Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
77557/18.0YIPRT.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: SENTENÇA
VÍCIOS
CARTÃO DE CRÉDITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Sumário: 1. Uma sentença é suscetível de padecer de diversos vícios, os quais, por sua vez, podem ser de diversos tipos, a saber:
a) vícios formais, em sentido lato, que são os que decorrem da inobservância das regras que garantem a idoneidade e disciplinam a elaboração da sentença, enquanto ato processual, traduzindo-se em error in procedendo ou erro de actividade, e que afetam a existência, a perfectibilidade material ou a validade da mesma, o que pode, nos casos insupríveis, prejudicar a própria apreciação do seu objeto;
b) vícios substanciais, decorrentes da incorrecta ou ilegal apreciação das questões a resolver, traduzindo-se em error in judicando ou erro de julgamento, tanto em matéria processual (caso da apreciação de exceções dilatórias) como em matéria substantiva, de facto ou de direito.
2. Os erros formais implicam, consoante as hipóteses, a inexistência, a retificação ou a nulidade da sentença, importando os vícios substanciais a sua revogação total ou parcial.
3. Cartão de crédito é qualquer instrumento de pagamento, para uso eletrónico ou não, que seja emitido por uma instituição de crédito ou por uma sociedade financeira, que possibilite ao seu detentor a utilização de crédito outorgado pela emitente, em especial para a aquisição de bens ou de serviços
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO:
UCR, apresentou ao Secretário de Justiça do Balcão Nacional de Injunções, requerimento de injunção contra AMF, do qual consta o seguinte:
«O(s) requerente(s) solicita(m) que seja(m) notificado(s) o(s) requerido(s) no sentido de lhes(s) ser paga a quantia € 9.003,95, conforme discriminação e pela causa a seguir indicada:
Capital: € 8.240,41; Juros de mora € 610,54 à taxa de 24,57% desde 18-10-2017 até à presente data; Outras quantias: € 00,00; Taxa de Justiça paga: € 153,00.
Contrato de: Utilização de cartão de crédito     Contrato n.º
Data do contrato: 26-01-2009[1]             
Período a que se refere: 26-01-2009 a 08-07-2018
Exposição dos factos que fundamentam a pretensão:
1. A Requerente é uma instituição financeira de crédito que, devidamente autorizada e em conformidade com a legislação portuguesa aplicável, se dedica ao financiamento de crédito e à gestão e emissão de cartões de crédito.
2. No exercício da sua atividade, a ora Requerente celebrou com o Requerido, a pedido e no interesse deste, um contrato de atribuição de cartão de crédito em 26.01.2009, através do qual este passou a ser titular de um cartão de crédito cujo último emitido tem o n.º _____.
3. Ao subscrever o contrato em apreço, o Requerido aderiu às condições gerais de utilização e correspetivos direito e deveres, elaboradas de acordo com o previsto no Aviso n.º 11/2001 do Banco de Portugal e do Regulamento (CE) n.º 2560/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19/12/2001.
4. Através do supra referido cartão de crédito foi concedido ao Requerido a possibilidade de este adquirir bens e/ou serviços pelo montante acordado entre este e os vendedores, bem como efetuar operações de levantamento em numerário na rede de ATM’s e aos balcões de bancos aderentes ao sistema VISA.
5. A emissão do cartão de crédito permitiu igualmente que o Requerido acedesse a produtos bancários a este associados, nomeadamente o denominado Crédito Pessoal, através do qual o Requerido solicitou e obteve da Requerente, em 15/04/2016, um crédito no valor de € 3.000,00[2] na conta bancária por este indicada, tendo em contrapartida de pagar mensalmente as prestações debitadas nos extratos da conta-cartão de crédito de que é titular e que na altura estava associada ao cartão nessa data em vigor.
6. No referido contrato foi igualmente convencionado que, em caso de cancelamento do cartão por facto imputável ao seu titular (como é o caso em apreço) seria debitada a totalidade do montante de Crédito Pessoal ainda não reembolsado pelo Requerido, que acresceria ao valor de capital em dívida.
7. Impendia igualmente sobre a Requerente a obrigação e proceder ao pagamento dos bens e/ou serviços adquiridos pelo Requerido a terceiros, os quais seriam, como foram, posteriormente debitados no extrato de conta do Requerido para que este procedesse ao respetivo pagamento.
8. A Requerente obrigou-se a disponibilizar mensalmente ao Requerido um extrato da sua conta, contendo:
i) as referências e os valores das transações efetuadas, pagas pela Requerente em nome do Requerido; ii) as prestações e o encargos referentes ao Crédito Pessoal; iii) os valores que pelo Requerido seriam devidos à Requerente pela prestação de serviços; iv) os valores respeitantes a correções ou movimentos de estorno quando devidos; v) os valores respeitantes a anuidades, juros, impostos e encargos devidos a serviços solicitados pelo Requerido à Requerente, quando aplicáveis; vi) os pagamentos efetuados pelo Requerido à Requerente.
9. O montante total em dívida indicado num dado extrato deveria ser pago no prazo de 20 dias após a data da sua emissão. Caso não fosse pago pela totalidade, sobre a parte remanescente, deduzida de eventuais juros e respetivos impostos, incidiram juros pelo período mensal decorrido desde a data de emissão daquele extrato até à data de emissão do extrato seguinte.
10. A taxa de juro contratual é uma taxa de juro mensal com base num ano de 360 dias assumindo meses de 30 dias. Esta taxa foi indicada ao Requerido na Proposta de Adesão e, sempre que sofreu alteração, foi igualmente comunicada, nomeadamente no extrato de conta, entrando em vigor 30 dias após essa comunicação.
11. Sucede que o Requerido não liquidou à Requerente o saldo em dívida resultante do cartão e produtos associados.
12. Com efeito, desde 14.06.2018 que o Requerido não efetua qualquer pagamento do saldo em dívida.
13. Razão pela qual o montante de capital em dívida ascende nesta data ao valor de € 8240,41.
14. O Requerido não procedeu ao pagamento do saldo em dívida a que se alude, apesar de diversas vezes interpelado para o efeito, designadamente, pela emissão e receção dos subsequentes extratos de conta-cartão.
15. Em conformidade com a legislação em vigor, Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro, a Requerente procedeu à abertura do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) em 18.01.2017.
16. Este procedimento foi encerrado em 23.03.2017.
17. O Requerido constitui-se em mora desde 18.10.2017.
18. Assim, para além do capital em dívida no montante de € 8240,41 acrescem, ainda, os competentes juros de mora contratuais, calculados às sucessivas taxas praticadas pela instituição e conformidade com o estabelecido pelas instruções do Banco de Portugal, de acordo com o previsto no Decreto-Lei 133/2009, de 02 de Junho, desde 18.10.2017 até à data do presente requerimento de injunção.
19. A taxa anual atualmente em vigor é de 23.568%, ascendendo os juros nesta data a € 610,54.
20. O montante de imposto de selo incidente sobre os juros está incluído no valor indicado em 19.
21. Ao capital em dívida acrescerão ainda os juros de mora vencidos posteriormente e os vincendos até integral pagamento, calculados à taxa anual de 23.568%.
22. Em suma, o crédito da Requerente sobre o Requerido ascende ao total de € 9003,95, ao qual acresce o valor da taxa de justiça liquidada pela presente injunção.»
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O requerido deduziu oposição, começando por arguir:
- a «exceção dilatória de ineptidão da petição inicial»[3];
- a exceção perentória de prescrição do direito que o requerente pretende fazer valer através desta ação.
No mais, alega que não corresponde à verdade que tenha deixado de pagar o saldo em dívida desde 14 de junho de 2018, pois nesta data pagou a quantia de € 75,00, e em 25 de junho de 2018, a quantia de € 90,00.
Conclui assim o articulado de oposição:
«Nestes termos (...) deverá ser julgada procedente:
a) A Exceção Dilatória de Ineptidão da Petição Inicial, e em consequência ser o Requerido absolvido da instância;
b) A Exceção Perentória Extintiva de Prescrição e, em consequência ser o Requerido absolvido do pedido.
Sem conceder, e por mero dever de patrocínio, deverá, pelo menos, a presente Injunção ser julgada improcedente por não provada, e em consequência, ser o Requerido absolvido do pedido.»
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A autora respondeu à matéria de exceção, pugnando pela sua improcedência.
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Da forma singela vertida no despacho de fls. 78, foi julgada improcedente a exceção dilatória arguida pela ré.
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Na subsequente tramitação dos autos, realizou a audiência final, após o que foi proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:
«Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, consequentemente, condeno o requerido AMF no pagamento à “UCR” da quantia de 8.240,41€ (oito mil, duzentos e quarenta euros e quarenta e um cêntimos), a que acrescem os juros vencidos e vincendos sobre o referido capital, à taxa de juros contratual de 23,57%, desde 18 de outubro de 2017 e até integral pagamento, valor de juros este ao qual serão abatidos os pagamentos feitos pelo requerido de 75,00€ (setenta e cinco euros) em 14/6/2018 e de 90,00€ (noventa euros) em 25/6/2018; absolvo o requerido do remanescente pedido.»
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O autor não se conformou com o assim decidido, pelo que interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«1. No caso vertente o Tribunal a quo contrariamente ao referido não abriu sessão de Julgamento no dia 19 de Fevereiro de 2019 pelas 15.00 horas.
2. De referir que a sentença recorrida foi entregue ao mandatário do R. pessoalmente no hall do Tribunal de Almada, por uma funcionária Judicial do respetivo Juiz 2.
3. Ou seja, a audiência de julgamento nunca foi formalmente aberta.
4. Por outro lado, nunca foi o mandatário do R. questionado se concordava ou não com as referidas rectificações, e muito menos lhe foi dado conhecimento de quando e de que forma foram requeridas as mesmas.
5. E, como tal, o recorrente ou o seu mandatário não tiveram hipótese de se opor às aludidas rectificações, alegadamente requeridas pelo recorrido, porque nunca foram confrontados com as mesmas.
6. Aqui se afirmando expressamente, de todo o modo, que o Recorrente nunca concordaria com tal rectificação.
7. Além de que tendo o Tribunal a quo considerado como válido o contrato n.º _____ de 17/07/1991, então deveria ter sido considerada inválida ab initio a presente ação Judicial, uma vez que todos os documentos apresentados pelo A. para a instruir, e onde se reclama a divida, se referem ao contrato _____, de 26-01-2009.
8. Portanto, verifica-se na douta sentença recorrida uma contradição insanável pois a sua fundamentação de facto justifica uma decisão precisamente oposta á proferida, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
9. A douta sentença, enferma de falsidade, contradições, incongruências e erro notório na apreciação da prova, o que origina a sua nulidade, de acordo com o art.º 615.º n.º 1 al c) do Código de Processo Civil.
10. O tribunal a quo nunca se pronunciou sobre a aceitação da disparidade de datas e números de contrato existentes entre o art.º 2.º da injunção e o artigo 5.º do requerimento.
11. Não merece provimento a explicação da A. de que se tratou de um mero lapso informático atenta a disparidade de datas (26/01/2009 e 17/07/1991) e de números de contrato (n.º _____ e n.º 454898- 21-0216-9034).
12. Nem se pode compreender como aceitou o Tribunal a quo como facto assente para efeitos de decisão a existência do contrato celebrado em 17/07/1991, uma vez que todos os documentos constantes dos autos e enviados ao R. se referem ao contrato n.º _____, de 26-01-2009.
13. Contrato este que aliás nunca foi apresentado pelo A. aos presentes autos.
14. Quanto à formação do capital em dívida constata-se que de todos os documentos constantes dos autos e referentes ao período de Abril 2016 e Setembro de 2017, bem como os valores comunicados ao R. que se encontravam em incumprimento como são o caso dos documentos n.ºs 5 e 21 juntos ao requerimento pelo A. esses valores são respetivamente de €. 290,67 e 862,08.
15. Não se formou nenhum incumprimento no período mencionado pelo A. uma vez que o R. conforme consta na douta sentença ainda se encontrava a pagar ao A. em Junho de 2018.
16. No caso em apreço se o Tribunal a quo considera como válido o contrato n.º _____ de 17/07/1991 terá que ser considerada invalida ab initio a presente ação Judicial uma vez que todos os documentos apresentados pelo A. e onde se reclama a divida se referem ao contrato _____, de 26-01-2009.
17. O Tribunal a quo veio dar como facto provado a existência de renovação de cartões de crédito sendo o último emitido o que tem o n.º _____, não sabendo como se poderá ter chegado a tal conclusão, se o mesmo sequer existe, uma vez que nunca foi apresentada cópia de tal cartão, nem da proposta contratual.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser admitido o presente recurso, devendo ser a presente Apelação considerada procedente, por provada e revogada a sentença proferida.»
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A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do CPC) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º, do CPC).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do CPC) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
À luz destes considerandos, neste recurso cabe decidir:
a) se a sentença recorrida é nula nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do C.P.C.;
b) se inexiste incumprimento contratual por parte do réu,
importando referir que:
- são descabidos, em sede do presente recurso, os pontos 1 a 7, 10, 11 e 16, das conclusões;
- não se compreende o que pretende o apelante significar com a expressão de que a presente ação deveria ter sido «considerada inválida ab initio».
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A sentença recorrida considerou provada a seguinte factualidade:
1. A requerente é uma instituição financeira de crédito que, devidamente autorizada, se dedica ao financiamento de crédito e à gestão e emissão de cartões de crédito.
2. No exercício da sua atividade, a “UCR” celebrou com o requerido, a pedido e no interesse deste, um contrato de atribuição de cartão de crédito em 17 de julho de 1991, através do qual este passou a ser titular de um cartão de crédito, sendo que o último que lhe foi emitido tem o número _____.
3. Ao subscrever o contrato em apreço, o requerido aderiu às condições gerais de utilização.
4. Através do referido cartão de crédito, foi conferida ao requerido a possibilidade de este adquirir bens ou serviços pelo preço acordado com os vendedores, bem com o efetuar operações de levantamento em numerário na rede de ATM’s e nos balcões de bancos aderentes ao sistema VISA.
5. A emissão do cartão de crédito permitiu igualmente que o requerido acedesse a produtos bancários a este associados, nomeadamente a crédito pessoal, através do qual o requerido solicitou e obteve da requerente, em 15 de abril de 2016, um crédito no valor de 9,000,00€ na conta bancária indicada pelo requerido, tendo, em contrapartida, que pagar mensalmente as prestações, que seriam debitadas na conta bancária de que é titular e que estava associada ao cartão de crédito.
6. Ficou convencionado no contrato que, em caso de cancelamento do cartão por facto imputável ao requerido, ser-lhe ia debitada a totalidade do montante de capital ainda não reembolsado.
7. Por seu turno, a requerente obrigou-se a proceder ao pagamento dos bens e serviços adquiridos pelo requerido a terceiros, os quais seriam indicados no extrato de conta do requerido, para que este procedesse mensalmente ao pagamento.
8. A requerente obrigou-se ainda a disponibilizar mensalmente ao requerido um extrato da sua conta, contendo:
- As referências e os valores das transações efetuadas, pagas pela requerente em nome do requerido;
- As prestações e os encargos referentes ao crédito pessoal;
- Os valores que pelo requerido seriam devidos à requerente pela prestação de serviços;
- Os valores respeitantes a correções ou movimentos de estorno, quando devidos;
- Os valores respeitantes a anuidades, juros, impostos e encargos devidos pelos serviços solicitados pelo requerido à requerente, quando aplicável;
- Os pagamentos efetuados pelo requerido à requerente.
9. Das condições gerais resultava que o montante total em dívida indicado num cada extrato devia ser pago no prazo de 20 dias após a data da sua emissão; e que, se esse montante não fosse pago pela totalidade, sobre a parte remanescente, deduzida de eventuais juros e impostos, seriam devidos juros pelo período mensal decorrido desde a data de emissão daquele extrato e até á data de emissão do extrato seguinte.
10. A taxa de juro prevista no contrato é uma taxa de juros mensal com base num ano de 360 dias, assumindo meses de 30 dias; a taxa de juro inicial do contrato constava da proposta de adesão aceite pelo requerido; as posteriores alterações da taxa de juros foram comunicadas ao requerido através do extrato de conta, entrando em vigor 30 dias após essa comunicação, sendo a última comunicada de 23,568%.
11. O requerido foi interpelado pela requerente, através dos extratos de conta-cartão que lhe foram enviados.
12. Face a esta situação, a requerente procedeu à abertura, em 18 de janeiro de 2017, de um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, o qual foi encerrado em 23 de março de 2017.
13. O requerido pagou à requerente, por conta da dívida resultante do cartão de crédito e mútuo associado, as quantias de: 75,00€ em 14 de junho de 2018 e 90,00€ em 25 de junho de 2018.
14. O crédito pessoal de 9.000,00€ referido na alínea 5. foi solicitado pelo requerido pelo documento escrito por si subscrito junto a fls. 36.
15. O requerido vinculou-se perante a UCR, em 13 de abril de 2016, nos termos que constam do documento de fls. 36 verso: “(…) declara , por sua livre e esclarecida vontade, que tem diversos débitos e responsabilidades para com a UCR …, responsabilidades essas que, ao presente, incluindo juros, ascendem ao montante de 9.074,19 euros, respeitantes à utilização do cartão de crédito número _____ titulado em meu nome… Mais declara que acorda, com vista à regularização dos referidos débitos e responsabilidades, em reestruturar a dívida através da concessão de um crédito pessoal de 9.000,00 euros, e prazo de reembolso de 72 meses, de que se confessa devedor à dita “UCR”. Que se obriga a pagar à referida UCR os valores mínimos acordados em cada extrato de conta mensalmente a emitir. Mais declara e aceita ainda que, em caso de não pagamento de dois dos extratos mensais reconhecer à UCR a faculdade de considerar imediatamente vencidas as prestações vincendas, fazendo a UCR o concomitante lançamento a débito, na mencionada conta-cartão, do valor total de capital, juros, impostos, encargos e despesas que à data estiver em dívida, vencendo-se sobre esse valor total, juros à taxa moratória igual à que, em cada momento, vigorem para os cartões Unibanco. (…). ”.
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3.2 – Do mérito do recurso:
3.2.1 – Duas notas prévias:
3.2.1.1 – Da falsidade da sentença:
Não se compreende, salvo o devido o respeito, a afirmação do apelante de que a sentença recorrida «enferma de falsidade.»
Uma sentença é suscetível de padecer de diversos vícios, os quais, por sua vez, podem ser de diversos tipos, a saber:
a) vícios formais, em sentido lato, que são os que decorrem da inobservância das regras que garantem a idoneidade e disciplinam a elaboração da sentença, enquanto ato processual, traduzindo-se em error in procedendo ou erro de actividade, e que afetam a existência, a perfectibilidade material ou a validade da mesma, o que pode, nos casos insupríveis, prejudicar a própria apreciação do seu objeto;
b) vícios substanciais, decorrentes da incorrecta ou ilegal apreciação das questões a resolver, traduzindo-se em error in judicando ou erro de julgamento, tanto em matéria processual (caso da apreciação de exceções dilatórias) como em matéria substantiva, de facto ou de direito.
Os erros formais implicam, consoante as hipóteses, a inexistência, a retificação ou a nulidade da sentença, importando os vícios substanciais a sua revogação total ou parcial.
Dentro dos vícios formais em sentido lato, temos:
a) os vícios de inexistência da sentença; e
b) os erros materiais.
No que respeita aos vícios de inexistência da sentença, os únicos que poderiam estar aqui e agora em causa, importa salientar que a existência jurídica de uma sentença implica a verificação de quatro pressupostos essenciais:
a) que seja proferida por pessoa investida no exercício da função jurisdicional, ainda que se trate porventura de tribunal materialmente incompetente;
b) que contenha, no limite, uma decisão;
c) que essa decisão diga respeito a pessoas ou entidades equiparadas reais, que não partes fictícias;
d) que revista uma forma legal mínima, ainda que não se tenha observado a forma legalmente exigida.
Consequentemente, são jurídico-processualmente inexistentes como sentença, os actos que se traduzam em:
- decisão com pretensão de sentença proferida por pessoa ou instituição destituída em absoluto de poder judicial;
- emissão de um mero parecer ou opinião jurídica, por muito fundamentado que se revele, ou ainda na hipótese extrema de um dispositivo absolutamente ininteligível;
- decisão reportada a pessoas fictícias ou inexistentes;
- decisão sem a mínima documentação nos autos; já a sentença ditada para a acta em vez de proferida por escrito nos termos da lei não padece do vício de inexistência jurídica, mas, quando muito, de uma irregularidade que pode não afectar a sua validade processual, de harmonia com o disposto no artigo 195.º, n.º 1, do C.P.C.[4].
Parece evidente que a sentença recorrida não padece de qualquer um dos apontados vícios.
A situação descrita pelo apelante seria, eventualmente, suscetível de configurar um incidente de falsidade de ata, a suscitar no momento e através dos mecanismos para o efeito especificamente previstos no Código de Processo Civil, e não no presente recurso de apelação.
3.2.1.2 – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
O apelante afirma o seguinte:
- «A douta sentença enferma de (...) erro notório na apreciação da prova (...)»;
- «Nem se pode compreender como aceitou o Tribunal a quo como facto assente para efeitos de decisão a existência do contrato celebrado em 17/07/1991, uma vez que todos os documentos constantes dos autos e enviados ao R. se referem ao contrato n.º _____, de 26-01-2009»;
- «No caso em apreço se o Tribunal a quo considera como válido o contrato n.º _____ de 17/07/1991 terá que ser considerada invalida ab initio a presente ação Judicial uma vez que todos os documentos apresentados pelo A. e onde se reclama a divida se referem ao contrato _____, de 26-01-2009»;
- «O Tribunal a quo veio dar como facto provado a existência de renovação de cartões de crédito sendo o último emitido o que tem o n.º _____, não sabendo como se poderá ter chegado a tal conclusão, se o mesmo sequer existe, uma vez que nunca foi apresentada cópia de tal cartão, nem da proposta contratual».
Tal, não configura qualquer impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não tendo o apelante dado cumprimento aos ónus impostos pelo art. 640.º, do C.P.C..
Por essa razão, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não foi incluída no objeto do presente recurso.
3.2.1.3 – Da nulidade da sentença recorrida:
Nos termos da al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC, «é nula a sentença quando (...) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
O vício da sentença a que alude este segmento normativo configura um vício formal, que se traduz em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a sua validade.
Para que a sentença proferida se encontre em contradição com a fundamentação nela acolhida, necessário se torna que os fundamentos invocados na decisão conduzam, num processo lógico, a solução oposta àquela que foi adotada[5].
A nulidade da sentença decorrente dos fundamentos estarem em oposição com a decisão verifica-se, assim, quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se, não se confundindo, enquanto vício de natureza processual, com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal, ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
Em suma, pois, a nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão apenas se verifica quando os fundamentos invocados conduzem, num processo lógico, a uma solução oposta àquela que foi adotada, e não quando a sentença interpreta os factos, documentos e normas em sentido diverso do propugnado pelo recorrente; de outra forma dizendo, esta nulidade radica numa desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso.
Ora, a sentença recorrida não enferma, manifestamente, de um tal vício.
Ainda que fosse intenção do apelante invocar a 2ª parta da al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC, então importa dizer que «a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer, no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos»[6].
Remédio Marques refere que «a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos», e «a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença[7]».
Idêntico entendimento é o sufragado por Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ao referirem que «o pedido de aclaração tem cabimento sempre que algum trecho essencial da sentença seja obscuro (por ser ininteligível o pensamento do julgador) ou ambíguo (por comportar dois ou mais sentidos distintos)»[8].
Parece evidente que a sentença recorrida não contém qualquer obscuridade ou ambiguidade, sendo que:
- é inequívoco o sentido da sentença e dos seus fundamentos;
- a sentença não se mostra ininteligível, pois lendo os seus fundamentos, a mesma afigura-se de bastante fácil compreensão.
Termos em que improcede a arguição de nulidade da sentença recorrida.
3.2.1.4 – Do enquadramento jurídico:
Está provado que:
- a apelada, instituição financeira, no exercício da sua atividade de financiamento de crédito e de gestão e emissão de cartões de crédito, em 17 de julho de 1991, celebrou com o apelante, a pedido e no interesse deste, um contrato de atribuição de crédito, através do qual este passou a ser detentor de um cartão de crédito;
- o último cartão de crédito emitido pela apelada a favor do apelante no âmbito desse contrato tinha o número _____.
Cartão de crédito é qualquer instrumento de pagamento, para uso eletrónico ou não, que seja emitido por uma instituição de crédito ou por uma sociedade financeira, que possibilite ao seu detentor a utilização de crédito outorgado pela emitente, em especial para a aquisição de bens ou de serviços – art. 1.º, al. a) do Aviso do Banco de Portugal n.º 11/2001.
O art. 2.º, n.º 1, al. a), do Dec. Lei n.º 359/91, de 21.09, o vigente à data da celebração do contrato de atribuição de crédito, qualificava expressamente tal contrato de crédito ao consumo.
Esse diploma foi revogado pelo Dec. Lei n.º 133/2009, de 02.06; no entanto, é ele o aplicável, reitera-se, atenta a data da celebração do contrato.
Mais está provado que:
- através do supra referido cartão de crédito foi concedido ao apelante a possibilidade de este adquirir bens e/ou serviços pelo montante acordado entre si e os vendedores, ou seja, os sujeitos que aceitaram o cartão, bem como efetuar operações de levantamento em numerário na rede de ATM’s e aos balcões de bancos aderentes ao sistema VISA;
- a emissão do cartão de crédito permitiu igualmente que o apelante acedesse a produtos bancários associados ao referido cartão de crédito, nomeadamente o denominado Crédito Pessoal, através do qual o apelante solicitou e obteve da apelada, em 15/04/2016, um crédito no valor de € 9.000,00 na conta bancária por aquele, tendo, em contrapartida, de pagar mensalmente as prestações debitadas nos extratos da conta-cartão de crédito de que é igualmente titular, e que na altura estava associada ao cartão;
- ficou convencionado no contrato que, em caso de cancelamento do cartão por facto imputável ao apelante, ser-lhe ia debitada a totalidade do montante de capital ainda não reembolsado;
- a apelada obrigou-se a proceder ao pagamento dos bens e serviços adquiridos pelo requerido a terceiros, os quais seriam indicados no extrato de conta do requerido, para que este procedesse mensalmente ao pagamento;
- a apelada obrigou-se ainda a disponibilizar mensalmente ao apelante um extrato da sua conta, contendo: as referências e os valores das transações efetuadas, pagas por aquela em nome deste; as prestações e os encargos referentes ao crédito pessoal; os valores que pelo apelante seriam devidos à apelada pela prestação de serviços; os valores respeitantes a correções ou movimentos de estorno, quando devidos; os valores respeitantes a anuidades, juros, impostos e encargos devidos pelos serviços solicitados pelo apelante à apelada, quando aplicável; os pagamentos efetuados pelo apelante à apelada;
- das condições gerais resultava que o montante total em dívida indicado num cada extrato devia ser pago no prazo de 20 dias após a data da sua emissão; e que, se esse montante não fosse pago pela totalidade, sobre a parte remanescente, deduzida de eventuais juros e impostos, seriam devidos juros pelo período mensal decorrido desde a data de emissão daquele extrato e até á data de emissão do extrato seguinte.
- o apelante foi interpelado pela apelada, através dos extratos de conta-cartão que lhe foram enviados.
- face a esta situação, a apelada procedeu à abertura, em 18 de janeiro de 2017, de um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, o qual foi encerrado em 23 de março de 2017.
- por conta da dívida resultante do cartão de crédito e mútuo associado, as quantias de: 75,00€ em 14 de junho de 2018 e 90,00€ em 25 de junho de 2018.
- crédito pessoal de € 9.000,00 acima referido foi solicitado pelo apelante pelo documento escrito por si subscrito junto a fls. 36.
- o apelante vinculou-se perante a UCR, em 13 de abril de 2016, nos termos que constam do documento de fls. 36 verso: “(…) declara , por sua livre e esclarecida vontade, que tem diversos débitos e responsabilidades para com a UCR …, responsabilidades essas que, ao presente, incluindo juros, ascendem ao montante de 9.074,19 euros, respeitantes à utilização do cartão de crédito número _____ titulado em meu nome… Mais declara que acorda, com vista à regularização dos referidos débitos e responsabilidades, em reestruturar a dívida através da concessão de um crédito pessoal de 9.000,00 euros, e prazo de reembolso de 72 meses, de que se confessa devedor à dita “UCR”. Que se obriga a pagar à referida UCR os valores mínimos acordados em cada extrato de conta mensalmente a emitir. Mais declara e aceita ainda que, em caso de não pagamento de dois dos extratos mensais reconhecer à UCR a faculdade de considerar imediatamente vencidas as prestações vincendas, fazendo a UCR o concomitante lançamento a débito, na mencionada conta-cartão, do valor total de capital, juros, impostos, encargos e despesas que à data estiver em dívida, vencendo-se sobre esse valor total, juros à taxa moratória igual à que, em cada momento, vigorem para os cartões Unibanco. (…). ”.
Perante isto, não se vislumbra que mereça censura a sentença recorrida, pois que a prestação torna-se exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do artigo 777.º, n.º 1, do C.C., de simples interpelação ao devedor.
Conforme ali se refere, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do C.C., competia ao apelante a alegação e prova do pagamento da totalidade da quantia reivindicada pela apelada nesta ação.
Não o tendo feito, não poderia a ação deixar de ser julgada nos termos em que o foi na sentença recorrida, a qual, por isso, não merece censura, devendo ser confirmada.
*
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em negar provimento à apelação, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pelo apelante – art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.

Lisboa, 10 de setembro de 2019
(Acórdão assinado eletronicamente)
Relator
José Capacete
Adjuntos
Carlos Oliveira
Diogo Ravara

[1] Na sequência do requerido a fls. 25-28, por despacho de fls. 84 foi retificada a data do contrato para “17-07-1991”.
[2] Na sequência do requerido a fls. 25-28, por despacho de fls. 84 foi retificado o valor do crédito para “€ 9.000,00”.
[3] Inexiste a figura da exceção de ineptidão da petição inicial; o que a lei consagra é a exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial – arts. 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. b), do C.P.C.

[4] Cfr. Tomé Gomes, Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2014, pp. 34-35. Sobre esta questão cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, AAFDL, Lisboa, 1980. pp. 297 ss., José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, pp. 113 ss., e Paulo Cunha, Defeitos da Sentença e seus Remédios, in O Direito, 73.º, pp. 98 ss., e Da Marcha do Processo: Processo Comum de Declaração: apontamentos de Jaime Lemos e Artur Costa, II, 2. Edição, Braga, Augusto Costa & Companhia, Lda., 1944, pp. 347 ss.
[5] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, 3ª Ed., 1952, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 141.
[6] Idem, p. 151.
[7] Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2011, p. 667.
[8] Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, p. 693.