgi.pt (sublinhado nosso):
“II – É indispensável à presunção da notificação por via postal simples prevista no artigo 113º, nº 3, do Código de Processo Penal, a existência de um receptáculo postal onde o distribuidor do serviço postal possa depositar a carta de notificação e, após, lavrar a competente informação para o processo. Só assim será idónea para o efeito da referida notificação por via postal simples qualquer morada indicada pelo arguido no Termo de Identidade e Residência, nos termos do disposto no artigo 196º, nº 2, do Código de Processo Penal, como só assim se poderá presumir que o mesmo se encontra legal e devidamente notificado.
III - É intolerável que se ficcione a cognoscibilidade do ato notificando, a notificação do arguido para o julgamento –, com a mera expedição por via postal simples da carta sem que o depósito da mesma no recetáculo postal da residência do Termo de Identidade e Residência se mostre efectuado.”.
Por conseguinte, a sociedade arguida não foi notificada do despacho de acusação e que os autos foram remetidos para julgamento ainda assim, e nada mais foi feito, não se procedendo à notificação por contacto pessoal, por exemplo, na pessoa do legal representante, diligência esta pertinentes e razoável para dar a conhecer a tal pessoa colectiva a acusação proferida contra a mesma.
Foram os autos depois remetidos à distribuição para julgamento,  distribuição essa que se mostra irregular e de nenhum efeito, pois a sociedade arguida não foi notificada do despacho de acusação, omissão essa também irregular e de nenhum efeito, não se estando perante a situação prevista no artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, e tal obsta a que possa exercer cabalmente os seus  direitos de defesa, mormente requerer a abertura de instrução, cujo prazo nem sequer se iniciou, afectando tal irregularidade o valor do próprio acto, pelo que, nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal, oficiosamente o declaro.
E cabe ao Ministério Público levar a cabo a notificação da acusação à sociedade arguida, devendo fazer as diligências pertinentes e razoáveis a tal e não ao Juiz da fase do julgamento.
Neste sentido, veja-se o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-7-2018 (Proc. n.º 123/16.4PGOER.L1-3), disponível em www.dgsi.pt, cujo entendimento acompanhamos na íntegra:
“I. A omissão de notificação da acusação constitui irregularidade cuja reparação pode ser conhecida oficiosamente, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, afectando tal omissão o acto em si, de conhecimento da acusação, nos termos previstos no artº 123º, nº 2 do CPP.
II. Dispõe o nº 5 do artº 283º do CPP, por remissão para o nº 3 do artº 277º do mesmo diploma, a obrigatoriedade de o Ministério Público notificar a acusação ao arguido e ao seu defensor, tendo a obrigação legal de tudo fazer para notificar o arguido.
III. O legislador só admitiu a possibilidade de o processo transitar para a fase de julgamento sem o arguido ser notificado da acusação na situação prevista no nº 5 do artº 283º do CPP, ou seja, “quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes”.
IV. A devolução dos autos ao Ministério Público para reparação da irregularidade por omissão de notificação da acusação, na situação em que se não mostram preenchidos os pressupostos do nº 5 do artº 283º do CPP, em nada contende com a estrutura acusatória do processo.”.
Em razão do exposto, determino a remessa destes autos ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes, mormente sanação da irregularidade constatada, com as diligências que se afigurem pertinentes e razoáveis para viabilizar a aludida notificação do despacho de acusação à sociedade arguida.
 Notifique e remetam-se os autos aos Serviços do Ministério Público, dando-se a pertinente baixa na distribuição.

Ainda com interesse, apura-se dos autos que:
- Em 03.11.2020 a sociedade arguida “A” prestou TIR e indicou como morada para futuras notificações, mediante carta postal simples, a Rua B Corroios.
- Para notificação da acusação pública deduzida pelo Ministério Público, em 14.12.2021 foi remetida à sociedade arguida “A” carta, que seguiu por via postal simples, com prova de depósito, para a morada “Rua C”.
- A carta veio devolvida com  a menção “não existe (Rua, Lote, n.º de Porta)”.
*
Da análise dos fundamentos do recurso:
1. Saber se é de revogar o despacho recorrido por a sociedade arguida dever considerar-se regularmente notificada da acusação.
O Recorrente alega que a carta de notificação da acusação dirigida à sociedade arguida foi remetida para a morada constante do TIR por esta prestado, em razão do que a sociedade arguida deve considerar-se regularmente notificada.
Abreviaremos, dizendo que manifestamente não assiste razão ao  Recorrente.
Se não vejamos.
No que tange à notificação da acusação ao arguido, decorre do art.º 283º, n.º 6, do CPP, ora com relevo, que a mesma efetua-se mediante contacto pessoal ou por via postal registada, exceto se o arguido tiver indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que o ouvir no inquérito ou na instrução, caso em que é notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 113º, do CPP.
E dispõe o art.º 113º, n.º 6, do CPP, na parte que para aqui importa, que as notificações de pessoa coletiva são feitas na morada indicada nos termos da al. c) do n.º 5 do art.º 196.º ou por contacto pessoal com o seu representante.
Sob a epígrafetermo de identidade e residência”, o artigo 196º, n.º 5, al. c), do CPP, preceitua, no que às pessoas coletivas respeita, que do termo deve constar ter sido dado conhecimento da obrigação de indicar uma morada onde possa ser notificada mediante via postal simples e de que as posteriores notificações serão feitas nessa morada e por essa via (exceto se comunicar uma outra morada, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr termos nesse momento).
Portanto, não restam dúvidas de que uma acusação deduzida contra uma arguida pessoa coletiva deve ser notificada à mesma na morada constante do TIR prestado.
Quanto a esta questão não parecem existir divergências.
Ora, revertendo para o caso dos autos verifica-se que a sociedade arguida prestou TIR em sede de inquérito e no mesmo indicou como morada para futuras notificações a Rua ….
Consequentemente, a notificação da acusação pública à sociedade arguida deveria ter sido realizada por carta simples para esta mesma.
Sucede ressaltar dos autos que a carta destinada à notificação da acusação à sociedade arguida seguiu para uma morada distinta do TIR, concretamente para a  “Rua C”, isto é, para uma morada com um código postal e localidade distinta da que constava da morada do TIR.
Na verdade, após consulta do site “Código Postal” (https://www.codigo-postal.pt/?cp4=2970&cp3 =000) verifica-se que o código postal 2970-000 corresponde a SESIMBRA e o código postal 2855-000 corresponde a CORROIOS, Seixal.
Em resultado deste facto a carta veio devolvida com a menção de que não existe a rua, lote e número de porta indicados, menção que poderia ter funcionado como um alerta para a verificação de eventual existência de lapso na morada indicada na carta, porém, não foi o caso.
Dito isto, a carta de notificação da acusação seguiu para uma morada grosseiramente distinta da constante do TIR prestado e, aliás, inexistente, como se alcança da menção constante na carta devolvida.
A carta não veio devolvida com a indicação de “não atendeu”, ou “não existe recetáculo”, mas com a indicação de que a morada não existia de todo.
E se é assim, a carta não foi depositada por existência de qualquer deficiência da morada indicada no TIR, ou suspeita de fraude com vista à tentativa de a arguida se eximir à notificação da acusação, ou engano dos serviços do correio, mas porque a carta foi remetida para uma morada inexistente, por lapso grosseiro e manifesto dos serviços do Ministério Público, que não se percecionou (ou não se quis percecionar) em seu devido tempo, pelo que o erro não foi corrigido.
A ser assim, não tem qualquer razão o Recorrente quando alega que a notificação deve considerar-se regular, por a carta ter sido remetida para a morada constante do TIR, o que não corresponde à verdade dos factos, como acima se atesta.
Temos em que se julga improcedente o recurso nesta parte.

2. Saber se é de revogar o despacho recorrido por a eventual irregularidade processual não ser de conhecimento oficioso.
O Recorrente considera que a ter existido uma irregularidade na notificação da arguida, o seu conhecimento depende da sua arguição pelo interessado, nos termos do art.º 123º, n.º 1, do CPP.
 O argumentário do Recorrente também carece de razão.
A notificação da acusação a um acusado é, sem dúvida, um direito pessoal de um qualquer arguido num processo penal que se quer justo.
A falta de tal notificação fere da forma mais elementar os direitos de defesa do arguido, com assento constitucional (art.º 32º, da CRP).
Considerando que a notificação realizada à sociedade arguida - que só o é numa muito pálida e esfumada aparência - visava dar a conhecer à mesma a dedução de uma acusação pública contra si dirigida, a considerar-se que a notificação, apesar de pálida, ainda tem aparência de tal (porque tinha como destinatária a arguida e constava do endereço a rua indicada no TIR), tal notificação, não há dúvida, afeta o valor do ato praticado, na medida em que a mesma não logrou produzir os relevantes efeitos jurídicos a que se destinava (não só estritamente processuais, como substantivos), e jamais os poderia produzir, por falta de idoneidade para o efeito, em razão do que a notificação da acusação não pode dar-se por cumprida.
A aceitar-se que tal viciação do ato processual deve ser qualificada como irregularidade, posto que não consta do elenco das nulidades previstas nos artigos 119º e 120º, do CPP, sempre terá de ser enquadrada no n.º 2, do art.º 123º, do CPP, onde se preceitua que “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que dela se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado”.
Portanto, esta irregularidade conduzirá sempre à invalidade do ato e dos termos subsequentes, por a mesma afetar o valor do ato praticado e, além do mais, conter um enorme potencial de violação dos mais básicos direitos de defesa da sociedade arguida.
Tal irregularidade pode ser conhecida pelo juiz do julgamento oficiosamente e a todo o tempo, posto que a lei não lhe fixa limites temporais, podendo e devendo sê-lo no momento do cumprimento do disposto no art.º 311º, do CPP, na vertente do saneamento do processo, porquanto compete ao tribunal, nesse âmbito, pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e de que possa desde logo conhecer.
As irregularidades mais graves previstas no art.º 123º, n.º 2, do CPP, são, portanto, equiparadas às nulidades insanáveis em matéria de conhecimento oficioso e efeitos invalidantes dos atos a jusante que deles diretamente dependam, sendo muitas vezes mais significantes do que as nulidades sanáveis, em razão do que poderão ser apelidadas de “nulidades atípicas”, de conhecimento oficioso.
Mais:
Será até de questionar se o ato processual não será no caso em apreço inexistente, por ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades, sendo que algo inexistente nem carece de ser anulado, bastante o reconhecimento dessa inexistência jurídica.
Dito de outro modo, se a notificação enviada para uma morada inexistente distinta do TIR se destinava a dar a conhecer à sociedade Ré o teor da acusação pública contra si deduzida e não cumpriu, nem podia manifestamente cumprir, com a sua função, então pode dizer-se que o ato não existe, por falta de idoneidade para cumprir com o seu papel de dar a conhecer à arguida os factos que lhe são imputados na acusação e o direito aplicável.
A anomalia da notificação é demasiado grave para cumprir os mínimos imprescindíveis para poder ser reconhecida como tal, contendo, como já se referiu, um enorme potencial de violação dos mais básicos direitos de defesa da sociedade arguida.
Um dos argumentos que pode ser invocado nesse sentido é de que constitui nulidade insanável, portanto passível de conhecimento oficioso, a ausência de arguido à audiência de julgamento por falta de notificação do mesmo para a morada do TIR, o que impõe a repetição do ato (art.ºs 113º, n.º 10, 119º, alínea c), 196º, 332º, n.º 1, e 122º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal).
Ora se a falta de arguido na audiência de julgamento por falta notificação para a sua comparência constitui uma nulidade insanável (art.º 119º, al. c), do CPP), a falta de notificação do arguido da acusação, que constitui uma violação do direito de defesa porventura mais gravoso, deverá, por maioria de razão, originar vício e consequência jurídica não menos gravosa.

Como quer que seja, o juiz do julgamento não podia deixar de conhecer oficiosamente a grosseira anomalia/invalidade da notificação da acusação da arguida no momento do cumprimento do disposto no art.º 311º, do CPP, posto que a falta de notificação da acusação a um dos arguidos obsta, obviamente, à apreciação do mérito da causa e o conhecimento oficioso da invalidade da notificação resulta expresso desde logo do disposto no art.º 123º, n.º 2, do CPP.
Termos em que improcede o recurso, também neste segmento.

3. Saber se é de revogar o despacho recorrido por o tribunal não poder dar ordens ao Ministério Público, em violação da autonomia e independência deste.
Considera o Recorrente que, a admitir-se a irregularidade da notificação e o seu conhecimento oficioso, a reparação da irregularidade deve ser realizada pelo juiz (neste caso do julgamento), por ter sido quem declarou o ato irregular.
A jurisprudência tem-se dividido sobre saber se verificada a inexistência ou uma irregularidade da notificação da acusação, detetada no momento do art.º 311º, do CPP, é legítimo ao juiz a quem foi distribuído o processo para a fase do julgamento devolver o mesmo ao Ministério Público para, querendo, proceder à reparação do seu erro.
No sentido de que nada impede a restituição do processo ao Ministério Público podemos citar alguns acórdãos, nomeadamente o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 25 de julho de 2018, processo 123/16.4PGOER.L1-3, relatado por Conceição Gonçalves, em cujo sumário se lê:
I. A omissão de notificação da acusação constitui irregularidade cuja reparação pode ser conhecida oficiosamente, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, afetando tal omissão o ato em si, de conhecimento da acusação, nos termos previstos no art.º 123º, nº 2 do CPP.
II.- Dispõe o nº 5 do art.º 283º do CPP, por remissão para o nº 3 do art.º 277º do mesmo diploma, a obrigatoriedade de o Ministério Público notificar a acusação ao arguido e ao seu defensor, tendo a obrigação legal de tudo fazer para notificar o arguido.
III.- O legislador só admitiu a possibilidade de o processo transitar para a fase de julgamento sem o arguido ser notificado da acusação na situação prevista no nº 5 do art.º 283º do CPP, ou seja, “quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes”.
IV.- A devolução dos autos ao Ministério Público para reparação da irregularidade por omissão de notificação da acusação, na situação em que se não mostram preenchidos os pressupostos do nº 5 do art.º 283º do CPP, em nada contende com a estrutura acusatória do processo.”
O  acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5 de Maio de 2015, em que é relatora Leonor Botelho, assim sumariado:
“I.- A autoridade judiciária competente para notificar a acusação é o MºPº.
 II.- Se detectada, pelo juiz, no momento do art.º 311º do CPP, uma ilegalidade consistente na notificação irregular da acusação ao arguido, deve o juiz providenciar pela sua reparação, podendo ordenar a devolução dos autos ao MºPº para que proceda à sua notificação.
III.- Esta prática não viola o acusatório e não interfere com a autonomia do MºPº, pois do que se trata é de viabilizar que o MºPº supra a irregularidade que cometeu e diligencie pela notificação da sua acusação, autonomamente elaborada.”
E ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 08.04.2014, processo 650/12.2PBFAR-A.E1, relatado João Gomes de Sousa, cujo sumário, na parte mais relevante, reza assim:
I - A acusação deve ser notificada ao arguido, não só pelo que se prevê no art.º 113º, n.º 10, do CPP, mas porque é uma exigência de um due process, de um processo justo, enquanto direito pessoal do arguido que não se basta com a mera notificação do seu defensor -art. 6.º. n.º 3, alínea a), da Convenção dos Direitos do homem.
II – (…)
III – Se a notificação da acusação não se pode considerar validamente efetuada, estamos face a uma irregularidade de conhecimento oficioso, que o juiz do julgamento deve conhecer no momento do cumprimento do art.º 311º, do Código, na vertente do saneamento do processo.
IV – Não é indiferente a fase do processo em que o arguido é notificado da acusação, nem a entidade que procede a essa notificação.
V- A jurisprudência tem uma função de “deterrence example” ou efeito dissuasor sobre condutas processuais inadequadas.
Não desconhecemos jurisprudência em sentido contrário, porventura mais recente e maioritária, citada abundantemente nas alegações de recurso, para onde se remete.
Tendemos, porém, a afastarmo-nos da mesma, por diversas razões:
Primeiro porque a competência para a notificação da acusação é do Ministério Público, como se afere do disposto no art.º 283º, n.º 5, 1ª parte, do CPP.
Segundo porque o legislador só admitiu o envio do processo para a fase de julgamento sem que a fase das notificações da acusação esteja completa “quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” (art.º 283º, n.º 5, 2ª parte, do CPP), o que supõe a existência de procedimentos de notificação idóneos a cumprir com a sua função, o que não foi manifestamente o caso nos autos. Na decorrência, o legislador só previu a possibilidade de a notificação da acusação ser realizada na fase de julgamento na situação excecional prevista no art.º 336º, n.º 3, do CPP.
Terceiro, porque a invalidade do procedimento de notificação da acusação, mesmo se qualificada como uma irregularidade de conhecimento oficioso, acarreta a invalidade dos atos a jusante (dos termos subsequentes), nomeadamente do ato de distribuição do processo para julgamento (art.º 123º, n.º 1, do CPP).
Quarto, porque, não tendo sido recebida a acusação no âmbito do art.º 311º, do CPP, o processo está num limbo entre a fase de inquérito e a de julgamento.
Quinto, e último, porque não é indiferente para o arguido ser notificado da acusação num momento em que o processo está em fase de inquérito, ou num momento em que o processo está já em fase de julgamento.
A título exemplificativo, não é indiferente para um arguido poder eventualmente invocar no inquérito irregularidades, que até poderão ser reparadas pelo Ministério Público, ou não ter a possibilidade de o fazer depois de o processo ter transitado intempestivamente para a fase do julgamento. Também não é indiferente a um arguido (ou poderá não ser) ver o processo encerrado por exemplo por desistência de queixa (quando possível, naturalmente) quando ainda está na esfera do Ministério Público, ou quando já transitou para a fase de julgamento.
Parafraseando João Gomes de Sousa no citado acórdão 650/12.2PBFAR-A.E1:
Não é indiferente a fase do processo em que o arguido é notificado da acusação. É certo que em qualquer fase ele pode requerer a realização da instrução, mas isso é uma abstracção. Pode concretizar-se com facilidade para o arguido que sabe ou tem facilidade de contratar quem saiba. Não para o comum cidadão que não sabe e/ou não tem facilidade de contratar quem saiba em tempo útil. E que tenderá a considerar que a marcação do julgamento é uma realidade inultrapassável. (…) Mas aqui também não é indiferente o arguido ser notificado pelo Ministério Público que o acusa ou pelo juiz de um tribunal que o vai julgar. O cidadão/ã que recebe a notificação não será uma abstracção sabedora, será um cidadão normal com dificuldade em perceber a notificação e seus efeitos.

E nem se diga que o tribunal recorrido ao devolver o processo à fase de inquérito deu ordens ao Ministério Público, violando por esta via a sua autonomia e independência, pois que o tribunal recorrido limitou-se a não receber os autos, devido à existência de um vício processual que impede a apreciação do mérito da causa, e a determinar o seu reenvio ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, cabendo ao mesmo proceder da forma que melhor entender.
Ou seja, a decisão recorrida não se imiscuiu no poder de direção do inquérito, nem violou o princípio do acusatório ou a autonomia do Ministério Público, limitou-se a reconhecer a existência de um vício num ato processual cuja prática é da competência do Ministério Público e que impede o prosseguimento dos autos em vista do conhecimento do respetivo mérito.
A defesa, aliás intransigente, da estrutura acusatória (em contraponto com a inquisitória) do processo penal e da autonomia do Ministério público não se pode confundir com a aceitação da desoneração de competências que a este cabem, em desrespeito do estrito ritual processual previsto.
Aceitar como “normal”, no sentido de normalizar, a remessa para a fase de julgamento de inquéritos onde foi proferida acusação e onde os arguidos não se mostram notificados da acusação fora dos casos previstos no art.º 283º, n.º 5, 2ª parte, do CPP, encerra outro risco, o da banalização do incumprimento dos devidos trâmites legais do processo penal, nos momentos definidos legalmente para o efeito, simplificação de procedimentos que o legislador não previu e não quis.
A celeridade processual muitas vezes invocada para justificar a reparação já na fase de julgamento da notificação da acusação inválida ou inexistente e que deveria ter sido praticada validamente em sede de inquérito promove, na outra face da moeda, a banalização do envio para a fase de julgamento de inquéritos acusados fora das circunstâncias previstas legalmente.
Permitimo-nos, com muito respeito, citar de novo João Gomes de Sousa, no sentido de que à jurisprudência cabe também uma função de dissuasão de condutas processuais inadequadas, sob pena de as mesmas se tornarem aceitáveis, apesar de ilegais, e dos prejuízos e/ou inconvenientes que possam acarretar para os sujeitos processuais, mormente para os arguidos.
Como quer que seja, a divergência jurisprudencial nesta matéria poderá eventualmente ser apreciada em sede de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, se assim for entendido.
Nesta conformidade, nenhuma censura se pode fazer ao despacho recorrido quando determinou o reenvio dos autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes.
Improcede, pois, o recurso interposto, também nesta parte.
*
III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Isento de custas.
Notifique e D.N.

Lisboa, 23-02-2023
Madalena Augusta Parreiral Caldeira
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros (com voto de vencido)
*
Voto de vencido
No que respeita ao ponto 3. do objecto do recurso revogaria a decisão recorrida na parte em que determinou a remessa dos autos ao Ministério Público para reparação da irregularidade por omissão de notificação da acusação nos termos em que decidi idêntica questão no âmbito do Acórdão nº 57/20.8PESXL.L1 da 9ª Secção.
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros