Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
67471/13.0YIPRT.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
NULIDADE DA SENTENÇA
FACTOS NÃO PROVADOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.– Sendo a nulidade um vício grave, que inquina definitiva e irrevogavelmente um acto, ele deve ser reservado, ex rerum natura, para situações de ostensiva violação da legalidade ou omissões significativas de condutas devidas.
II.– A mera alegação de um complexo factual inusitado sem que se vislumbre no comportamento processual da parte um esforço de prova da sua verificação ou que da prova produzida, embora inconclusiva, fica a dúvida sobre a possibilidade da sua ocorrência, pode justificar um juízo de consciência da falta de fundamento na sua invocação.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


NESTES AUTOS DE ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA


ENTRE


... WINES –SOCIEDADE VITIVINÍCOLA DO ..., Ldª - Autora/Apelada

e

... ... –EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, Ldª - [Sociedade de
Direito Angolano, com sede em Benguela] - Ré/Apelante


I –Relatório:

A Autora intentou a presente acção pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 9.059,60 €, e juros, referente ao remanescente do preço ainda por pagar de uma partida de vinhos que, a pedido da Ré, lhe forneceu, conforme a sua factura 219, de 21ABR2010, com vencimento em 20JUN2010.

A Ré contestou excepcionando a incompetência internacional do tribunal, a nulidade da citação e a extinção da dívida (na sequência da acordada extinção das relações comerciais entre Autora e Ré a partida de vinhos em causa foi já entregue a terceira pessoa, que assumiu o respectivo pagamento, do qual a Ré ficou desvinculada, com a anuência da Autora, conforme declaração escrita que emitiu em 29SET2010) e que, de qualquer forma, a pretensão da Autora sempre consistiria em abuso de direito. Mais pediu a condenação da Autora como litigante de má-fé, por ter omitido qualquer referência à declaração de exoneração que emitiu assim deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, em multa e indemnização nunca inferior a 4.800,00 €.

A Autora respondeu alegando que a declaração em causa não correspondia à vontade real, mas correspondia apenas a uma tentativa em conjunto entre Autora e Ré de pressionar terceira pessoa a pagar o preço dos fornecimentos efectuados, o que a acontecer exoneraria a Ré da sua responsabilidade.

A final foi proferida sentença que julgou improcedentes as excepções de incompetência material do tribunal e nulidade da citação e, considerando que não obstante a Ré não ter demonstrado que os bens foram entregues a terceira pessoa o certo é que a Autora emitiu uma declaração exoneratória e, por seu turno, não logrou demonstrar factos que obstassem à validade ou eficácia dessa declaração, pelo que a Ré agiu sem culpa, absolveu a mesma Ré do pedido. E igualmente absolveu a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé por entender estar-se apenas perante um circunstancialismo de falta de prova insusceptível para formular um juízo de intencionalidade.

Inconformada, apelou a Ré da absolvição do pedido de condenação como litigante de má-fé, concluindo, em síntese, pela nulidade da sentença e por estarem verificados os pressupostos para a litigância de má-fé.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II –Questões a Resolver.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, desde logo importa salientar que a sentença recorrida transitou em julgado quanto ao fundo da causa, encontrando-se apenas em aberto a questão incidental da ocorrência ou não de litigância de má-fé por banda da Autora.
Por conseguinte são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da nulidade da sentença;
- da verificação da litigância de má-fé;
- eventualmente, do montante da multa e da indemnização.

III –Da Nulidade.

Aderindo a um (mau) estilo que por aí anda fazendo caminho, não foge o recorrente à habitual invocação da nulidade do artº 615º do CPC, concretamente na modalidade de oposição dos fundamentos com a decisão.

Sendo a nulidade um vício grave, que inquina definitiva e irrevogavelmente um acto, ele deve ser reservado, ex rerum natura, para situações de ostensiva violação da legalidade ou omissões significativas de condutas devidas.

Daí que as situações elencadas no referido artº 615º do CPC devam ser entendidas naquela perspectiva e, consequentemente, só deva considerar-se abrangido no âmbito da nulidade a falta absoluta ou significativa de especificação dos fundamentos de facto ou de direito ou a contradição frontal e insanável entre os fundamentos e a decisão.

São de excluir do âmbito da nulidade as deficiências ou incongruências decorrentes da melhor ou pior capacidade argumentativa, da melhor ou pior inspiração do momento, da melhor ou pior atenção, ou mesmo da melhor ou pior capacidade técnica do juiz que lavra a sentença.

Na sentença impugnada encontra-se explanada quer a factualidade considerada quer os termos em que a mesma foi juridicamente enquadrada no sentido de se obter a decisão que foi tomada, em termos tais que terceiros se podem inteirar do raciocínio efectuado, habilitando-os suficientemente para o escrutinar.
As eventuais incongruências ou insuficiências desse raciocínio respeitam, não já à sua validade formal, mas antes à sua validade substancial, ao mérito da causa (no caso, do recurso).
Não ocorre, pois, a apontada nulidade.

IV –Fundamentos de Facto.

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

V –Fundamentos de Direito.

O direito de litigar em juízo, quer como demandante quer como demandado, deve ser exercido dentro de determinados limites circunscritos por deveres de conduta, em particular os deveres de cooperação, boa-fé processual e correcção (cf. artigos 7º, 8º e 9º do CPC - anteriormente artigos 266º, 266º-A e 266º-B). Limites esses impostos pela natureza pública do processo civil, pois que para além dos interesses privados (individuais, egoísticos e antagónicos) das partes na estratégia processual e na resolução do litígio prevalece o interesse público da pacificação social e correcta administração da justiça, com equitativa e igualitária alocação dos parcos recursos disponíveis e adequada celeridade.

A parte que desrespeitar aqueles deveres de conduta pode ser sancionada com taxa sancionatória excepcional (art.º 531º do CPC) ou como litigante de má-fé (art.º 542º do CPC).

No caso concreto dos autos verifica-se que a Autora intentou acção tendente à condenação em pagamento de uma obrigação pecuniária omitindo por completo que havia emitido uma declaração de exoneração dessa obrigação. E quando confrontada com esse facto veio alegar que tal declaração não correspondia à vontade real tendo sido emitida numa tentativa concertada com a Ré de pressionar o pagamento por terceiro.

Essa alegada factualidade não logrou provar-se dada, conforme resulta da fundamentação exarada na sentença recorrida, a “inexistência de qualquer dado probatório que permitisse concluir pela sua verificação”[1].

Considerando que a indemonstração de um facto (ademais por ausência de prova) não corresponde à prova do seu contrário e, por isso não se podia concluir que a Autora tivesse deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar o Mmº juiz a quo absolveu do pedido de condenação como litigante de má-fé.
Se é certo que a defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos diversa daquela que vem a ser acolhida não constitui litigância censurável e que da não prova de um facto se não pode extrair sem mais que ele não é verdadeiro ou a prova do seu contrário, não é menos certo que na aferição da conduta processual das partes a aplicação dessas regras de enquadramento tem de ser feita em função das circunstâncias concretas do caso.

Assim, e volvendo já o olhar para o presente caso, a possibilidade de a não prova de um facto corresponder à inexistência (ou melhor, à consciente representação da inexistência) desse facto deve ter-se por mais plausível tanto quanto, à luz do seu contexto e da experiência comum de vida, ele se afigura inusitado. A mera alegação de um complexo factual inusitado sem que se vislumbre no comportamento processual da parte um esforço de prova da sua verificação ou que da prova produzida, embora inconclusiva, fica a dúvida sobre a possibilidade da sua ocorrência, pode justificar um juízo de consciência da falta de fundamento na sua invocação.

O que se nos afigura ser o caso dos autos.

Na economia do litígio posto à consideração do tribunal a declaração de exoneração emitida (facto que nunca foi, aliás, posto em causa) assume particular importância. A Autora omitiu-o ao intentar a acção; e quando confrontada com o facto veio alegar um complexo factual (que tal declaração foi emitida, em conluio com a Ré, para enganar terceiro tendo em vista levar este a pagar a dívida que era da Ré e não a desonerar esta) que face à experiência comum de vida temos por bastante inusitado.

Não juntou qualquer documento alusivo a tal alegação. A única testemunha inquirida (também por si oferecida) prestou depoimento[2] em que se referiu à emissão da declaração em causa no contexto de acordo que formulou e afirmando a sua plena validade e eficácia, ou seja, em sentido totalmente contrário ao que foi pela Autora alegado; e que, apesar das incongruências do depoimento, se pode resumir a que ‘vendeu o vinho da factura 219 por conta da Ré e que pelo menos parte do dinheiro que daí recebeu o utilizou para desalfandegar o contentor seguinte, enviado já por sua conta, na sequência do acordo que fizera com a Autora que incluía a compra da posição da Ré no negócio a troco da exoneração desta’.

Tudo isto conjugado permite, em nosso modo de ver que se conclua que a Autora não podia desconhecer essa realidade e, agindo de boa-fé e diligentemente, não podia deixar de estar consciente da falta de fundamento da sua pretensão, caindo na previsão da al. a) do nº 2 do art.º 542º (anteriormente art.º 456º) do CPC.

Mas ainda que assim se não entendesse, é indiscutível que a Autora não desconhecia que havia emitido a declaração de exoneração e que a existência desta era relevante para a apreciação do litígio pelo que ao omitir tal facto na sua petição inicial caiu na alçada da al. b) do nº 2 do art.º 542º (anteriormente art.º 456º) do CPC.

Donde se conclui ter a Autora litigado de má-fé.

Impondo-se, nos termos do nº 1 do citado preceito legal, a sua condenação em multa e (porque pedida) em indemnização.

Na fixação do montante da multa atender-se-á à capacidade económica da Autora decorrente da sua actividade comercial evidenciada na documentação junta aos autos e na gravidade da conduta (dolo directo na omissão de factos e agravamento dessa conduta com a dedução de factualidade incorrecta).

A indemnização à parte contrária pode consistir apenas no reembolso das despesas da lide (incluindo honorários) ou nesta e na satisfação dos demais prejuízos ocorridos, consoante o que se afigurar mais adequado, e sempre em quantia certa (o que significa que na falta de elementos para quantificar a indemnização não há lugar à remessa para liquidação, devendo a mesma ser fixada equitativamente).

No caso dos autos não se nos afigura que hajam outros prejuízos para além dos decorrentes com os encargos do processo (nem isso é alegado pela Ré).

A Ré pede a fixação da indemnização em 4.800 € sem especificar como calculou essa quantia e os autos não fornecem elementos para oficiosamente se proceder a tal cálculo, pelo que nos encontramos na situação prevista no nº 3 do artº 543º do CPC, havendo de ouvir as partes sobre a matéria.

VI –Decisão:

Termos em que, na procedência da apelação, se revoga a decisão recorrida e, em substituição, se decide:

-condenar a Autora como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor da Ré;
-fixar a multa em 5 UC’s.
-com vista à fixação da quantia indemnizatória conceder à Ré o prazo de 10 dias, contados do trânsito em julgado desta decisão, e à Autora um subsequente prazo de 10 dias para sobre tal se pronunciarem.

Custas da Apelação pela Autora; do incidente de litigância de má-fé na 1ª instância também pela Autora, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.



Lisboa, 06JUN2017



(Rijo Ferreira)            
(Afonso Henrique)
(Rui Vouga)



[1] –afirmação que, como se verá adiante, não reflecte a realidade uma vez que foi produzida prova sobre a matéria; em nossa opinião, até no sentido de demonstrar o contrário do alegado pela Autora.
[2]cuja gravação foi integralmente ouvida neste tribunal.